sábado, 21 de dezembro de 2024

Pangiallo, o pão/bolo auspicioso de Natal de Roma dedicado ao sol seria o avô do Panetone?

 

Ao longo de mais de uma década de publicações neste blog, somado as simultâneas publicações de mais conteúdo no perfil homônimo desta confraria no Facebook, vocês já devem saber do meu apreço pelas receitas antigas, pela arqueologia alimentar, pelo patrimônio gastronômico. De tal maneira, sempre acabo postado algo relativo a essas temáticas e mostrando que  é  perfeitamente possível a gente comer bem com o resgate de comidas ancestrais que, podem sim, ser preparadas com antes nos dias de hoje (obviamente, como tudo na vida, existem exceções; dando-se o descontos para ingredientes que se perderam ou foram extintos pelo tempo, pela falta de interesse e de interessados – esses últimos pontos são, justamente, o motivo pelo qual esse blog existe: registrar para que não se acabe). Hoje, então, para celebrar as festividades natalinas de 2024 lhes apresento uma dessas receitas sobreviventes das cozinhas do antigo Império romano.

Doces consumidos durante as “feste aricordatóre” (celebrações recordatórias), como as que hoje se compreende como o ciclo natalino, são essenciais para criar um ambiente ainda mais acolhedor, para reunirmos com parentes e amigos enquanto praticamos a comensalidade no seu ápice – e muitas vezes, com a pompa que o período merece.

Curiosamente, observando minhas postagens ao longo desses muitos anos, me dei conta de que o espaço geográfico onde hoje se encontra a Itália ofereceu ao mundo, e continua a oferecer, uma variedade de ricas e saborosas de preparações doces para celebrar o ciclo natalino. Prova disso, são o pandoro e o panetone, dois exemplos dessas preparações que caíram nas graças da indústria alimentar e conseguiram por meio dela expandir seus domínios pelo mundo.

Mas a Itália, em cada região encontram-se tantas outras preparações deliciosas, produtos típicos de cada cidade e região, inicialmente feitos em casa, cujo aroma e forma evocam intensa e agradavelmente as lembranças do Natal. O Pangiallo é uma delas, originalmente apareceu na Roma antes de Cristo.

O Pangiallo tem sias origens remanescentes da Roma Imperial, é uma produção culinária bastante encontrada na região do Lácio, e sua presença era sempre vista desde a antiguidade durante o solstício de inverno: era costume preparar e consumir esses pães doces dourados como um bom presságio para encorajar o retorno do Sol… sua forma redonda e abobadada era uma alusão à figura da estrela nascente.

O nome pangiallo deriva da inconfundível camada de mistura de ovo  ou açafrão, que outrora o cobria, com a qual tentavam recriar o brilho característico do Sol. Num antigo livro de receitas do início do século XVIII encontrado em Viterbo na biblioteca da casa dos Venturini Ciofi Degli Atti, se observa a orientação explicitamente por escrito que, na preparação do pangiallo deve-se usar “…açafrão, tendo o cuidado de deixar um pouco para dar-lhe a cor por cima dos pães quando forem cozidos…”


Assim, redondo e amarelo, o Pangiallo é um tipo de pão/bolo doce celebrativo à base de mel e frutas secas (e depois com frutas cristalizadas e, mais tarde até, com chocolate) caracterizado pela cor amarela da sua cobertura, e que ostenta uma história milenar que chegou até nossos dias intacta.

Era uma refeição das mais auspiciosa na Roma Imperial, sempre no período de solstício de inverno era preparada e ofertada como esperança para que o sol retornasse com todo o seu esplendor, o mais rápido possível, após os longos meses de inverno. Assim nasceu, a mais de dois mil anos, aquela que durante séculos era a principal sobremesa “natalina” da tradição romana – seguramente, essa preparação pode ser compreendida como o avô do panetone!

Por outro lado, com o passar dos milênios, o pangiallo tornou-se pouco conhecido fora das fronteiras do Lácio, perdeu espaço no imaginário coletivo nas últimas décadas em favor da popularidade e do marketing que a publicidade gerou em torno do  pandoro e do panetone – já que a indústria alimentar escolheu essas duas preparações como as receitas natalinas italianas mais conhecidas.

Mas é preciso que se ressalte, o pangiallo era a especialidade dos confeiteiros romanos e o orgulho da produção local durante as festas desde o Império Romano. Embora ele não seja hoje tão popular quanto antes, muitas pessoas do Lácio (especialmente os mais antigos e os arraigados às tradições) continuam a valorizar os sabores da infância e a dar continuidade a esse elemento de uma tradição gastronômica que seria uma pena perder. Assim, a produção do Pangiallo persiste sobretudo nos Castelli Romani, onde as confeitarias que o vendem fazem grande sucesso.

Com raízes nas religiões antigas de Roma, é seguro identificar as raízes do pangiallo tão ancestral quanto as raízes da própria Roma. Dentre as crenças das religiões antigas, que se transformaram e se popularizaram com os anos o Império, estava a festa de "dies natalis solis invicti" (aniversário do sol invencível), instituída pelo imperador Aureliano como o dia 25 de dezembro, celebrava o renascimento no horizonte do novo sol que havia morrido simbolicamente no solstício de inverno.

Dies Natalis Solis Invicti (o “Nascimento do Sol Invencível”) porém, era uma celebração dedicada a Mitra, identificado com o deus romano Sol, ou o Sol. Mas a ideia de um “Sol Invictus” era um culto ainda mais  antigo, originário da Pérsia, mas reverenciado principalmente em Roma, de onde também recebeu seu nome. O culto foi introduzido no Imperio Romano no ano de 274 a.C. pelo Imperador Aureliano.

A festividade comemorava seu nascimento de Mitra nas montanhas de Zagros. Os romanos naquele dia presenteavam uns aos outros e faziam desejos; beijavam-se sob o visco.

Com a ascensão do cristianismo, a Igreja se apropriou de muitos elementos das culturas religiosas antigas, em especial essa data do sol invicto, e nela resolveram estabelecer o Dia do Nascimento do cristo, que ficou conhecido como Natal - isso é indicado pelo comentário sobre o relacionamento do século XII de Dionísio Bar Salibi, que diz que era costume dos pagãos celebrar neste dia (25 de dezembro) o nascimento do Sol. Como as pessoas estavam acostumadas a celebrar festas pagãs, decidiu-se celebrar o nascimento de Cristo no dia 25 de dezembro. Curiosamente, na ladainha do Santíssimo Nome Jesus (provavelmente fundada no século XV), encontramos a nomeação de Jesus como “o sol da justiça”.

A ligação do divino com o sol pode ser observada em muitas culturas pelo mundo, e de tal maneira o dia 25 de dezembro acabou sendo representado como o dia de nascimento de muitos deuses, alguns deles são apresentados na imagem abaixo.

A importância do Sol para a vida é indiscutível, e por isso o pangiallo era preparado com formato e cor em alusão ao deus sol. Nessa ocasião, as esposas dos produtores rurais entregavam pangiallo de presente às pessoas importantes da região como um bom presságio. Acreditavam que o exterior amarelo brilhante do pão/bolo trazia uma luz intensa para dentro de casa que lembrava o retorno do bom tempo, com a chegada do Sol). Ainda hoje, a tradição determina que o Pangiallo seja produzido em casa e depois dado de presente aos amigos e parentes no Natal.

A sobremesa é feita com uma mistura de frutas secas, mel e pouca farinha de trigo. Mas nem sempre foi assim. Até recentemente, as donas de casa romanas mais pobres substituíam amêndoas e avelãs, ingredientes caros, por caroços de frutas de verão (ameixas e damascos), que eram devidamente secos, conservados e preparados para consumo. Assim, observar o conteúdo do pangiallo era uma forma de rastrear a classe social da família que rpeparava a sobremesa.

Na Roma Antiga, no final das celebrações das Saturnálias era quando ocorria celebração do Solstício de Inverno (por volta do final de dezembro). Os Romanos já costumavam trocar pães redondos, sem fermento, em forma de cúpula (semiesféricos) , feitos com um pouco de farinha, adoçado com mel e frutas secas e, no caso dos cidadãos mais ricos, até mesmo passas, figos secos e pedaços de casca de cidra perfumada eram usados. Esses pães/bolos passaram a ser cobertos com uma camada de massa de ovo para ficarem com a cor do sol e celebrar o fim do inverno. O escritor, cozinheiro e gourmet latino da época de Tibério (século I a.C.) – Marcus Gavius Apicius, em seu “De Re Coquinaria” ilustra a receita desses pequenos pães:

«Mescola nel miele pepato del vino puro, uva passita e della ruta. Unisci a questi ingredienti pinoli, noci e farina d’orzo. Aggiungi le noci raccolte nella città di Avella, tostate e sminuzzate, poi servi in tavola»

«Misture vinho puro, passas e arruda no molho apimentado mel. Adicione pinolis, nozes e farinha de cevada a esses ingredientes. Adicione as nozes coletadas na cidade de Avella, torradas e picadas e sirva à mesa

Muito mais tarde, esses doces auspiciosos de fim de inverno receberiam o nome de Pangiallo di Palestrina. As primeiras versões da sobremesa levavam uma boa quantidade de mel que, além de adoçar, era responsável pela sua conservação. A simplicidade desta sobremesa e a expansão do Império Romano fizeram com que a receita do pangiallo – que era transmitida oralmente durante séculos e ainda difere de família para família – viajasse e mudasse.

Há versões conflitantes sobre como a cor amarela característica da camada superficial do Pangiallo é obtida. Segundo alguns, os ingredientes da massa eram suficientes, pois eles reagem ao calor do forno e ficam amarelos, dando ao bolo sua tradicional cor âmbar. Mas, para obter um amarelo mais intenso, haviam aqueles que diziam ser necessário cobrir o Pangiallo com uma camada de massa de ovo antes de cozinhá-lo. Por fim, ainda havia aqueles que preferiam adicionar açafrão para dar mais cor. Com os efeitos da modernidade, eu ainda descobri algumas receitas que levavam farinha de milho e café, que por si só já ajudavam na coloração dourada.

Além dessa distinção para obter a característica cor dourada desse pão/bolo, ainda existem algumas variações da preparação.

Na versão do pangiallo preparada na Úmbria são utilizadas gotas de chocolate (coisas que só foram possíveis com a modernidade) e muitas frutas secas: amêndoas e avelãs descascadas, pinolis e nozes; não faltam frutas cristalizadas, passas, mel e cascas de laranja e de limão. Semelhante ao panforte de Siena,mas  o pangiallo da Úmbria não contém especiarias.

Enquanto isso, o pangiallo de Viterbo, que leva muitas frutas secas (avelãs, amêndoas, nozes e pinolis), frutas secas (figos) e cristalizadas (cidra e casca de laranja), chocolate e muitoo mel, leva ainda um pouco de pimenta do reino (ingrediente que nas recitas do antigo Império era comum de ser encontrado em  adição nas preparações doces, com o intuito de ressaltar seu sabor). O uso especifico dessa especiaria provavelmente foi adicionada adicionada devido à contaminação da receita com o Panpepato da Úmbria.

Outra curiosidade deste último, é que a origem da cor amarela da crosta da preparação só foi revelada ao mundo, por escrito, num antigo livro de receitas do início do século XVIII encontrado em Viterbo, na biblioteca da casa dos Condes Venturini Ciofi Degli Atti, onde é indicado que na preparação se deve usar “…açafrão, tomando cuidado para deixar um pouco para dar cor em cima dos pães quando estiverem assados…”. Todos os ingredientes eram grosseiramente esfarelados e misturados, depois pequenos pães/bolos eram formados e assados. Uma dica valiosa ainda podia ser lida e orientava que, com as mãos você deve formar um pão bem compacto, tentando retirar todo o ar de dentro para não ter problemas na hora do cozimento.

Agora, que tal preparar essa delícia para apresentar aos seus durante o Natal? Se preparar, me conta?

Pangiallo Romano

Para a massa

110 g de mel

120 g  de farinha de trigo

80 g  de Avelãs

80 g de nozes

80 g Amêndoas

50 g de pinolis

50 g Frutas cristalizadas ( se puder escolher, use como pede a receita laranja e cidra)

70 g de gotas de chocolate amargo ou chocolate picado (esse ingrediente é opcional, mas ele garante acréscimo no sabor e na humidade da massa)

Para a cobertura

2 colheres de sopa de farinha de trigo

2 colheres de sopa de água

2 colheres de sopa de mel

1 colher de sopa açafrão em pó

Preparo: Existem muitas receitas que sugerem picar os frutos secos, eu deixei-os inteiros, pois quando cortar em cada fatia fica muito mais bonito; mas, também no sabor gosto de sentir os frutos secos, distinguir as amêndoas de nozes etc. e, quando elas estão picadas fica um sabor mais homogêneo. Fique à vontade na escolha de como vai deixar as nozes na receita, depende muito do seu gosto pessoal.

Coloque o mel em uma panela e aqueça em fogo bem baixo. Enquanto isso, coloque as amêndoas, nozes, pinolis, avelãs, frutas cristalizadas e chocolate amargo picado em uma tigela grande. Adicione o mel bem quente e misture com uma colher. Adicione a farinha aos poucos, misturando com uma colher até que a farinha esteja completamente incorporada. Cubra a massa do pangiallo com um pano limpo e deixe descansar por 2 horas. Pegue a massa e, com as mãos levemente untadas com óleo, despeje-a sobre uma tábua de cozinha ou, se você não tiver uma, em cima de uma superfície de trabalho e aperte bem a massa, para compactar bem.  Com isso feito, vc pode fazer um pangialo maior ou dividir em dois – no caso de dividir, lembre-se de compactar bem cada parte da massa, deixe-a redonda no formato semiesférico. Coloque os pães em uma assadeira forrada com papel manteiga – se não tiver unte a assadeira com um pouco de manteiga e farinha.  Reserve.  Em uma panela pequena prepare a cobertura: junte a farinha, mel, água e açafrão, misture em fogo baixo por alguns segundos, deve virar uma massa amarela. Espalhe a massa na superfície do pangiallo e leve ao forno a 180° por cerca de 35/40 minutos, se notar que escurece imediatamente, abaixe o fogo para 160°.  Quando o pangiallo estiver cozido e dourado, deixe esfriar e depois embrulhe-o em filme plástico ou em um pano de prato limpo. Deixe o pangiallo romano descansar por pelo menos 2 dias antes de comê-lo. Quanto mais tempo ele descansar, melhor.





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