Ao longo de mais de uma
década de publicações neste blog, somado as simultâneas publicações de mais
conteúdo no perfil homônimo desta confraria no Facebook, vocês já devem saber
do meu apreço pelas receitas antigas, pela arqueologia alimentar, pelo patrimônio
gastronômico. De tal maneira, sempre acabo postado algo relativo a essas
temáticas e mostrando que é perfeitamente possível a gente comer bem com
o resgate de comidas ancestrais que, podem sim, ser preparadas com antes nos
dias de hoje (obviamente, como tudo na vida, existem exceções; dando-se o
descontos para ingredientes que se perderam ou foram extintos pelo tempo, pela
falta de interesse e de interessados – esses últimos pontos são, justamente, o
motivo pelo qual esse blog existe: registrar para que não se acabe). Hoje,
então, para celebrar as festividades natalinas de 2024 lhes apresento uma
dessas receitas sobreviventes das cozinhas do antigo Império romano.
Doces consumidos durante as
“feste aricordatóre” (celebrações recordatórias), como as que hoje se
compreende como o ciclo natalino, são essenciais para criar um ambiente ainda
mais acolhedor, para reunirmos com parentes e amigos enquanto praticamos a comensalidade
no seu ápice – e muitas vezes, com a pompa que o período merece.
Curiosamente, observando
minhas postagens ao longo desses muitos anos, me dei conta de que o espaço
geográfico onde hoje se encontra a Itália ofereceu ao mundo, e continua a
oferecer, uma variedade de ricas e saborosas de preparações doces para celebrar
o ciclo natalino. Prova disso, são o pandoro e o panetone, dois exemplos dessas
preparações que caíram nas graças da indústria alimentar e conseguiram por meio
dela expandir seus domínios pelo mundo.
Mas a Itália, em cada região
encontram-se tantas outras preparações deliciosas, produtos típicos de cada
cidade e região, inicialmente feitos em casa, cujo aroma e forma evocam intensa
e agradavelmente as lembranças do Natal. O Pangiallo é uma delas, originalmente
apareceu na Roma antes de Cristo.
O Pangiallo tem sias origens
remanescentes da Roma Imperial, é uma produção culinária bastante encontrada na
região do Lácio, e sua presença era sempre vista desde a antiguidade durante o
solstício de inverno: era costume preparar e consumir esses pães doces dourados
como um bom presságio para encorajar o retorno do Sol… sua forma redonda e
abobadada era uma alusão à figura da estrela nascente.
O nome pangiallo deriva da
inconfundível camada de mistura de ovo
ou açafrão, que outrora o cobria, com a qual tentavam recriar o brilho
característico do Sol. Num antigo livro de receitas do início do século XVIII encontrado
em Viterbo na biblioteca da casa dos Venturini Ciofi Degli Atti, se observa a
orientação explicitamente por escrito que, na preparação do pangiallo deve-se
usar “…açafrão, tendo o cuidado de deixar um pouco para dar-lhe a cor por cima
dos pães quando forem cozidos…”
Assim, redondo e amarelo, o
Pangiallo é um tipo de pão/bolo doce celebrativo à base de mel e frutas secas
(e depois com frutas cristalizadas e, mais tarde até, com chocolate)
caracterizado pela cor amarela da sua cobertura, e que ostenta uma história milenar
que chegou até nossos dias intacta.
Era uma refeição das mais
auspiciosa na Roma Imperial, sempre no período de solstício de inverno era
preparada e ofertada como esperança para que o sol retornasse com todo o seu
esplendor, o mais rápido possível, após os longos meses de inverno. Assim nasceu,
a mais de dois mil anos, aquela que durante séculos era a principal sobremesa
“natalina” da tradição romana – seguramente, essa preparação pode ser
compreendida como o avô do panetone!
Por outro lado, com o passar
dos milênios, o pangiallo tornou-se pouco conhecido fora das fronteiras do
Lácio, perdeu espaço no imaginário coletivo nas últimas décadas em favor da
popularidade e do marketing que a publicidade gerou em torno do pandoro e do panetone – já que a indústria
alimentar escolheu essas duas preparações como as receitas natalinas italianas
mais conhecidas.
Mas é preciso que se
ressalte, o pangiallo era a especialidade dos confeiteiros romanos e o orgulho
da produção local durante as festas desde o Império Romano. Embora ele não seja
hoje tão popular quanto antes, muitas pessoas do Lácio (especialmente os mais
antigos e os arraigados às tradições) continuam a valorizar os sabores da
infância e a dar continuidade a esse elemento de uma tradição gastronômica que
seria uma pena perder. Assim, a produção do Pangiallo persiste sobretudo nos
Castelli Romani, onde as confeitarias que o vendem fazem grande sucesso.
Com raízes nas religiões
antigas de Roma, é seguro identificar as raízes do pangiallo tão ancestral
quanto as raízes da própria Roma. Dentre as crenças das religiões antigas, que
se transformaram e se popularizaram com os anos o Império, estava a festa de
"dies natalis solis invicti" (aniversário do sol invencível),
instituída pelo imperador Aureliano como o dia 25 de dezembro, celebrava o
renascimento no horizonte do novo sol que havia morrido simbolicamente no
solstício de inverno.
Dies Natalis Solis Invicti
(o “Nascimento do Sol Invencível”) porém, era uma celebração dedicada a Mitra,
identificado com o deus romano Sol, ou o Sol. Mas a ideia de um “Sol Invictus”
era um culto ainda mais antigo,
originário da Pérsia, mas reverenciado principalmente em Roma, de onde também
recebeu seu nome. O culto foi introduzido no Imperio Romano no ano de 274 a.C.
pelo Imperador Aureliano.
A festividade comemorava seu
nascimento de Mitra nas montanhas de Zagros. Os romanos naquele dia
presenteavam uns aos outros e faziam desejos; beijavam-se sob o visco.
Com a ascensão do
cristianismo, a Igreja se apropriou de muitos elementos das culturas religiosas
antigas, em especial essa data do sol invicto, e nela resolveram estabelecer o
Dia do Nascimento do cristo, que ficou conhecido como Natal - isso é indicado
pelo comentário sobre o relacionamento do século XII de Dionísio Bar Salibi,
que diz que era costume dos pagãos celebrar neste dia (25 de dezembro) o
nascimento do Sol. Como as pessoas estavam acostumadas a celebrar festas pagãs,
decidiu-se celebrar o nascimento de Cristo no dia 25 de dezembro. Curiosamente,
na ladainha do Santíssimo Nome Jesus (provavelmente fundada no século XV),
encontramos a nomeação de Jesus como “o sol da justiça”.
A ligação do divino com o sol pode ser observada em muitas culturas pelo mundo, e de tal maneira o dia 25 de dezembro acabou sendo representado como o dia de nascimento de muitos deuses, alguns deles são apresentados na imagem abaixo.
A importância do Sol para a
vida é indiscutível, e por isso o pangiallo era preparado com formato e cor em
alusão ao deus sol. Nessa ocasião, as esposas dos produtores rurais entregavam
pangiallo de presente às pessoas importantes da região como um bom presságio.
Acreditavam que o exterior amarelo brilhante do pão/bolo trazia uma luz intensa
para dentro de casa que lembrava o retorno do bom tempo, com a chegada do Sol).
Ainda hoje, a tradição determina que o Pangiallo seja produzido em casa e
depois dado de presente aos amigos e parentes no Natal.
A sobremesa é feita com uma
mistura de frutas secas, mel e pouca farinha de trigo. Mas nem sempre foi
assim. Até recentemente, as donas de casa romanas mais pobres substituíam
amêndoas e avelãs, ingredientes caros, por caroços de frutas de verão (ameixas
e damascos), que eram devidamente secos, conservados e preparados para consumo.
Assim, observar o conteúdo do pangiallo era uma forma de rastrear a classe
social da família que rpeparava a sobremesa.
Na Roma Antiga, no final das
celebrações das Saturnálias era quando ocorria celebração do Solstício de
Inverno (por volta do final de dezembro). Os Romanos já costumavam trocar pães
redondos, sem fermento, em forma de cúpula (semiesféricos) , feitos com um
pouco de farinha, adoçado com mel e frutas secas e, no caso dos cidadãos mais
ricos, até mesmo passas, figos secos e pedaços de casca de cidra perfumada eram
usados. Esses pães/bolos passaram a ser cobertos com uma camada de massa de ovo
para ficarem com a cor do sol e celebrar o fim do inverno. O escritor,
cozinheiro e gourmet latino da época de Tibério (século I a.C.) – Marcus Gavius
Apicius, em seu “De Re Coquinaria” ilustra a receita desses pequenos pães:
«Mescola nel miele pepato
del vino puro, uva passita e della ruta. Unisci a questi ingredienti pinoli,
noci e farina d’orzo. Aggiungi le noci raccolte nella città di Avella, tostate
e sminuzzate, poi servi in tavola»
«Misture vinho puro, passas
e arruda no molho apimentado mel. Adicione pinolis, nozes e farinha de cevada a
esses ingredientes. Adicione as nozes coletadas na cidade de Avella, torradas e
picadas e sirva à mesa
Muito mais tarde, esses
doces auspiciosos de fim de inverno receberiam o nome de Pangiallo di
Palestrina. As primeiras versões da sobremesa levavam uma boa quantidade de mel
que, além de adoçar, era responsável pela sua conservação. A simplicidade desta
sobremesa e a expansão do Império Romano fizeram com que a receita do pangiallo
– que era transmitida oralmente durante séculos e ainda difere de família para
família – viajasse e mudasse.
Há versões conflitantes
sobre como a cor amarela característica da camada superficial do Pangiallo é
obtida. Segundo alguns, os ingredientes da massa eram suficientes, pois eles
reagem ao calor do forno e ficam amarelos, dando ao bolo sua tradicional cor
âmbar. Mas, para obter um amarelo mais intenso, haviam aqueles que diziam ser
necessário cobrir o Pangiallo com uma camada de massa de ovo antes de
cozinhá-lo. Por fim, ainda havia aqueles que preferiam adicionar açafrão para
dar mais cor. Com os efeitos da modernidade, eu ainda descobri algumas receitas
que levavam farinha de milho e café, que por si só já ajudavam na coloração
dourada.
Além dessa distinção para
obter a característica cor dourada desse pão/bolo, ainda existem algumas
variações da preparação.
Na versão do pangiallo
preparada na Úmbria são utilizadas gotas de chocolate (coisas que só foram
possíveis com a modernidade) e muitas frutas secas: amêndoas e avelãs
descascadas, pinolis e nozes; não faltam frutas cristalizadas, passas, mel e
cascas de laranja e de limão. Semelhante ao panforte de Siena,mas o pangiallo da Úmbria não contém especiarias.
Enquanto isso, o pangiallo
de Viterbo, que leva muitas frutas secas (avelãs, amêndoas, nozes e pinolis),
frutas secas (figos) e cristalizadas (cidra e casca de laranja), chocolate e
muitoo mel, leva ainda um pouco de pimenta do reino (ingrediente que nas
recitas do antigo Império era comum de ser encontrado em adição nas preparações doces, com o intuito
de ressaltar seu sabor). O uso especifico dessa especiaria provavelmente foi
adicionada adicionada devido à contaminação da receita com o Panpepato da Úmbria.
Outra curiosidade deste
último, é que a origem da cor amarela da crosta da preparação só foi revelada
ao mundo, por escrito, num antigo livro de receitas do início do século XVIII
encontrado em Viterbo, na biblioteca da casa dos Condes Venturini Ciofi Degli
Atti, onde é indicado que na preparação se deve usar “…açafrão, tomando cuidado
para deixar um pouco para dar cor em cima dos pães quando estiverem assados…”.
Todos os ingredientes eram grosseiramente esfarelados e misturados, depois
pequenos pães/bolos eram formados e assados. Uma dica valiosa ainda podia ser
lida e orientava que, com as mãos você deve formar um pão bem compacto,
tentando retirar todo o ar de dentro para não ter problemas na hora do
cozimento.
Agora, que tal preparar essa
delícia para apresentar aos seus durante o Natal? Se preparar, me conta?
Pangiallo Romano
Para a massa
110 g de mel
120 g
de farinha de trigo
80 g
de Avelãs
80 g de nozes
80 g Amêndoas
50 g de pinolis
50 g Frutas cristalizadas ( se puder
escolher, use como pede a receita laranja e cidra)
70 g de gotas de chocolate amargo ou
chocolate picado (esse ingrediente é opcional, mas ele garante acréscimo no
sabor e na humidade da massa)
Para a cobertura
2 colheres de sopa de farinha de trigo
2 colheres de sopa de água
2 colheres de sopa de mel
1 colher de sopa açafrão em pó
Preparo: Existem muitas receitas que sugerem
picar os frutos secos, eu deixei-os inteiros, pois quando cortar em cada fatia
fica muito mais bonito; mas, também no sabor gosto de sentir os frutos secos,
distinguir as amêndoas de nozes etc. e, quando elas estão picadas fica um sabor
mais homogêneo. Fique à vontade na escolha de como vai deixar as nozes na
receita, depende muito do seu gosto pessoal.
Coloque o mel em uma panela e aqueça em
fogo bem baixo. Enquanto isso, coloque as amêndoas, nozes, pinolis, avelãs,
frutas cristalizadas e chocolate amargo picado em uma tigela grande. Adicione o
mel bem quente e misture com uma colher. Adicione a farinha aos poucos,
misturando com uma colher até que a farinha esteja completamente incorporada.
Cubra a massa do pangiallo com um pano limpo e deixe descansar por 2 horas.
Pegue a massa e, com as mãos levemente untadas com óleo, despeje-a sobre uma
tábua de cozinha ou, se você não tiver uma, em cima de uma superfície de
trabalho e aperte bem a massa, para compactar bem. Com isso feito, vc pode fazer um pangialo
maior ou dividir em dois – no caso de dividir, lembre-se de compactar bem cada
parte da massa, deixe-a redonda no formato semiesférico. Coloque os pães em uma
assadeira forrada com papel manteiga – se não tiver unte a assadeira com um
pouco de manteiga e farinha. Reserve. Em uma panela pequena prepare a cobertura:
junte a farinha, mel, água e açafrão, misture em fogo baixo por alguns
segundos, deve virar uma massa amarela. Espalhe a massa na superfície do
pangiallo e leve ao forno a 180° por cerca de 35/40 minutos, se notar que
escurece imediatamente, abaixe o fogo para 160°. Quando o pangiallo estiver cozido e dourado,
deixe esfriar e depois embrulhe-o em filme plástico ou em um pano de prato
limpo. Deixe o pangiallo romano descansar por pelo menos 2 dias antes de
comê-lo. Quanto mais tempo ele descansar, melhor.
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