domingo, 22 de dezembro de 2024

É por isso que os franceses comem ostras no Natal! (isso não é só uma questão de gosto)

 

Eu recebo muitos comentários e questionamentos, tanto no blog quando na página do Facebook, muitos deles são desejando saber curiosidades; outros tantos são pedindo que trate de determinado prato ou prática alimentar. Mas, também aqueles leitores e leitoras que dividem comigo suas experiencias gastronômicas, especialmente quando fazem viagens ou são brasileiros vivendo em outros países. Esses dias, enquanto eu publicava as postagens sobre o Natal um questionamento surgiu de algumas leitoras, brasileiras que estão morando na França ou que já passaram alguns natais naquele país: os comentários giraram sobre a questão do impacto cultural observado a partir das mesas de natal na França, particularmente pelo fato de serem preparações frias servidas como o ápice da mesa natalina, cujas ostras ganham destaque central. 

Eu até relutei em não postar sobre isso este ano, mas, o algoritmo do TikTok deve ter “ficado de olho nas minhas conversas” e me mandou um vídeo de uma brasileira que mora na França a mais de seis anos, a Lívia Melina. No vídeo, ela comentava justamente sobre o impacto do Natal na França, a partir da mesa, e num parte do vídeo ela se depara com a prática dos franceses de comer ostras no Natal. Ela conta a sua experiência, desde quando via as gondolas de mercados montando lugares de destaque para as ostras – algo que para nós, no Brasil, teriam em exposição perus, pernis, tenders, chesters e outras carnes natalinas. Com isso, estava claro que eu não deveria fugir dessa postagem. Então, é sobre isso que irei apresentar hoje.

Pra começo de conversar, é preciso que se entenda que a ostra está presente nas refeições humanas desde o inicio dos tempos. Ou, pelo menos, “desde que o homem conhece o mar”, como justifica a jornalista científica Marie Lescroart no livro “60 clés pour comprendre les huîtres” (60 chaves para entender as ostras), publicado em 2017, que revela ainda que nossos ancestrais pré-históricos tiveram a sorte de viver no litoral, já aproveitavam as ostras pelo simples fato de eles só precisavam se abaixar para pegá-las – eram tempos diferentes.

Antigamente, a ostra era tão apreciada pelos gregos e romanos que eles já utilizavam parques de reprodução. A partir do século XVII, a demanda foi tanta que os bancos naturais diminuíram: a moderna criação de ostras nasceu no século XIX. As técnicas atuais variam dependendo da localização e da tradição, mas leva de dois a três anos para que a ostra esteja comercializável. Mais tarde, com o tempo, saberíamos que as ostras triploides  (que três conjuntos de cromossomos e são valiosas para a indústria de aquicultura comercial devido ao seu potencial de crescimento rápido, qualidade superior da carne (especialmente no verão), capacidade de colheita durante todo o ano e baixa pressão ambiental sobre as populações selvagens triploide), desenvolvida por pesquisadores seria uma opção para consumido o ano todo porque, por ser estéril e não se reproduz  sem as manipulações humanas .

A ostra é um molusco bivalve, que pertence à família Ostreidae e que se fixa em rochas ou permanece em fundos lamacentos. É consumida desde os tempos pré-históricos pelas populações costeiras. Durante o período antigo na bacia do Mediterrâneo, os gregos se deliciavam com elas. Depois deles, os romanos ficaram entusiasmados com esse molusco. Eles traziam do Mediterrâneo e do Atlântico e criaram parques de reprodução.

O consumo de diferentes moluscos pelo homem sendo muito antigo, remonta às sociedades de caçadores-coletores do Paleolítico, mas era algo especialmente específico daqueles que viviam no litoral. Esse consumo é explicado pelo fato de que a coleta de mariscos era fácil e permitia que a maior parte de uma comunidade fosse alimentada com pouco esforço. O sítio neolítico de Saint-Michel-en-l’Herm apresentou uma quantidade muito grande de conchas de ostras da espécie Ostrea edulis nas quais foi demonstrada a intervenção humana para alimentação. Na Gália (região que antigamente correspondia a atual França), antes da conquista romana, havia o consumo de muitos frutos do mar, especialmente mexilhões.

É a partir da época do Império romano que os vestígios de marisco encontrados vão mudar na escolha das espécies, mas também nos locais de consumo. Os romanos implementarão uma melhoria nos meios de transporte que permitirá o consumo de mariscos bem no interior, já que restos de conchas de ostras foram encontrados no território Arverni, em Autun, mas também na Suíça, bem como em Trier. E ao mesmo tempo os romanos iam transmitindo os seus gostos pelos mariscos, uma vez que observamos uma generalização do consumo de ostras e ao mesmo tempo uma rarefação do consumo de mexilhões, enquanto o consumo de vieiras parece manter-se estável.

Os gregos já comiam ostras há muito tempo e não parecem ter adquirido esse hábito alimentar dos egípcios ou das populações semitas, que consideravam os mariscos alimentos impuros (sem dúvida porque o clima aumenta os riscos de envenenamento). Parece que foi através do contato com os gregos que os romanos começaram a ter esse gosto por ostras (e outros animais com conchas), pois descobertas arqueológicas na Itália mostram uma ausência de conchas, exceto raras exceções, antes do século I a.C. O que se observa ao longo da história é que foram os membros da Elite romana que trouxe esse interesse de volta de suas viagens pela Grécia durante suas conquistas e seus estudos.

No entanto, esse uso não era necessariamente bem visto, seja porque esse consumo era visto como estrangeiro, seja porque era visto como um luxo que os costumes romanos tendiam a desaprovar, principalmente M. Aemilius Scaurus quando era cônsul em 115 aC., proibindo o consumo de ostras. Dito isto, é provável que a medida tenha sido pouco seguida porque sabemos que Caio Sergius Orata, inventor dos tanques de ostras, fez fortuna no comércio de ostras do Lago Lucrin nos anos seguintes a este ato, o que lhe valeu um julgamento. por poluição do domínio público, na qual foi defendido por L. Licínio Crasso (irmão mais velho do famoso triúnviro). Além disso, tudo indica que Crasso, Orata e Asclepíades (médico grego) teriam manobrado para criar uma hierarquia de bens como vinhos e mariscos, com o objetivo de criar a ideia de bens de luxo ou, ao contrário, de bens de primeiro preço.

                        Ilustração medieval de Sérgio Orata demonstrando cultivo de ostras

Caio Sergius Orata e os parques de ostras

Embora a coleta de diferentes tipos de moluscos existisse desde o início dos tempos, o mesmo não acontece com a criação de moluscos. De modo geral, as populações próximas às costas marítimas contentavam-se em coletar as conchas que encontravam. Dessa forma sabemos que todo tipo de marisco era consumido, até que os “depósitos” se esgotaram. Mesmo com o boom econômico do mundo romano, estas práticas pouco mudarão o que levará, devido à procura, a que a apanha de ostras ainda não tenha capacidade de reprodução e vemos nos vestígios encontrados que o tamanho dos moluscos diminuiu gradualmente entre os séculos I e Séculos V, até que nenhum consumo local pôde ser estabelecido, o que é um sinal de esgotamento de recursos ou de falta de interesse por essas colheitas. (razão econômica ou social).

Caio Sérgio Orata, um notável romano do início do século I a.C., é considerado o inventor da criação de ostras. Ele havia desenvolvido bacias nas margens do Lago Lucrin, na Baía de Nápoles, através das quais desviava o aluvião para alimentar as ostras e nas quais colocava restos de telhas ou mesmo varas entalhadas para facilitar a suspensão das ostras. Ele também mandou cavar um canal para permitir a entrada de água do mar e garantir um certo nível de salinidade. Não se sabe se as técnicas de Orata foram aplicadas na Gália, mas elas têm uma posteridade, já que Plínio, o Velho, as menciona quase dois séculos depois, o que supõe sua utilização, mas desde sua invenção as técnicas de cultivo de ostras mudaram muito pouco.

No entanto, isso não lhe causava problemas, pois o lago era de domínio público, as estacas ali plantadas podiam interferir nas linhas de pesca, o que prejudicava as atividades dos pescadores. Segundo Valério Máximo e Cícero, um pescador chamado Consídio exigiu um julgamento contra ele, no qual foi defendido por L. Licínio Crasso. O resultado do julgamento é desconhecido, mas uma frase do apelo de Crasso sobreviveu, provavelmente preservada para o humor do orador: "Meu amigo Consídio está errado ao pensar que, ao remover Orata do Lago Lucrino, ele o privará de ostras; porque se lhe for proibido levar alguns para lá, ele saberá como encontrar algumas nos telhados de suas casas.” Essa piada é uma referência aos restos de telhas usados na criação de ostras e às casas que Orata comprou por um preço baixo antes de instalar banhos quentes com hipocaustos e depois revendê-los com lucro (o que foi a fonte de (outros julgamentos).

Se o gosto pelas ostras já estava presente na aristocracia romana, como atesta a proibição do consumo de ostras pelo cônsul M. Aemilius Scaurus em 115 a.C., parece que ele tomou outro rumo com a intervenção de Orata, de L. Licínio Crasso e Asclepíades, o médico deste último. André Tchernia, em seu trabalho sobre vinhos romanos, apresenta Crasso e sua comitiva como tendo moldado os costumes e gostos da aristocracia romana para fornecer-lhes itens de luxo. Para isso, eles teriam criado uma hierarquia de bens, de modo que certos produtos seriam considerados dignos da aristocracia, enquanto outros permaneceriam como propriedade do povo e, ainda abaixo, dos escravos. Isso fica claro no caso do vinho, com a designação de Falerno como o rei dos vinhos, o que leva a um aumento de preço, tornando-o inacessível às camadas mais pobres da sociedade, tornando-se assim um produto para os ricos. O mesmo vale para as ostras, sendo as do Lago Lucrin consideradas as melhores (coincidentemente!).

Asclepíades, aproveitando seu status de médico renomado, recomenda ostras para digestão e o uso de banhos para higiene; o vinho é recomendado para preparar panaceias (quanto melhor o vinho, melhor o remédio). Que Asclepíades elogie ostras e banhos, que são o produto principal do melhor amigo de seu protetor, sem dúvida não é inocente!

Verdade ou não, a ostra se tornará um produto de luxo e um símbolo da cultura romana, o que permitirá que seu consumo se espalhe por todo o Império – incluindo na Gália.

Este gosto pelas ostras espalhou-se pela sociedade, a ponto de Cícero no século I a.C. considerar de mau gosto não servir ostras aos seus convidados, Plínio o Velho depois dele no século I menciona onze variedades de ostras, tanto Varro como Columela mencionam também o consumo de ostras e os parques onde elas eram cultivadas. Pelo menos dois atos legislativos dizem respeito às ostras: o Édito de Scaurus, já acima mencionado, e o Édito do Máximo do Imperador Diocleciano, na viragem dos séculos III e IV, que especifica que o preço de cem ostras é de cem denares, ou seja, um terço do salário anual de um legionário! Entretanto, não houve declínio observado no consumo durante o século IV.

Em Vindolanda, um forte localizado não muito longe da Muralha de Adriano, no norte da Inglaterra, um grande número de tábuas foi encontrado. Na tábua 299, seu autor, cujo nome nos é desconhecido, relata ao seu amigo Lúcio que um terceiro lhe enviou cerca de cinquenta ostras de outro lugar: Cordonouis. A localização desta cidade também é desconhecida para nós, já que esta é sua única menção no ablativo plural. O nome da cidade poderia, portanto, ter sido Cordonou(i)a, Cordonouae, Cordonoui. Acredita-se que esta cidade seja na verdade Colchester, uma grande cidade no sul da Inglaterra e produtora de ostras planas.

Ausônio, poeta galo-romano do final do século IV, não hesita em mencionar o seu gosto pelas ostras do Atlântico (fala do oceano de Medula, portanto do Médoc) numa carta ao seu amigo Paulo, fazendo mesmo uma referência inventário exaustivo dos locais de produção: Gasconha, Saintonge, Poitou, Armórica, Caledônia (Escócia), Marselha, Narbonne, Baiès (ou seja, Lago Lucrin de Orata), Propôntida (Mar de Mármara) e até Tarraco e Barcino (em outras palavras Tarragona e Barcelona). Em outra carta a Theon, ele zomba do fato de seu amigo ter lhe enviado apenas 30 ostras de presente.

A ostra parece ter feito um forte retorno desde o século XVII, particularmente em Paris.  Na Idade Média e no Renascimento, as ostras eram comidas “à l’escale” (com a casca). Produtos de consumo diário no litoral, eles representavam uma mercadoria de luxo para os ricos moradores das cidades. 

A corte lutou por eles e os monarcas ficaram loucos por eles. Henrique IV, em particular, amava-os a ponto de ficar doente. Quanto a Luís XIV, o Rei Sol, diz-se que ele os mandava trazer todos os dias de Cancale, a cavalo, e que conseguia devorar seis dúzias antes da refeição.

                                          Luis XV

O Rei Luís XV, conhecido como “o Amado”, também gostava particularmente dela. Tanto que em 1735 ele encomendou ao pintor Jean-François de Troy uma pintura representando uma degustação de ostras, “O Almoço de Ostras”, destinada a decorar a sala de jantar dos pequenos apartamentos do Castelo de Versalhes. esse fato em particular merece destaque em particular, o que farei a seguir.

ALMOÇO A BASE DE OSTRAS, de Jean-François de Troy, FOI A PRIMEIRA IMAGEM A RETRATAR O CHAMPANHE.

Jean-François de Troy um conhecido pintor francês a serviço do grande soberano da França, Luís XV, era filho da arte. Pois, seu pai era um famoso pintor de retratos e procurador da Real Academia de Pintura e Escultura, em 1671. Basicamente, dedicou-se a temas históricos, isto é, mitológicos, morais, religiosos, mas era ousado quando se definia como um pintor realista - por adorar retratar cenas da vida cotidiana.

Por volta da década de 1730, logo no reinado de Luís XV, um estilo ornamental chamado rococó começou a se estabelecer na França. Esse estilo, distingue-se pela grande elegância e pela suntuosidade das suas formas, caracterizadas por cachos e arabescos florais, expressos sobretudo na decoração, mobiliário e moda.

Um dia, o duque de Antin e o pintor rococó François Lemoyne organizaram o Grande Concurso de Arte, do qual Jean-François de Troy participou e ganhou o 1º prêmio com a tela "O repouso de Diana" (agora no Museu de Belas Artes de Nancy), era 1727.

                Jean-Fraçois de Troy, Le Repos de Diane, 1737 (óleo sobre tela)

Mais tarde, Jean-François de Troy se tornaria Diretor da Academia Francesa de Roma, onde passou o resto da vida. Mas há uma coisa muito importante que ele fez antes disso: foi contratado pelo próprio rei para criar uma pintura destinada a ocupar uma das salas do palácio de Versalhes.

O quadro em questão é "Almoço à base de ostras", um óleo sobre tela terminado em 1735, muito particular e inovador. Aqui estão algumas curiosidades dessa grande farra retratada que esconde a singularidade de muitos detalhes...

                                         Le Déjeuner d'huîtres, 1735

Nessa pintura aparece pela primeira vez uma garrafa de champanhe sendo retratada: trata-se de garrafas de Dom Perignon, que leva o nome do abade que a criou por acaso a partir da fermentação do vinho da abadia de Hautvilliers.



                                      

No evento, em um edifício magnificamente decorado em estilo rococó, um grupo de senhores comem alegremente um banquete caracterizado por um prato muito requintado: ostras.


As conchas jogadas no chão refletem o clima alegre e uma atmosfera de euforia etílica. Quatro comensais estão de cabeça voltada para o teto, para acompanhar a trajetória da rolha do champanhe que paira no ar.


Mas sobre esse grupo de cavalheiros devotados à bacanal, a estátua de Vênus reina suprema, observando a cena do nicho pintado acima da mesa. Um elemento casual? Certamente não.

As ostras despertaram os sentidos desses personagens graças ao seu poder afrodisíaco. Durante este período, as ostras e trufas estavam em voga, banindo quase completamente a caça das mesas nobres.

Até um conhecido poeta italiano, Giacomo Casanova, por volta da segunda metade de 1700, começa a mencioná-las em seus escritos, incentivando os leitores a sugá-las diretamente das conchas. Ele escreve em suas memórias:

".... por puro acaso, uma ostra que eu ia colocar na boca de Emilia escorregou da concha e caiu em seu peito. A menina fez o gesto de pegá-la com os dedos, mas eu o evitei, reivindicando o direito de desabotoar o corpete para recolhê-la com os lábios no fundo onde ela havia caído ... Leitor voluptuoso, então tente me dizer se não é o néctar dos deuses!"

Pois bem, um século dedicado ao hedonismo e ao prazer este 1700 que, como todos sabemos, terminará na França com uma conhecida revolução.

"Beijo de Ostra" de Casanova

                                        O sedutor veneziano Giacomo Casanova

No século XVIII, quando os nobres começaram a comer ostras acompanhadas de champanhe e as ostras eram famosas por suas propriedades afrodisíacas, Casanova inventou um jogo erótico que, segundo ele, enlouquecia suas conquistas, o "beijo da ostra". Consistia em passar a ostra de língua em língua, como ele conta em “História da Minha Vida” ao dar sua receita: “Para três pessoas. Pegue cem ostras. Faça duas partes iguais. Use a primeira metade como aperitivo e guarde o resto para a sobremesa. Depois de seis ostras cada, engolidas como aperitivos, faça o beijo da ostra.

Napoleão III, o Imperador das Ostras

A criação de ostras, tal como é praticada hoje em França, com a instalação de coletores destinados à recuperação de larvas de ostras, baseia-se numa técnica desenvolvida no século XIX sob Napoleão III (1808-1873).

No Segundo Império, as ostras foram tão bem-sucedidas que, em 1852, após um relatório alarmante do Ministério da Agricultura e Comércio sobre a queda na produção de bancos naturais de ostras, a administração marítima regulamentou o "arrastamento", que só é permitido de 1º de setembro a 30 de abril, do nascer ao pôr do sol. Além disso, Napoleão III instruiu Victor Coste, um naturalista e médico erudito da Imperatriz Eugénie, e Ferdinand de Bon, Comissário da Marinha, a comparar os métodos usados para capturar e criar ostras nas costas da França e da Itália. Com o objetivo de reconstituir os bancos de ostras planas dizimados pela sobreexploração, eles desenvolveram experimentos com bancos de ostras artificiais, principalmente em Arcachon, em 1859.

Doenças epizoóticas, consumo excessivo: a ostra esteve perto da extinção em diversas ocasiões. Foi justamente para fazer frente à escassez de ostras que os habitantes de Arcachon importaram a ostra portuguesa (Crassostrea Angulata) a partir de 1860. Dizimada na década de 1970, ela foi substituída pela japonesa Crassostrea gigas, que hoje representa 98% das ostras que consumimos.

Cara, era muito procurada pelas elites e foi vítima do seu próprio sucesso. No século XIX, os bancos naturais, superexplorados, esgotaram-se: por conta disso nasceu a moderna ostreicultura.

Desde a década de 1970, a reprodução tem sido representada principalmente pela ostra-do-pacífico, Crassostrea gigas. Originária do Japão, ela foi introduzida no mundo todo para repor estoques esgotados pela superexploração ou dizimados por doenças, como os da ostra plana europeia, Ostrea edulis, cuja população declinou a partir da década de 1920.

                                          Crassostrea gigas

Existem diversas técnicas de criação, que variam dependendo da localização, espécie e tradições. A elevagem é realizada na faixa litorânea (parte do litoral exposta pela maré), em lagoas ou em mar aberto. Isso pode ser feito levantando-as: as ostras são colocadas em bolsas dispostas sobre as mesas. As ostras também podem ser suspensas; Elas são fixadas em cordas suspensas em uma mesa ou em um sistema flutuante e ficam permanentemente submersas. A criação de espinhel ocorre em mar aberto, com gaiolas suspensas por cabos ou jangadas.

O refino envolve colocar as ostras em bacias de água menos salgada, mas ricas em plâncton, chamadas claires. É assim que a ostra ganha seu sabor e cor. Na finalização, as ostras são colocadas em água de qualidade impecável, lavadas e selecionadas. Dependendo da espécie e das condições de cultivo, leva em média de dois a três anos para obter uma ostra comercializável.

Comida crua, cozida, assada, preparada em ensopados ou molhos, o molusco tem sido tema de elaboradas preparações culinárias, como ostras com espinafre gratinado ao estilo Rockefeller.

Então, ostras, no Natal ou o ano todo?

A tradição determina que as ostras sejam consumidas apenas durante os meses terminados em “r”, e “re” do calendário francês, ou seja de setembro a abril. Esta regra remonta, na verdade, ao século XVIII, a um decreto real de 1759 de Luís XV que proibia a pesca, a venda ambulante e a venda de ostras entre 1 de abril e 31 de outubro, como relatam Stéphane Hénaut e Jeni Mitchell no livro “Histoire de France à pleines dents” (Flammarion, 2019).

As ostras eram tão populares nas mesas da aristocracia que, para fazer face a uma futura escassez, o rei teve a sabedoria de proibir a sua colheita de Maio a Agosto, durante os quatro meses restantes do ano do período de ostras, quando reproduzir.

Do ponto de vista nutricional, a ostra é muito interessante. Rica em proteínas, quase não tem gordura e oferece um bom suprimento de iodo por ser um produto do mar. Também é interessante por seu zinco (muito bom para o sistema imunológico), ferro, vitamina B12, cobre…

Quanto a comê-la o ano todo, mesmo que seja possível hoje em dia, ainda há uma sazonalidade neste molusco marinho. E a melhor estação para ostras é o inverno, e por isso os famosos meses francês com “r” no final deles. “Por que os chefs que dizem respeitar as estações dos produtos colocam ostras em seus cardápios o ano todo? » perguntou Catherine Flohic em 2015, em “The Oyster in Questions”. Para o autor deste livro abundante sobre os fabulosos mariscos, como para todos os ostreicultores tradicionais, é necessário “reaprender a esperar pelas ostras, para saboreá-las com ainda mais prazer”.

Comê -la fria ou quente?

Dependendo do seu gosto, você pode comer ostras de mil maneiras: frescas e cruas, com limão, em vinagre de chalota, azeite; ou quentes, cozidas no forno, gratinadas com chalotas e vinho branco, com parmesão, champanhe ou creme. com beurre blanc, com foie gras... 

     « Le Déjeuner d’huîtres » pintura encomendada por Luís XVI para a sala de jantar dos pequenos apartamentos do Palácio de Versalhes, de Jean-François de Troy, 1735. Musée Condé/Chantilly

Ao longo de todo esse contexto as ostras se tornaram um item essencial no Natal? Francês – que além delas, pode ter à mesa, vieiras, lagostins, lagostas... produtos do mar que ocupam um lugar especial nas mesas de Natal.

Embora essa tradição culinária seja parcialmente explicada pela sazonalidade, já vimos que razões históricas e culturais entraram em jogo. Percebemos que, mesmo com a disponibilidade de ostras ao longo de todo o ano, existem um período no qual elas podem ficar melhores, mas, é no inverno que seu sabor e textura são mais agradáveis, o que lhes dá um lugar de destaque nas mesas de Natal francesas – embora essa não seja a única razão de seu sucesso.

É preciso olhar para tradições antigas, como a refeição magra antes da missa de Natal ou mesmo hábitos do Oriente. Na Alsácia, a refeição de Natal tinha que incluir elementos: água, terra e céu. Por exemplo, o elemento água muitas vezes assumia a forma de carpas empalhadas. Então, com o tempo, o hábito de comer ostras, mesmo que fosse caro, se espalhou. Essa padronização dos estilos de vida e, portanto, da ceia de Natal, aconteceu por volta de 1950, depois da Segunda Guerra Mundial.

Outra explicação também está no custo da comida. Elas se tornaram principalmente pratos de Natal pelo preço: já que, muitas vezes, se compreende que para um produto ser um prato festivo, ele deve ser caro o suficiente para permanecer excepcional e, ao mesmo tempo, acessível. Ostras, mas também vieiras e lagostins são exemplos perfeitos dessa lógica. No entanto, nem todos os alimentos de luxo conseguiram se transformar em alimentos de Natal, mesmo aqueles na faixa de 'caros, mas acessíveis'. Para que um produto se torne uma iguaria de Natal, ele deve se enquadrar nessa categoria e estar disponível em quantidade suficiente para atender ao aumento da demanda em uma época específica do ano. Tradicionalmente acompanhadas de champanhe, as ostras fazem parte desse costume.

Depois disso, seguem algumas receitinhas com ostra, para o caso de você querer inclui-las no seu menu natalino. E, para os curiosos de plantão que adoram fontes, saibam mais buscando em:

        Apicius, 413.

        Columelle, de Agricultura L.VIII, 16, 5.

        Varron, de re Rustica L.III, 3, 10.

        Cicéron, de Finibus, L.II, 70.

        Cicéron, Hortensius, 67.

        Cicéron, de Officiis, III, 16.

        Valère Maxime, IX, 1, 1.

        Pline l’Ancien, HN, IX, 52-61

        Ausone, Lettres VII, IX, XXIII

        Roland Jussieau, L’élevage en France 10000 ans d’histoire, p.144

        André Tchernia, Le cercle de L. Licinius Crassus et la naissance de la hiérarchie des vins à Rome

        Cynthia Bannon, Gardens and Neighbors: Private Water Rights in Roman Italy, p.219

        Jean Doignon, L’enseignement de Hortensius de Cicéron sur les richesses devant la conscience d’Augustin jusqu’aux Confessions

        Capitaine Gaurichon, Contribution à l’étude de l’emploi des Huîtres dans l’Antiquité

        Françoise Brien-Poitevin, Consommation des coquillages marins en Provence à l’époque romaine

        Dr Marcel Baudoin, Démonstration de l’existence d’un Monument cultuel, du type des Tertres animaux en forme de Serpent et d’origine Nordique, aux Buttes coquillières des Chauds, commune de Saint-Michel-en-1’Herm (Vendée)

        Yves Gruet, Les coquillages marins: objets archéologiques à ne pas négliger. Quelques exemples d’exploitation et d’utilisation dans l’Ouest de la France 

Ostras de natal

Ostras  com Vinagre de Vinho Tinto Tramier e Chalotas – para servir frias

24 Ostras frescas

1 chalota picada finamente

4 colheres de sopa de Vinagre de Vinho Tinto Tramier (ele é sem Resíduos de Pesticidas, um luxo natalino. Mas você pode usar vinho tinto ao invés de vinagre )

1 colher de chá de açúcar

1 colher de sopa de Azeite (a Tramier também tem bom azeite sem pesticidas), opcional

1 pitada de pimenta do reino

1 folha de louro

Alguns raminhos de tomilho

Preparo:  comece pelas ostras. Abra as ostras cuidadosamente usando uma faca para ostras, tomando cuidado para não quebrar a casca. Coloque-as em um prato grande e fundo ou sobre uma camada de gelo para mantê-las bem gelados. Prepare a marinada: Em uma tigela pequena, misture o vinagre de vinho tinto (ou o vinho tinto, se preferir), a chalota picada, o açúcar, o louro, o tomilho e uma pitada de pimenta do reino moída na hora. Misture bem para dissolver o açúcar. Você também pode adicionar uma colher de sopa de azeite de oliva para suavizar a acidez do molho. Deixe a marinada em temperatura ambiente por cerca de 10 a 15 minutos, permitindo que os sabores se misturem e as chalotas absorvam o vinagre. Se você tiver um pouco mais de tempo, também pode prepará-la com algumas horas de antecedência e deixá-la descansar na geladeira. Na hora de servir vc tem duas opções retirar a folha de louro e os raminhos de tomilho; ou, retirar a folha de louro e picar finamente os tomilhos e deixa-lo no molho.

Opção de guarnição para ostras: Pouco antes de servir, coloque uma colher de chá da marinada em cada ostra, certificando-se de que a chalota (e o tomilho) esteja uniformemente distribuída. O restante da marinada pode ir numa molheira para a mesa.  Ou, simplesmente, colocar todo molho numa molheira no centro da bandeja que será servida e todas as ostras abertas em volta do recipiente com o molho, para que cada um coloque na sua ostra a quantidade do molho que desejar. Para decorar, você pode usar cebolinha ou salsa picadinha e para dar um toque extra de frescor, você também pode adicionar um pouco de raspas de limão. Coloque as ostras numa bandeja funda com cubos de gelo, ou gelo picado, por baixo, decore a gosto e servir. 

Ostras quentes au champanhe

De 24 a 36 ostras frescas

113g de manteiga

220g de creme de leite fresco (220ml)

220gm de champanhe (220ml)

6 gemas de ovo

Pimenta do reino a gosto

Ciboulette picadinha para decorar

Preparo:  Abra as ostras, tire-as das conchas e filtre a água, reserve. Numa panela, derreta a manteiga. Adicione o creme de leite fresco, metade do champanhe da receita e a água filtrada das ostras e junte as ostras. Cozinhe as ostras nessa mistura por cerca de 10 minutos. Escorra e deixe o molho reduzir pela metade em fogo baixo. Reserve. numa tigela em banho-maria, bata as gemas com apenas duas colheres de sopa do champanhe que sobrou restante do champanhe e bata bem até espumar, engrossando. Adicione essa mistura de gemas ao molho de manteiga. Acerte a pimenta, cebolinha picada e só então junte o restante final do champanhe. Coloque as ostras de volta nas conchas vazias, cubra com o molho e deixe dourar no forno quente por 3 minutos. Sirva bem quente.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Pangiallo, o pão/bolo auspicioso de Natal de Roma dedicado ao sol seria o avô do Panetone?

 

Ao longo de mais de uma década de publicações neste blog, somado as simultâneas publicações de mais conteúdo no perfil homônimo desta confraria no Facebook, vocês já devem saber do meu apreço pelas receitas antigas, pela arqueologia alimentar, pelo patrimônio gastronômico. De tal maneira, sempre acabo postado algo relativo a essas temáticas e mostrando que  é  perfeitamente possível a gente comer bem com o resgate de comidas ancestrais que, podem sim, ser preparadas com antes nos dias de hoje (obviamente, como tudo na vida, existem exceções; dando-se o descontos para ingredientes que se perderam ou foram extintos pelo tempo, pela falta de interesse e de interessados – esses últimos pontos são, justamente, o motivo pelo qual esse blog existe: registrar para que não se acabe). Hoje, então, para celebrar as festividades natalinas de 2024 lhes apresento uma dessas receitas sobreviventes das cozinhas do antigo Império romano.

Doces consumidos durante as “feste aricordatóre” (celebrações recordatórias), como as que hoje se compreende como o ciclo natalino, são essenciais para criar um ambiente ainda mais acolhedor, para reunirmos com parentes e amigos enquanto praticamos a comensalidade no seu ápice – e muitas vezes, com a pompa que o período merece.

Curiosamente, observando minhas postagens ao longo desses muitos anos, me dei conta de que o espaço geográfico onde hoje se encontra a Itália ofereceu ao mundo, e continua a oferecer, uma variedade de ricas e saborosas de preparações doces para celebrar o ciclo natalino. Prova disso, são o pandoro e o panetone, dois exemplos dessas preparações que caíram nas graças da indústria alimentar e conseguiram por meio dela expandir seus domínios pelo mundo.

Mas a Itália, em cada região encontram-se tantas outras preparações deliciosas, produtos típicos de cada cidade e região, inicialmente feitos em casa, cujo aroma e forma evocam intensa e agradavelmente as lembranças do Natal. O Pangiallo é uma delas, originalmente apareceu na Roma antes de Cristo.

O Pangiallo tem sias origens remanescentes da Roma Imperial, é uma produção culinária bastante encontrada na região do Lácio, e sua presença era sempre vista desde a antiguidade durante o solstício de inverno: era costume preparar e consumir esses pães doces dourados como um bom presságio para encorajar o retorno do Sol… sua forma redonda e abobadada era uma alusão à figura da estrela nascente.

O nome pangiallo deriva da inconfundível camada de mistura de ovo  ou açafrão, que outrora o cobria, com a qual tentavam recriar o brilho característico do Sol. Num antigo livro de receitas do início do século XVIII encontrado em Viterbo na biblioteca da casa dos Venturini Ciofi Degli Atti, se observa a orientação explicitamente por escrito que, na preparação do pangiallo deve-se usar “…açafrão, tendo o cuidado de deixar um pouco para dar-lhe a cor por cima dos pães quando forem cozidos…”


Assim, redondo e amarelo, o Pangiallo é um tipo de pão/bolo doce celebrativo à base de mel e frutas secas (e depois com frutas cristalizadas e, mais tarde até, com chocolate) caracterizado pela cor amarela da sua cobertura, e que ostenta uma história milenar que chegou até nossos dias intacta.

Era uma refeição das mais auspiciosa na Roma Imperial, sempre no período de solstício de inverno era preparada e ofertada como esperança para que o sol retornasse com todo o seu esplendor, o mais rápido possível, após os longos meses de inverno. Assim nasceu, a mais de dois mil anos, aquela que durante séculos era a principal sobremesa “natalina” da tradição romana – seguramente, essa preparação pode ser compreendida como o avô do panetone!

Por outro lado, com o passar dos milênios, o pangiallo tornou-se pouco conhecido fora das fronteiras do Lácio, perdeu espaço no imaginário coletivo nas últimas décadas em favor da popularidade e do marketing que a publicidade gerou em torno do  pandoro e do panetone – já que a indústria alimentar escolheu essas duas preparações como as receitas natalinas italianas mais conhecidas.

Mas é preciso que se ressalte, o pangiallo era a especialidade dos confeiteiros romanos e o orgulho da produção local durante as festas desde o Império Romano. Embora ele não seja hoje tão popular quanto antes, muitas pessoas do Lácio (especialmente os mais antigos e os arraigados às tradições) continuam a valorizar os sabores da infância e a dar continuidade a esse elemento de uma tradição gastronômica que seria uma pena perder. Assim, a produção do Pangiallo persiste sobretudo nos Castelli Romani, onde as confeitarias que o vendem fazem grande sucesso.

Com raízes nas religiões antigas de Roma, é seguro identificar as raízes do pangiallo tão ancestral quanto as raízes da própria Roma. Dentre as crenças das religiões antigas, que se transformaram e se popularizaram com os anos o Império, estava a festa de "dies natalis solis invicti" (aniversário do sol invencível), instituída pelo imperador Aureliano como o dia 25 de dezembro, celebrava o renascimento no horizonte do novo sol que havia morrido simbolicamente no solstício de inverno.

Dies Natalis Solis Invicti (o “Nascimento do Sol Invencível”) porém, era uma celebração dedicada a Mitra, identificado com o deus romano Sol, ou o Sol. Mas a ideia de um “Sol Invictus” era um culto ainda mais  antigo, originário da Pérsia, mas reverenciado principalmente em Roma, de onde também recebeu seu nome. O culto foi introduzido no Imperio Romano no ano de 274 a.C. pelo Imperador Aureliano.

A festividade comemorava seu nascimento de Mitra nas montanhas de Zagros. Os romanos naquele dia presenteavam uns aos outros e faziam desejos; beijavam-se sob o visco.

Com a ascensão do cristianismo, a Igreja se apropriou de muitos elementos das culturas religiosas antigas, em especial essa data do sol invicto, e nela resolveram estabelecer o Dia do Nascimento do cristo, que ficou conhecido como Natal - isso é indicado pelo comentário sobre o relacionamento do século XII de Dionísio Bar Salibi, que diz que era costume dos pagãos celebrar neste dia (25 de dezembro) o nascimento do Sol. Como as pessoas estavam acostumadas a celebrar festas pagãs, decidiu-se celebrar o nascimento de Cristo no dia 25 de dezembro. Curiosamente, na ladainha do Santíssimo Nome Jesus (provavelmente fundada no século XV), encontramos a nomeação de Jesus como “o sol da justiça”.

A ligação do divino com o sol pode ser observada em muitas culturas pelo mundo, e de tal maneira o dia 25 de dezembro acabou sendo representado como o dia de nascimento de muitos deuses, alguns deles são apresentados na imagem abaixo.

A importância do Sol para a vida é indiscutível, e por isso o pangiallo era preparado com formato e cor em alusão ao deus sol. Nessa ocasião, as esposas dos produtores rurais entregavam pangiallo de presente às pessoas importantes da região como um bom presságio. Acreditavam que o exterior amarelo brilhante do pão/bolo trazia uma luz intensa para dentro de casa que lembrava o retorno do bom tempo, com a chegada do Sol). Ainda hoje, a tradição determina que o Pangiallo seja produzido em casa e depois dado de presente aos amigos e parentes no Natal.

A sobremesa é feita com uma mistura de frutas secas, mel e pouca farinha de trigo. Mas nem sempre foi assim. Até recentemente, as donas de casa romanas mais pobres substituíam amêndoas e avelãs, ingredientes caros, por caroços de frutas de verão (ameixas e damascos), que eram devidamente secos, conservados e preparados para consumo. Assim, observar o conteúdo do pangiallo era uma forma de rastrear a classe social da família que rpeparava a sobremesa.

Na Roma Antiga, no final das celebrações das Saturnálias era quando ocorria celebração do Solstício de Inverno (por volta do final de dezembro). Os Romanos já costumavam trocar pães redondos, sem fermento, em forma de cúpula (semiesféricos) , feitos com um pouco de farinha, adoçado com mel e frutas secas e, no caso dos cidadãos mais ricos, até mesmo passas, figos secos e pedaços de casca de cidra perfumada eram usados. Esses pães/bolos passaram a ser cobertos com uma camada de massa de ovo para ficarem com a cor do sol e celebrar o fim do inverno. O escritor, cozinheiro e gourmet latino da época de Tibério (século I a.C.) – Marcus Gavius Apicius, em seu “De Re Coquinaria” ilustra a receita desses pequenos pães:

«Mescola nel miele pepato del vino puro, uva passita e della ruta. Unisci a questi ingredienti pinoli, noci e farina d’orzo. Aggiungi le noci raccolte nella città di Avella, tostate e sminuzzate, poi servi in tavola»

«Misture vinho puro, passas e arruda no molho apimentado mel. Adicione pinolis, nozes e farinha de cevada a esses ingredientes. Adicione as nozes coletadas na cidade de Avella, torradas e picadas e sirva à mesa

Muito mais tarde, esses doces auspiciosos de fim de inverno receberiam o nome de Pangiallo di Palestrina. As primeiras versões da sobremesa levavam uma boa quantidade de mel que, além de adoçar, era responsável pela sua conservação. A simplicidade desta sobremesa e a expansão do Império Romano fizeram com que a receita do pangiallo – que era transmitida oralmente durante séculos e ainda difere de família para família – viajasse e mudasse.

Há versões conflitantes sobre como a cor amarela característica da camada superficial do Pangiallo é obtida. Segundo alguns, os ingredientes da massa eram suficientes, pois eles reagem ao calor do forno e ficam amarelos, dando ao bolo sua tradicional cor âmbar. Mas, para obter um amarelo mais intenso, haviam aqueles que diziam ser necessário cobrir o Pangiallo com uma camada de massa de ovo antes de cozinhá-lo. Por fim, ainda havia aqueles que preferiam adicionar açafrão para dar mais cor. Com os efeitos da modernidade, eu ainda descobri algumas receitas que levavam farinha de milho e café, que por si só já ajudavam na coloração dourada.

Além dessa distinção para obter a característica cor dourada desse pão/bolo, ainda existem algumas variações da preparação.

Na versão do pangiallo preparada na Úmbria são utilizadas gotas de chocolate (coisas que só foram possíveis com a modernidade) e muitas frutas secas: amêndoas e avelãs descascadas, pinolis e nozes; não faltam frutas cristalizadas, passas, mel e cascas de laranja e de limão. Semelhante ao panforte de Siena,mas  o pangiallo da Úmbria não contém especiarias.

Enquanto isso, o pangiallo de Viterbo, que leva muitas frutas secas (avelãs, amêndoas, nozes e pinolis), frutas secas (figos) e cristalizadas (cidra e casca de laranja), chocolate e muitoo mel, leva ainda um pouco de pimenta do reino (ingrediente que nas recitas do antigo Império era comum de ser encontrado em  adição nas preparações doces, com o intuito de ressaltar seu sabor). O uso especifico dessa especiaria provavelmente foi adicionada adicionada devido à contaminação da receita com o Panpepato da Úmbria.

Outra curiosidade deste último, é que a origem da cor amarela da crosta da preparação só foi revelada ao mundo, por escrito, num antigo livro de receitas do início do século XVIII encontrado em Viterbo, na biblioteca da casa dos Condes Venturini Ciofi Degli Atti, onde é indicado que na preparação se deve usar “…açafrão, tomando cuidado para deixar um pouco para dar cor em cima dos pães quando estiverem assados…”. Todos os ingredientes eram grosseiramente esfarelados e misturados, depois pequenos pães/bolos eram formados e assados. Uma dica valiosa ainda podia ser lida e orientava que, com as mãos você deve formar um pão bem compacto, tentando retirar todo o ar de dentro para não ter problemas na hora do cozimento.

Agora, que tal preparar essa delícia para apresentar aos seus durante o Natal? Se preparar, me conta?

Pangiallo Romano

Para a massa

110 g de mel

120 g  de farinha de trigo

80 g  de Avelãs

80 g de nozes

80 g Amêndoas

50 g de pinolis

50 g Frutas cristalizadas ( se puder escolher, use como pede a receita laranja e cidra)

70 g de gotas de chocolate amargo ou chocolate picado (esse ingrediente é opcional, mas ele garante acréscimo no sabor e na humidade da massa)

Para a cobertura

2 colheres de sopa de farinha de trigo

2 colheres de sopa de água

2 colheres de sopa de mel

1 colher de sopa açafrão em pó

Preparo: Existem muitas receitas que sugerem picar os frutos secos, eu deixei-os inteiros, pois quando cortar em cada fatia fica muito mais bonito; mas, também no sabor gosto de sentir os frutos secos, distinguir as amêndoas de nozes etc. e, quando elas estão picadas fica um sabor mais homogêneo. Fique à vontade na escolha de como vai deixar as nozes na receita, depende muito do seu gosto pessoal.

Coloque o mel em uma panela e aqueça em fogo bem baixo. Enquanto isso, coloque as amêndoas, nozes, pinolis, avelãs, frutas cristalizadas e chocolate amargo picado em uma tigela grande. Adicione o mel bem quente e misture com uma colher. Adicione a farinha aos poucos, misturando com uma colher até que a farinha esteja completamente incorporada. Cubra a massa do pangiallo com um pano limpo e deixe descansar por 2 horas. Pegue a massa e, com as mãos levemente untadas com óleo, despeje-a sobre uma tábua de cozinha ou, se você não tiver uma, em cima de uma superfície de trabalho e aperte bem a massa, para compactar bem.  Com isso feito, vc pode fazer um pangialo maior ou dividir em dois – no caso de dividir, lembre-se de compactar bem cada parte da massa, deixe-a redonda no formato semiesférico. Coloque os pães em uma assadeira forrada com papel manteiga – se não tiver unte a assadeira com um pouco de manteiga e farinha.  Reserve.  Em uma panela pequena prepare a cobertura: junte a farinha, mel, água e açafrão, misture em fogo baixo por alguns segundos, deve virar uma massa amarela. Espalhe a massa na superfície do pangiallo e leve ao forno a 180° por cerca de 35/40 minutos, se notar que escurece imediatamente, abaixe o fogo para 160°.  Quando o pangiallo estiver cozido e dourado, deixe esfriar e depois embrulhe-o em filme plástico ou em um pano de prato limpo. Deixe o pangiallo romano descansar por pelo menos 2 dias antes de comê-lo. Quanto mais tempo ele descansar, melhor.