Hoje eu estou me
sentindo aquele coelho branco de Alice no País das Maravilhas – tenho tanta
coisa pra fazer, olho tanto pro relógio, corro pra lá e pra cá, e me perco...
esbaforido. Mas eu lembrei dos olhos cor-de-rosa do coelho e percebi que isso
tudo fazia a diferença...
Alice estava
começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira,
e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que estava
lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, "e de que serve um livro",
pensou Alice, "sem figuras nem diálogos?". Assim, refletia com seus
botões (tanto quanto podia, porque o calor a fazia se sentir sonolenta e burra)
se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforço de se
levantar e colher as flores, quando de repente um Coelho Branco de olhos
cor-de-rosa passou correndo por ela. Não havia nada de tão extraordinário
nisso; nem Alice achou assim tão esquisito ouvir o Coelho dizer consigo mesmo:
"Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!" (quando pensou sobre
isso mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter ficado espantada, mas na hora tudo
pareceu muito natural); mas quando viu o Coelho tirar um relógio do bolso do
colete e olhar as horas, e depois sair em disparada, Alice se levantou num
pulo, porque constatou subitamente que nunca tinha visto antes um coelho com
bolso de colete, nem com relógio para tirar de lá, e, ardendo de curiosidade,
correu pela campina atrás dele, ainda a tempo de vê-lo se meter a toda a pressa
numa grande toca de coelho debaixo da cerca. (Trecho de Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carroll)
Acho que acabo me
perdendo no País das Maravilhas também. Quando, outras vezes (ou muitas vezes ao longo
dos dias [risos]), acabo parando no Covil dos Lotófagos
(comedores de Lótus) – Pra quem não conhece os épicos episódios mitológicos
gregos, os Lotófagos são uma tribo existente numa ilha perto do Norte de África,
que comem essas plantas narcóticas, causando um sono pacífico aos habitantes da
ilha, tirando-os da realidade, fazendo com que esqueçam do tempo e espaço.
Na Odisseia de
Homero, (poema do oitavo século antes de Cristo (entre 701 e 800 a.C.) que conta
as aventuras do guerreiro grego Ulisses (ou Odisseu) após a Guerra de Tróia.)
Ulisses e os seus companheiros desembarcam na ilha dos lotófagos. Então são
enviados três homens (1 arauto e 2 companhas) para investigar a ilha. Esses
homens começam a fazer o que os nativos faziam: comer o fruto do lótus. Isto
fez com que eles se esquecessem de abandonar a ilha. Finalmente, Ulisses
conseguiu levar os 3 homens para o navio e os amarrou a seus assentos para que
não voltassem à Ilha. A ingestão do lótus provocava a amnésia e este
esquecimento é uma ambição antiga: abre a possibilidade de começar de novo, de
renascer, de apagar o passado.
É nestes momentos
“perdidos, esquecidos” que percebo as mudanças, seu peso, seus alívios e a necessidade de
sair da zona de conforto para criar algo ainda melhor...
“Há um tempo em que é
preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e
esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo
da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem
de nós mesmos.” (Fernando Pessoa)
Não quero ficar à
margem de mim. E por isso, já comprei um cavalo de fogo, selvagem, com seu
estilo de vida cigano pra me servir de condução; como escudo e abrigo, coloquei
uma dúzia de bons livros numa sacola e resgatei meu velho chapéu de jóquei, para dar charme na jornada. E vou por aí, vendo o novo, revitalizando o velho e
descobrindo maravilhas que eu, antes nem sonhava que existia...
Antes, porém, o
charme do meu chapéu é tamanho, que me fez lembrar uma guloseima, das primeiras
feitas pelo poeta que adorava uma cozinha, Vinicius de Moraes (já falamos
destes dotes do poeta aqui), desde a época em que, no quintal de Maria da
Conceição de Mello Moraes (sua avó) o menino Vina pegava os ovos para inventar,
junto com os irmãos e a avó paterna, os seus "chapéus de jóquei",
bolinhas de gema e açúcar cobertas com calda de caramelo.
Acho que vou
reproduzir esta ideia do Vinicius em quanto as aguas de março caem, e só depois
seguir minha viagem...
Chapéus
de Jóquei
(Receita original de Vinícius retirada do
livro: Pois Sou um Bom Cozinheiro Daniela Narciso e Edith Gonçalves Companhia
das Letras, 296 páginas)
7 gemas
5 colheres (sopa) de açúcar;
1/2 colher (sopa) de farinha de trigo;
1/2 colher (sopa) de manteiga;
1/4 de colher (sopa) de baunilha
Preparo:
Passe
as gemas na peneira e misture tudo, exceto a baunilha. Leve ao fogo médio e
mexa sem parar. Fora do fogo, acrescente a baunilha até incorporá-la. Numa
travessa untada, faça bolinhas com uma colher. Cubra com calda de caramelo e
puxe a pala do chapéu com o cabo da colher
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