sábado, 31 de outubro de 2020

Fave dei Morti - biscoitos para o Dia de Todos os Santos

 

Cada vez que eu paro e penso sobre os períodos da Antiguidade, e quão longe eles podem nos levar no conhecimento para entender as culturas das sociedades e o desenvolvimento do homem, fico imaginando como deveria ser interessante experienciar os costumes de épocas e lugares distintos... E, sempre que chega outubro, as antigas tradições das velhas religiões, que incessantemente despertam a minha curiosidade, me colocam a investigar e descobrir coisas novas – que podem ser novidades para mim, mas que para eles (os antigos) eram comuns e, algumas tradições, ainda mais antigas que seu tempo. É o caso da preparação culinária de hoje, as “Fave dei Morti”, que passo a compartilhar com vocês.

Decidi não traduzir o nome desses biscoitos porque não tenho certeza de quantas pessoas gostariam de ler sobre biscoitos chamados “Favas dos Mortos”. E pelo fato de que eles parecem muito mais apetitosos apresentados na língua materna, “Fave dei Morti”.

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Esses biscoitinhos feitos de amêndoas eram (e continuam sendo) tradicionalmente feitos em muitas regiões Italianas no final de outubro para serem consumidos durante o período da história chamado Ognissanti, ou como se diz hoje “Il giorno di tutti i Santi” (Dia de Todos os Santos).

No calendário litúrgico da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa, é chamado oficialmente de Festum Omnium Sanctorum (Festa de Todos os Santos) ou Sollemnitas Omnium Sanctorum (Solenidade de Todos os Santos) e cai em 1° de novembro (seguido em 2 de novembro pela Comemoração dos mortos) e é uma festa de obrigação, ou seja, baseando-se no terceiro mandamento da Lei de Deus (guardar os domingos e festas de guarda), a Igreja Católica estipula que todos os católicos são obrigados a irem à missa em todos os domingos e festas de guarda. Por isso, está obrigatoriamente nos Cinco Mandamentos da Igreja Católica.


A maior parte das festas de guarda calham sempre num domingo (ex: Domingo de Ramos, Pentecostes, domingo de Páscoa, Santíssima Trindade, etc.), que já é o dia semanal obrigatório de preceito ou guarda. Então, as festas de guarda que podem não ser no domingo são apenas dez, como se lista a seguir:

• 1 de Janeiro – Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus;

• 6 de Janeiro – Epifania

• 19 de Março – Solenidade de São José

• Ascensão de Jesus – data variável: quinta-feira da sexta semana da Páscoa.

• Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi) – data variável entre maio e junho: 1ª quinta-feira após o domingo da Santíssima Trindade.

• 29 de Junho – Solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo.

• 15 de Agosto – Assunção de Maria

• 1 de Novembro – Dia de Todos-os-Santos

• 8 de Dezembro – Imaculada Conceição de Maria

• 25 de Dezembro – Natal

 Porém, nem todos os países e dioceses festejam e guardam estes dez dias de preceito, porque, com a prévia aprovação da Sé Apostólica, a Conferência Episcopal pode suprimir algumas das festas de preceito ou transferi-los para um domingo.

No Brasil muitas das datas são transferidas para o domingo, entretanto as datas listadas abaixo são de participação obrigatória, mesmo quando acontecem durante a semana.

• Santa Maria, Mãe de Deus – 1 de janeiro

• Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi) – data variável entre maio e junho: 1ª quinta-feira após o domingo da Santíssima Trindade.

• Imaculada Conceição de Maria – 8 de dezembro

• Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo – 25 de dezembro.

 


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Mas, antes das reformas de Pio XII de 1955, também tinha uma véspera e uma oitava - Oitava tem dois sentidos no uso litúrgico cristão. No primeiro, é o oitavo dia após uma festa, inclusivamente, de forma que o dia sempre caia no mesmo dia da semana que a festa original. A palavra é derivada do latim octava (oitavo), com "dies" subentendido. O termo é também aplicado para todo o período de oito dias, durante o qual as ditas festas passam a ser observadas também. São exemplos de oitavas a Páscoa, o Pentecostes e, no oriente, a Epifania.

As comemorações dos mártires, comuns a várias igrejas, começaram a ser celebradas no século IV. Os primeiros vestígios de uma celebração geral são atestados em Antioquia e referem-se ao domingo seguinte ao Pentecostes. Este costume também é mencionado na septuagésima quarta homilia de João Crisóstomo (407) e é preservado até hoje pelas Igrejas orientais. Santo Efrém, o Sírio (373) também fala desta festa, e a coloca em 13 de maio.

O aniversário da Igreja Ocidental poderia derivar da festa romana de Dedicatio Sanctae Mariae ad Martyres, ou o aniversário da transformação do Panteão em uma igreja dedicada à Virgem e todos os mártires, que ocorreu em 13 de maio de 609 ou 610 pelo Papa Bonifácio IV; a data de 13 de maio coincide com a mencionada por Sant'Efrem.

Posteriormente, o Papa Gregório III (731-741) escolheu o dia 1º de novembro como a data do aniversário da consagração de uma capela de São Pedro às relíquias "dos santos apóstolos e de todos os santos, mártires e confessores, e de todos os justos aperfeiçoados. que descansem em paz em todo o mundo”. Chegando na época de Carlos Magno, a festa em honra de todos os santos foi amplamente celebrada em novembro.

Em 1º de novembro, uma festa de preceito foi decretada pelo rei franco Luís, o Piedoso, em 835. O decreto foi emitido a pedido do Papa Gregório IV e com o consentimento de todos os bispos, e assim a festividade foi declarada uma festa universal. A festa ganhou uma oitava solene durante o pontificado do Papa Sisto IV, quando ele baniu a cruzada pela libertação de Otranto.

A solenidade de Todos os Santos substituiu a antiga festa romana dedicada a San Cesario di Terracina (santo tutelar dos imperadores romanos), marcada precisamente em 1º de novembro: neste dia uma procissão solene partiu da Basílica dos Santos Cosme e Damiao rumo ao Monte Palatino em homenagem a San Cesario e aos imperadores. O Papa Gregório IV teria decidido participar dela para erradicar esse culto idólatra; os imperiais instalados no Monte Palatino lembravam-no todos os anos, com a festa de São Cesário, o espetáculo de suas práticas semipagãs e semicristãs.

Mas antes de se tornar uma festa de obrigação, a festa de Todos os Santos já era celebrada na Inglaterra (país outrora habitado pelos celtas) em 1º de novembro, hipotetizou-se que essa data havia sido escolhida pela Igreja para criar uma continuidade cristã com o Samhain, o antigo festival celta do ano novo seguindo solicitações nesse sentido do mundo monástico irlandês – tradições essas que deram origem ao Dia das Bruxas da atualidade.


O Samhain continuou a ser uma festa popular entre os povos celtas durante todo o tempo da cristianização da Grã-Bretanha. A Igreja britânica tentou desviar esse interesse em costumes pagãos acrescentando uma comemoração cristã ao calendário, na mesma data do Samhain. É possível que a comemoração britânica medieval do Dia de Todos os Santos tenha sido o ponto de partida para a popularização dessa festividade em toda a Igreja cristã.

A crescente influência dos monges irlandeses em toda a Europa naquela época, que também eram influenciados pelos celtas, contribuiu ainda mais com a afirmação da data em novembro. Os irlandeses costumavam reservar o primeiro dia do mês para as festividades importantes e, visto que 1° de novembro era também o início do inverno para os celtas, seria uma data propícia para uma festa em homenagem a todos os santos.

De acordo com as crenças celtas, durante o festival Samhain, os mortos podiam retornar aos lugares que frequentavam enquanto estavam vivos, e que naquele dia celebrações alegres eram realizadas em sua homenagem.

Desse ponto de vista, as antigas tribos celtas eram uma só com seu passado e futuro. Esse aspecto da festa nunca teria sido completamente eliminado, nem mesmo com o advento do cristianismo, que de fato celebra os mortos em 2 de novembro.

Mas, como uma festa em homenagem a todos os santos havia sido celebrada por vários séculos (antes de ser uma festa de preceito), em datas discordantes em vários países: para a Igreja de Roma era o 13 de maio, na Irlanda (um país de cultura celta) era 20 de abril, enquanto 1 de novembro foi uma data generalizada na Inglaterra e Alemanha (países de cultura germânica).

Além disso, quem estuda um pouco sobre as velhas religiões sabe que o Samhain não era – nem é - ligado diretamente as coisas ruins, nem ao demônio; e que o Memorial aos mortos começou a ser celebrado apenas mais tarde, em 998.

Já o feriado do Dia de Finados, no qual as pessoas rezam a fim de ajudar as almas no purgatório a obter a bem-aventurança celestial, teve sua data fixada em 2 de novembro durante o século XI pelos monges de Cluny, na França. Embora se afirmasse que o Dia de Finados era um dia santo católico, é óbvio que, na mente do povo, ainda havia muita confusão. Durante toda a Idade Média era popular a crença de que, nesse dia, as almas no purgatório podiam aparecer em forma de fogo-fátuo, bruxa, sapo etc.

Incapaz de desarraigar as crenças pagãs do coração do seu rebanho, a Igreja simplesmente as escondeu por trás de uma máscara "cristã". A festividade cristã, o Dia de Todos os Santos, é uma homenagem aos santos conhecidos e desconhecidos da religião cristã, assim como o Samhain lembrava as deidades celtas e lhes pagava tributo... Todavia, mais que uma semelhança a festa de Todos os Santos celebra-se os santos conhecidos ou não que fizeram de sua vida uma oração, testemunho e fé na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

São, como revela o livro do Apocalipse, a multidão de pessoas de várias nações que alvejaram as suas vestes brancas no sangue do Cordeiro e diante do trono de Deus proclamam hinos e cânticos de louvor e agradecimento dizendo que a salvação procede do Cordeiro (Ap 7, 2-14).

Esta tradição de recordar (fazer memória) os santos está na origem da composição do calendário litúrgico, em que constavam, inicialmente, as datas de aniversário da morte dos cristãos martirizados como testemunho pela sua fé, realizando-se, nelas, orações, missas e vigílias, habitualmente no mesmo local ou nas imediações de onde foram mortos, como acontecia em redor do Coliseu de Roma. Posteriormente tornou-se habitual erigirem-se igrejas e basílicas dedicadas à sua memória nesses mesmos locais.

O desenvolvimento da celebração conjunta de vários mártires, no mesmo dia e lugar, deveu-se ao facto frequente do martírio de grupos inteiros de cristãos e também devido ao intercâmbio e partilha das festividades entre as dioceses/paróquias por onde tinham passado e se tornaram conhecidos.

A partir da perseguição de Diocleciano o número de mártires era tão grande que se tornou impossível designar um dia do ano separado para cada um. O primeiro registo (Século IV) de um dia comum para a celebração de todos eles aconteceu em Antioquia, no domingo seguinte ao de Pentecostes, tradição que se mantém nas igrejas orientais.

Com o avançar do tempo, mais homens e mulheres se sucederam como exemplos de santidade e foram com estas honras reconhecidos e divulgados por todo o mundo. Inicialmente apenas mártires (com a inclusão de são João Batista), depressa se deu grande relevo a cristãos considerados heroicos nas suas virtudes, apesar de não terem sido mortos.

O sentido do martírio que os cristãos respeitam alarga-se ao da entrega de toda a vida a Deus e, assim, a designação "todos os santos" visa a celebrar conjuntamente todos os cristãos que se encontram na glória de Deus, tenham ou não sido canonizados (processo regularizado, iniciado no Século V, para o apuramento da heroicidade de vida cristã de alguém aclamado pelo povo e através do qual se pode ser chamado universalmente de beato ou santo, e pelo qual se institui um dia e o tipo e lugar para as celebrações, normalmente com referência especial na missa).

 Mas como aparecem os biscoitinhos chamados Fave dei Morti nesse contexto, você deve estar se perguntando.

 


Fave dei Morti são biscoitos simples, redondos ou ovais, feitos com amêndoa e preparados por ocasião da festa de Todos os Santos em muitas partes da Itália. Muito antes do Halloween (como o conhecemos hoje), da moda das abóboras caricatas e do terror, os ancestrais italianos lidavam com os mortos, os da família, que eram percebidos como um passado com o qual manter laços era manter a memória viva.

Em todas as regiões italianas, a tradição da festa dos mortos incluía a preparação de doces, quase sempre secos, como a fanfalucchie de Lecce, o pan co 'santi Siena, os ossos dos mortos na Sicília (mas não só), o pan dei morti em Lombardia, o papassini da Sardenha ou o nougat que você come em Nápoles.

Muito provavelmente a origem da fave dei morti é da Úmbria ou, em qualquer caso, da Itália Central. Podem ser encontrados em fornos e confeitarias de Umbria, Abruzzo, Marche, Lazio mas também, com algumas variações na receita, em Trieste; enquanto em Veneza esses biscoitinhos são tradicionalmente com pinoles (também chamado pinoli, pinholes e até pinhão). Há quem diga que esses biscoitinhos já eram degustados pelos gregos durante os funerais, em tempos anteriores.




Mas, por que fava?

Não, não leva fava na receita. Tem muito mais a ver com os simbolismos da festa para a qual os biscoitos são preparados.


Na antiguidade, a fava no Mediterrâneo era a leguminosa ligada à vida após a morte e aos seus habitantes. Na Roma antiga, as favas simbolizavam as almas dos mortos, esta leguminosa era oferecida como um presente aos deuses do Hades, o reino do submundo da mitologia grego-romana, na qual um deus homônimo comandava o lugar com outras divindades (Hades, o deus supremo do Hades; Perséfone,a rainha do Hades; Tártaro, as profundezas do submundo; Nix, a personificação da noite profunda, primeira rainha só submundo tornou-se a escuridão do Hades; Érebo, a personificação das trevas, primeiro rei do Hades;  Hécate, a feiticeira, é a deusa das encruzilhadas, da bruxaria, da magia negra, dentre outras análogas; As Erínias ou Fúrias: Megera, Tsífone e Alecto, também chamadas de as punidoras, representam a vingança e o castigo do submundo; os deuses gêmeos Tânato, a personificação da morte, e Hipno é a personificação do sono; Tânato, deus da morte; Momo, deus da ironia e do sarcasmo; Oizus, deus da miséria; Nêmesis, deusa da vingança; Quer, deusa do destino do homem em seus momentos finais; Moros, deus do quinhão que cada homem receberá em vida; Morfeu - deus dos sonhos bons ou abstratos; Ícelo - deus dos pesadelos; Fântaso - criador dos objetos inanimados monstros, quimeras e devaneios que aparecem nos sonhos e ficam na memória; Fantasia - deusa do delírio e da fantasia – dentre outras personagens mitológicas que habitam o Hades).

O fato é que as crenças antigas indicam numerosos rituais e hábitos supersticiosos que envolviam desde mastigar favas secas, cozinhá-las para consumo ritualístico ou mesmo fazer uma doação de favas para o túmulo de um falecido.

O cristianismo e a tradição camponesa não esqueceram a ligação entre a fava e os mortos, e mesmo mais recentemente, por volta de 2 de novembro, podiam-se ver tigelas cheias de fava e outras leguminosas nas esquinas das ruas ou nos peitoris das janelas das casas em alguns lugares italianos onde as velhas crenças ainda resistem...

Hoje, as favas foram substituídas por esses deliciosos biscoitos que lembram um pouco os macarons, no sabor, e que até recentemente são vendidos nas barracas localizadas nas entradas de cemitérios italianos.

De uma região italiana para outra, a receita para fave dei morti pode variar. Certamente entre os ingredientes não podem faltar amêndoas (melhor ainda se não forem descascadas) e, hoje, o açúcar branco, na mesma quantidade. Em seguida, manteiga, ovos, farinha, canela e raspas de limão.

O procedimento tradicional exige que a amêndoa e o açúcar sejam triturados, à mão, num pilão, para se obter uma farinha muito fina que será depois integrada com os restantes ingredientes até se obter uma espécie massa. O que antes deveria ser feito com mel, fico imaginando... Em algumas versões, a massa inclui apenas claras de ovo; em outras ainda, uma mistura de amêndoas doces e amêndoas amargas – equilíbrio é fundamental!

Outra receita orienta que se deve usar amêndoas moídas sem pele depois trabalhadas com farinha, açúcar, manteiga e ovos e temperadas com um pouco de grappa e raspas de limão, conforme relatado na receita de Livio Jannattoni em "La Cucina Romana e del Lazio".

Outro motivo para ser uma fava a nomear do doce, é porque ela era considerada como um "feitiço protetor", símbolo dos mortos e de sua prosperidade.

A tradição de comer esta leguminosa durante a "Festa dos Mortos" de origens muito antigas e, algumas fontes, remontam a um costume do qual também deriva o nome "Calle della fava" em Veneza.

Já no século VII - VI. B.C. na região do Mediterrâneo, a fava estava ligada ao mundo dos mortos, pois a flor desta leguminosa geralmente é branca, mas manchada no centro com preto (símbolo da morte). Além disso, se as favas secas forem deixadas na água, elas a tingem de vermelho e, portanto, evocam o sangue.

Por ser as favas, também, um meio direto de comunicação entre o Hades, ou seja, o mundo dos mortos (imaginado no subsolo), e o dos vivos. Alguns estudiosos justificam, inclusive, a simbologia das cores da cor da flor das favas: branca manchada com preto. Ou preto, símbolo do mistério, está disposto na forma da letra grega "tau" (nosso T), a primeira letra do "Tanathos", que significa, precisamente, "morte" – e que personificava um deus da morte.


As favas eram consideradas capazes de transferir as almas dos mortos em seres vivos: por isso - por sua faculdade de constituir, ou seja, o elo entre os mortos e os vivos - eram presentes em cerimônias fúnebres na Grécia, Egito, Roma e até mesmo na Índia e, até no Peru.

Desta forma, essa "fava dos mortos" constituiu uma espécie de comunhão inconsciente entre os vivos e os mortos e quase uma troca material entre o mundo terreno e o reino dos mortos.

Por ser pensada como a morada da alma dos mortos, as favas eram respeitadas. Um caso peculiar nesse aspecto, o filósofo e matemático Pitágoras, uma vez perseguido pelos seus inimigos, era facilmente alcançado porque não se atrevia a avançar e esconder-se num campo de favas, precisamente para não "atropelar” as almas dos mortos.

Portanto, comer a “fava dos mortos” é uma espécie de comunhão gananciosa com os falecidos. Na tradição cristã, o dia dos mortos oficialmente colocado no dia 2 de novembro, junta-se ao dia 1º, festa de Todos os Santos, nesses dias os mortos poderiam retornar aos vivos, indo para seus parentes ainda vivos.  Desta maneira, comidas e doces passam a ser preparados para oferecer-lhes, bem como para ser consumidas diretamente pelos vivos.

Algumas regiões italianas dão destaque para suas comidas em homenagem aos mortos. Na Calábria, nas comunidades ítalo-albanesas, as pessoas praticamente caminhavam em procissão em direção aos cemitérios: depois de bênçãos e orações para entrar em contato com os mortos, eram preparados banquetes diretamente nos túmulos, convidando também os visitantes a participarem.

Na Emilia Romagna, no passado, os pobres iam de casa em casa para pedir "la carita' di murt", recebendo comida das pessoas a quem na porta batiam.

Em Friuli os camponeses deixam uma luz acesa, um balde de água e um pãozinho na mesa. Esta é a razão que inspira o citado poema de Pascoli "A Toalha de Mesa" onde a sensação da presença dos mortos na casa, no silêncio da noite, se traduz de forma extremamente comovente e sugestiva:

 

Entrano, ansimano muti:

ognuno è tanto mai stanco!

e si fermano seduti

la notte, intorno a quel bianco.

 

Stanno li sino a domani

col capo tra le mani,

senza che nulla si senta

 

Eles entram, ofegando silenciosamente:

todo mundo nunca está tão cansado!

e pare de sentar

a noite, em torno desse branco.

 

Eles ficam lá até amanhã

com a cabeça nas mãos,

sem nada ser ouvido.

Também em Friuli, como aliás nos vales dos Alpes Lombardos, acredita-se que os momortos vão em peregrinação a certos santuários, a certas igrejas distantes da cidade, e quem os encontrasse naquela noite os veria apinhados de uma multidão de pessoas que vive mais e vai desaparecer com o canto do galo ou com o nascer da "bela estrela".

Essas crenças são inspiradas por uma das histórias mais significativas de Caterina Percoto, a conhecida escritora friuliana, que desenhou muitos motivos do folclore de sua terra. Esta presença dos mortos, sentida com uma intensidade que atinge o poder de uma visão. Está, no entanto, sempre associada, na mentalidade popular, a uma ação benéfica e à esperança na bem-aventurança eterna.

Por outro lado, na Lombardia, temos oss de mord, ou oss de mort, à base de massa e amêndoas torradas, assadas no forno, de forma oblonga, com um vago sabor a canela em particular.


Em Bormio, na noite do dia 2 de novembro, costumava-se colocar uma abóbora cheia de vinho no peitoril da janela e, em algumas casas, o jantar é preparado. Mas também em Vigevanasco (Vigevano) e em Lomellina costuma-se colocar um balde na cozinha (água doce, uma cabaça cheia de vinho, e sob a lareira o fogo e as cadeiras em volta da lareira.

Em Comacchio existe o punghen cmàciàis, o Topino Comacchiese, um biscoito doce em forma de camundongo  ou de lagartixas preparado em casa.


No Piemonte, era costume que o jantar deixasse um lugar extra à mesa, reservado aos mortos que voltariam para visitá-la.

No Val d'Ossola parece haver uma peculiaridade neste sentido: depois do jantar, todas as famílias iam juntas para o cemitério, deixando as casas vazias para que os mortos lá pudessem ir se refrescar em paz. O retorno às casas era então anunciado pelo som dos sinos, para que os mortos pudessem se retirar sem desconforto.

Na Sicília, encontramos o mani, um pão em forma de anel, em forma de um único braço que une duas mãos, e o pão dos mortos, um pão antropomórfico que originalmente era para ser uma oferenda de alimento às almas de parentes mortos.

Em Palermo, uma tradição milenar, ligada à festa dos mortos, queria que os pais dessem doces e brinquedos às crianças, dizendo-lhes que tinham sido trazidos de presente pelas almas de parentes falecidos. Normalmente, para os meninos, era costume doar armas de brinquedo; para as meninas: bonecas, carrinhos, tábuas de passar roupa, fogões. Os mais ricos distribuíam triciclos e bicicletas em chamas. Pela manhã, o presente foi escondido em um local inusitado da casa, na noite entre 1 e 2 de novembro. Na noite anterior o ralador foi escondido porque se pensou que o falecido, quem se comportasse mal, iria coçar os pés!

A festa tem uma origem e um significado que estão ligados ao banquete fúnebre, que ainda é lembrado no "consulu siciliano", o almoço que os vizinhos ofereciam aos familiares após o sepultamento do falecido.

Entre esses doces, são famosos os de formato humano, La Pupa di zuccheru chamados de Pupaccena: uma estatueta oca de açúcar endurecido e pintada de cores claras com figuras tradicionais (paladinos, dançarinos e outros personagens do mundo infantil) ou biscoitos de amendoa  "oss di muortu" ou "u pupu cu l'ovu".


Assim, até chegar a tradição das abóboras gravadas em forma de caveira e com a vela dentro, houveram muitas outras tradições interessantes para celebrar os mortos e o Dia de Todos os Santos, que pouca gente conhece.

A frase "doce ou travessura" nos nossos dias correspondia a "gi a cicattlone", isto é, ir à esmola (de ovos, gordura, salsichas, frutos secos, figos, castanhas, taralucci, de qualquer cois). O consequente festival de consumo era denominado "ciccicocco". Tradição análoga à busca pelo carnaval. As crianças cantavam canções e convidaram as famílias visitadas a lhes oferecer algo.

Para além disso, existe uma lenda romântica veneziana que justifica a entrega desses biscoitinhos para os namorados, no dia de todos os santos. Ela diz assim:

Conta-se que o jovem Cândido, filho de um calafetador que trabalhava no Arsenal, embarcou como marinheiro em um navio mercante com destino a muitos portos do Oriente: depois de um ano de navegação finalmente voltou para casa.

O rapaz apaixonado por Lúcia, filha de camponeses do Continente, tinha partido com a intenção de ganhar o suficiente para se casar.

Na parada em Thessaloniki, onde se abasteceram de azeite e vinho, Cândido pediu licença para passear e assim comprar um presente para a namorada.

Lá ele ficou intrigado com a cor e o brilho de uns grãos (ele os viu pela primeira vez, não acostumado ao cultivo da terra), eram favas, mas ele confundindo-as com uma espécie de pedra preciosa ou pérolas, resolveu comprá-las e colocá-las em uma linda caixa de sândalo dourado para Lúcia.

Chegando depois da longa viagem, atracam no cais de San Marco e Cândido Sindustria para chegar ao país dos noivos.

Já era madrugada da festa de Todos os Santos quando ele chega na casa dos futuros sogros, até todos os vizinhos participaram de sua chegada e souberam de suas aventuras em terras distantes.

Ele começou a compartilhar os presentes que trouxera do fabuloso Oriente.

Chegou o grande momento, quando Cândido disse “e agora, como a distância só aumentou o meu carinho pela amada Lúcia, por ela comprei um certo número de pérolas de tamanho extraordinário e formato exótico que trouxe daqui de pátria de Homero. Ela poderá fazer um colar e enfeitar seu lindo pescoço; não encontrei em todos os portos que toquei uma mercadoria estranha e mais preciosa”.

Lúcia empolgada e com as mãos trêmulas abre a caixa e descobre que o conteúdo, com a viagem e o tempo, havia ficado flácido e fedorento!

A garota largou tudo chorando, pensando que era uma piada.

Cândido entendeu que se havia enganado por sua ignorância dos produtos agrícolas, bastava compensar, prometendo dar o quanto antes um presente mais agradável à pobre Lúcia, que de qualquer forma se consolava.

Ao cair da noite, embora fosse a véspera dos mortos, todos os que haviam testemunhado a má figura de Cândido e a decepção de Lúcia encontraram-se em sua casa na fileira. Na ocasião, após pedir perdão pela enésima vez à namorada e aos pais dela, Cândido entregou a preciosa caixa cuidadosamente limpa para a namorada; quando a abriu a encontrou-a cheia de doces biscoitos deliciosos, que o amante havia encomendado especialmente e queria que fossem feitos em forma de fava, em memória de sua desventura.

Desde então, a partir dessa época, os bons jovens costumavam dar às namoradas, na noite de Todos os Santos, a fava dos mortos, como sinal de amor e de desejo de longa vida.

Depois de tanta história, sugiro que você prepare esses biscoitinhos para a próxima celebração. E se desejar saber mais tradições como essa, abaixo deixo algumas indicações de leitura.

 

Ronald Hutton. The stations of the Sun, New York, Oxford University Press, 1996, pp. 363-364.

 

Saintyves Pierre. I santi successori degli dei: L'origine pagana del culto dei santi, Edizioni Arkeios, 2016

 

Paul Fieldhouse. Food, Feasts, and Faith: An Encyclopedia of Food Culture in World Religions, ABC-CLIO, 2017

 

Fave dei Morti Tradicional - por Livio Jannattoni em "Cozinha Romana e Lazio"

200 gr de amêndoas peladas

100 gr de farinha de trigo

100 gr de açúcar

1 ovo

Casca de meio limão

1/2 xícara de grappa

25 gr de manteiga

Preparo: Coloque as amêndoas descascadas na mixer ou no liquidificador e deixe funcionar até picar bem fino. Em uma mesa coloque a farinha, o açúcar e as amêndoas picadas, em seguida, acrescente a manteiga derretida, o ovo batido, a grappa e as raspas de limão. Misture bem todos os ingredientes até obter uma mistura homogênea. Forme pequenos cilindros que você irá cortar em pedaços de 1 a 3 cm (como se faz nhoques). Com os pedacinhos cortados modeles seus biscoitos. Depois de preparadas, alise levemente esses pedaços de massa até atingir a altura de cerca de 1 cm. Arrume-os em uma assadeira forrada com papel manteiga, colocando-os bem espaçados uns dos outros, e leve ao forno pré-aquecido a 180 C ° por cerca de 10-15 minutos ou até dourar. Depois de prontos, deixe os biscoitos esfriarem.

 

Fave dei Morti (coloridos)

150 g de farinha de trigo

250 g de amêndoas descascadas

50 g Pinhões

100 g de açúcar de confeiteiro

2 ovos

Raspas de limão de 1 limão

2 colheres de chá de cacau em pó

corante alimentar vermelho

Preparo: Aqueça o forno a 180 ° C. Use um processador de alimentos para misturar as amêndoas e os pinhões em uma "farinha". Bata os ovos até engrossar. Peneire a farinha e o açúcar de confeiteiro, junte aos ovos e misture bem. Divida a massa em três pedaços. Sove as raspas de limão em uma bola, o cacau em pó na segunda e o corante alimentício na terceira, até que estejam uniformemente coloridos. Enrole as bolas de massa em salsichas compridas. Forre uma assadeira com papel manteiga, quebre pedaços de massa um pouco menores do que o tamanho de uma noz, enrole-os em uma bola e, em seguida, alise-os levemente. Coloque-os no tabuleiro com pelo menos 5 cm / 2 de distância entre os biscoitos. Asse por 10-15 minutos até que estejam levemente dourados.

 

Ossa dei mort (Ossos de mortos)

200 gr. de farinha de trigo

200 gr. de açúcar

200 gr. de amêndoas trituradas com casca (ou sem casca se preferir)

2 claras de ovo.

Preparo: bata as claras em neve, junte o açúcar, as amêndoas não descascadas, a farinha. Misture bem e forme os biscoitos em um prato untado e enfarinhado. Asse em forno 180 graus por 12-15 minutos.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Nenhum César romano jamais comeu uma Caesar Salad, pois ela é uma produção mexicana da contemporaneidade!

 

Perdoe-me se, logo de cara, o título do post acaba com uma ilusão antiga sua sobre a origem da, hoje tão banal, Caesar Salad. Mas aqui tenta-se apresentar a realidade dos fatos. Deste modo, se você deseja comer essa salada no lugar original de seu nascimento, você tem que ir para Tijuana, México. Mas antes de chegarmos até a existência dessa famosa salada, é preciso que voltemos no tempo...

No dia 15 de março de 44 aC, Júlio César foi morto a facadas - não, como nos diz Shakespeare, no Fórum, mas no que é conhecido hoje como a Piazza l'Argentina, um bloco de ruínas 15 pés abaixo do nível da rua que serve como santuário e agência de adoção para os gatti di Roma - os amados gatos selvagens de Roma. O que está no Fórum é a tumba de César, um simples monte de cimento sobre o qual as pessoas ainda deixam flores.

Mas o que se comia na época de César? Essa é uma aproximação com a culinária romana na tentativa de saber o que ele pode ter comido e os alimentos que seus soldados certamente comeram.

Até recentemente, poucos autores se preocupavam em escrever sobre a vida de pessoas comuns nos tempos clássicos. Apenas heróis e figuras divinas apareceram na literatura. As atividades da vida cotidiana, como cozinhar, raramente apareciam. Nenhum livro de receitas da época de César sobreviveu - se é que algum dia existiram.

No entanto, no século seguinte, o gosto romano pela boa vida começou a se refletir na escrita. O livro de receitas mais antigo conhecido é atribuído a um gourmet chamado Marcus Gavius (ou Gabius) Apicius, que viveu em algum momento durante os reinados de Augusto e Tibério.

As datas são vagas porque não se sabe muito sobre Apício. Na verdade, Ateneu, o autor do Deipnosophitai do século III, conhecia três gourmets diferentes com o mesmo nome.

Nosso Apício escreveu dois livros de receitas: o primeiro sobre molhos e um tomo posterior que incorporou o primeiro, comumente conhecido como De Re Coquinaria (sobre culinária). Partes desse texto combinado foram preservadas e são as representações mais detalhadas que temos da alta cozinha romana antiga.



O Satyricon, escrito pelo contemporâneo de Apicius, Petronius, fornece outra visão, embora exagerada para o efeito cômico, dos hábitos alimentares dos ricos e famosos. Os gourmets gourmands romanos ricos parecem ter tido uma afeição por pratos em que os ingredientes principais eram disfarçados de outra coisa, seja como piadas ou para fins metafóricos.

No filme Satyricon de Federico Fellini, o banquete absurdamente elaborado de Trimalchio (o poeta-aspirante a poeta ridiculamente rico do Satyricon) segue muito de perto os excessos descritos por Petronius. E, pela primeira vez, os gostos bizarros de Fellini parecem ter encontrado seu par.


No entanto, nem Apício nem Petrônio podem realmente nos dizer qual era o gosto das refeições romanas. Embora O Satyricon nos dê uma boa ideia sobre a apresentação romana e De Re Coquinaria forneça os nomes dos ingredientes, nenhuma medida de peso, volume ou tempo de cozimento é fornecida. Esses detalhes, compreendidos por todo cozinheiro romano, teriam sido um desperdício desnecessário de pergaminho para os autores contemporâneos.

Felizmente para nós, a primeira tradução inglesa de De Re Coquinaria foi escrita em 1926 por um cozinheiro, Joseph Dommers Vehling. Vehling usou as primeiras cópias conhecidas do livro, manuscritos do século IX, e aplicou suas próprias habilidades técnicas para a interpretação das receitas. Sua versão pode não ser a mais respeitada pelos padrões acadêmicos, mas nos ajuda a entender a comida melhor do que as traduções posteriores.

Ao ler as receitas, fica-se impressionado com quatro coisas: o estilo de escrita concisa e taquigráfica; a complexidade dos métodos; a alta proporção de pratos de carne para pratos de vegetais; e a dependência de ingredientes raros ou caros, como flamingo, úbere de porca, arganazes (um tipo de roedor) e gazelas. Carne, ingredientes importados e preparações de mão-de-obra intensiva só podiam ser compradas pelos ricos, e o consumo ostensivo era uma marca registrada da classe alta romana.

Como Apício geralmente não nos diz a quantidade de ervas e temperos pretendidos, não podemos ter certeza de que os pratos eram tão intensos quanto as receitas indicam, mas a seguinte receita de lagosta cozida certamente sugere que o paladar romano era diferente do nosso:

 (399) Lcustum Elixam cum Cuminato

A verdadeira lagosta cozida é cozida com Molho de Cominho [essência] e, por direito, acrescente um pouco [inteira] ... frase faltando nos manuscritos sobreviventes ... pimenta, amêndoa, salsa, hortelã seca, um pouco mais de cominho, mel, vinagre, caldo e se quiser, adicione algumas folhas [louro] e malobatron. 

A Historia Naturalis de Plínio, o Velho é uma enciclopédia de tudo que os romanos sabiam - ou pensavam que sabiam - sobre a natureza e a agricultura. De acordo com ela, malobatron, ou malabathrum, é a folha de Laurus cassia, ou canela selvagem (presumivelmente nosso Cinnamomum aromaticum, Cassia).


O molho de Apicius para caça fervida ou assada é intrigante, mas intrigante em seu equilíbrio entre os sabores amargo, doce, azedo, salgado e aromático:

(349) Ius in Venationibus Omnibus Elixis et Assis

8 escrúpulos de pimenta, arruda, lovage, semente de aipo, zimbro, tomilho, hortelã seca, 6 escrúpulos de amargura da pulga; reduza tudo isso ao melhor pó, coloque-o junto em uma vasilha com mel suficiente e use com vinagre e garum.

Esta é uma das poucas receitas apicianas a usar medidas, embora com inconsistência característica. Um escrúpulo era uma unidade de peso, aproximadamente igual a um décimo oitavo de uma onça.

Flea-bane (Inula conyza) é um parente próximo de Elecampane; como a arruda, é extremamente amarga. “Mel suficiente” deve ter sido uma grande quantidade, de fato, para compensar todo aquele amargor. Garum (ou Liquamen similar) apareceu como ingrediente na maioria dos pratos romanos. Era um molho preparado feito de entranhas de peixe e guarnições fermentadas em salmoura forte. É um ancestral do nosso molho Worcestershire, mas é mais semelhante aos molhos de peixe do sudeste da Ásia, como nam pla e nuoc mam. Eles forneciam um sabor salgado na culinária romana, assim como o molho de soja na culinária chinesa e japonesa hoje.

Um prato mais simples, incomum, mas talvez mais atraente para os gostos modernos, são as pastinacas cozidas:

 (116) Sondyli

Ferva as pastinacas (cherovia) em água salgada [e tempere com] óleo puro, coentro verde picado e pimenta inteira.

O coentro verde é o nosso coentro, mas a pimenta usada por Apicius provavelmente não era pimenta preta (Piper nigrum), mas pimenta longa (Piper longum). Tem um sabor mais resinoso do que a pimenta-do-reino, com uma queimadura persistente na parte de trás da garganta.

Esperaríamos encontrar vestígios da culinária romana na culinária italiana, e existem alguns. A dieta dos camponeses e soldados romanos consistia principalmente de vegetais e pulmentum, um mingau espesso de grãos como espelta, cevada ou painço.

O prato, mais tarde modificado pela descoberta de um grão diferente no Novo Mundo, sobrevive até hoje como polenta. A clássica salsicha Luganega é descendente de uma forma muito mais simples, e talvez apenas no nome, da salsicha Apician Lucanian:

(61) Lucanicae

… Esmague pimenta, cominho, picante, arruda, salsa, condimento, louro e caldo; misture bem com [carne de porco fresca] picada finamente e triture bem com o caldo. A esta mistura, sendo rica, adicione pimenta e nozes inteiras. Ao encher as tripas, empurre a carne com cuidado. Pendure a salsicha para fumar.

“Condimento” refere-se a qualquer coisa que tenha sido usada como aromatizante, por isso parece especialmente vago quando todos os outros ingredientes são listados com tanto cuidado. Talvez fosse o equivalente apício de “11 ervas e especiarias secretas” ou “molho especial”.

Segundo Sêneca, o Jovem, um pouco mais jovem que Apício, o grande gourmet cometeu suicídio. Apício se envenenou ao descobrir que sua fortuna havia diminuído para meros 10 milhões de sestércios (1.500 libras de ouro). Com base nos preços do ouro de hoje, isso equivale a aproximadamente $ 5,25 milhões nos EUA. Aparentemente, ele estava convencido de que não seria capaz de se alimentar da maneira a que se acostumara. A vida, pelo menos la dolce vita, não era mais possível com recursos tão escassos.

Mas e aquela última salada de Júlio César? Apício não fornece muitas receitas para pratos que reconheceríamos como saladas, seja porque romanos ricos não os comiam ou porque eram muito mundanos para merecer inclusão em seu livro.

Uma coisa é certa: nenhum César romano jamais comeu uma salada Caesar!

Para entendermos a origem da preparação, precisamos voltar da viagem à Antiguidade e ir para o México, no ano de 1927...

O Caesar's Restaurante-Bar está localizado na rua principal de Tijuana desde 1927. Algumas palmeiras estão em frente ao edifício, bloqueando suavemente as letras vermelhas que soletram 'César', criado por Cesare ('César') Cardini, que tem uma imagem em preto e branco pendurada do lado de fora do pátio juntamente com as palavras 'Casa da lendária Salada de César'.




Em 1896, César Cardini nasceu perto do Lago Maggiore, no norte da Itália. Mas, além disso, pouco se sabe sobre sua juventude até que ele se mudou para a América do Norte na década de 1910.

Um anúncio de dezembro de 1919 no Sacramento Union promovendo a inauguração do "Brown’s Restaurant", uma joint venture de uma Wm. Brown e César Cardini indicam que ele provavelmente pousou no norte da Califórnia (o anúncio também indica que eles trabalharam juntos no Palace Hotel de San Francisco, que ainda existe).

                                               Cesare Cardini

Alguns anos depois, Cardini seguiu para o sul, em San Diego, onde dirigia um restaurante francês em um prédio que ainda está de pé na University Avenue. Mas em 1920, o congresso aprovou a proibição em todos os Estados Unidos. E enquanto Cardini mantinha seu negócio aberto em San Diego, ele abriu um segundo restaurante na fronteira em Tijuana onde ele poderia servir bebidas alcoólicas, para escapar da Lei Seca - a empresa está na localização atual desde 1927.

Em toda a proibição, Tijuana era o lugar para as elites do sul da Califórnia irem beber. O Los Angeles Times chamou Tijuana de “a cidade que era Vegas antes de Vegas ser Vegas”. Douglas Fairbanks, Jean Harlin e Charlie Chaplin eram apenas algumas das estrelas conhecidas por frequentar a cidade fronteiriça mexicana para beber um pouco e jogar. Foi nesse clima que César Cardini abriu seu restaurante na então movimentada Main Street, hoje Avenida Revolución.

Ao longo da década de 1920, hordas de estrelas do cinema americano aglomeraram-se em Tijuana em busca de bebidas proibidas pela Lei Seca, e logo se espalhou a notícia da salada de mesmo nome de César entre a elite de Hollywood.

                           Imagem do restaurante original na década de 1920.

Clark Gable e Jean Harlow viajaram para Tijuana para experimentar a alface crocante e o prato ricamente temperado de Caesar. E em seu livro From Julia Child’s Kitchen, a aclamada chef americana Julia Child descreveu uma de suas primeiras memórias em restaurantes como se aventurar na Caesar’s com seus pais de sua casa na Califórnia, na década de 1920, e observar Cardini preparar sua criação em sua mesa.

 Meus pais, é claro, pediram a salada. O próprio César rolou o grande carrinho até a mesa, jogou a alface em uma grande tigela de madeira e gostaria de poder dizer que me lembrava de cada movimento dele, mas não me lembro. A única coisa que vejo claramente são os ovos. Eu posso vê-lo quebrar 2 ovos sobre a alface e rolar, os verdes ficando todos cremosos enquanto os ovos escorrem sobre eles. Dois ovos em uma salada? Dois ovos mimados de um minuto? E croutons com sabor de alho e queijo parmesão ralado? Foi uma sensação de salada de costa a costa, e houve até rumores de seu sucesso na Europa.

Cesare Cardini que faleceu em 2003, inventou seu prato homônimo exatamente em 4 de julho de 1924. Como diz a lenda, o restaurante estava fazendo negócios tão dinâmicos no Dia da Independência dos Estados Unidos que estava ficando sem ingredientes.

Por capricho, Cardini improvisou um prato com folhas de alface romana, gema de ovo crua, queijo parmesão e outras sobras - transformando os restos em uma refeição surpreendentemente deliciosa.


Na verdade, a salada logo se espalhou do México e do Golden State para todo o mundo. Na década de 1940, a revista Gourmet chamou o prato de "o destaque gastronômico do momento atual". E em 1953, foi até coroada como "a maior receita originada nas Américas em 50 anos" pela International Society of Epicures em Paris.

Os Cardinis fizeram as malas de Tijuana e se mudaram para Los Angeles, onde patentearam o famoso molho para salada de sua família em 1948. Hoje, ainda é vendido como Molho Caesar Cardini. Mas enquanto a marca agora tem sede nos EUA, o restaurante que inspirou o prato e suas raízes estão firmemente plantados em Tijuana.


Em muitos aspectos, a história recente de César reflete a de Tijuana. Antes um refúgio glamoroso para as estrelas e gangsters de Tinseltown, a cidade se transformou em uma onda de décadas de crime e violência antes de experimentar um recente renascimento cultural.

Em 2009, o Caesar's, que não pertencia mais aos Cardinis e havia se deteriorado em um local sujo, fechou. Mas em 2010, uma família local - os Plascencias - o reabriu após uma limpeza total.

Hoje, o Caesar’s tem um toque europeu antigo, com azulejos em preto e branco e uma barra de mogno brilhante. As camisas brancas imaculadas dos garçons destacam-se por baixo de coletes e gravatas pretas. Fotografias históricas de Tijuana decoram as paredes, vigas pesadas cruzam o teto de madeira escura e a iluminação é fraca, dando ao restaurante uma atmosfera íntima.

Pedir a ‘ensalada Caesar’ é como apertar o botão play para um show elaborado. A salada Caesar não é apenas uma receita: é uma peça coreográfica; uma dança lenta entre molho cremoso e alface romana.

A apresentação começa quando o garçom rola sobre o carrinho de saladas. O servidor "ensaladero" indicado despeja uma pequena colher de alho picado em uma tigela grande de madeira e, em seguida, adiciona mostarda, filés de anchova gordos e algumas gotas de molho inglês. O garçom quebra um ovo e, com duas colheres cuidadosamente balanceadas, escorre a casca e joga a gema na tigela. O garçom então espreme um pouco de suco de limão e zelosamente mexe tudo na tigela com pinças de madeira. Mexendo, o ensaladero rega com azeite e queijo parmesão ralado finamente.

Depois que o molho é misturado em mais do que a soma de suas partes, o servidor despeja em um prato de folhas frescas de alface e gentilmente mistura tudo junto. O garçom então coloca a salada no prato, cobrindo as folhas com pimenta-do-reino moída, um crostini simples e ainda mais queijo parmesão. Sem croutons em cubos, pedaços de bacon ou suco de limão.

Apesar do nome da salada e da famosa história de Cardini, não está claro quem realmente inventou o prato. Em seu livro, The Essential Cuisines of Mexico, a autoridade mexicana em alimentos Diana Kennedy sugere que a salada foi na verdade criada pelo irmão de César, Alex. De acordo com Kennedy, Alex começou a trabalhar no ramo de restaurantes aos 10 anos na Itália, antes de se tornar um piloto na Primeira Guerra Mundial e então se mudar para Tijuana em 1926 para se juntar ao irmão e abrir seu próprio restaurante.

Conhecida inicialmente como Salada do Aviador, ela então se tornou popularmente conhecida e copiada como César, mas deveria ser chamada como Salada Alex-César Cardini.



Um parceiro de negócios de Alex e Caesar em seus restaurantes em Tijuana, Paul Maggiora, também afirmou que ele foi o primeiro a usar esta salada.

Outra versão da história dá crédito a um jovem funcionário da Caesar’s: Livio Santini. Também da Itália, Santini mudou-se para Tijuana em 1924, arrumou um emprego cozinhando para Cardini e supostamente preparou a salada com base em um prato que sua mãe costumava fazer.

Hoje, até o site do César pergunta: “César Cardini ou Livio Santini criaram a salada? Sinceramente, não estávamos lá quando nasceu um dos pratos mais famosos do mundo. Mas certamente honramos e respeitamos o Sr. Cardini e o Sr. Santini. ”

Quaisquer que sejam as verdadeiras origens, conforme a salada se mudou para o norte, para os EUA, um de seus ingredientes principais mudou. Hoje, a maioria das receitas pede um pouco de suco de limão. Até a Encyclopaedia Britannica o define como um prato com limão.

O problema é que a palavra em espanhol para‘ lime ’é‘ limón ’, que, claro, soa muito como‘ lemon'. Para aumentar a confusão, a palavra espanhola para ‘lemon’ também é ‘limón’. E funcionários antigos do lugar diziam ter comido a salada com pequenas limas mexicanas verdes.

Noventa e cinco anos depois que alguém em Tijuana usou a primeira salada Caesar, o prato continua sendo o item mais popular do menu do Caesar's e uma fonte de orgulho para os habitantes locais.

Podemos nunca saber a história real de se César, Alex, Livio ou Paul criaram o prato, mas uma coisa é certa: um imigrante italiano inventou uma das saladas mais famosas dos Estados Unidos em Tijuana com alface romana que leva o nome de Roma. É uma comida multicultural - uma salada verdadeiramente mista - e um prato pelo qual vale a pena cruzar fronteiras.

Se ficou desejando, anote aí a receita Made in Tijuana para Caesar Salad que deixo abaixo – e para mais curiosidades segue sugestões para leitura.

Apicius Cooking and Dining in Imperial Rome. Edited and translated by Joseph D. Vehling. New York: Dover, 1978.

Petronius. The Satyricon. Translated by and William Arrowsmith. New York: New American Library Trade, 1990.

Pliny the Elder. Natural History: A Selection. Translated by John F. Healy. New York: Penguin USA, 1991.

Tannahill, Reay. Food in History. New York: Crown Publishing, 1995. 

Caesar Salad

1 gema de ovo

½ xícara de azeite de oliva extra virgem

2 colheres de sopa de suco de limão

1 ½ colher de sopa de molho inglês

1 colher de sopa de mostarda dijon

1 pequeno dente de alho

2 ou 3 filés de anchova

½ colher de chá de pimenta-do-reino moída na hora

¼ xícara de queijo parmigiano reggiano ralado na hora

2 cabeças médias de alface romana com as folhas externas removidas

Uma baguete de um dia (ou pão do país)

3 colheres de sopa de azeite para croutons

Sal e pimenta a gosto

Dente de alho picado ou sal de alho para croutons (opcional)

Orégano seco ou ervas de sua escolha (opcional)

Queijo parmigiano reggiano extra para pôr na salada

 Preparo: Leve uma panela com água para ferver e cozinhe o ovo por 3 minutos, drenando imediatamente e colocando para esfriar em um prato de água fria. Enquanto isso, use um pilão para amassar o dente de alho com a pimenta do reino e mostarda até que forme uma pasta homogênea. Junte as anchovas, misture bem. Depois que a mistura de alho estiver bem amassada, triture o parmesão um pouco de cada vez até incorporar bem. Transfira a pasta para uma tigela grande e misture o suco de limão e o molho inglês. Em uma tigela separada, separe os gema de ovo (ainda deve estar líquida) da clara de ovo (que deve ter solidificado), descarte a clara e bata a gema. Misture a gema de ovo batida com o resto dos ingredientes que você já misturou no tigela grande.Finalmente, misture ½ xícara de azeite na mistura dos outros ingredientes, um pouco de cada vez, para incorporá-la totalmente em uma emulsão lisa. Esta etapa vai levar algum tempo e bastante esforço, você deve sentir o molho engrossar à medida que o azeite é incorporado. Se pretende usar todo o molho nesta hora, tampe a tigela e reserve. Caso contrário, despeje o molho em um recipiente que possa ser selado e coloque na geladeira. Pré-aqueça o forno a 180graus. Corte ou rasgue o pão em cubos de ½ "- 1" e reserve em uma tigela grande, você deve ter aprox. 3 xícaras de pão quando terminar. Em uma tigela pequena, misture as 3 colheres de sopa de azeite com sal e pimenta a gosto, alho e ervas. Misture o pão com o óleo, mexendo até que esteja bem revestido. Espalhe o pão revestido em uma única camada sobre uma assadeira forrada e leve ao forno, virando algumas vezes, por 10-15 minutos, até que a parte externa dos pedaços de pão estejam crocantes e dourado. Enquanto os croutons cozinham, rasgue a alface, lave e seque. Quando estiver pronto para servir a salada, misture a alface com o molho, misture os croutons e cubra com lascas de parmigiano reggiano. Sirva com pimenta do reino moída na hora e aproveite!