Às
vezes fico observando o tempo passar e me dou conta o quanto ele passa rápido e
traz muitas transformações com ele. E os feriados santos são uma boa
oportunidade para observar isso de perto. Como nasci numa família católica, num
lugar com predomínio de católicos, identificar ritos durante a Semana Santa era
algo fácil e curioso: cada ritual me despertava ânsia em descobrir os motivos
das coisas encontradas durante aquelas celebrações existirem. Foi assim que
aprendi cedo a ligação dos ovos com a Páscoa; de como se deu a ideia de coelho
trazendo ovos nesse feriado (já tratei sobre isso AQUI); a ideia de jejuar
excluindo as comidas ditas ‘gordas’ durante a Quaresma e, especialmente, na
Sexta Feira Santa.
À
medida que o fim de semana da Páscoa se aproxima, e com ela momentos de festa e
celebração com a família e amigos, eu fico ainda curioso para descobrir comidas
‘novas’ que se tornaram ícones nesse período tais como: o casatielo (AQUI), a
potica (AQUI), a cassata (AQUI), a mouna (AQUI), a colomba pascal (AQUI), o
fiadone (AQUI), a babka (AQUI), a capirotada (AQUI), o pretzel (AQUI), o tsouréki (AQUI),
o folar de páscoa (AQUI) e o pão de coco
cearense (AQUI).
Mas
o que vou tratar hoje é algo que vai bem com a minha índole, um tanto
questionador e rebelde, mesmo sabendo que a tradição da festa cristã recomenta
que se coma peixe em vez de carnes (bovina, suína e aves) na Sexta-Feira Santa.
Só
para relembrar aos esquecidos sobre a origem da prática tudo começa, como conta
a história, que Jesus sacrificou a sua própria carne na Sexta-Feira Santa.
Logo, tradicionalmente, os católicos se abstêm de comer carne neste dia. Em vez
disso, o peixe é considerado um tipo de produto animal mais favorável para
consumo.
A
igreja medieval decretou que a carne de animais de sangue quente não deveria
ser consumida às sextas-feiras, daí a substituição pelo peixe. Outros tipos de
cristãos acreditam que comer peixe na Sexta-feira Santa simboliza o dia na
Bíblia em que Jesus foi morto pelos romanos.
Os peixes também foram usados como sinal pelos primeiros cristãos para se identificarem, por exemplo, para marcar e reconhecer locais de encontro designados. Era conhecido como "ichthus" e usado junto com a cruz de Jesus Cristo na comunidade cristã primitiva.
O peixe é baseado em um acróstico das letras iniciais das palavras gregas para Jesus Cristo. Para entender esse símbolo, você precisa saber o significado da sigla. A palavra grega para peixe é “Ichthus”, que também é um acrônimo para Jesus. O latim, "Iesous CHristos THeou Uios Soter" é traduzido em inglês como "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador".. Cristo também se referiu aos seus apóstolos como “Pescadores de Homens”, enquanto os primeiros pais cristãos chamavam os fiéis de “pisculi”, que significa “peixe”. Como alguns dos discípulos de Jesus também eram pescadores, o peixe é visto como um bom substituto da carne na Sexta-Feira Santa, visto que é regularmente referenciado nos relatos da vida do filho de Deus.
Na
época de Jesus, o peixe era visto como um alimento diário de fácil acesso - e
pescar era muito mais fácil do que abater um animal ou ir caçar. No entanto, na
década de 1960, o Papa João XXIII interveio e alterou a decisão, pois ele
acreditava que o jejum deveriam ser mais que abstenção de comida, como mostra
esse trecho de uma mensagem de rádio proferida pelo Papa João XXIII (que pode
ser conferida pela Vaticano News):
“Eis
aqui como, com a instituição da quaresma, a Igreja não conduz simplesmente seus
filhos ao exercícios de práticas exteriores, mas a um compromisso sério de amor
e de generosidade para o bem dos irmãos, à luz do antigo ensinamento dos
profetas: Acaso o jejum que eu prefiro não será isto: soltar as cadeias
injustas; - adverte Isaías - desamarrar
as cordas do jugo; deixar livres os oprimidos, acabar com toda espécie de
imposição? Não será repartir tua comida com quem tem fome? Hospedar na tua casa
os pobres sem destino? Vestir uma roupa naquele que encontras nu e jamais
tentar te esconder do pobre teu irmão?”.
Assim,
João XXIII disse que essa tradição poderia ser modificada dependendo da
situação econômica de uma pessoa, portanto, comer peixe na Sexta-Feira Santa
passou a ser apenas uma orientação, e não a regra.
Pois
bem, e quando você de repente descobre que membros da própria Igreja burlava
essa regra? Não quero julgar com adjetivos errôneos, apenas apresentar fatos.
A
história de hoje irei apresentar “os pequenos trapaceiros de Deus”, o
Maultaschen, um tipo de massa recheada alemã preparada pelos monges cistercienses
no mosteiro de Maulbronn, localizado no estado de Baden-Württemberg, no
sudoeste da Alemanha
Mosteiro de Maulbronn
O
Mosteiro de Maulbronn é um lugar de lendas fundado em 1147 e declarado Patrimônio
da humanidade pela Unesco no ano de 1993. O nome apareceu em registros históricos
como ‘Mulenbrunnen’, o que sugere um local próximo a uma fonte de água
(“Brunnen” em alemão) que alimentava um moinho (“Mulin” em alemão médio-alto).
Também apareceu como ‘Mulibrunnen’, o que sugere uma mula (‘Maultier’ em
alemão, apelidado de ‘Muli’). Diz a lenda que quando os monges saíram em busca
de um local para o seu novo mosteiro, pegaram uma mula e, quando o animal parou
para beber água, interpretaram isso como um sinal de Deus para que ali
permanecessem e construíssem o seu mosteiro. Outra versão diz que a mula deu
patadas no chão e descobriu água naquele local. Seja qual for a verdade, uma
mula bebendo de uma fonte aparece no brasão da cidade, e a imagem também é
retratada em uma pintura em ocre vermelho acima da fonte de três taças na Casa
da Fonte do mosteiro.
Neste
Patrimônio Mundial da Unesco, fundado em 1147 - o complexo monástico medieval
mais bem preservado ao norte dos Alpes - os visitantes podem fazer um curso de
duas horas sobre como fazer Maultaschen, grandes travesseiros de massa
tradicionalmente recheados com carne picada e carne defumada (geralmente carne
de porco), espinafre, farinha de rosca (pão ralado), ervas e especiarias. Cada
Maultaschen enorme mede até 12 cm de diâmetro, com a versão mini do
Maultaschen, ou ‘Maultäschle’ no dialeto da Suábia, medindo entre 5 a 7cm. O
Maultaschen genuíno deve ser produzido na Suábia, uma região histórica que hoje
está incorporada a Baden-Württemberg e ao distrito governamental da Suábia, na
Baviera. Em 2009, a União Europeia reconheceu o Maultaschen como uma
especialidade regional
Tradicionalmente
servido durante a Quaresma num caldo quente guarnecido com cebolinhas, este
prato centenário está associado à Sexta-feira Santa, última sexta-feira da
Quaresma. Os católicos, juntamente com alguns outros cristãos, são encorajados
a abster-se de comer carne durante a Quaresma, especialmente na Sexta-Feira
Santa – e essa massa destinava-se a esconder o recheio de carne “pecaminoso”.
Existem
três lendas principais sobre como o Maultaschen da Suábia surgiu. A primeira
diz que os saquinhos de massa recheados eram uma cópia do ravióli italiano,
trazido do outro lado dos Alpes pelos valdenses, membros de um movimento
cristão. A segunda, conta que Maultaschen era uma lembrança culinária de viagem
da condessa alemã Margaret Maultasch, uma nobre senhora que trouxe a receita do
Tirol, nos Alpes austríacos: ela era chamada de Maultasch, ‘boca de bolsa’,
devido ao formato de sua mandíbula deformada.
A
terceira diz que o prato teve origem no século XVII, durante a Guerra dos
Trinta Anos, uma criação inteligente de um monge cisterciense do Claustro de
Maulbronn. Os monges eram proibidos de comer carne, por isso colocaram-na
dentro de um travesseiro de massa para esconder o recheio dos olhos de Deus.
Traduzido literalmente como “bocal”, o apelido do prato no dialeto da Suábia,
Herrgottsbescheißerle, significa “pequenos trapaceiros de Deus”.
Ordem
de Cister, ou Ordem Cisterciense (Ordo Cisterciensis, O. Cist.), é uma ordem
religiosa monástica católica beneditina restaurada. Os Cistercienses eram um
grupo rigoroso: a regra de ‘ora et labora’ (orar e trabalhar) era obedecida
rigorosamente. Monges leigos e monges sacerdotes desempenhavam funções
diferentes e ocupavam instalações separadas; os monges leigos eram responsáveis
pelo trabalho físico e pela culinária, e não tinham permissão para entrar em
nenhuma das salas designadas aos monges sacerdotes. Os monges sacerdotes,
educados e oriundos de famílias nobres, passavam a maior parte do tempo rezando
e até ouviam as orações enquanto comiam em silêncio.
A
ração diária de um monge sacerdote era composta por meio quilo de pão de
farinha grossa e pequenas porções de peixe, vegetais, cereais e fruta. Mas,
sabe-se que eles também comiam castores e sapos. Os cistercienses (exceto os
doentes) não tinham permissão para comer nada com quatro pés, pois a carne era
luxuosa demais para se adequar aos seus valores de pobreza e a renúncia à carne
era um sacrifício a Deus - mas aparentemente os pés palmados eram uma exceção.
Os monges leigos comiam separadamente e recebiam porções maiores devido ao
trabalho físico que seus cargos exigiam. Por isso, há quem diga que essa
preparação em especial era feita no estábulo do mosteiro, longe dos olhos dos
supervisores – lugar que, aliás, é onde hoje se mantem o curso de preparo dessa
especialidade.
Hoje
no mosteiro de Maulbronn, o curso dessa ‘massa pecaminosa’ é feito numa cozinha
instalada no antigo estábulo de mulas do mosteiro. Lá, se encontram dispostos
todos os ingredientes do Maultaschen: folhas de massa já pronta e abertas,
salsa, alho-poró, pão de molho, pão ralado (farinha de rosca), presunto, queijo
ralado, sal e pimenta, além de ovo para colar a massa. E quem se inscreve nesse
curso pode se equiparar aos monges leigos, porque farão o trabalho físico e
cozinharão.
Geralmente
se usam réguas para medir retângulos da folha de massa pré-medida, e os
aprendizes são instruídos a preencher e dobrar em quadrados de 7 cm – como
aponta sempre o exigente chefe da administração do mosteiro, que supervisionava
o programa do curso culinário. Depois de se rechear os retângulos de massa,
eles são fechados e pressionando os dentes do garfo nas bordas. E logo eram
cozidos em caldo quente.
O
Mosteiro de Maulbronn passou por um período tumultuado durante a turbulência
religiosa e política da Reforma do século XVI. Em 1504, o mosteiro medieval foi
tomado pelo duque Ulrich de Württemberg, que mais tarde se tornou um convertido
luterano. Os cistercienses conseguiram retornar duas vezes, mas apenas por
breves períodos. A partir de 1536 o mosteiro deixou de ser católico; os monges
foram forçados a partir e Maulbronn tornou-se um estabelecimento protestante.
Hoje,
o complexo ainda é central para a vida local, oferecendo um mercado verde
sazonal e concertos e outros eventos durante todo o ano. Em vez de monges,
abriga uma escola secundária protestante academicamente exigente, com 100
alunos internos; ao longo dos séculos, alunos proeminentes como Hermann Hesse
passaram por suas portas. Em ocasiões especiais, às vezes os alunos recebem
Maultaschen.
Maultaschen
é preparado de várias maneiras, incluindo fervido em caldo ou salteado na
manteiga. Além disso, o Maultaschen de hoje é muitas vezes feito com recheios
não tradicionais, incluindo salmão, carne de veado e até chouriço com chucrute.
Nesse
interim apareceu outra estória para justificar a preparação: diz-se que dois
meninos pobres vieram de uma cidade próxima para Maulbronn porque o pai não
tinha dinheiro para alimentá-los. Tornaram-se monges leigos e foram totalmente
incluídos na vida monástica. Um dos meninos, que trabalhava na cozinha, ganhou
de presente um grande pedaço de carne. Como a carne era proibida, ele teve que
escondê-la dos irmãos, então colocou-a num barril e adicionou sal para
conservá-la. Depois de algumas semanas, ele sabia que precisavam comer a carne
ou ela estragaria. Na Sexta-Feira Santa, ele cortava a carne em pedaços,
acrescentava ervas, ocultava a mistura na massa e servia aos monges. Talvez
eles não reconhecessem o que comeram ou não quisessem saber porque era tão
delicioso. Foi também assim que ele escondeu isso do Senhor, e por que seu
[apelido] é Herrgottsbescheißerle – trapaceiros de Deus.
Essa
massinha alemã cai perfeitamente bem acompanhada de uma salada de batata da
Suábia feita com vinagre e azeite em vez de maionese, típica de outras regiões
alemãs. A receita é bem fácil. E os recheios podem ser adaptáveis hoje em dia.
Mas, o original requer alguns cuidados.
Um
dos principais ingredientes do Maultaschen tradicional é o que é chamado de
“Bratwurstbrät” na Alemanha. Sem ele você simplesmente não consegue replicar um
sabor autêntico.
O
que é Bratwurstbrät?
Receitas
alemãs autênticas geralmente pedem uma combinação de carne moída e algo chamado
Bratwurstbrät – que é a mistura de carnes usadas para fazer salsichas alemãs.
Na Alemanha, como salsicha italiana a granel ou linguiça de café da manhã a
granel, você pode ir ao açougue e comprar Bratwurstbrät. O desafio é que fora
da Alemanha é quase impossível encontrá-la. Então apresento uma receita de Bratwurstbraet
caseira combinada com carne moída para fazer o recheio Maultaschen. E tem o
mesmo sabor do produto genuíno da Alemanha. Problema resolvido.
Como
fazer Bratwurstbrät
Tecnicamente,
se você encontrar autênticas Bratwursts alemãs, poderá cortar a pele e espremer
o recheio e usá-las para o recheio Maultaschen (no lugar da carne de porco
moída) junto com a carne de vaca moída. Hoje em dia as lojas especializadas em
carnes e charcutaria é possível encontrar esse tipo de linguiça alemã. Mas na
receita abaixo vai a minha dica.
Maultaschen
Ingredientes (para 4 pessoas):
250 g
de farinha de trigo
Sal
2 ovos
2
colheres (sopa) de óleo
Farinha
para trabalhar a massa
100 g
de espinafre picado congelado ou 200 g de espinafre fresco
5
cebolas
200 g
da mistura de carnes (carne de vaca moída e carne de linguiças alemãs – pro
caso de você não achar, misture com carne de porco ou bacon)
2
colheres (sopa) de farinha de rosca
Pimenta-do-reino
Noz-moscada
50 g
de manteiga
Caldo
de sua preferência (opcional)
Preparo: Misturar a farinha com
½ colher de chá de sal, os ovos, o óleo e 3 colheres de sopa de água. Trabalhar
com as mãos até obter uma massa homogênea. Cobrir com um pano úmido e deixar
descansando em temperatura ambiente durante 20 minutos. Se usar o espinafre
congelado, colocá-lo num saco para congelar fechado, na água quente e deixar
descongelar durante 20 minutos. Se usar o fresco, lavá-lo e picá-lo. Descascar
e picar bem uma cebola. Bater no processador o espinafre, a cebola, a carne
moída, farinha de rosca, sal, pimenta-do-reino e noz-moscada a gosto. Dividir o
recheio em quatro partes iguais. Dividir a massa de farinha ao meio. Abrir uma
das duas metades com um rolo sobre uma superfície enfarinhada, até ficar com
cerca de 40 cm de diâmetro. Dividir a massa aberta ao meio novamente, obtendo
duas meias-luas. Espalhar um quarto do recheio sobre uma das meias-luas,
deixando uma borda de 2 cm. Pincelar as bordas com água. Rolar a massa a partir
da parte redonda, fechando-a com uma largura de cerca de 5 cm. Achatar um
pouco. Segurar cada extremidade do cabo de uma colher de pau com uma das mãos e
pressionar sobre o rolo, deixando quatro sulcos de modo a obter quatro
retângulos. Achatar os sulcos até ficaram com cerca de 1 cm de largura.
Pressionar as extremidades do rolo de massa para que o recheio não saia. Nos
sulcos, separar os retângulos um do outro com um cortador de pastel ou uma
faca. Certificar-se de que os retângulos estão fechados de ambos os lados.
Proceder da mesma maneira com as demais meias-luas de massa e o recheio
restante. Quando todos os maultaschen estiverem prontos, colocar água para
ferver com sal. Cozinhar alguns maultaschen por vez na água fervente, com a
panela fechada e em fogo médio, por cerca de 15 minutos. Descascar as quatro
cebolas restantes e cortá-las em rodelas finas. Aquecer a manteiga numa
frigideira e refogar a cebola em fogo médio até ficar transparente. Retirar os
maultaschen da água fervente com uma escumadeira, deixar escorrer e passá-los
rapidamente pela frigideira com a cebola. Servir com a cebola por cima. Se
preferir, servi-los mergulhados em caldo de sua preferência.
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