quarta-feira, 10 de agosto de 2011

A Festa de Babette: gastronomia para aguçar além dos sentidos


Já faz algum tempo que venho listando filmes que tenham a culinária e a gastronomia como elemento gancho por onde se contam histórias de personagens e, a partir do contexto, permitir que o espectador possa compreender elos e os enfoques diferentes pelos quais os diretores se embrenham para contar sua história.

Hoje, mais uma vez, me peguei revendo uma obra das mais sofisticadas que já pude ver, “A festa de Babette” (Le festin de Babette), do dinamarquês Gabriel Axel, filme baseado na obra homônima da escritora, também dinamarquesa, Karen Blixen. E lhes digo, definitivamente vale a pena assistir esse filme pelo simples fato de que ele vai te levar para além das expectativas. Obviamente a sensibilidade de cada um vai dar o tom nas sensações, mas seja quais elas forem, vale muito a pena.


Uma das edições do livro com o título original em dinamarquês - Babettes Gæstebud .
Talvez alguém possa estar se perguntando como eu ouso afirmar uma coisa destas. E eu lhes darei alguns exemplos pra justificar essa minha ousadia:
Na primeira vez em que me dispus a assistir ao filme, já havia me deparado com muitas boas referências a ele; algumas duras demais, ao ponto de alguns críticos serem simplistas ao afirma que era um filme sobre comensalidade e que os adoradores de cinema poderiam ver nas cenas de “A Festa de Babette” a comida no seu sentido lato (com toda a representação ritualística da cozinha, dos ingredientes como dádivas da terra, com referências ao deleite; revelando o caráter da hospitalidade e as interações com comida como fonte para o sagrado.

 Porém, ele é mais que tudo isso. É transcendental. O filme divaga pela exploração de todos os sentidos, usando a presença do “sutil” para evocar a sensibilidade necessária em cada cena que, com a ajuda da trilha sonora certeira desperta desejos ocultos, sensações, prazeres...


Assim sendo, não seria difícil entender porque o filme ganhou o Oscar em 1987. Mas eu devo aqui me deter a alusão ao sagrado que me pegou de jeito.
Eu, particularmente, sempre gostei de simbolismo. Talvez pelo fato de eu ter estudado mitologia por uns bons anos e sempre recorria a estudar elementos simbólicos para melhor compreender seu aparecimento nas alegorias míticas.
E, em A Festa de Babette, é nítida a presença do simbolismo cristão. Passo, então, a listar algumas observações a esse respeito, não estou dizendo que elas orientam a ideia fundamental do autor, nem do diretor do filme, são antes simbolismos extraídos a partir do que aparece nas cenas e do que elas acabaram significando para mim naquele momento quando eu assistia ao filme, vejamos:
·         Há, claramente, um paralelo entre a imagem de Babette e a do Cristo: Babette é pobre, chegou misteriosamente a uma pequena comunidade, trabalha como criada e, no final, presenteia a todos com um lauto banquete;
·         O auto-sacrifício por amor é outra ligação nessa comparação, já que ele está presente nos dois casos (Babette/Cristo), como fio condutor da história;
·         O banquete em memória do pastor é uma alusão clara à 'Última Ceia' e, por extensão, à liturgia cristã;
·         À mesa sentaram-se doze pessoas – uma clara alusão aos doze apóstolos;
·         Cailles au Sarcofage ('Codorna no Sarcófago'), foi o prato principal servido por Babette. Codorna significando 'maná' (alimento espiritual de origem divina que consola a alma); e Sarcófago, palavra vinda do latim, 'sarcophagus', significa 'aquele que come carne'. Assim, o prato principal é uma insinuação direta às palavras do Cristo: 'Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão, viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha vida' (João 6, 51)".
De certo que todos os pratos feitos por Babette precisam ser cuidadosamente analisados para expandir essa discussão e despertar nossa consciência e nossos sentidos.

Por isso fiz o registro do menu servido por Babette, que era composto por:



·         Potage à la tortue géante


·         Blinis Demidoff au caviar servido com champanhe Veuve Clicquot de 1860



·     Caille en Sarcophage avec Sauce Perigourdine (codorna em folhada com foie gras e molho de trufas) servido com Clos de Vougeot Pinot Noir 1845.





·         La Salade (Salada de endívia com chicória belga e nozes em vinagrete)


·         Les fromages (com queijo azul e frutas exóticas: mamão, figo, uvas, abacaxi e romã)


·     Gâteau aux raisins et rhum avec des figues mûrs, ou o que popularmente se conhece como “Savarin au Rhum avec des Figues et Fruits Glacées (savarin embebido em rum com figos e cerejas cristalizadas) e champanhe.


·         Café com conhaque Louis XIII de Rémy Martin





Essa sobremesa, em particular, é uma coisa que já preparei e pretendo falar sobre ela depois. Mas, antes de concluir esta postagem, eu ainda gostaria de ressaltar outro simbolismo notado no filme, que aponta a ligação da cozinheira com a feitiçaria. 
Em certo ponto do filme todos os convidados do banquete se reúnem acreditando que Babette seja uma bruxa, e passam a cogitar que ela trará a desgraça para aquela comunidade, e que aquelas comidas sedutoras serão usadas para este fim.



Não vou me furtar em dizer que eu também acho que há uma ligação da cozinha com a feitiçaria, de que quem cozinha tem um quê de feiticeiro (a). Porque quem cozinha acaba elaborando uma delicada alquimia para enfeitiçar não só o paladar de quem irá comer, mas também deve embriagar os outros sentidos, para aguçá-los.


Babette sabia disso e fazia isso com maestria. Ela sabia perfeitamente do alcance transformador da comida. Ela sabia que mesmo depois de comer coisas maravilhosas, cuidadosamente executadas com amor e técnica, aqueles comensais não permaneceriam os mesmos... E feitiçaria de fato ocorreu, na cozinha: acessou o quarto elementos (terra, fogo, água e ar) na cozinha, usou ingredientes exóticos (tartaruga, fois gras [fígado de ganso], caviar [ovas de esturjão], trufas negras, dentre outros), se permitiu usar as melhores bebidas, talvez uma oferenda a Baco, quem sabe... mas com elementos estranhos para aquele povo, a feiticeira da cozinha preparou poções mágicas sedutoras que encantou a todos.

Bom, eu não tenho dez mil francos para repetir o banquete de Babette. Mas, pelo menos, ficar sem a receita do prato principal, nós não vamos (risos).

Cailles en Sarcophage
[Para oito pessoas]
500 g. de massa folhada.
1 gema batida com duas colheres de sopa de água
8 codornas desossadas (exceto pernas e asas)
6 colheres de sopa de conhaque
60 g. de trufas pretas picadas
240 g. de fois gras fresco
5 colheres de sopa de manteiga sem sal
3 échalotes picadas
1 xícara de chá de vinho branco seco
4 xícaras de chá de caldo de carne
2 colheres de chá de trigo dissolvidas em um pouco de vinho branco
8 cogumelos de Paris grandes (somente os chapéus)
1 colher de chá de óleo de amendoim
Sal e pimenta-do-reino moída na hora
Farinha de trigo para polvilhar

Preparo: MASSA: Estenda a massa em superfície lisa. Corte oito retângulos de 10 cm de largura por 13 cm de comprimento. Faça alguns furos com a ponta de um garfo e pincele com a mistura de gema e água. Asse a massa no forno pré-aquecido, por 15 minutos, até que esteja dourada. Quando estiverem frios, corte e retire um pedaço da parte central, de cada retângulo, com o auxílio de uma faca, formando “ninhos”, para receber as codornas. CODORNAS (caille): Lave e seque as codornas. Tempere com sal, pimenta e duas colheres de cognac. Junte metade das trufas picadas. Divida o fois gras em oito porções iguais e distribua nas cavidades. Feche cada codorna com linha. Em uma panela de fundo grosso, aqueça uma colher de sopa de manteiga. Acrescente os ossos que foram retirados e toste-os ligeiramente. Coloque as échalotes e refogue sem parar de mexer. Misture 2 colheres de cognac e raspe o fundo da panela. Acrescente o vinho, o caldo e deixe ferver lentamente por 30 minutos, até reduzir pela metade. Coe o caldo e devolva para a panela. Despeje a mistura de trigo, e mexa até o caldo engrossar. Incorpore as trufas restantes e tempere com sal e pimenta. Reserve. Refogue os cogumelos em duas colheres de manteiga. Reserve. Aqueça a manteiga restante com o óleo e doure as codornas, virando-as de todos os lados, leve-as depois ao forno por 10 minutos. Coloque o cognac restante na frigideira que dourou as codornas e raspe-a. Junte essa mistura ao caldo com as trufas. Retire as codornas do forno e retire as linhas. MONTAGEM: Coloque as massas numa assadeira e deposite uma codorna em cada “ninho” de massa. Reaqueça no forno, por 5 minutos. Transfira, cuidadosamente, para os pratos. Arrume os cogumelos em volta. Derrame o molho quente sobre as codornas e os cogumelos. Sirva imediatamente.

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