terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Sobre a Terça-Feira Gorda, a Terça de Carnaval, e como ela se tornou o Dia da Panqueca (Pancake Day)

 

É bem sabido que o catolicismo se aproveitou de muitas culturas antigas para sustentar dogmas e ações da Igreja, e o último dia do carnaval pode entrar nesse hall de absorção de culturas.

Terça-feira Gorda (também conhecida como Terça de Carnaval, Mardi Gras, Shrove Tuesday) é o último dia do Carnaval ou Entrudo, marcando o fim da pré-Quaresma e, em alguns lugares é também conhecido como Terça-feira da Panqueca ou Dia da Panqueca. A Quaresma começa no dia seguinte com a Quarta-feira de Cinzas. Esse dia é observado em muitos países cristãos através da participação na confissão e absolvição, na queima ritual das palmas da Semana Santa do ano anterior, na finalização do sacrifício quaresmal, bem como na ingestão de panquecas e outros doces.

                  Pieter Bruegel, o Velho: A luta entre o Carnaval e a Quaresma (1559)

A Terça-Feira Gorda é observada por muitos cristãos, incluindo anglicanos, luteranos, metodistas e católicos romanos, que fazem um ponto especial de autoexame, de considerar por quais erros eles precisam se arrepender para crescer espiritualmente, e quais alterações de vida ou áreas de espiritualidade eles precisam especialmente pedir a ajuda de Deus para lidar com eles. Esta festa móvel é determinada pela Páscoa.

Como este é o último dia do período litúrgico cristão historicamente conhecido como Carnaval ou Entrudo, antes do período penitencial da Quaresma, práticas populares relacionadas, como entregar-se a alimentos que alguém pode abrir mão como sacrifício quaresmal nos próximos quarenta dias, são associados às celebrações da terça-feira gorda.

O termo Mardi Gras significa "terça-feira gorda" em francês, referindo-se à prática da última noite de comer alimentos mais ricos e gordurosos antes do jejum ritual da época da Quaresma, que começa na quarta-feira de cinzas, soa perfeitamente para essa data. Muitas congregações cristãs celebram o dia comendo panquecas ou, mais especificamente, realizando cafés da manhã com panquecas, bem como tocando os sinos das igrejas para lembrar as pessoas de se arrependerem de seus pecados antes do início da Quaresma. Na Terça-Feira Gorda, as igrejas também queimam as palmas (ramos) distribuídas durante as liturgias do Domingo de Ramos do ano anterior para fazer as cinzas usadas durante os serviços realizados no dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas.

                                      Cinzas feitas com as palmas da Quaresma anterior.

A palavra shrove é uma forma da palavra inglesa shrive, que significa dar absolvição pelos pecados de alguém por meio da confissão e da penitência. Assim, a Shrove Tuesday, ou Terça-Feira Gorda, recebeu o nome do costume dos cristãos de serem "absorvidos" antes do início da Quaresma. No Reino Unido, na Irlanda e em partes da Commonwealth, a terça-feira gorda também é conhecida como Dia da Panqueca ou Terça-feira da Panqueca, pois se tornou um costume tradicional comer panquecas como refeição. Em irlandês, o dia é conhecido como Máirt Inide, do latim initium (Jejūniī), "início da Quaresma".

Na Alemanha, o dia é conhecido como Fastnachtsdienstag, Faschingsdienstag, Karnevalsdienstag ou Veilchendienstag (o último dos quais se traduz em violeta [a flor] terça-feira). É comemorado com fantasias e férias escolares parciais. Da mesma forma, em áreas germano-americanas, como uma área da Pensilvânia, onde a data é conhecida como Fastnacht Day.

Na Holanda, é conhecido como "vastenavond", ou no dialeto limburguês "vastelaovend", embora a palavra "vastelaovend" geralmente se refira a todo o período do carnaval na Holanda. Em algumas partes da Suíça (por exemplo, Lucerna), o dia é chamado de Güdeldienstag ou Güdisdienstag (precedido por Güdismontag). Segundo o dicionário Duden, o termo deriva de "Güdel", que significa barriga gorda e cheia de comida.

Nos países de língua portuguesa, espanhola e italiana, entre outros, é conhecido como Carnaval. Isto deriva do latim medieval carnelevamen ("o descarte da carne") e, portanto, de outro aspecto do jejum quaresmal, abster-se de comer carne. Muitas vezes é celebrado com procissões de rua ou fantasias.

O mais famoso desses eventos se tornou o Carnaval brasileiro, especialmente a partir das festas ocorridas nesta data no Rio de Janeiro. Os venezianos há muito celebram o carnaval com um baile de máscaras. O uso do termo “carnaval” em outros contextos deriva desta celebração. Na Espanha, a terça-feira de Carnaval é chamada de "día de la tortilla" ("dia da omelete"): come-se uma omelete feita com linguiça ou gordura de porco. Enquanto, na ilha portuguesa da Madeira, as malasadas são consumidas na Terça-feira Gorda, que é também o último dia do Carnaval da Madeira. As malasadas eram cozidas para aproveitar toda a banha e açúcar da casa, em preparação para as restrições da Quaresma. Essa tradição foi levada para o Havaí, onde a terça-feira gorda é conhecida como Dia da Malasada, que remonta à época das plantações de açúcar do século XIX. Os trabalhadores católicos portugueses residentes (que vinham principalmente da Madeira e dos Açores) consumiam manteiga e açúcar antes da Quaresma, fazendo grandes lotes de malasadas.

                                        As malassadas da Madeira

Na Dinamarca e na Noruega, a terça-feira anterior à Quarta-feira de Cinzas é chamada de Fetetirsdag ("Terça-feira Gorda"); o fim de semana anterior é conhecido como Fastelavn e é marcado pela ingestão de fastelavnsboller. Fastelavn é o nome do Carnaval na Dinamarca, realizado no domingo ou na segunda-feira antes da Quarta-feira de Cinzas. Fastelavn desenvolveu-se a partir da tradição católica romana de celebração nos dias anteriores à Quaresma, mas, depois que a Dinamarca se tornou uma nação protestante, o feriado tornou-se menos especificamente religioso. Este feriado ocorre sete semanas antes do Domingo de Páscoa, com as crianças fantasiadas e reunindo guloseimas para a festa Fastelavn. O feriado é geralmente considerado um momento de diversão infantil e jogos familiares.

Na Estônia, o dia é igualmente chamado de Vastlapäev e geralmente é comemorado com sopa de ervilha e chantilly ou chantilly e pãezinhos doces recheados com geleia chamados Vastlakukkel, semelhante ao fastlagsbulle ou semla sueco (já tratei da semla AQUI). As crianças também costumam andar de trenó neste dia.

Na Islândia, o dia é conhecido como Sprengidagur (Dia do Estouro) e é marcado pelo consumo de carne salgada e ervilhas. Na Lituânia, o dia chama-se Užgavėnės. As pessoas comem panquecas (blynai) e donuts ao estilo lituano. Na Suécia, o dia é chamado de Fettisdagen (terça-feira gorda) e geralmente é comemorado com a ingestão de um tipo de pão doce chamado fastlagsbulle ou semla. Na Finlândia, o dia é chamado laskiainen e geralmente é comemorado com sopa de ervilha verde e um doce chamado laskiaispulla (pão doce recheado com chantilly e geleia ou pasta de amêndoa, igual ao semla sueco). A celebração geralmente inclui descidas de trenó.

Na Polônia, uma celebração relacionada ocorre na quinta-feira antes da Quarta-feira de Cinzas e é chamada de tłusty czwartek (Quinta-feira Gorda). Em algumas áreas dos Estados Unidos, com grandes comunidades polonesas, como Chicago, Buffalo e Michigan, o Tłusty Czwartek é celebrado com concursos de alimentação pączki ou faworki, música e outras comidas polonesas. Pode realizar-se na terça-feira gorda ou nos dias imediatamente anteriores.

Na Eslovênia, Kurentovanje é também o maior e mais conhecido carnaval. Existem vários outros carnavais locais, geralmente chamados de Laufarija. Na Hungria e nos territórios de língua húngara, é chamado Húshagyókedd (literalmente, 'a terça-feira da saída da carne') e é celebrado com fantasias e visitas aos vizinhos.

A tradição de marcar o início da Quaresma está documentada há séculos. Os "Institutos Eclesiásticos" de Ælfric de Eynsham, de cerca de 1000 d.C, afirmam: "Na semana imediatamente anterior à Quaresma, todos deverão ir ao seu confessor e confessar seus atos e o confessor deverá escolhê-lo de tal forma que ele possa ouvir por seus atos o que deve fazer [no caminho da penitência]".No final da Idade Média, a celebração do Entrudo durava até o início da Quaresma. Era tradicional em muitas sociedades comer panquecas ou outros alimentos feitos com manteiga, ovos e gordura ou banha que precisariam ser consumidas antes do início da Quaresma. Alimentos semelhantes são fasnachts e pączki.

O costume específico dos cristãos britânicos de comerem panquecas na terça-feira gorda data do século XVI. Juntamente com a sua ênfase na festa, outro tema da Terça-Feira Gorda envolve os cristãos a arrepender-se dos seus pecados em preparação para começar o período da Quaresma no calendário litúrgico cristão. Em muitas igrejas paroquiais cristãs, tanto protestantes quanto católicas romanas, uma tradição popular da Terça-Feira Gorda é o toque dos sinos da igreja (neste dia, o toque é conhecido como Sino do Shriving) "para chamar os fiéis à confissão antes da época solene de Quaresma" e para as pessoas "começarem a fritar suas panquecas". Este passou a ser chamado de “Pancake Bell” e ainda toca nos dias de hoje.

A Terça-feira Gorda tem um duplo propósito de permitir que os cristãos se arrependam de quaisquer pecados que possam ter cometido antes do início da Quaresma, no dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas, e dar-lhes a oportunidade de se envolverem em uma última rodada de alegria antes do início da sombria temporada da Quaresma, que se caracteriza por fazer um sacrifício quaresmal, jejuar, orar e praticar diversas disciplinas espirituais, como marcar um calendário quaresmal, jejuar, abster-se de luxos e ler um devocional diário.

As panquecas estão associadas à terça-feira gorda porque são uma forma de consumir alimentos ricos como ovos, leite e açúcar, antes do jejum dos 40 dias da Quaresma. O jejum litúrgico enfatiza a ingestão de alimentos mais simples e a abstenção de alimentos que dariam prazer indevido: em muitas culturas, isso significa nada de carne, lacticinia (produtos lácteos) ou ovos.

Na Terra Nova e na Ilha de Cape Breton, pequenas ‘favas’ são frequentemente cozidas nas panquecas. As crianças ficam encantadas ao descobrir os objetos, que pretendem ser divinatórios. Por exemplo, a pessoa que receber uma moeda será rica; um prego indica que eles se tornarão ou se casarão com um carpinteiro.

A Terça-feira Gorda cai sempre 47 dias antes do Domingo de Páscoa, portanto a data varia de ano para ano e cai, geralmente, entre 3 de fevereiro e 9 de março.

E, para aqueles comprometidos com as antigas tradições, a Terça-feira Gorda era a última oportunidade de consumir ovos e gorduras antes de embarcar no jejum da Quaresma e as panquecas são a forma perfeita de esgotar estes ingredientes.

Uma panqueca pode ser considerada um tipo de bolo fino e achatado, feito de massa e frito em uma frigideira. Uma panqueca tradicional inglesa é muito fina e é servida imediatamente. Xarope dourado (de bordo) ou suco de limão e açúcar refinado são as coberturas habituais para panquecas.

A panqueca tem uma longa história e aparece em livros de culinária já em 1439. A tradição de jogá-la ou virá-la é quase tão antiga: “E cada homem e cada donzela se revezam e jogam suas panquecas para cima, com medo de que queimem. - Palin de Pasquil, 1619” 

Os ingredientes para panquecas simbolizam quatro pontos importantes nesta época do ano: Ovos ~ Criação; Farinha ~ O bastão da vida; Sal ~ Salubridade; e, Leite ~ Pureza.

No Reino Unido, as corridas de panquecas constituem uma parte importante das celebrações da Terça-Feira Gorda – uma oportunidade para um grande número de pessoas, muitas vezes fantasiadas, correrem pelas ruas a atirar panquecas. O objetivo da corrida é chegar primeiro à linha de chegada, carregando uma frigideira com uma panqueca cozida e virando a panqueca enquanto corre.

A corrida de panquecas mais famosa acontece em Olney, em Buckinghamshire. Segundo a tradição, em 1445, uma mulher de Olney ouviu o sino estridente enquanto fazia panquecas e correu para a igreja de avental, ainda segurando a frigideira. Desde então virou tradição.

A corrida de panquecas de Olney é agora mundialmente famosa. As regras são claras: são apenas mulheres – e é preciso ter vivido ou trabalhado em Olney por pelo menos três meses; você tem que usar saia e recebe avental, lenço na cabeça e uma frigideira de panqueca, mas precisa trazer sua própria panqueca; Você vira a panqueca no início - e precisa ser capaz de virá-la no final; o percurso tem 415 jardas – ou quase 380 metros – então não é uma corrida rápida; você precisa controlar seu ritmo ou perderá o fôlego; com o toque do Sino da Igreja, os corredores partem da passagem pedonal junto ao mercado de Olney e dirigem-se à porta da igreja de São Pedro e São Paulo – percurso que implica o encerramento da principal A509 que atravessa a vila; você não pode entrar na corrida se já a venceu três vezes – como a vencedora de 2022, Katie Godof.

                                        Igreja de São Pedro e São Paulo, Olbey.


                                           Katie Godof, a vencedora da corrida das panquecas em 2022.

Na Westminster School, em Londres, é realizado o Pancake Grease anual. Um verger da Abadia de Westminster lidera uma procissão de meninos até o parquinho, onde a cozinheira da escola joga uma enorme panqueca sobre um balcão de cinco metros de altura. Os meninos então correm para pegar uma porção da panqueca e aquele que ficar com o maior pedaço recebe uma recompensa financeira do Reitor, originalmente um guinéu ou soberano.

Em Scarborough, Yorkshire, na terça-feira gorda, todos se reúnem no calçadão para pular. Longas cordas são esticadas ao longo da estrada e pode haver dez ou mais pessoas pulando em uma corda. A origem deste costume não é conhecida, mas saltar já foi um jogo mágico, associado à semeadura e ao jorro de sementes, que pode ter sido jogado em túmulos (túmulos) durante a Idade Média.

Muitas cidades em toda a Inglaterra costumavam realizar jogos tradicionais da terça-feira gorda (“Mob Football”) que remontam ao século XII. A prática desapareceu principalmente com a aprovação da Lei das Rodovias de 1835, que proibia o jogo de futebol nas vias públicas, mas várias cidades conseguiram manter a tradição até os dias atuais, incluindo Alnwick em Northumberland, Ashbourne em Derbyshire (chamada de Royal Shrovetide Football Match), Atherstone em Warwickshire, Sedgefield (chamado de Ball Game) no condado de Durham e St Columb Major (chamado de Hurling the Silver Ball) na Cornualha.

                         Encontros da terça-feira gorda de 1846 em Kingston upon Thames, Inglaterra

Como fazer uma panqueca britânica

Os ingredientes das panquecas incluem ovos, símbolos da criação, farinha, para o sustento da vida, sal, para salubridade, e leite, para pureza. É improvável que você veja panquecas no menu de café da manhã no Reino Unido, especialmente se elas forem de massa pronta. Pois, eles tendem a não usar misturas para panquecas, pois dizem que as melhores panquecas são feitas com suposições quando se trata de misturar os ingredientes, um pouco disso e um pouco daquilo, até ficar bem. Por lá, as panquecas são cozidas em temperatura bem quente com um pouco de gordura em uma frigideira grande em cima do fogão.

O segredo de boas panquecas é deixar a gordura na temperatura certa antes de adicionar a mistura. Precisa estar quase fumegante e é preciso garantir que a mistura cubra todo o fundo da panela. As panquecas devem cozinhar bem rápido, por isso fique de olho nelas o tempo todo, pois não devem demorar mais do que um minuto de cada lado.

Parte da diversão de cozinhar suas panquecas é jogá-las. Para lançar uma panqueca com sucesso, será necessária uma combinação da panqueca perfeita e de boa técnica. Não se preocupe se suas primeiras tentativas acabarem no chão ou no teto. Acontece com todos nós, a prática leva à perfeição.

O lançamento de panquecas tornou-se um negócio sério agora, com o recorde mundial de lançamento de 416 vezes em dois minutos. A maior panqueca do mundo foi feita em Rochdale, no Reino Unido, em 1994. Media 15 metros de diâmetro, pesava três toneladas e continha mais de dois milhões de calorias.

Aproveite a data, e entre no simbolismo preparando umas panquecas para se deliciar. E, para celebrar a data, termino com o vídeo de uma famosa música, que também foi criada na mesma cidade onde a corrida das panquecas surgiu: Amazing Grace - Era dezembro de 1772, em Olney, Inglaterra. Aos 47 anos, John Newton começou a escrever um hino que se tornaria cada vez mais popular ao longo dos anos. Em sua canção “Amazing Grace”, Newton escreve sobre uma graça imensa; ele escreve sobre uma graça incrível, que o salvou de sua miséria. Ao olharmos para o hino “Amazing Grace”, podemos entender um pouco sobre a conversão pessoal de Newton. Embora a história de conversão de cada pessoa seja única, há algo neste hino que permanece compreensível para os cristãos de todos os lugares. Newton discute onde ele estava quando encontrou Deus, ou melhor, quando Deus o encontrou. Ele era um desgraçado. Ele estava perdido. Ele estava cego no pecado. 

Panqueca inglesa

1 xícara de farinha de trigo

2 colheres de sopa de açúcar

1 colher de sopa de fermento em pó

1/2 colher de chá de sal

1 ovo

1 xícara de leite

2 colheres de chá de óleo

Preparo: Misture a farinha, o açúcar, o fermento e o sal. Bata o ovo com o leite e o óleo em uma tigela média até misturar bem. Adicione a mistura de farinha e bata até formar uma mistura lisa e sem grumos. Aqueça uma frigideira com um pouco de óleo até começar a soltar fumaça. Coloque aproximadamente 1/4 da mistura da massa na panela e quando começarem a aparecer bolhas no topo da mistura, vire a panqueca para cozinhar o outro lado. As panquecas são tão versáteis que você pode servi-las com quase tudo. Tradicionalmente, as panquecas inglesas são servidas com açúcar e suco de limão.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Vasilopita, uma tradição grega para celebrar o ano novo

 

O Dia de Ano Novo, também dia de festa de São Basílio, é um dia especial no calendário grego. Não só assinala o início de um novo ano, como também é, de certa forma, a versão grega do Dia de Natal, pelo menos no que diz respeito à distribuição de presentes. Diz-se que era nessa altura que São Basílio distribuía presentes às crianças, e não no dia 25 de dezembro como acontece hoje.

O Dia de Ano Novo também é sinônimo, na maioria dos lares gregos, de vasilopita, ou vasilopoulla, como é conhecido em Chipre, um pão/bolo doce especial que é assado com uma moeda no centro.



A tradição de assar e cortar uma “pita” especial (que pode significar um pão, um bolo ou mesmo uma torta) todos os anos no dia 1º de janeiro é observada em homenagem ao nosso Basílio, o Grande, arcebispo de Cesaréia na Capadócia (na Turquia moderna) daí o seu nome “Vasilopita” que significa “Pão de Basílio”. Esta tradição é observada tanto nas igrejas como nas casas dos fiéis pois, segundo a lenda, acredita-se que a vasilopita foi introduzida por São Basílio e, para entender o porquê, devemos nos aprofundar na história de sua vida.

Nascido em Cesaria, Capadócia, em 330 d.C, São Basílio nasceu em uma família rica. Ele passou a estudar teologia em Constantinopla e construiu a igreja Basilíada fora de Cesaréia, da qual se tornou bispo. Sua natureza filantrópica o levou a distribuir sua riqueza entre os pobres.

                                       Basílio da Cesareia, ou Basílio Magno (O Grande)

Durante séculos e séculos, pais, avós e padrinhos relataram o seguinte às crianças sobre São Basílio e a Vasilopita. Certo ano, durante uma época de terrível fome, o imperador cobrou um imposto pecaminosamente excessivo sobre o povo de Cesaréia. O imposto era um fardo tão pesado para as pessoas já empobrecidas que, para evitar a prisão dos devedores, cada família teve de renunciar às poucas moedas e joias restantes, incluindo preciosas relíquias de família. Ao saber desta injustiça sofrida pelo seu rebanho, São Basílio, o Grande, o arcebispo de Cesaréia, pegou no seu bastão de bispo e no livro do santo Evangelho e foi em defesa do seu povo, chamando destemidamente o imperador ao arrependimento. Pela graça de Deus, o imperador se arrependeu! Ele cancelou o imposto e instruiu seus cobradores de impostos a entregarem a São Basílio todos os baús contendo as moedas e joias que haviam sido pagas como impostos pelo povo de Cesaréia.

Mas agora São Basílio se deparou com a difícil e impossível tarefa de devolver esses milhares de moedas e peças de joalheria aos seus legítimos proprietários. Depois de orar por muito tempo, São Basílio colocou todos os tesouros em uma enorme pita. Convocou então todos os habitantes da cidade para rezar na catedral e, após a Divina Liturgia, abençoou e cortou a pita, dando um pedaço a cada pessoa. Milagrosamente, cada proprietário recebeu em seu pedaço de Vasilopita seus próprios objetos de valor.

    Essa imagem, no entanto, mostra que ao invés de uma grande pita, foram feitas várias, o que  faz mais sentido pela quantidade de dinheiro e joias arrecadadas 

Todos voltaram para casa alegres, dando graças a Deus que os livrou da pobreza abjeta e ao seu bom e santo bispo São Basílio, o Grande! Em memória daquele milagre realizado por Deus como resultado do amor de São Basílio e da defesa do seu povo, os Cristãos Ortodoxos têm observado a tradição da Vasilopita todos os anos no dia 01 de janeiro – a data em que São Basílio repousou no Senhor no ano 379.

Desde então a tradição evoluiu, sendo o tesouro uma moeda colocada no centro da vasilopita. Em alguns lugares a Vasilopita é preparada como um pão rico (como o usado para Artoklasia), enquanto em outros lugares assume a forma de um bolo com especiarias (sem cobertura). Mas não importa a forma que uma Vasilopita possa assumir, todas elas têm uma coisa em comum: cada uma contém uma única moeda. Depois de colocar a massa do pão ou do bolo na assadeira adequada, o padeiro faz com a moeda embrulhada em papel alumínio o sinal da Cruz sobre ela, fecha os olhos e a coloca secretamente na Vasilopita não assada. Depois que a Vasilopita é assada e resfriada, ela é abençoada e cortada após a Divina Liturgia para a festa de São Basílio em 1º de janeiro.


O corte da Vasilopita é uma gloriosa tradição familiar não só na Grécia, mas em todo o mundo e é a maneira mais maravilhosa de começar cada Ano Novo. Mas mesmo que você não tenha a sorte de encontrar a moeda no seu pedaço de bolo ao cortar a Vasilopita, não se decepcione. Lembre-se sempre de que a verdadeira sorte está escondida em suas próprias mãos. Porque, como dizia o antigo trágico grego Sófocles: “A senhora sorte nunca ajuda quem não se ajuda”.

Desde a Antiguidade os gregos ofereciam pão e doces amassados com mel para homenagear os deuses durante os principais festivais da colheita. Hoje o costume do pão/Bolo de Ano Novo é mantido em toda a Grécia, e a variedade de receitas utilizadas está ligada à tradição culinária de cada região: pão doce, bolo ou tsoureki (já tratei dele AQUI); tortas doces ou salgadas de massa folhada feitas na Macedônia e no Épiro, já que essas duas áreas são conhecidas por sua confecção tradicional de tortas. Em Atenas, a receita mais popular do Bolo de Ano Novo é aquela chamada Politiki Vasilopita e os ingredientes principais são farinha, ovos, açúcar e leite: vem em todos os formatos e tipos, mas geralmente é um bolo doce e fofo.

Mas, então se observa uma variedade de ingredientes da vasilopita usados em todo a Grécia: Na Ilha Zante, o pão é amassado com massa fermentada, amêndoas e especiarias; em Creta é amassado com tsikoudia (ou raki – uma bebida forte local) e gotas de mástique em pó (já tratei dela AQUI); no norte da Grécia, os habitantes locais preparam uma torta feita com gergelim ou uma torta doce de abóbora; na Ilha de Lesbos é feito com queijo myzithra; na região do Épiro, as tortas são recheadas com carne (cordeiro ou porco), queijo feta e bastante hortelã.

A Mastiha , Mastique ou Mastike é uma especiaria grega resinosa que se assemelha a uma lágrima antes de se solidificar,
                                      Mastiha em resina

Também existem diferenças na forma como são decoradas ou dimensionadas, embora algumas decorações sejam utilizadas na maioria das Vasilopitas. As mais comuns são: o número do Ano Novo é escrito com amêndoas sem casca ou com açúcar (num bolo doce); formato redondo geralmente é o mais popular; uma moeda que às vezes pode ser de ouro ou de prata, é colocada na massa antes ou depois de assada.

A tradição grega de cortar a Vasilopita é uma tradição praticada todos os anos pelos gregos, não só na Grécia e em Chipre, mas por todos aqueles que conhecem a história e gostam desse pão/bolo de Ano Novo. A razão para isso é que a moeda escondida dentro da Vasilopita, que em grego se chama “flouri” (φλουρί), representa a sorte e mostra quem será o afortunado do Ano Novo. Este costume está relacionado com a necessidade que o homem sente desde o início do mundo de prever o futuro.

Desde o século IX, a vasilopita se estabeleceu como um costume na tradição ortodoxa grega. Embora se diga que o motivo para fazer vasilopita é a comemoração de São Basílio, o costume tem uma história complicada. A Vasilopita também está ligada aos antigos pães e bolos gregos que se destinavam exclusivamente como oferendas religiosas aos deuses e aos espíritos da natureza e aos bolos romanos que eram oferecidos ao deus de duplo rosto Janus, o deus que dá nome a Janouarios/Janeiro.

                                           Janus e Bellona

É um costume rico em história e remonta à antiga civilização grega. Durante essa grande época, os gregos antigos costumavam realizar todos os meses rituais dedicados a cada um dos 12 deuses do Olimpo. Uma das cerimônias envolvidas era o cozimento de “pães festivos” – “eortastikoi artoi” (εορταστικοί άρτοι) feitos com os primeiros grãos da nova estação. Esses pães eram dados como oferenda - por exemplo - a Deméter, a deusa da agricultura, dos cereais e do pão, durante o ritual “Thalisia” (Θαλύσια) e, neste caso eram chamados de “thalissios artos” (θαλύσιος άρτος); quando eram oderedido à Apolo, o deus da música, artes plásticas, adivinhação e purificação, durante o ritual “Thargilia” (Θαργήλια), era chamado de “thargilos artos” (θάργηλος άρτος); já quando era dedicado a Hades, o deus do submundo e era chamado de “milihios plakous” (μειλίχιος πλακούς) ou “ melitouta” (μελιτούττα) (uma espécie de pão doce com mel) e assim por diante. Além disso, todo soldado ateniense era obrigado a dedicar três pedaços de pão a Ares, o deus da guerra, antes de partir para a guerra. O primeiro era o desejo de vencer a batalha. O segundo era um desejo de voltar para casa. E o terceiro era um desejo de voltar saudável e capaz de corpo e mente.

Curiosamente o “milihios plakous” ou “melitutta” dos antigos gregos era uma sobremesa doce conhecido como placenta que os antigos gregos ofereciam aos deuses do inferno pelos seus mortos. O Termo grego que dá nome a essa sobremesa significa em português algo como "conversa mansa" e é compreensível quando se pensa que o mel e a doçura usados ​​neste caso são para adoçar o inferno, de modo que seria benéfico para os mortos. O termo “conversa mansa” (milihios plakous) se refere aquela fala que é pronunciada de uma forma simpática e doce, tal como o tipo de vasilopita. mas enquanto “milihios plakous”, era destinada aos deuses do inferno é demonstrada pelo fato de ter sido cortada nas horas da noite ou durante o período dos Doze Dias, que segundo a crença popular era um período de ascensão ou turbulência das almas. As cabanas nos memoriais ou o pão oferecido nos memoriais e untado com açúcar eram considerados uma continuação deste evento.

Mais tarde, os romanos adotaram os costumes dos gregos e começaram a fazer o seu próprio pão doce, durante o Festival Saturnalia (Kronia para os gregos), como oferenda a Saturno, o deus da agricultura, que envolvia a seleção de um “rei” por sorteio. Foram os primeiros a estabelecer a fava ou moeda escondida no pão como sinal de saúde e sorte. Também colocavam no pão um pedacinho de papiro, que daria liberdade ao escravo que o encontrasse. A mesma tradição foi adotada pelos habitantes de Bizâncio e de todas as nações latinas.

Quando o cristianismo se espalhou pelo mundo, a tradição da Vasilopita coincidiu com a festa de São Basílio, o Grande - Agios Vasilios O Megas (Άγιος Βασίλειος ο Μέγας) que é comemorada no dia 1º de janeiro, no início do Ano Novo e na época da Epifania, conhecida como “Observância Vasilopita”.

Na Arcádia (Peloponeso), até ao século XIX, a moeda era colocada numa galinha empalhada, a vasilokota (kota = galinha). Embora não seja tecnicamente pão ou torta, deve-se mencionar os loukoumades (já tratei deles AQUI) e a halva (regiões da Ásia Menor) do Ano Novo, que também continham uma moeda. Hoje em dia predomina a torta doce, que antes era feita principalmente em áreas urbanas, transformada em um grande bolo luxuoso.

Do início ao fim, a vasilopita é tratada com muita seriedade. Em alguns lugares a pita ainda é feita pela dona da casa, que usa suas melhores roupas e joias para a ocasião. De profundo significado religioso e agrícola, é considerado o pão ou a torta da fertilidade e da boa sorte e é acompanhado de ações de magia. Até recentemente, os camponeses gregos faziam o sinal da cruz antes de assá-lo. Chaves, agulhas etc. eram usadas para fazer formas estranhas em vasilopites doces e pães, com a intenção de trancar os mexericos ou impedir que o mau-olhado entrasse nas casas. As esposas dos agricultores faziam árvores e animais de massa, as esposas dos pastores faziam ovelhas, cães e potes de leite, os tipos que São Vasilios deveria abençoar. Na saborosa vasilopita feita com muitas folhas de massa folhada, símbolos e sinais, além da moeda, estavam escondidos no recheio: um pauzinho para o pastor, uma palha ou um grão de trigo para o agricultor, um feijão ou uma noz para a fertilidade dos campos e da família. Quando a torta era cortada, quem encontrou a palha ou o palito em seu pedaço teve sorte para sua colheita ou para seus animais e quem encontrou a moeda teve sorte para si.

Tradicionalmente, na chegada do Ano Novo o pai de família gira a torta três vezes em nome da Santíssima Trindade. Depois ele faz o formato de uma cruz acima da pita com uma faca e corta a torta em pedaços nomeando cada um deles em um turno estabelecido. A primeira peça é dedicada a Jesus, a segunda à Virgem Maria, a terceira a São Basilio, a quarta à casa, a quinta ao estrangeiro pobre e necessitado que possa bater à porta, e o resto aos membros do família por ordem de idade.

A peça para os pobres e estrangeiros é de especial interesse porque simboliza o nosso dever para com os desafortunados do mundo. Dado que o cuidado dos pobres e necessitados não é apenas a base da filoxenia e da filantropia, valores fundamentais da ética social grega, mas também um princípio do cristianismo, a torta de Ano Novo é mágica tanto para os desafortunados como para aqueles que lhes oferecem abrigo. O conselho homérico ‘O estrangeiro e o suplicante são como seu irmão. E estranho, você é bem-vindo. Nossa casa é sua.” (Homero. Odisseu. IX, 546-547) e o cristão “Dou hospitalidade ao estranho para que Deus não se torne um estranho para mim” encontraram seu eco em um pedaço de torta.

Vasilopita

1 xícara de manteiga sem sal

1 xícara de açúcar

3 ovos extragrandes

Casca ralada de 2 laranjas grandes

Casca ralada de 2 limões grandes

1/2 colher de chá de caroços de cereja azeda esmagados/em pó (especiaria compara com o nome de mahleb, em árabe, ou makhlepi, em grego)

2 colheres de chá de mastique de goma triturada/em pó (miski árabe, mastikha grego)

4 xícaras de farinha de trigo

2 colheres de chá de fermento em pó

1/2 colher de chá de sal

1/2 xícara de leite

1 gema de ovo misturada com 1 colher de sopa de leite

sementes de gergelim

Amêndoas descascadas ou em lâminas para decorar

uma moeda limpa - embrulhada em folha de papel alumínio

Preparo: Pré-aqueça o forno a 180 C graus. Unte com manteiga uma forma redonda de 25 centímetros e reserve. Em uma tigela grande (ou na batedeira), bata a manteiga até obter um creme claro e fofo. Junte o açúcar e bata até obter uma mistura clara. Junte os ovos, um de cada vez, batendo bem a cada adição. Junte as cascas de laranja e limão, os caroços de cereja azeda triturados/em pó e a mastique. Em uma tigela separada, peneire três xícaras de farinha, o fermento e o sal. Com a batedeira em velocidade baixa, acrescente aos poucos a mistura seca alternadamente com o leite. A massa ficará bem grossa. Com uma colher de pau, misture aos poucos o restante da farinha, batendo bem até ficar homogêneo. Espalhe a massa na forma, coloque a moeda em uma parte da massa até que esteja completamente coberta (não deixe ninguém ver onde você a colocou!) e alise a superfície. Pincele o topo uniformemente com a mistura de ovo e leite e polvilhe com sementes de gergelim. Pressione suavemente as amêndoas sem casca ou as lâminas de amêndoas no topo, faça um sinal da cruz e soletre a data do ano novo. Asse por 45 minutos, até dourar (se dourar muito rápido, cubra com papel alumínio). Deixe esfriar na assadeira por 15 minutos antes de retirar da forma e deixe esfriar bem antes de fatiar.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O Zelten trentino: O pão/bolo natalino da tradição do Alto Adige

 

Poucos lugares conseguem transmitir a atmosfera invernal como a região italiana de Trentino-Alto Adige. As suas antigas aldeias iluminadas para as celebrações, os telhados inclinados carregados de neve, as casas bordadas de luz; as Dolomitas com os seus altos picos rochosos - o Cime di Lavaredo, o grupo Sella ou o Pale di San Martino - os lagos, as pistas de esqui, os vales imaculados emolduram as aldeias tornando esta região uma experiência única e evocativa para uma paisagem clássica natalina.

A cozinha do Trentino Alto-Adige tem duas almas: as receitas típicas são, de fato, influenciadas tanto pela gastronomia veneziana, com fortes toques montanhosos, como pelos hábitos alimentares austríacos. Não só isso: os pratos são muitas vezes uma mistura de tradições da cozinha camponesas e da cozinha de montanha, por um lado, e refinamentos trazidos à região pelos chefs da Casa dos Habsburgos. As sobremesas do Trentino e do Tirol do Sul também apresentam essas características. Entre todas elas, uma se destaca nessa época natalina pela singularidade e riqueza de ingredientes: o zelten, uma sobremesa festiva por excelência.

Um bolo? Um pão recheado? Com frutas cristalizadas ou frutas secas? E, porque não: tudo isso junto! O que é o Zelten não é uma questão resolvida: o fato, é que ele é a sobremesa de Natal trentina por excelência, e sua receita tem muitas variações. Alguns preferem-no macio, outros mais seco – tipo um pão de campanha. O Zelten clássico, geralmente redondo ou quadrado, ainda pode ser encontrado em forma de coração: o segredo é que, tal como o pão, fica bom mesmo muitos dias depois de cozinhado. Este poderá ser precisamente o segredo do sucesso do Zelten, nascido como um pão de “viagem”, substancial e bom mesmo quando maturado.

No Trentino-Alto Adige não há Natal sem ele. O Zelten é uma sobremesa típica feita de frutas secas e cristalizadas. O nome de origem alemã deriva do advérbio alemão “selten” que significa “às vezes ou raramente” – justamente porque antigamente era preparado em poucas ocasiões selecionadas, devido à sua extrema riqueza.


Nascido como sobremesa de inverno, época em que os frutos secos eram mais encontrados nos vales, hoje está disponível durante todo o ano. Membro de pleno direito da família dos pães doces, característica de muitas regiões italianas, o Zelten consiste em uma variante enriquecida de pães/bolos caseiros. Esta sobremesa é um exemplo típico da “cozinha de montanha”, preparada apenas com ingredientes facilmente disponíveis e que podem ser conservados por muito tempo. Embora a receita varie ligeiramente de vale para vale e quase de família para família, em toda a região italiana convenciona-se uma massa à base de farinha, ovos, manteiga, açúcar e fermento, com adição de frutos secos, principalmente passas, figos secos, amêndoas, pinoles e nozes.


Investigando a história desta sobremesa típica descobri que não é tão claro a que feriado se destinava inicialmente. Segundo uma tradição antiga, no século XVIII, o Zelten era preparado por ocasião da festa de Santa Lúcia, no dia 13 de dezembro, para ser consumido durante os feriados de Natal.

Outra tradição, porém, afirma que era típico preparar a sobremesa por ocasião do dia 21 de dezembro, véspera de São Tomás. Durante a preparação, da qual toda a família participava em agradecimento pela comida, as mulheres rezavam ao santo para que ele trouxesse amor para suas vidas. Antes de ser assado, a mãe, unindo o sagrado ao profano, marcava uma cruz no centro do Zelten como bênção. Depois de pronto era colocado no armário para maturar o sabor.

Também existem versões conflitantes sobre a ocasião em que a sobremesa deveria ser consumida. A primeira afirma que a sobremesa deveria ser comida no dia de Natal. Outros, porém, acreditam que ela deveria ser comida no Dia da Epifania (6 de janeiro). Segundo a tradição do "Natal", um Zelten era comido no retorno da missa da meia-noite entre os familiares, enquanto os demais eram dados de presente pelas filhas prometidas aos seus futuros maridos.

A receita do Zelten é uma verdadeira joia. Preservada na Biblioteca Cívica Tartarotti de Rovereto, encontra-se a fórmula do que, para alguns, é a receita “oficial” do zelten. Datada do século XVIII, essa receita descrita em “A arte de cozinhar. Receitas de comida e sobremesas", de Don Felice Libera, foi encontrada nesse manuscrito de culinária e confeitaria trentino do século XVIII com o nome de Celteno – que mais tarde viria a ser o zelten. O manuscrito foi doado à Biblioteca Tartarotti pelo Doutor Ruggero de Probizer de Rovereto que encontrou o volume encadernado em pele de bezerro na casa de sua mãe Clotilde Libera de Avio, dona de uma fiação.

                                        O manuscrito que contem o registro do Zelten.

O preciosíssimo manual encadernado em pele de bezerro conta com 301 páginas escritas, em perfeito estado, repleto de receitas, algumas verdadeiramente curiosas como a “sopa pútrida” feita com partes de aves ou a sugestão de conservação de ovos para “um ou dois meses”.

A receita do zelten de Don Felice Libera é provavelmente a mais antiga para zelten registrada e que continuou a ser transmitida. As instruções são simples, ele diz: pegue uvas cristalizadas, passas, pignoli, amêndoas cortadas sem pele, casca de limão picadinha, anis, cidra cristalizada, canela em pó, um pouco de açúcar fino e um pouco de farinha e misture tudo; depois pegue um pedaço de fermento, do tamanho de uma noz, e dilua com uma ou duas claras de ovo; em seguida, misture com o material mencionado acima, forme o Celteno em uma faixa e cozinhe em fogo baixo; depois de cozido, se quiser embelezar com cidra, bata uma clara de ovo com um pouco de açúcar, e com isso molhe o Celteno, e também a cidra, e depois coloque para secar no forno.”

                                        Etapas da preparação do Zelten

De tal forma, vê-se que o Zelten nasce de forma simples:  é claramente uma preparação da cozinha pobre que se utilizava de ingredientes facilmente disponíveis e armazenáveis. E a mesma sobremesa era maturada durante dias porque – dizia-se – era melhor que descansasse para ter mais sabor.

                                        O zelten pode ser um excelente presente gastronômico

Hoje o Zelten é produzido em todo o Trentino-Alto Adige e a receita difere de vale para vale principalmente devido à disponibilidade histórica de certos ingredientes. O Zelten do Tirol do Sul de Bolzano, por exemplo, é rico em frutas, enquanto no Trentino a massa reina suprema com menos frutas e mais frutos secos. No Alto Adige esta sobremesa nem sempre tem formato circular, aliás inúmeras variações podem ser encontradas no mercado: em forma de coração, oval, retangular, alongada. O Zelten do Tirol do Sul também se diferencia dos demais por utilizar menos farinha que neste caso é o centeio. Tal como acontece com todas as sobremesas típicas daquela tradição, cada família tem uma receita muito pessoal que guarda zelosamente, transmitida de geração em geração. As doses de ingredientes utilizadas na massa e na decoração mudam, mas não o espírito de partilha que distingue esta sobremesa de Natal.

 Zelten

150g de figo seco picado

100g de uvas passas

50g de tâmaras sem caroço, picada

150g de frutas cristalizadas

100ml de grappa (ou use um vinho branco do seu gosto)

100ml de água

Casca ralada de meio limão

Casca ralada de meia laranja

150g de manteiga na temperatura ambiente

100g de açúcar

2 ovos inteiros

200g de farinha de trigo

1 colher de fermento em pó

150g de nozes picadas

50g de pinoli

50g de amêndoas laminadas

50g de avelãs picadas

Para decorar

2 colheres sopa de mel

1 colher de sopa de água

Amêndoas peladas

Cerejas cristalizadas ou em calda

Preparo: na noite anterior, junte numa tigela a grappa e a água e adicione as passas, as tâmaras, as frutas cristalizadas, os figos secos picados e as raspas das cascas de limão e de laranja, deixe macerar coberto com uma tampa ou filme plástico até o momento do dia em que preparar a sobremesa. No dia seguinte, bata a manteiga com o açúcar até obter um creme fofo, junte os ovos misturando bem, depois junte o fermento e a farinha até ficar homogêneo. Em seguida, junte as frutas maceradas com todo o liquido restante delas, adicione os frutos secos e misture bem. Numa forma redonda untada e enfarinhada (eu ainda gosto de forrar o fundo com papel manteiga) despeje toda a massa e espalhe para ficar com a mesma altura. Faça decorações florais usando as amêndoas peladas e as cerejas, e leve ao forno preaquecido a 180C para assar por 40 minutos, ou até dourar bem. Depois de assado retire do forno, e prepare a calda de brilho. Numa panela pequena misture as duas colheres de mel e uma de água e deixe dissolver. Depois desligue o fogo e pincele toda a sobremesa para que ela ganhe um lindo brilho.

Observações: você pode incrementar ainda mais o seu Zelten adicionando a esa receita a seguinte quantidade de especiarias: ½ colher de chá de canela , 1 pitada de cravo em pó, 1 pitada de pimenta da Jamaica , 1 pitada de noz moscada.