quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Paniscia: risoto ou um baião de dois italiano?

 

Depois que terminei o doutorado venho me dedicando na continuidade das minhas pesquisas, tanto para os textos científicos quanto para os artigos do blog e palestras. As informações, entretanto, me servem para todos os âmbitos. Ocorre que fui convidado para uma publicação fora do Brasil, e me ative ao campo gastronômico local, observando peculiaridade que a capital do Ceará, Fortaleza, dispõe e pode ser de interesse para outras culturas.

Nessa altura, era hora de almoço e me foi servido um baião de dois ‘cremoso’. Se você mora no Ceará, especialmente em Fortaleza, você já deve ter se deparado com essa preparação que, graças a modernidade é servida como acréscimos de nata, creme de leite e muito queijo de coalho. Isso, aliás já é motivo de investigação, pois o baião de dois ‘original’ não é “molhado” (nome dado pela incidência do caldo resultante da mistura de nata com creme de leite junto a mistura de feijão e arroz).  Assim, há quem ame e quem odeie esse tipo de baião.

O fato é que eu viajei na hora que vi o prato sendo servido: aquilo era um risoto! E como um risoto, se não for bem executado, vira uma desgraça!

Mas olhem a foto, a baixo, e me respondam: isso é um baião de dois?

 

Eu juro, que nessas horas eu queria que a tecnologia já estivesse ainda mais desenvolvida, para poder ouvir o que vocês responderam. E, se você respondeu que: sim, isso é um baião de dois. Sinto lhe informar, o que você vê é uma Paniscia!!!

Oriunda do Piemonte, terras de grandes risotos, regados com vinho, temperados com excelente carne de porco, curiosamente essa preparação poderia ser comparada a um baião de dois, exceto por algumas particularidades. Os ingredientes da paniscia Novarese são: arroz da variedade Arborio, Carnaroli ou Roma, feijão borlotti, couve lombarda, cenoura, aipo, cebola, vinho tinto (possivelmente da Colline Novaresi), banha (não manteiga), couro de porco, salame 'la duja, sal e pimenta. Em cada casa, claro, a receita é personalizada e muitas vezes a lista de ingredientes é reduzida, embora certamente não possam faltar feijão, cebola, vinho e salame.

Acreditasse que o nome da preparação venha da representatividade do “Panicum Miliaceum” e do “Panicum Italicum”, um cereal antigo , oriundo do painço e do milheto, eram a base de preparações como sopas, e outras comidas camponesas, sendo depois substituídas por arroz ou farinha de grão de bico nas diferentes preparações locais. A difusão territorial do nome está ligada ao domínio político e administrativo dos Sabóia (Savoia), mas não é certo que esse conhecimento tenha sido transmitido pelos seus emissários, e nem sequer ajuda a traçar uma cronologia útil para compreender a sua verdadeira origem da Paniscia.

Para alguns, somente no século XIX preparações com o nome de paniscia apareceram nos livros de receitas locais: ao que consta, diluído na história, o Cônego Giuseppe Artaserse Bazzetta (1760-1825) foi responsável pelo o primeiro receituário da cozinha novarese, consequentemente, o primeiro a delinear uma codificação moderna da Paniscia Novarese, tal como a conhecemos hoje. Como escreveu o historiador novaresi Angelo Luigi Stoppa: Em Novara o arroz nasce na água e morre no vinho, frase que marca a tradição enológica daquela região com importância desde a época do Império Romano, e deixa a inclusão do vinho marcada como ingrediente da paniscia.

Após seu advento na gastronomia italiana, e o tomate só teria entrado em algumas versões da própria paniscia na segunda metade do século XIX.

                                            Salam d'la duja 


                                         
                                       mortadella di fegato

Além disso, na sua difusão territorial pode-se reconhecer a influência do Ducado de Sabóia, como também do atual Molise, onde se podem encontrar preparações semelhantes ao "panicce", hoje preparado com farinha de milheto, região que dele fazia parte, juntamente com territórios hoje incluídos nos departamentos franceses.

Paniscia Novarese e Panissa Vercellese

Esses dois risotos refletem uma rivalidade histórica entre duas cidades, unidas pela chegada do arroz no final do século XV. Aqui estão as diferenças entre os dois pratos, onde a maior parte é composta por ingredientes como feijão, mortadela de fígado e salame d'la duja. Quem vencerá o desafio?

Podemos viver em um mundo onde as fronteiras estão se tornando cada vez mais instáveis (ou não?), mas na gastronomia italiana há limites, de sobra. Países ultramarinos com muros muito mais altos que os Alpes. Da mesma forma, porém, dentro do mesmo país, confundidos por políticas do passado. Tomemos como exemplo a área de Novara e Vercelli. Duas cidades italianas que você espera que sejam gastronomicamente semelhantes e até opostas a tudo além de Ticino, que já foi a fronteira entre a Lombardia austríaca e o Piemonte Savoia. Mas não.

As duas cidades são rivais ferrenhas e a paniscia, o prato típico de Novara, sempre foi contrariada pela panissa vercellese. Por quê? Bem, porque a "velha" fronteira entre os dois territórios, os estados apertados do Piemonte e da Lombardia, industriosos e um pouco anarquistas, antes de 1734 sempre foi mais a oeste, entre Novara e Vercelli. Deixando Novara para a Lombardia.

Ainda hoje, o povo de Novara é classificado como lombardo para os piemonteses e piemontês para os lombardos. Um híbrido, precisamente. Mas o que consequências isso trouxe para a cozinha?

Hoje, a paniscia Novarese pode ser entendida como um risoto: um prato à base de arroz, geralmente superfino, com grãos grandes, como o Razza 77 ou, alternativamente, o Arborio; com feijão borlotti, vegetais (couve lombarda, aipo, cenoura, cebola e tomate) e couro de porco (às vezes também com rabo de porco e outras carnes em caldo) prepara-se um saboroso caldo, resultado de um cozimento muito longo. Neste ponto, numa frigideira, frita-se uma cebola na banha e acrescenta-se outros dois ingredientes típicos locais: salame d'la duja (ou doja), ou seja, o salame macio maturado em uma jarra de banha; e, muitas vezes, mas, não em todas as receitas, mortadela de fígado piemontesa, típica de Valsesia e da região do Lago Orta. Neste ponto junta-se o arroz, com um copo de vinho barbera (originário do Piemonte) e a seguir junta-se o caldo, mexendo no final com um pouco de manteiga.

Não era exatamente um prato leve vitorioso, mas era o que era preciso para encher com bom gosto as barrigas dos agricultores nos dias de festa. As origens deste prato são muito antigas e certamente consumidas antes mesmo da chegada do arroz no Vale do Pó (região italiana da Planícia Padana), introduzido na comunidade milanesa (e, portanto, também em Novara) pela família Sforza no final do século XV.

No lugar do arroz usado anteriormente, eram usados outros cereais como cevada, centeio, milheto, aveia e panicum. De tal modo, o nome paniscia provavelmente deriva do fato de que os agricultores, quando viram pela primeira vez os grãos de arroz (também usados como método de pagamento – salário - , daquele tempo), tentaram descascá-los inicialmente, mas sem grandes resultados. Os grãos, quebrados e triturados, lembravam o "paniciu", um cereal antigo semelhante ao milheto consumido na Idade Média. Assim nasceram a paniscia e a panissa.

Distintamente, a panissa vercellese é muito mais simples. O caldo muito rico de carne e vegetais desaparece em favor de um caldo de carne simples com aipo e cenoura; a mortadela de fígado (principalmente ligada à variedade da serra) desaparece e, às vezes, até mesmo o salame d'la duja é substituído por salames ou linguiças frescas comuns. Mas, acima de tudo, em vez dos feijões borlotti, são usados os grandes feijões de Saluggia, que são feijões rajados, tenros e preciosos.

A origem desta preparação também é muito antiga. A primeira documentação histórica foi relatada por Giacomo Grasso em sua Storia della cucina vercellese, quando o prato estava contido em um menu de casamento datado de 1738. No qual, na panissa, tanto o "fasöi grosc" (mas naquela época eram provavelmente os de Villata) quanto o "salam vecc", ou seja, o salame d'la duja, aparecem imediatamente na panissa original, o que consequentemente representa um elemento essencial da receita.



Contudo, existem inúmeras versões de panissa, assim como de paniscia: tradicionalmente, nas planícies do vale, couro de porco é comumente usado, enquanto em outras áreas a receita com vinho prevalece e os frios são completamente eliminados.

Enquanto Novaresi e Vercellesi discutem há séculos sobre se a paniscia ou a panissa é melhor, as áreas vizinhas também entram na batalha. Em Valsesia, por exemplo, há a paniccia, um prato de carnaval que antigamente era preparado cozinhando arroz em leite. Hoje, a panissa é, em essência, uma espécie de minestrone com vegetais e caldo de carne, feito com arroz ou macarrão.

A paniccia do Lago Orta é feita com arroz e feijão. O nome também reaparece em outras receitas muito diferentes, fora do Piemonte. Como no caso da panissa da Ligúria, uma espécie de focaccia com farinha de grão-de-bico semelhante à farinata, e a paniscia de Val Badia, no Alto Adige, uma espécie de sopa de cevada – mas esse é outro capítulo da história...

                                                       Panissa Ligure

para finalizar, como todo boa comida, as modificações feitas para atrair os paladares acaba fazendo as receitas variarem e até serem alteradas, mas a essência permanece. Logo, para quem gosta de se aventurar na cozinha eu deixo a receita de uma versão da Paniscia novarensse, não que eu esteja tomando partido, mas pelo fato de ela ter um resultado bastante agradável e que lembra muito o confortante bilhão de dois do meu Nordeste! Se fizer, me conta...

Paniscia alla novarese

Arroz Carnaroli 320 g

Couve lombarda 300 g

Feijão borlotti seco (ou feijão rajado, demolhado desde a noite anterior) 250 g

Salame da Nduja (é um salame típico da Calábria, se não tiver use uma boa calabresa ou um bom salame que encontrar) 190 g

Chalota (ou cebola comum) 120 g

Casca de bacon (ou couro de barriga de porco fresco) 75 g

Lardo 75 g

Vinho tinto 100g

Grana Padano DOP para ralar 70 g

Manteiga 50g (mais uma colher de café de manteiga)

Azeite extra virgem a gosto

Sal a gosto

Pimenta preta a gosto

Preparo:  Para fazer a paniscia alla novarese, corte primeiro a casca do bacon em tiras finas. Retire a parte dura do caule da couve e reserve, depois corte as folhas em tiras da largura de meio centímetro. Numa frigideira com laterais altas aqueça um fio de azeite, junte a casca de bacon e deixe dourar alguns minutos, depois junte o feijão que deixou de molho durante a noite e o talo da couve que reservou. Cubra com água e deixe ferver. O caldo deverá cozinhar cerca de 40 minutos e será utilizado para o preparo do risoto. Entretanto, pique finamente a cebola. Limpe o salame, tire a tripa e corte-o em pequenos pedaços. Pegue uma panela e derreta uma colher de café de manteiga, acrescente o lardo picado em quadradinhos pequenos e a cebola. Tempere com sal e doure por alguns minutos, depois acrescente o salame. Neste ponto, despeje o arroz e toste por 3-4 minutos, depois adicione o vinho tinto e deixe evaporar completamente. Cozinhe o arroz acrescentando uma concha de caldo de cada vez, lembrando use o caldo com o feijão, mas não o talo da couve (ele só estava ali para agregar sabor). A meio da cozedura junte as folhas de couve, tempere com sal e continue a cozinhar. Quando o arroz estiver cozido, desligue o fogo e tampe com a tampa por 2 minutos. Por fim, junte as 50g de manteiga e o queijo ralado, acrescente pimenta a gosto e misture vigorosamente. Sua paniscia Novarese está pronta para ser servida!

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