Depois que terminei o
doutorado venho me dedicando na continuidade das minhas pesquisas, tanto para
os textos científicos quanto para os artigos do blog e palestras. As
informações, entretanto, me servem para todos os âmbitos. Ocorre que fui
convidado para uma publicação fora do Brasil, e me ative ao campo gastronômico
local, observando peculiaridade que a capital do Ceará, Fortaleza, dispõe e
pode ser de interesse para outras culturas.
Nessa altura, era hora de
almoço e me foi servido um baião de dois ‘cremoso’. Se você mora no Ceará,
especialmente em Fortaleza, você já deve ter se deparado com essa preparação
que, graças a modernidade é servida como acréscimos de nata, creme de leite e
muito queijo de coalho. Isso, aliás já é motivo de investigação, pois o baião
de dois ‘original’ não é “molhado” (nome dado pela incidência do caldo
resultante da mistura de nata com creme de leite junto a mistura de feijão e
arroz). Assim, há quem ame e quem odeie
esse tipo de baião.
O fato é que eu viajei na
hora que vi o prato sendo servido: aquilo era um risoto! E como um risoto, se
não for bem executado, vira uma desgraça!
Mas olhem a foto, a baixo, e
me respondam: isso é um baião de dois?
Eu juro, que nessas horas eu
queria que a tecnologia já estivesse ainda mais desenvolvida, para poder ouvir
o que vocês responderam. E, se você respondeu que: sim, isso é um baião de
dois. Sinto lhe informar, o que você vê é uma Paniscia!!!
Oriunda do Piemonte, terras
de grandes risotos, regados com vinho, temperados com excelente carne de porco,
curiosamente essa preparação poderia ser comparada a um baião de dois, exceto
por algumas particularidades. Os ingredientes da paniscia Novarese são: arroz
da variedade Arborio, Carnaroli ou Roma, feijão borlotti, couve lombarda,
cenoura, aipo, cebola, vinho tinto (possivelmente da Colline Novaresi), banha
(não manteiga), couro de porco, salame 'la duja, sal e pimenta. Em cada casa,
claro, a receita é personalizada e muitas vezes a lista de ingredientes é
reduzida, embora certamente não possam faltar feijão, cebola, vinho e salame.
Acreditasse que o nome da
preparação venha da representatividade do “Panicum Miliaceum” e do “Panicum
Italicum”, um cereal antigo , oriundo do painço e do milheto, eram a base de
preparações como sopas, e outras comidas camponesas, sendo depois substituídas
por arroz ou farinha de grão de bico nas diferentes preparações locais. A
difusão territorial do nome está ligada ao domínio político e administrativo
dos Sabóia (Savoia), mas não é certo que esse conhecimento tenha sido
transmitido pelos seus emissários, e nem sequer ajuda a traçar uma cronologia
útil para compreender a sua verdadeira origem da Paniscia.
Para alguns, somente no século XIX preparações com o nome de paniscia apareceram nos livros de receitas locais: ao que consta, diluído na história, o Cônego Giuseppe Artaserse Bazzetta (1760-1825) foi responsável pelo o primeiro receituário da cozinha novarese, consequentemente, o primeiro a delinear uma codificação moderna da Paniscia Novarese, tal como a conhecemos hoje. Como escreveu o historiador novaresi Angelo Luigi Stoppa: Em Novara o arroz nasce na água e morre no vinho, frase que marca a tradição enológica daquela região com importância desde a época do Império Romano, e deixa a inclusão do vinho marcada como ingrediente da paniscia.
Após seu advento na gastronomia italiana, e o tomate só teria
entrado em algumas versões da própria paniscia na segunda metade do século XIX.
mortadella di fegato
Além disso, na sua difusão
territorial pode-se reconhecer a influência do Ducado de Sabóia, como também do
atual Molise, onde se podem encontrar preparações semelhantes ao
"panicce", hoje preparado com farinha de milheto, região que dele
fazia parte, juntamente com territórios hoje incluídos nos departamentos
franceses.
Paniscia Novarese e
Panissa Vercellese
Esses dois risotos refletem
uma rivalidade histórica entre duas cidades, unidas pela chegada do arroz no
final do século XV. Aqui estão as diferenças entre os dois pratos, onde a maior
parte é composta por ingredientes como feijão, mortadela de fígado e salame
d'la duja. Quem vencerá o desafio?
Podemos viver em um mundo
onde as fronteiras estão se tornando cada vez mais instáveis (ou não?), mas na
gastronomia italiana há limites, de sobra. Países ultramarinos com muros muito
mais altos que os Alpes. Da mesma forma, porém, dentro do mesmo país, confundidos
por políticas do passado. Tomemos como exemplo a área de Novara e Vercelli.
Duas cidades italianas que você espera que sejam gastronomicamente semelhantes
e até opostas a tudo além de Ticino, que já foi a fronteira entre a Lombardia
austríaca e o Piemonte Savoia. Mas não.
As duas cidades são rivais
ferrenhas e a paniscia, o prato típico de Novara, sempre foi contrariada pela
panissa vercellese. Por quê? Bem, porque a "velha" fronteira entre os
dois territórios, os estados apertados do Piemonte e da Lombardia, industriosos
e um pouco anarquistas, antes de 1734 sempre foi mais a oeste, entre Novara e
Vercelli. Deixando Novara para a Lombardia.
Ainda hoje, o povo de Novara
é classificado como lombardo para os piemonteses e piemontês para os lombardos.
Um híbrido, precisamente. Mas o que consequências isso trouxe para a cozinha?
Hoje, a paniscia Novarese
pode ser entendida como um risoto: um prato à base de arroz, geralmente
superfino, com grãos grandes, como o Razza 77 ou, alternativamente, o Arborio;
com feijão borlotti, vegetais (couve lombarda, aipo, cenoura, cebola e tomate)
e couro de porco (às vezes também com rabo de porco e outras carnes em caldo)
prepara-se um saboroso caldo, resultado de um cozimento muito longo. Neste
ponto, numa frigideira, frita-se uma cebola na banha e acrescenta-se outros
dois ingredientes típicos locais: salame d'la duja (ou doja), ou seja, o salame
macio maturado em uma jarra de banha; e, muitas vezes, mas, não em todas as
receitas, mortadela de fígado piemontesa, típica de Valsesia e da região do
Lago Orta. Neste ponto junta-se o arroz, com um copo de vinho barbera
(originário do Piemonte) e a seguir junta-se o caldo, mexendo no final com um
pouco de manteiga.
Não era exatamente um prato
leve vitorioso, mas era o que era preciso para encher com bom gosto as barrigas
dos agricultores nos dias de festa. As origens deste prato são muito antigas e
certamente consumidas antes mesmo da chegada do arroz no Vale do Pó (região
italiana da Planícia Padana), introduzido na comunidade milanesa (e, portanto,
também em Novara) pela família Sforza no final do século XV.
No lugar do arroz usado
anteriormente, eram usados outros cereais como cevada, centeio, milheto, aveia
e panicum. De tal modo, o nome paniscia provavelmente deriva do fato de que os
agricultores, quando viram pela primeira vez os grãos de arroz (também usados
como método de pagamento – salário - , daquele tempo), tentaram descascá-los
inicialmente, mas sem grandes resultados. Os grãos, quebrados e triturados,
lembravam o "paniciu", um cereal antigo semelhante ao milheto
consumido na Idade Média. Assim nasceram a paniscia e a panissa.
Distintamente, a panissa
vercellese é muito mais simples. O caldo muito rico de carne e vegetais
desaparece em favor de um caldo de carne simples com aipo e cenoura; a
mortadela de fígado (principalmente ligada à variedade da serra) desaparece e,
às vezes, até mesmo o salame d'la duja é substituído por salames ou linguiças
frescas comuns. Mas, acima de tudo, em vez dos feijões borlotti, são usados os
grandes feijões de Saluggia, que são feijões rajados, tenros e preciosos.
A origem desta preparação
também é muito antiga. A primeira documentação histórica foi relatada por
Giacomo Grasso em sua Storia della cucina vercellese, quando o prato estava
contido em um menu de casamento datado de 1738. No qual, na panissa, tanto o "fasöi
grosc" (mas naquela época eram provavelmente os de Villata) quanto o
"salam vecc", ou seja, o salame d'la duja, aparecem imediatamente na
panissa original, o que consequentemente representa um elemento essencial da
receita.
Contudo, existem inúmeras
versões de panissa, assim como de paniscia: tradicionalmente, nas planícies do
vale, couro de porco é comumente usado, enquanto em outras áreas a receita com
vinho prevalece e os frios são completamente eliminados.
Enquanto Novaresi e
Vercellesi discutem há séculos sobre se a paniscia ou a panissa é melhor, as
áreas vizinhas também entram na batalha. Em Valsesia, por exemplo, há a
paniccia, um prato de carnaval que antigamente era preparado cozinhando arroz
em leite. Hoje, a panissa é, em essência, uma espécie de minestrone com
vegetais e caldo de carne, feito com arroz ou macarrão.
A paniccia do Lago Orta é
feita com arroz e feijão. O nome também reaparece em outras receitas muito
diferentes, fora do Piemonte. Como no caso da panissa da Ligúria, uma espécie
de focaccia com farinha de grão-de-bico semelhante à farinata, e a paniscia de
Val Badia, no Alto Adige, uma espécie de sopa de cevada – mas esse é outro
capítulo da história...
para finalizar, como todo
boa comida, as modificações feitas para atrair os paladares acaba fazendo as
receitas variarem e até serem alteradas, mas a essência permanece. Logo, para
quem gosta de se aventurar na cozinha eu deixo a receita de uma versão da
Paniscia novarensse, não que eu esteja tomando partido, mas pelo fato de ela
ter um resultado bastante agradável e que lembra muito o confortante bilhão de
dois do meu Nordeste! Se fizer, me conta...
Paniscia alla novarese
Arroz Carnaroli 320 g
Couve lombarda 300 g
Feijão borlotti seco (ou feijão rajado,
demolhado desde a noite anterior) 250 g
Salame da Nduja (é um salame típico da
Calábria, se não tiver use uma boa calabresa ou um bom salame que encontrar)
190 g
Chalota (ou cebola comum) 120 g
Casca de bacon (ou couro de barriga de
porco fresco) 75 g
Lardo 75 g
Vinho tinto 100g
Grana Padano DOP para ralar 70 g
Manteiga 50g (mais uma colher de café de manteiga)
Azeite extra virgem a gosto
Sal a gosto
Pimenta preta a gosto
Preparo:
Para fazer a paniscia alla novarese, corte primeiro a casca do bacon em
tiras finas. Retire a parte dura do caule da couve e reserve, depois corte as
folhas em tiras da largura de meio centímetro. Numa frigideira com laterais
altas aqueça um fio de azeite, junte a casca de bacon e deixe dourar alguns
minutos, depois junte o feijão que deixou de molho durante a noite e o talo da
couve que reservou. Cubra com água e deixe ferver. O caldo deverá cozinhar
cerca de 40 minutos e será utilizado para o preparo do risoto. Entretanto,
pique finamente a cebola. Limpe o salame, tire a tripa e corte-o em pequenos
pedaços. Pegue uma panela e derreta uma colher de café de manteiga, acrescente o lardo picado em quadradinhos pequenos e
a cebola. Tempere com sal e doure por alguns minutos, depois acrescente o salame.
Neste ponto, despeje o arroz e toste por 3-4 minutos, depois adicione o vinho
tinto e deixe evaporar completamente. Cozinhe o arroz acrescentando uma concha
de caldo de cada vez, lembrando use o caldo com o feijão, mas não o talo da
couve (ele só estava ali para agregar sabor). A meio da cozedura junte as folhas
de couve, tempere com sal e continue a cozinhar. Quando o arroz estiver cozido,
desligue o fogo e tampe com a tampa por 2 minutos. Por fim, junte as 50g de manteiga
e o queijo ralado, acrescente pimenta a gosto e misture vigorosamente. Sua
paniscia Novarese está pronta para ser servida!