Já
faz algum tempo que venho listando filmes que tenham a culinária e a
gastronomia como elemento gancho por onde se contam histórias de personagens e,
a partir do contexto, permitir que o espectador possa compreender elos e os
enfoques diferentes pelos quais os diretores se embrenham para contar sua
história.
Hoje,
mais uma vez, me peguei revendo uma obra das mais sofisticadas que já pude ver,
“A festa de Babette” (Le festin de Babette), do dinamarquês Gabriel Axel, filme
baseado na obra homônima da escritora, também dinamarquesa, Karen Blixen. E
lhes digo, definitivamente vale a pena assistir esse filme pelo simples fato de
que ele vai te levar para além das expectativas. Obviamente a sensibilidade de
cada um vai dar o tom nas sensações, mas seja quais elas forem, vale muito a
pena.
Uma das edições do livro com o título original em dinamarquês - Babettes Gæstebud . |
Talvez
alguém possa estar se perguntando como eu ouso afirmar uma coisa destas. E eu
lhes darei alguns exemplos pra justificar essa minha ousadia:
Na
primeira vez em que me dispus a assistir ao filme, já havia me deparado com
muitas boas referências a ele; algumas duras demais, ao ponto de alguns
críticos serem simplistas ao afirma que era um filme sobre comensalidade e que
os adoradores de cinema poderiam ver nas cenas de “A Festa de Babette” a comida
no seu sentido lato (com toda a representação ritualística da cozinha, dos
ingredientes como dádivas da terra, com referências ao deleite; revelando o
caráter da hospitalidade e as interações com comida como fonte para o sagrado.
Porém, ele é mais que tudo isso. É
transcendental. O filme divaga pela exploração de todos os sentidos, usando a
presença do “sutil” para evocar a sensibilidade necessária em cada cena que,
com a ajuda da trilha sonora certeira desperta desejos ocultos, sensações,
prazeres...
Assim
sendo, não seria difícil entender porque o filme ganhou o Oscar em 1987. Mas eu
devo aqui me deter a alusão ao sagrado que me pegou de jeito.
Eu,
particularmente, sempre gostei de simbolismo. Talvez pelo fato de eu ter
estudado mitologia por uns bons anos e sempre recorria a estudar elementos
simbólicos para melhor compreender seu aparecimento nas alegorias míticas.
E,
em A Festa de Babette, é nítida a presença do simbolismo cristão. Passo, então,
a listar algumas observações a esse respeito, não estou dizendo que elas
orientam a ideia fundamental do autor, nem do diretor do filme, são antes simbolismos
extraídos a partir do que aparece nas cenas e do que elas acabaram significando
para mim naquele momento quando eu assistia ao filme, vejamos:
·
Há, claramente, um paralelo entre a imagem de
Babette e a do Cristo: Babette é pobre, chegou misteriosamente a uma pequena
comunidade, trabalha como criada e, no final, presenteia a todos com um lauto
banquete;
·
O auto-sacrifício por amor é outra ligação
nessa comparação, já que ele está presente nos dois casos (Babette/Cristo),
como fio condutor da história;
·
O banquete em memória do pastor é uma alusão
clara à 'Última Ceia' e, por extensão, à liturgia cristã;
·
À mesa sentaram-se doze pessoas – uma clara
alusão aos doze apóstolos;
·
Cailles au Sarcofage
('Codorna no Sarcófago'), foi o prato principal servido por Babette. Codorna
significando 'maná' (alimento espiritual de origem divina que consola a alma);
e Sarcófago, palavra vinda do latim, 'sarcophagus', significa 'aquele
que come carne'. Assim, o prato principal é uma insinuação direta às palavras do
Cristo: 'Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão, viverá para
sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha
vida' (João 6, 51)".
De
certo que todos os pratos feitos por Babette precisam ser cuidadosamente
analisados para expandir essa discussão e despertar nossa consciência e nossos
sentidos.
Por
isso fiz o registro do menu servido por Babette, que era composto por:
· Potage à la tortue géante
· Blinis Demidoff au caviar servido
com champanhe Veuve Clicquot de 1860
· Caille en Sarcophage avec Sauce
Perigourdine (codorna em folhada com foie gras e molho de
trufas) servido com Clos de Vougeot Pinot Noir 1845.
·
La Salade ( Salada de endívia com chicória belga e nozes em vinagrete)
·
Les fromages (com queijo azul e frutas exóticas: mamão, figo, uvas, abacaxi e romã)
· Gâteau aux raisins et rhum avec des figues
mûrs, ou o que popularmente se conhece como “Savarin au Rhum avec des Figues et Fruits Glacées (savarin embebido em rum com figos e cerejas cristalizadas) e champanhe.
·
Café com conhaque Louis XIII de Rémy
Martin
Essa
sobremesa, em particular, é uma coisa que já preparei e pretendo falar sobre ela depois. Mas, antes de concluir esta postagem, eu ainda gostaria de ressaltar outro simbolismo notado no filme, que aponta a ligação da
cozinheira com a feitiçaria.
Em certo ponto do filme todos os convidados do
banquete se reúnem acreditando que Babette seja uma bruxa, e passam a cogitar
que ela trará a desgraça para aquela comunidade, e que aquelas comidas
sedutoras serão usadas para este fim.
Não
vou me furtar em dizer que eu também acho que há uma ligação da cozinha com a
feitiçaria, de que quem cozinha tem um quê de feiticeiro (a). Porque quem
cozinha acaba elaborando uma delicada alquimia para enfeitiçar não só o paladar
de quem irá comer, mas também deve embriagar os outros sentidos, para aguçá-los.
Babette
sabia disso e fazia isso com maestria. Ela sabia perfeitamente do alcance
transformador da comida. Ela sabia que mesmo depois de comer coisas
maravilhosas, cuidadosamente executadas com amor e técnica, aqueles comensais não
permaneceriam os mesmos... E feitiçaria de fato ocorreu, na cozinha: acessou o
quarto elementos (terra, fogo, água e ar) na cozinha, usou ingredientes
exóticos (tartaruga, fois gras [fígado de ganso], caviar [ovas de esturjão],
trufas negras, dentre outros), se permitiu usar as melhores bebidas, talvez uma
oferenda a Baco, quem sabe... mas com elementos estranhos para aquele povo, a
feiticeira da cozinha preparou poções mágicas sedutoras que encantou a todos.
Bom,
eu não tenho dez mil francos para repetir o banquete de Babette. Mas, pelo
menos, ficar sem a receita do prato principal, nós não vamos (risos).
[Para
oito pessoas]
500 g.
de massa folhada.
1 gema
batida com duas colheres de sopa de água
8
codornas desossadas (exceto pernas e asas)
6
colheres de sopa de conhaque
60 g.
de trufas pretas picadas
240 g.
de fois gras fresco
5
colheres de sopa de manteiga sem sal
3
échalotes picadas
1
xícara de chá de vinho branco seco
4
xícaras de chá de caldo de carne
2
colheres de chá de trigo dissolvidas em um pouco de vinho branco
8
cogumelos de Paris grandes (somente os chapéus)
1
colher de chá de óleo de amendoim
Sal e
pimenta-do-reino moída na hora
Farinha
de trigo para polvilhar
Preparo:
MASSA: Estenda a massa em superfície lisa. Corte oito retângulos
de 10 cm de largura por 13 cm de comprimento. Faça alguns furos com a ponta de
um garfo e pincele com a mistura de gema e água. Asse a massa no forno
pré-aquecido, por 15 minutos, até que esteja dourada. Quando estiverem frios,
corte e retire um pedaço da parte central, de cada retângulo, com o auxílio de
uma faca, formando “ninhos”, para receber as codornas. CODORNAS (caille):
Lave e seque as codornas. Tempere com sal, pimenta e duas colheres de cognac.
Junte metade das trufas picadas. Divida o fois gras em oito porções iguais e
distribua nas cavidades. Feche cada codorna com linha. Em uma panela de fundo
grosso, aqueça uma colher de sopa de manteiga. Acrescente os ossos que foram
retirados e toste-os ligeiramente. Coloque as échalotes e refogue sem parar de
mexer. Misture 2 colheres de cognac e raspe o fundo da panela. Acrescente o
vinho, o caldo e deixe ferver lentamente por 30 minutos, até reduzir pela
metade. Coe o caldo e devolva para a panela. Despeje a mistura de trigo, e mexa
até o caldo engrossar. Incorpore as trufas restantes e tempere com sal e
pimenta. Reserve. Refogue os cogumelos em duas colheres de manteiga. Reserve.
Aqueça a manteiga restante com o óleo e doure as codornas, virando-as de todos
os lados, leve-as depois ao forno por 10 minutos. Coloque o cognac restante na
frigideira que dourou as codornas e raspe-a. Junte essa mistura ao caldo com as
trufas. Retire as codornas do forno e retire as linhas. MONTAGEM:
Coloque as massas numa assadeira e deposite uma codorna em cada “ninho” de
massa. Reaqueça no forno, por 5 minutos. Transfira, cuidadosamente, para os
pratos. Arrume os cogumelos em volta. Derrame o molho quente sobre as codornas
e os cogumelos. Sirva imediatamente.
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