Já repararam que toda
coisa interessante, por ser interessante, acaba ganhando versões diferenciadas,
mas representam a mesma coisa? Na gastronomia, por exemplo, as receitas
clássicas sempre trazem consigo origens controversas sobre quem criou
determinado prato e quando ele surgiu. Ao longo dos anos, por conta da falta de
interesse da maioria dos estudiosos, que não se preocuparam com o registro das coisas
que acontecem no dia-a-dia da cozinha, a gênese das criações culinárias vão se
perdendo pelo tempo.
Quando a curiosidade
bate e a gente quer saber quando e quem inventou determinada delícia acabamos
nos deparando com raras informações detalhadas e muitas histórias com informações
trocadas de receitas que se dizem originais, mas que de original só leva o
nome...
Lembro que quando
criei este blog o meu desejo maior era me aprofundar na história das comidas,
na cultura gastronômica, tentando buscar o máximo de informações verídicas para
deixar registrado, para a posteridade, o que os outros tem esquecido de
registar – fazendo assim com que as delícias do meu dia-a-dia não se perdessem,
nem se descaracterizassem.
Sou mesmo chato e
fico puto quando vou num lugar e querem me vender gato por lebre. Vou contar
rapidamente o que me ocorreu certa vez: estava eu com alguns amigos de
trabalho, numa cafeteria reconhecida pelo censo comum desta cidade como sedo um
lugar “fino”. Lá pedi um tiramisu, que me veio prontamente com a rapidez do
atendimento do lugar – motivo este que muitos elogiavam. O fato é que quando a
sobremesa chegou e eu dei a primeira colherada, senti a falta do mascarpone –
elemento indispensável naquele doce. Imediatamente pedi pra falar com o gerente
do lugar, que veio ás pressas pra saber sobre o ocorrido. Quando ele estava do
meu lado perguntei-lhe se o doce era fabricado lá mesmo (ele disse que sim) e
perguntei o que houve com o mascarpone, se estava em falta; porque aquilo que
eu comia não era Tiramisu. Ele tentou se explicar, mas em vão. Disse que aquela
era a receita da casa... Por fim, sugeri que ele trocassem o nome do doce que
ele vendia no cardápio como sendo tiramissu, para que evitasse futuros outros
constrangimentos e para que outras não fossem lesadas... Depois, pedi uma torta
de banana (Será que ele seria capaz de trocar a fruta? – eu pensei). Comi,
paguei a conta e nunca mais voltei lá. Tempos depois soube que o local havia
fechado. É terrível quando a gente tem conhecimento de causa e tentam te vender
gato por lebre. Mas essa história só vai servir para eu comentar hoje sobre um
doce, que é uma “lebre brasileira” – estou falando do QUINDIM (Quem nunca ouviu
falar nos quindins de iaiá?).
Quindim é um termo
banto (grupo linguístico composto por vários idiomas de tribos africanas
distintas presentes na região do antigo Congo), que significa dengo, encanto –
sendo, assim, um tratamento carinhoso. Nas terras tupiniquins o quindim manteve
o mesmo significado da sua origem africana.
Em 1940, Ari Barroso,
escreveu a música "Os Quindins de Iaiá" onde o autor dá a mesma
descrição para o doce e o tratamento carinhoso: "Só sei que Iaiá tem umas
coisa/Que as outra Iaiá não têm/Os quindins de Iaiá." Aliás, a figura de Iaiá
foi imortalizada por Walt Disney em um filme do Pato Donald com o Zé Carioca
(ver vídeo no final deste post).
Iaiá era como os
escravos da Casa Grande chamavam antigamente as moças, as meninas e até as
senhoras da fazenda. Na época em que o Brasil era o maior produtor de açúcar do
mundo a doçaria colonial brasileira surgia, sobretudo no nordeste brasileiro,
para encantar os paladares mais apurados. As receitas dos brancos foram
melhoradas pelas negras que incluíam ingredientes locais e especiarias de suas
terras. E assim, a miscigenação das raças influenciou também a nossa
gastronomia. Foi o caso do coco, que acabou se tornando mais um brasileirinho.
Acontece que na sua origem
o coco é um elemento asiático que mais tarde foi levado para a África. No
Brasil, os coqueiros vieram importados e acabaram servindo para decorar o
litoral e os pomares dos jesuítas, principalmente em Pernambuco, a partir da
cidade de Olinda. Em seguida, essas belas palmeiras passaram a decorar as
grandes fazendas e casas de ilustres e também serviam como cercas vivas para as
fazendas que ficavam à margem das praias – fato este que deu início ao
esgotamento da mata nativa, com a derrubadas dos cajueiros que separavam a
areia da mata virgem.
Com a escravidão no
Brasil muitos africanos vieram parar aqui. Eles já conheciam e utilizavam o
coco na sua alimentação, e quando reconheceram aquela palmeira e o seu fruto
nas terras brasileiras, já sabiam o que poderiam fazer... eles então inovaram e
acabaram misturando o coco com as farinhas dos índios e nos doces dos brancos
europeus. Este fato fez surgir a característica do coco que a culinária afro-brasileira
se utiliza até hoje, e que fez vir ao mundo maravilhas como a tapioca com coco,
o arroz de coco, a cocada, a moqueca de peixe no leite de coco, e o quindim - que
não era quindim, mas se transformou nele no instante em que foi adicionado coco
a sua receita original.
O quindim na sua origem
não leva coco e também não tem este nome. Era conhecido em Portugal, na região
da Leiria, como Brisas-do-Lis - feitos à base de amêndoa, açúcar e ovos, sendo
um ex libris da doçaria conventual portuguesa.
As brisas do Lis são
bolos tradicionais de Leiria, onde sua origem está presente ali a muito tempo. Sabemos
bem o porque, por exemplo, dos doces portugueses utilizarem muitas gemas (Os
portugueses antigos utilizavam muito as claras de ovos para engomar os hábitos
das freiras e as gemas que sobravam eram usadas em experimentações culinárias,
tanto as doces quanto as salgadas).
O que se conta em Leiria
é que as brisas do Lis foram inventadas pelas freiras do antigo convento de
Santana, já demolido. A receita foi passada a uma senhora muito devota e
assídua nas cerimônias realizadas no convento de Santana, que era proprietária
do café Colonial. Este café ainda hoje existe, sendo o mais antigo e conhecido
da cidade de Leiria. O segredo da confecção das brisas do Lis foi-se espalhando
até aos dias de hoje por muitas pastelarias da cidade e, atualmente, são doces
muito procurados tanto pelos leirienses como pelos turistas que visitam a
cidade.
Com certeza, sua
fabricação no Brasil só poderia ser feita enquanto as senhoras de famílias abastadas
tivesse um estoque de amêndoas na dispensa – o que era caro. Assim, suspeitasse
que a criatividade do ser humano foi a responsável pela criação do Quindim
Brasileiro: as negras que já lidavam bem com o coco, na falta de amêndoas, incluíram
coco ralado na base de gemas com açúcar e manteiga e eis que era nascido o
quindim.
O quindim é o tipo de
doce que não se pode comer muito, porque é enjoativo, mas é uma delícia se bem
feito – e sem cheiro de ovo. O poeta Mario Quintana (1906-1994) era um grande
admirador do Quindim dos sete pecados – que consumia ritualmente o doce com um
café sem açúcar na lanchonete do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, era
um dos pontos fracos do autor, como afirmavam os funcionários da lanchonete,
que o apelidaram carinhosamente de "Mario Quindim".
Isso posto deixo
abaixo “os gatos e as lebres” para que vocês possa escolher o melhor – eu, como
sou formiga, fico com os dois!!!
2 ovos
350 g de açúcar peneirado
250 g de coco ralado fresco
1 colher (sopa) e 1/2 de manteiga
Manteiga e açúcar para untar
Preparo: Coloque as gemas
numa bacia e as bata por 1 minuto, acrescente o 2 ovos bata por aproximadamente
1 minuto também; Coloque o açúcar e a manteiga e bata ate ficar com
consistência de gemada; Depois acrescente o coco ralado e bata apenas até ele
se juntas a massa; Unte as forminhas com manteiga e açúcar, e coloque a massa; Pré-aqueça
o fogo por 15 minutos na potência alta, depois coloque as forminhas na qual
você colocou a massa no forno alto por 10 minutos; Depois mude para a potência
média por mais 30 minutos, retire-as, deixe-as esfriar e desenforme-as.
500g de açúcar
1 xícara de coco fresco ralado
2 colheres de manteiga sem sal
Preparo:
Fazer
uma calda em ponto de fio com o açúcar e a água (500ml). Obtém-se o ponto de
fio quando, ao retirar um pouco de calda com uma colher ou um garfo, se forma
um fio fino que acompanha seus movimentos e faz até desenhos se derramado sobre
uma superfície lisa. Tirar do fogo e acrescentar a manteiga, misturando bem.
Esperar esfriar. Misturar o coco ralado e as gemas peneiradas, uma a uma, para
que não fiquem com o cheiro forte de ovo. Untar as forminhas com a manteiga,
polvilhar com açúcar e assar os quindins num tabuleiro em banho-maria até
ficarem bem firmes. Só se deve desenformar depois de bem frios, colocando em
forminhas de papel para servir.
100 g de amêndoa com casca
250 g de açúcar em pó
3 claras
6 gemas
Preparo:
Escalde
as amêndoas, pele-as e em seguida triture-as. Leve o açúcar ao fogo, misturado
com a água, deixando ferver brandamente (3 minutos exatos). Retire a calda do fogo, adicione a amêndoa
picada e deixe arrefecer. Junte as gemas e as claras, previamente mexidas, e
envolva tudo até os ingredientes estarem bem ligados. Unte formas pequenas com
margarina e encha-as com o preparado anterior, mas não completamente (deverá
deixar cerca de 1 cm entre o preparado e o bordo da forma para que quando se
inicie a cozedura, a massa não transborde). Colocar água quente num tabuleiro e
coloque nele as formas. Leve a cozer em forno bastante quente até o preparado
estar bem solidificado (20 a 25 minutos aprox.), o que se verifica fazendo
pressão com os dedos. Retire do forno, deixe arrefecer, descole dos lados e
desenforme. Coloque as brisas dentro de forminhas de papel frisado e sirva.
Parabéns pelo artigo. Informações bem completas e escritas com carinho.. obrigado!!
ResponderExcluirParabéns pelo artigo, me agregou muitos valores. Obrigado!
ResponderExcluirEncontrei seu blog, pesquisando sobre quindins. Parabéns pela matéria que é muito esclarecedora.
ResponderExcluirEstou fazendo um curso de doces portugueses e a professora ensinou a colocar a farinha de amêndoas, e não a amêndoas trituradas como sugere a receita acima postada. Agora fiquei confusa. Tradicionalmente são trituradas?
Pergunto isso pq ela diz que tem que ser a farinha. Muito obrigada.