Quem nunca comeu a
cabidela de galinha? E galinha ao molho pardo? Com certeza teve gente que comeu
as duas, e teve quem achasse diferença, mas elas são a mesma coisa (risos). A
confusão é culpa dos modismos gastronômicos que aparecem, e desaparecem, tão de
repente nas circunstância dos tempos. Lembro-me bem de alguns batizados e
casamentos, na época em que eu morava na Serra da Ibiapaba-CE, onde galinhas
preparada com seus miúdos no molho à base do sangue da própria ave, que acrescido
de vinagre e temperos, era servido como um prato chique - e eu estou falando da
década de 1980. Por aqueles tempos o povo ainda gostava de ter “trabalho” com a
alimentação.
Me lembro demais do
medo que eu sentia quando, eu criança, era chamado por minha avó para mexer o
sangue com vinagre, no instante em que ela resolvia preparar a cabidela de
galinha. Eu sentia um mix de pena, medo e pavor da ave. Minha avó materna
gostava muito de cabidela, sempre tínhamos galinhas no quintal de casa – e
quando não as tínhamos, ou ela viriam dos nossos sítios ou meu avô comprava uma
galinha gorda na feira. Mas na hora do preparo, era sagrado ouvir minha avó me gritar,
me chamando pra ajudar. E eu ia... morrendo de medo da galinha se soltar e voar
em cima de mim, até desfalecer – e isso ocorreu algumas vezes.
Enquanto minha avó fazia
um corte à faca no pescoço da ave, que logo estremecia toda chegando até a
abrir e bater assas, para retirar o sangue, que descia quente enquanto seu o
aparava numa tigela de vidro contendo um pouco de vinagre; era tenso o momento,
eu segurava meio trêmulo aquela tigela, misturando o sangue com o vinagre, com a
ajuda de um garfo, para que o sangue não coagulasse... faz tempo que não faço
isso – nem quero. Não sou lá muito fã de cabidelas. Só resolvi fazer essa
postagem sobre o tema, porque semanas atrás apresentamos, eu e minha equipe, um
trabalho sobre gastronomia cearense para os colegas do mestrado no módulo ministrado pelo Prof. Dr. Agileu Gadelha, e dentre as
preparações escolhidas para a apresentação falou-se, dentre outras coisas, da
cabidela que é tipicamente encontrada nas mesas cearenses.
Assim essa postagem,
nada mais é do que uma agradecimento às companheira de equipe pelo trabalho
apresentado, pelo esforço e pela colaboração. Agradeço e dedico este post a vocês,
queridas amigas: Eline Alves, Munike Magalhaes, Thereza cartaxo e Priscila
Medeiros – essa última tem pavor de cabidela (risos).
Da esquerda para a direita: Priscila, Thereza, Eu, Eline e Munike |
Mas vamos falar da
cabidela de galinha...
Cabral foi o responsável
pelo aparecimento de galinhas em terras brasileiras; de criar alvoroço entre os
índios que nunca tinham visto uma galinha até a noite de vinte e quatro de
abril de mil e quinhentos – como relatou Caminha em sua famosa carta. Os índios
não gostaram mesmo das penosas, aparentemente, sentiam medo daqueles bichos
estranhos. Os índios também não simpatizaram com ovos de galinha, tanto que
continuaram a preferir os de tartaruga e jacaré.
Fato parecido também
ocorreu com os negros escravizados, que preparavam poucos pratos com galinha,
como muamba de galinha (hoje é um prato típico da culinária angolana, cuja
confecção envolve, para além da galinha, óleo de palma, quiabos, gindungo,
cebola, abóbora e alho. A galinha é cortada em pedaços e temperada com sal,
alho e gindungo, sendo, em seguida, cozinhada com a cebola. Mais tarde, são
adicionados o óleo de palma, que pode ser confeccionado com dendês frescos ou
adquirido pronto a usar, os quiabos e as abóboras) e o xinxim – preparação com técnica
que depois empregaram pra fazer o vatapá. Para o negros, os ovos de galinha era
remédio.
E, assim, sem ter
medo de afirmar, no Brasil as galinhas foram, por muito tempo, comida dos
brancos elitizados – e aos poucos, das mulheres paridas e dos doentes em geral.
Garcia da Orta (Castelo de Vide, c.1500 — Goa, c.1568), médico judeu português
que viveu na Índia no século XVI, autor pioneiro sobre botânica, farmacologia,
medicina tropical e antropologia, em sua obra “Colóquio dos simples e drogas e
coisas medicinais da Índia”, editada em Goa em 1563, já prescrevia para seus
pacientes “galinha gorda, tirando-lhe primeiro a gordura que tem e deitem-lhe
dentre umas talhadas de marmelos”.
Não há consenso que ateste a origem do nome
dessa preparação. Mas a maioria dos dicionários e enciclopédias sugerem que
viria dos "cabos" antiga designação portuguesa para as extremidades
do animal, ou seja, a perna, a asa e o pescoço. Daí cabedela, ou cabidela como
é mais conhecido popularmente. Há quem diga que a apalavra se originou do nome
árabe para fígado, Kabed, um dos ingredientes que vai na receita. Mas eu
particularmente não acredito nisso, já que os árabes e judeus são proibidos de
comer sangues por conta de sua religião. E por ser considerada “comida de
festa”, jamais deveria ser consumida nos primeiros dias de quem estivesse de
luto.
A Galinha cabedela
tem fama de ser tão gostosa que mereceu fartas citações entre os escritores
portugueses: Camões, no Auto de Filodemo, refere a preparação com palavras
saídas do personagem Vilardo – “Das lágrimas caldo faço,/ do coração escudela:/
esses olhos são panelas/ Que coze bofes e baço/ Com toda a mais cabedela”; Eça
de Queiroz, em O Crime do Padre Amaro, assim descreve os dotes culinários do
Abade da Cortegaça – “Era um velho jovial, muito caridoso, que vivia há trinta
anos naquela freguesia e passava por ser o melhor cozinheiro da diocese. Todo o
clero das vizinhanças conhecia a sua famosa cabidela”.
Informações
históricas constatam que desde o século XVI a receita é preparada em Portugal.
Em Portugal, além de galinha, a cabidela pode ser preparada também com outras
aves – ganso, marreco, pato, peru. Em todos os casos, usando-se no molho o
sangue da ave, obtido no momento do abate; misturado com um pouco de vinagre,
para não coagular. Cada região tem sua receita própria. Na Beira Alta, por
exemplo, se faz “Arroz de Cabidela” – primeiro cozinhando o arroz no caldo em
que foi preparada a galinha, e depois acrescentando o sangue. Enquanto na
região de Trás os Montes e Douro, a receita da cabidela de galinha (ou de peru)
é servida com batatas cozidas e pão; ali se fazendo, ainda, uma “Cabidela de
Miúdos” – com baço, bofes, esôfago, goela, traqueia, sangue e carnes do porco.
Geralmente, nas feiras do interior cearense, quando não se quer ter trabalho matando galinhas para preparar cabidela, compra-se sangue (de aves ou porco) nas feiras ou açougues |
Certamente que
cozinhar com sangue é técnica de vários povos, a desculpa para a utilização do
ingrediente vital é o seu significado nutritivo, fortificante. O livro Cozinha
tradicional Portuguesa (1982), de Maria de Lourdes Modesto, conta que certas
lugares em Portugal substituem o sangue por gemas de ovos, com gotas de limão. E
nesse caso, passa a se chamar o preparado de fricassê.
Considerando a
leitura de obras de Gilberto Freyre, acredita-se na origem estrangeira – mas
não à Corte portuguesa, mas sim à França. Está lá escrito na introdução de
Açúcar, obra de Freyre: "outros quitutes com aparência de brasileiros são
franceses e refletem o francesismo que desde o século dezoito invadiu a cozinha
portuguesa: a cabidela, por exemplo. Provavelmente o mestre tenha em
referencias como o poulet en barbouille,
o carnad au sang, o coq au fleurie ou mesmo o famoso coq au vin, em cujo molho Paul Bocuse adiciona sangue. Mas
certamente o prato precedeu o francesismo ao ser introduzido na culinária
portuguesa no reinado de dona Maria I, mãe de Dom João VI, pelo cozinheiro
Lucas Rigaud, vindo de paris
Mas é uma constante,
na literatura gastronômica, referenciar a origem da galinha cabidela no poulet en barbouille, que perdeu ingredientes
em Portugal, onde passa a ser preparada sem o vinho tinto e o champignon da
receita original francesa. Mesmo assim continuou comum sabor especial.
E por gostar de viver
a diferença, sobretudo na gastronomia, fica abaixo três receitas deliciosas, e
de sabor intenso, para ser feitas com galinha: cabidela, moamba e xinxim. .
GALINHA
DE CABIDELA
1 galinha grande e gorda
2 colheres de sopa de vinagre
4 limões
Sal, pimenta do reino e cheiro verde a gosto
2 dentes de alho socados
1 cebola ralada
2 colheres de sopa de óleo
½ pimentão cortado em tiras finas
4 tomates picados (sem pele e sem sementes)
2 colheres de sobremesa de extrato de tomate
2 folhas de louro
Preparo: Junte o sangue da
galinha em recipiente com vinagre. Bata com um garfo, para não talhar. Reserve.
Corte a galinha em pedaços. Passe limão. Lave e tempere com sal, pimenta e
alho. Reserve. Leve ao fogo uma panela grande, com óleo. Doure a galinha. Junte
cebola, cheiro verde, extrato de tomate, louro, pimentão, tomate. Refogue tudo
em fogo brando. Acrescente água. Deixe no fogo até que a galinha esteja bem
macia. Na hora de servir, junte o sangue (mexa antes) aos poucos, na panela.
Leve novamente ao fogo e misture bem. Deixe até que tudo esteja bem cozido. Sirva
com batata cozida e arroz branco.
POULET
EN BARBOUILLE
1 frango de 1,5kg preparado limpo e o seu
sangue reservado numa tigela com 2 colheres de sopa de vinagre
60 g de manteiga
250 g de champignons ou cogumelos Paris
200g de bacon
60 g de farinha
20 cebolas pequenas
4 cebolas e 4 dentes de alho
1 taça de licor de cognac ou eau-de-vie
1 garrafa de bom vinho tinto
Sal e pimenta moída na hora
1 folha de louro
1 ramo de tomilho
2 colheres de sopa de salsa picada
Preparo: Em uma panela,
derreta a manteiga, coloque o bacon em cubos e cebolas inteiras, sem a casca. Quando
tudo estiver dourado, escorra e reserve em um prato.Na gordura que sobrou,
doure bem os pedaços de frango, e seus miúdos. Após a dourar junte o conhaque
para flambar. Reserve essas peças com o bacon e cebolas. Na gordura restante
junte a farinha com um pouco de manteiga para fazer um pouco de roux, misture
bem, depois adicione o vinho tinto, deixe ferver. Adicionar sal, pimenta,
tomilho, louro, alho picado e cebola picada. Junte o frango, cebolas, bacon no
molho, um pouco de água fervente, se necessário, para cobrir. Tampe e cozinhe
por cerca de 1 hora e 30. Quinze minutos antes do final do cozimento, coloque
os cogumelos, bem lavados e picados Depois de cozido, coloque os pedaços de
frango em um prato raso e mantenha aquecido. Reduza o m molho restante e antes
finalizar junte o sangue em misture bem, deixe ferver por 3 minutos. Acerte o
sal se precisar. sirva quente.
XINXIM
DE GALINHA
1/2 xícara (chá) de amendoim torrado e moído
1/2 xícara (chá) de azeite-de-dendê
1/2 xícara (chá) de castanha de caju moída
2 colheres (sopa) de suco de limão
1 colher (sopa) de gengibre ralado
1 colher (chá) de pimenta-do-reino
250 g de camarão seco descascado e moído
4 dentes de alho espremidos
4 ramos de coentro picados
2 cebolas grandes picadas
1 frango em pedaços
sal a gosto
Preparo: Tempere o frango com
o alho, a pimenta-do-reino, o coentro, a cebola e sal. Numa panela grande,
aqueça o azeite-de-dendê e refogue os pedaços de frango por 25 minutos, mexendo
de vez em quando. Adicione o camarão, a castanha, o amendoim, o gengibre e o
suco de limão. Cozinhe em fogo médio até a carne ficar macia. Se o caldo
começar a secar, acrescente água.
MOAMBA
DE GALINHA À ANGOLANA
Azeite
1 frango
8 dentes de alho
150 ml de óleo de palma
400g de abóbora
3 cebolas picadas grosseiramente
400g de quiabos sem pedúnculo
400g de farinha de milho
Gindugo (Pimenta malagueta) a gosto
1 lt de água
Preparo: Tempere o frango com
alho picado, gindungo e sal e deixe marinar cerca de uma hora. Leve ao fogo em
uma panela com um fio de azeite e coloque o frango para dourar. Junte um pouco o
óleo de palma e mexa bem. Corte os quiabos ao meio, o tomate em quartos e pique
a cebola. Retire a casca da abóbora e corte-a em pedaços. Junte tudo ao frango.
Acrescente um pouco de água, acerte o sal. Acrescente agua aos poucos para
cozinhar. Deixe cozinhar até ficar macio. Numa panela coloque a agua para
ferver com um pouco de sal, quando fervendo junte a farinha de milho e mexa
bem. Misture um pouco do caldo do frango no pirão de farinha de milho, mexendo
até engrossar, aproximadamente 15 minutos. Sirva o frango com o pirão.
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