sábado, 31 de outubro de 2020

Fave dei Morti - biscoitos para o Dia de Todos os Santos

 

Cada vez que eu paro e penso sobre os períodos da Antiguidade, e quão longe eles podem nos levar no conhecimento para entender as culturas das sociedades e o desenvolvimento do homem, fico imaginando como deveria ser interessante experienciar os costumes de épocas e lugares distintos... E, sempre que chega outubro, as antigas tradições das velhas religiões, que incessantemente despertam a minha curiosidade, me colocam a investigar e descobrir coisas novas – que podem ser novidades para mim, mas que para eles (os antigos) eram comuns e, algumas tradições, ainda mais antigas que seu tempo. É o caso da preparação culinária de hoje, as “Fave dei Morti”, que passo a compartilhar com vocês.

Decidi não traduzir o nome desses biscoitos porque não tenho certeza de quantas pessoas gostariam de ler sobre biscoitos chamados “Favas dos Mortos”. E pelo fato de que eles parecem muito mais apetitosos apresentados na língua materna, “Fave dei Morti”.

Adicionar legenda

Esses biscoitinhos feitos de amêndoas eram (e continuam sendo) tradicionalmente feitos em muitas regiões Italianas no final de outubro para serem consumidos durante o período da história chamado Ognissanti, ou como se diz hoje “Il giorno di tutti i Santi” (Dia de Todos os Santos).

No calendário litúrgico da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa, é chamado oficialmente de Festum Omnium Sanctorum (Festa de Todos os Santos) ou Sollemnitas Omnium Sanctorum (Solenidade de Todos os Santos) e cai em 1° de novembro (seguido em 2 de novembro pela Comemoração dos mortos) e é uma festa de obrigação, ou seja, baseando-se no terceiro mandamento da Lei de Deus (guardar os domingos e festas de guarda), a Igreja Católica estipula que todos os católicos são obrigados a irem à missa em todos os domingos e festas de guarda. Por isso, está obrigatoriamente nos Cinco Mandamentos da Igreja Católica.


A maior parte das festas de guarda calham sempre num domingo (ex: Domingo de Ramos, Pentecostes, domingo de Páscoa, Santíssima Trindade, etc.), que já é o dia semanal obrigatório de preceito ou guarda. Então, as festas de guarda que podem não ser no domingo são apenas dez, como se lista a seguir:

• 1 de Janeiro – Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus;

• 6 de Janeiro – Epifania

• 19 de Março – Solenidade de São José

• Ascensão de Jesus – data variável: quinta-feira da sexta semana da Páscoa.

• Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi) – data variável entre maio e junho: 1ª quinta-feira após o domingo da Santíssima Trindade.

• 29 de Junho – Solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo.

• 15 de Agosto – Assunção de Maria

• 1 de Novembro – Dia de Todos-os-Santos

• 8 de Dezembro – Imaculada Conceição de Maria

• 25 de Dezembro – Natal

 Porém, nem todos os países e dioceses festejam e guardam estes dez dias de preceito, porque, com a prévia aprovação da Sé Apostólica, a Conferência Episcopal pode suprimir algumas das festas de preceito ou transferi-los para um domingo.

No Brasil muitas das datas são transferidas para o domingo, entretanto as datas listadas abaixo são de participação obrigatória, mesmo quando acontecem durante a semana.

• Santa Maria, Mãe de Deus – 1 de janeiro

• Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi) – data variável entre maio e junho: 1ª quinta-feira após o domingo da Santíssima Trindade.

• Imaculada Conceição de Maria – 8 de dezembro

• Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo – 25 de dezembro.

 


Adicionar legenda

Mas, antes das reformas de Pio XII de 1955, também tinha uma véspera e uma oitava - Oitava tem dois sentidos no uso litúrgico cristão. No primeiro, é o oitavo dia após uma festa, inclusivamente, de forma que o dia sempre caia no mesmo dia da semana que a festa original. A palavra é derivada do latim octava (oitavo), com "dies" subentendido. O termo é também aplicado para todo o período de oito dias, durante o qual as ditas festas passam a ser observadas também. São exemplos de oitavas a Páscoa, o Pentecostes e, no oriente, a Epifania.

As comemorações dos mártires, comuns a várias igrejas, começaram a ser celebradas no século IV. Os primeiros vestígios de uma celebração geral são atestados em Antioquia e referem-se ao domingo seguinte ao Pentecostes. Este costume também é mencionado na septuagésima quarta homilia de João Crisóstomo (407) e é preservado até hoje pelas Igrejas orientais. Santo Efrém, o Sírio (373) também fala desta festa, e a coloca em 13 de maio.

O aniversário da Igreja Ocidental poderia derivar da festa romana de Dedicatio Sanctae Mariae ad Martyres, ou o aniversário da transformação do Panteão em uma igreja dedicada à Virgem e todos os mártires, que ocorreu em 13 de maio de 609 ou 610 pelo Papa Bonifácio IV; a data de 13 de maio coincide com a mencionada por Sant'Efrem.

Posteriormente, o Papa Gregório III (731-741) escolheu o dia 1º de novembro como a data do aniversário da consagração de uma capela de São Pedro às relíquias "dos santos apóstolos e de todos os santos, mártires e confessores, e de todos os justos aperfeiçoados. que descansem em paz em todo o mundo”. Chegando na época de Carlos Magno, a festa em honra de todos os santos foi amplamente celebrada em novembro.

Em 1º de novembro, uma festa de preceito foi decretada pelo rei franco Luís, o Piedoso, em 835. O decreto foi emitido a pedido do Papa Gregório IV e com o consentimento de todos os bispos, e assim a festividade foi declarada uma festa universal. A festa ganhou uma oitava solene durante o pontificado do Papa Sisto IV, quando ele baniu a cruzada pela libertação de Otranto.

A solenidade de Todos os Santos substituiu a antiga festa romana dedicada a San Cesario di Terracina (santo tutelar dos imperadores romanos), marcada precisamente em 1º de novembro: neste dia uma procissão solene partiu da Basílica dos Santos Cosme e Damiao rumo ao Monte Palatino em homenagem a San Cesario e aos imperadores. O Papa Gregório IV teria decidido participar dela para erradicar esse culto idólatra; os imperiais instalados no Monte Palatino lembravam-no todos os anos, com a festa de São Cesário, o espetáculo de suas práticas semipagãs e semicristãs.

Mas antes de se tornar uma festa de obrigação, a festa de Todos os Santos já era celebrada na Inglaterra (país outrora habitado pelos celtas) em 1º de novembro, hipotetizou-se que essa data havia sido escolhida pela Igreja para criar uma continuidade cristã com o Samhain, o antigo festival celta do ano novo seguindo solicitações nesse sentido do mundo monástico irlandês – tradições essas que deram origem ao Dia das Bruxas da atualidade.


O Samhain continuou a ser uma festa popular entre os povos celtas durante todo o tempo da cristianização da Grã-Bretanha. A Igreja britânica tentou desviar esse interesse em costumes pagãos acrescentando uma comemoração cristã ao calendário, na mesma data do Samhain. É possível que a comemoração britânica medieval do Dia de Todos os Santos tenha sido o ponto de partida para a popularização dessa festividade em toda a Igreja cristã.

A crescente influência dos monges irlandeses em toda a Europa naquela época, que também eram influenciados pelos celtas, contribuiu ainda mais com a afirmação da data em novembro. Os irlandeses costumavam reservar o primeiro dia do mês para as festividades importantes e, visto que 1° de novembro era também o início do inverno para os celtas, seria uma data propícia para uma festa em homenagem a todos os santos.

De acordo com as crenças celtas, durante o festival Samhain, os mortos podiam retornar aos lugares que frequentavam enquanto estavam vivos, e que naquele dia celebrações alegres eram realizadas em sua homenagem.

Desse ponto de vista, as antigas tribos celtas eram uma só com seu passado e futuro. Esse aspecto da festa nunca teria sido completamente eliminado, nem mesmo com o advento do cristianismo, que de fato celebra os mortos em 2 de novembro.

Mas, como uma festa em homenagem a todos os santos havia sido celebrada por vários séculos (antes de ser uma festa de preceito), em datas discordantes em vários países: para a Igreja de Roma era o 13 de maio, na Irlanda (um país de cultura celta) era 20 de abril, enquanto 1 de novembro foi uma data generalizada na Inglaterra e Alemanha (países de cultura germânica).

Além disso, quem estuda um pouco sobre as velhas religiões sabe que o Samhain não era – nem é - ligado diretamente as coisas ruins, nem ao demônio; e que o Memorial aos mortos começou a ser celebrado apenas mais tarde, em 998.

Já o feriado do Dia de Finados, no qual as pessoas rezam a fim de ajudar as almas no purgatório a obter a bem-aventurança celestial, teve sua data fixada em 2 de novembro durante o século XI pelos monges de Cluny, na França. Embora se afirmasse que o Dia de Finados era um dia santo católico, é óbvio que, na mente do povo, ainda havia muita confusão. Durante toda a Idade Média era popular a crença de que, nesse dia, as almas no purgatório podiam aparecer em forma de fogo-fátuo, bruxa, sapo etc.

Incapaz de desarraigar as crenças pagãs do coração do seu rebanho, a Igreja simplesmente as escondeu por trás de uma máscara "cristã". A festividade cristã, o Dia de Todos os Santos, é uma homenagem aos santos conhecidos e desconhecidos da religião cristã, assim como o Samhain lembrava as deidades celtas e lhes pagava tributo... Todavia, mais que uma semelhança a festa de Todos os Santos celebra-se os santos conhecidos ou não que fizeram de sua vida uma oração, testemunho e fé na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

São, como revela o livro do Apocalipse, a multidão de pessoas de várias nações que alvejaram as suas vestes brancas no sangue do Cordeiro e diante do trono de Deus proclamam hinos e cânticos de louvor e agradecimento dizendo que a salvação procede do Cordeiro (Ap 7, 2-14).

Esta tradição de recordar (fazer memória) os santos está na origem da composição do calendário litúrgico, em que constavam, inicialmente, as datas de aniversário da morte dos cristãos martirizados como testemunho pela sua fé, realizando-se, nelas, orações, missas e vigílias, habitualmente no mesmo local ou nas imediações de onde foram mortos, como acontecia em redor do Coliseu de Roma. Posteriormente tornou-se habitual erigirem-se igrejas e basílicas dedicadas à sua memória nesses mesmos locais.

O desenvolvimento da celebração conjunta de vários mártires, no mesmo dia e lugar, deveu-se ao facto frequente do martírio de grupos inteiros de cristãos e também devido ao intercâmbio e partilha das festividades entre as dioceses/paróquias por onde tinham passado e se tornaram conhecidos.

A partir da perseguição de Diocleciano o número de mártires era tão grande que se tornou impossível designar um dia do ano separado para cada um. O primeiro registo (Século IV) de um dia comum para a celebração de todos eles aconteceu em Antioquia, no domingo seguinte ao de Pentecostes, tradição que se mantém nas igrejas orientais.

Com o avançar do tempo, mais homens e mulheres se sucederam como exemplos de santidade e foram com estas honras reconhecidos e divulgados por todo o mundo. Inicialmente apenas mártires (com a inclusão de são João Batista), depressa se deu grande relevo a cristãos considerados heroicos nas suas virtudes, apesar de não terem sido mortos.

O sentido do martírio que os cristãos respeitam alarga-se ao da entrega de toda a vida a Deus e, assim, a designação "todos os santos" visa a celebrar conjuntamente todos os cristãos que se encontram na glória de Deus, tenham ou não sido canonizados (processo regularizado, iniciado no Século V, para o apuramento da heroicidade de vida cristã de alguém aclamado pelo povo e através do qual se pode ser chamado universalmente de beato ou santo, e pelo qual se institui um dia e o tipo e lugar para as celebrações, normalmente com referência especial na missa).

 Mas como aparecem os biscoitinhos chamados Fave dei Morti nesse contexto, você deve estar se perguntando.

 


Fave dei Morti são biscoitos simples, redondos ou ovais, feitos com amêndoa e preparados por ocasião da festa de Todos os Santos em muitas partes da Itália. Muito antes do Halloween (como o conhecemos hoje), da moda das abóboras caricatas e do terror, os ancestrais italianos lidavam com os mortos, os da família, que eram percebidos como um passado com o qual manter laços era manter a memória viva.

Em todas as regiões italianas, a tradição da festa dos mortos incluía a preparação de doces, quase sempre secos, como a fanfalucchie de Lecce, o pan co 'santi Siena, os ossos dos mortos na Sicília (mas não só), o pan dei morti em Lombardia, o papassini da Sardenha ou o nougat que você come em Nápoles.

Muito provavelmente a origem da fave dei morti é da Úmbria ou, em qualquer caso, da Itália Central. Podem ser encontrados em fornos e confeitarias de Umbria, Abruzzo, Marche, Lazio mas também, com algumas variações na receita, em Trieste; enquanto em Veneza esses biscoitinhos são tradicionalmente com pinoles (também chamado pinoli, pinholes e até pinhão). Há quem diga que esses biscoitinhos já eram degustados pelos gregos durante os funerais, em tempos anteriores.




Mas, por que fava?

Não, não leva fava na receita. Tem muito mais a ver com os simbolismos da festa para a qual os biscoitos são preparados.


Na antiguidade, a fava no Mediterrâneo era a leguminosa ligada à vida após a morte e aos seus habitantes. Na Roma antiga, as favas simbolizavam as almas dos mortos, esta leguminosa era oferecida como um presente aos deuses do Hades, o reino do submundo da mitologia grego-romana, na qual um deus homônimo comandava o lugar com outras divindades (Hades, o deus supremo do Hades; Perséfone,a rainha do Hades; Tártaro, as profundezas do submundo; Nix, a personificação da noite profunda, primeira rainha só submundo tornou-se a escuridão do Hades; Érebo, a personificação das trevas, primeiro rei do Hades;  Hécate, a feiticeira, é a deusa das encruzilhadas, da bruxaria, da magia negra, dentre outras análogas; As Erínias ou Fúrias: Megera, Tsífone e Alecto, também chamadas de as punidoras, representam a vingança e o castigo do submundo; os deuses gêmeos Tânato, a personificação da morte, e Hipno é a personificação do sono; Tânato, deus da morte; Momo, deus da ironia e do sarcasmo; Oizus, deus da miséria; Nêmesis, deusa da vingança; Quer, deusa do destino do homem em seus momentos finais; Moros, deus do quinhão que cada homem receberá em vida; Morfeu - deus dos sonhos bons ou abstratos; Ícelo - deus dos pesadelos; Fântaso - criador dos objetos inanimados monstros, quimeras e devaneios que aparecem nos sonhos e ficam na memória; Fantasia - deusa do delírio e da fantasia – dentre outras personagens mitológicas que habitam o Hades).

O fato é que as crenças antigas indicam numerosos rituais e hábitos supersticiosos que envolviam desde mastigar favas secas, cozinhá-las para consumo ritualístico ou mesmo fazer uma doação de favas para o túmulo de um falecido.

O cristianismo e a tradição camponesa não esqueceram a ligação entre a fava e os mortos, e mesmo mais recentemente, por volta de 2 de novembro, podiam-se ver tigelas cheias de fava e outras leguminosas nas esquinas das ruas ou nos peitoris das janelas das casas em alguns lugares italianos onde as velhas crenças ainda resistem...

Hoje, as favas foram substituídas por esses deliciosos biscoitos que lembram um pouco os macarons, no sabor, e que até recentemente são vendidos nas barracas localizadas nas entradas de cemitérios italianos.

De uma região italiana para outra, a receita para fave dei morti pode variar. Certamente entre os ingredientes não podem faltar amêndoas (melhor ainda se não forem descascadas) e, hoje, o açúcar branco, na mesma quantidade. Em seguida, manteiga, ovos, farinha, canela e raspas de limão.

O procedimento tradicional exige que a amêndoa e o açúcar sejam triturados, à mão, num pilão, para se obter uma farinha muito fina que será depois integrada com os restantes ingredientes até se obter uma espécie massa. O que antes deveria ser feito com mel, fico imaginando... Em algumas versões, a massa inclui apenas claras de ovo; em outras ainda, uma mistura de amêndoas doces e amêndoas amargas – equilíbrio é fundamental!

Outra receita orienta que se deve usar amêndoas moídas sem pele depois trabalhadas com farinha, açúcar, manteiga e ovos e temperadas com um pouco de grappa e raspas de limão, conforme relatado na receita de Livio Jannattoni em "La Cucina Romana e del Lazio".

Outro motivo para ser uma fava a nomear do doce, é porque ela era considerada como um "feitiço protetor", símbolo dos mortos e de sua prosperidade.

A tradição de comer esta leguminosa durante a "Festa dos Mortos" de origens muito antigas e, algumas fontes, remontam a um costume do qual também deriva o nome "Calle della fava" em Veneza.

Já no século VII - VI. B.C. na região do Mediterrâneo, a fava estava ligada ao mundo dos mortos, pois a flor desta leguminosa geralmente é branca, mas manchada no centro com preto (símbolo da morte). Além disso, se as favas secas forem deixadas na água, elas a tingem de vermelho e, portanto, evocam o sangue.

Por ser as favas, também, um meio direto de comunicação entre o Hades, ou seja, o mundo dos mortos (imaginado no subsolo), e o dos vivos. Alguns estudiosos justificam, inclusive, a simbologia das cores da cor da flor das favas: branca manchada com preto. Ou preto, símbolo do mistério, está disposto na forma da letra grega "tau" (nosso T), a primeira letra do "Tanathos", que significa, precisamente, "morte" – e que personificava um deus da morte.


As favas eram consideradas capazes de transferir as almas dos mortos em seres vivos: por isso - por sua faculdade de constituir, ou seja, o elo entre os mortos e os vivos - eram presentes em cerimônias fúnebres na Grécia, Egito, Roma e até mesmo na Índia e, até no Peru.

Desta forma, essa "fava dos mortos" constituiu uma espécie de comunhão inconsciente entre os vivos e os mortos e quase uma troca material entre o mundo terreno e o reino dos mortos.

Por ser pensada como a morada da alma dos mortos, as favas eram respeitadas. Um caso peculiar nesse aspecto, o filósofo e matemático Pitágoras, uma vez perseguido pelos seus inimigos, era facilmente alcançado porque não se atrevia a avançar e esconder-se num campo de favas, precisamente para não "atropelar” as almas dos mortos.

Portanto, comer a “fava dos mortos” é uma espécie de comunhão gananciosa com os falecidos. Na tradição cristã, o dia dos mortos oficialmente colocado no dia 2 de novembro, junta-se ao dia 1º, festa de Todos os Santos, nesses dias os mortos poderiam retornar aos vivos, indo para seus parentes ainda vivos.  Desta maneira, comidas e doces passam a ser preparados para oferecer-lhes, bem como para ser consumidas diretamente pelos vivos.

Algumas regiões italianas dão destaque para suas comidas em homenagem aos mortos. Na Calábria, nas comunidades ítalo-albanesas, as pessoas praticamente caminhavam em procissão em direção aos cemitérios: depois de bênçãos e orações para entrar em contato com os mortos, eram preparados banquetes diretamente nos túmulos, convidando também os visitantes a participarem.

Na Emilia Romagna, no passado, os pobres iam de casa em casa para pedir "la carita' di murt", recebendo comida das pessoas a quem na porta batiam.

Em Friuli os camponeses deixam uma luz acesa, um balde de água e um pãozinho na mesa. Esta é a razão que inspira o citado poema de Pascoli "A Toalha de Mesa" onde a sensação da presença dos mortos na casa, no silêncio da noite, se traduz de forma extremamente comovente e sugestiva:

 

Entrano, ansimano muti:

ognuno è tanto mai stanco!

e si fermano seduti

la notte, intorno a quel bianco.

 

Stanno li sino a domani

col capo tra le mani,

senza che nulla si senta

 

Eles entram, ofegando silenciosamente:

todo mundo nunca está tão cansado!

e pare de sentar

a noite, em torno desse branco.

 

Eles ficam lá até amanhã

com a cabeça nas mãos,

sem nada ser ouvido.

Também em Friuli, como aliás nos vales dos Alpes Lombardos, acredita-se que os momortos vão em peregrinação a certos santuários, a certas igrejas distantes da cidade, e quem os encontrasse naquela noite os veria apinhados de uma multidão de pessoas que vive mais e vai desaparecer com o canto do galo ou com o nascer da "bela estrela".

Essas crenças são inspiradas por uma das histórias mais significativas de Caterina Percoto, a conhecida escritora friuliana, que desenhou muitos motivos do folclore de sua terra. Esta presença dos mortos, sentida com uma intensidade que atinge o poder de uma visão. Está, no entanto, sempre associada, na mentalidade popular, a uma ação benéfica e à esperança na bem-aventurança eterna.

Por outro lado, na Lombardia, temos oss de mord, ou oss de mort, à base de massa e amêndoas torradas, assadas no forno, de forma oblonga, com um vago sabor a canela em particular.


Em Bormio, na noite do dia 2 de novembro, costumava-se colocar uma abóbora cheia de vinho no peitoril da janela e, em algumas casas, o jantar é preparado. Mas também em Vigevanasco (Vigevano) e em Lomellina costuma-se colocar um balde na cozinha (água doce, uma cabaça cheia de vinho, e sob a lareira o fogo e as cadeiras em volta da lareira.

Em Comacchio existe o punghen cmàciàis, o Topino Comacchiese, um biscoito doce em forma de camundongo  ou de lagartixas preparado em casa.


No Piemonte, era costume que o jantar deixasse um lugar extra à mesa, reservado aos mortos que voltariam para visitá-la.

No Val d'Ossola parece haver uma peculiaridade neste sentido: depois do jantar, todas as famílias iam juntas para o cemitério, deixando as casas vazias para que os mortos lá pudessem ir se refrescar em paz. O retorno às casas era então anunciado pelo som dos sinos, para que os mortos pudessem se retirar sem desconforto.

Na Sicília, encontramos o mani, um pão em forma de anel, em forma de um único braço que une duas mãos, e o pão dos mortos, um pão antropomórfico que originalmente era para ser uma oferenda de alimento às almas de parentes mortos.

Em Palermo, uma tradição milenar, ligada à festa dos mortos, queria que os pais dessem doces e brinquedos às crianças, dizendo-lhes que tinham sido trazidos de presente pelas almas de parentes falecidos. Normalmente, para os meninos, era costume doar armas de brinquedo; para as meninas: bonecas, carrinhos, tábuas de passar roupa, fogões. Os mais ricos distribuíam triciclos e bicicletas em chamas. Pela manhã, o presente foi escondido em um local inusitado da casa, na noite entre 1 e 2 de novembro. Na noite anterior o ralador foi escondido porque se pensou que o falecido, quem se comportasse mal, iria coçar os pés!

A festa tem uma origem e um significado que estão ligados ao banquete fúnebre, que ainda é lembrado no "consulu siciliano", o almoço que os vizinhos ofereciam aos familiares após o sepultamento do falecido.

Entre esses doces, são famosos os de formato humano, La Pupa di zuccheru chamados de Pupaccena: uma estatueta oca de açúcar endurecido e pintada de cores claras com figuras tradicionais (paladinos, dançarinos e outros personagens do mundo infantil) ou biscoitos de amendoa  "oss di muortu" ou "u pupu cu l'ovu".


Assim, até chegar a tradição das abóboras gravadas em forma de caveira e com a vela dentro, houveram muitas outras tradições interessantes para celebrar os mortos e o Dia de Todos os Santos, que pouca gente conhece.

A frase "doce ou travessura" nos nossos dias correspondia a "gi a cicattlone", isto é, ir à esmola (de ovos, gordura, salsichas, frutos secos, figos, castanhas, taralucci, de qualquer cois). O consequente festival de consumo era denominado "ciccicocco". Tradição análoga à busca pelo carnaval. As crianças cantavam canções e convidaram as famílias visitadas a lhes oferecer algo.

Para além disso, existe uma lenda romântica veneziana que justifica a entrega desses biscoitinhos para os namorados, no dia de todos os santos. Ela diz assim:

Conta-se que o jovem Cândido, filho de um calafetador que trabalhava no Arsenal, embarcou como marinheiro em um navio mercante com destino a muitos portos do Oriente: depois de um ano de navegação finalmente voltou para casa.

O rapaz apaixonado por Lúcia, filha de camponeses do Continente, tinha partido com a intenção de ganhar o suficiente para se casar.

Na parada em Thessaloniki, onde se abasteceram de azeite e vinho, Cândido pediu licença para passear e assim comprar um presente para a namorada.

Lá ele ficou intrigado com a cor e o brilho de uns grãos (ele os viu pela primeira vez, não acostumado ao cultivo da terra), eram favas, mas ele confundindo-as com uma espécie de pedra preciosa ou pérolas, resolveu comprá-las e colocá-las em uma linda caixa de sândalo dourado para Lúcia.

Chegando depois da longa viagem, atracam no cais de San Marco e Cândido Sindustria para chegar ao país dos noivos.

Já era madrugada da festa de Todos os Santos quando ele chega na casa dos futuros sogros, até todos os vizinhos participaram de sua chegada e souberam de suas aventuras em terras distantes.

Ele começou a compartilhar os presentes que trouxera do fabuloso Oriente.

Chegou o grande momento, quando Cândido disse “e agora, como a distância só aumentou o meu carinho pela amada Lúcia, por ela comprei um certo número de pérolas de tamanho extraordinário e formato exótico que trouxe daqui de pátria de Homero. Ela poderá fazer um colar e enfeitar seu lindo pescoço; não encontrei em todos os portos que toquei uma mercadoria estranha e mais preciosa”.

Lúcia empolgada e com as mãos trêmulas abre a caixa e descobre que o conteúdo, com a viagem e o tempo, havia ficado flácido e fedorento!

A garota largou tudo chorando, pensando que era uma piada.

Cândido entendeu que se havia enganado por sua ignorância dos produtos agrícolas, bastava compensar, prometendo dar o quanto antes um presente mais agradável à pobre Lúcia, que de qualquer forma se consolava.

Ao cair da noite, embora fosse a véspera dos mortos, todos os que haviam testemunhado a má figura de Cândido e a decepção de Lúcia encontraram-se em sua casa na fileira. Na ocasião, após pedir perdão pela enésima vez à namorada e aos pais dela, Cândido entregou a preciosa caixa cuidadosamente limpa para a namorada; quando a abriu a encontrou-a cheia de doces biscoitos deliciosos, que o amante havia encomendado especialmente e queria que fossem feitos em forma de fava, em memória de sua desventura.

Desde então, a partir dessa época, os bons jovens costumavam dar às namoradas, na noite de Todos os Santos, a fava dos mortos, como sinal de amor e de desejo de longa vida.

Depois de tanta história, sugiro que você prepare esses biscoitinhos para a próxima celebração. E se desejar saber mais tradições como essa, abaixo deixo algumas indicações de leitura.

 

Ronald Hutton. The stations of the Sun, New York, Oxford University Press, 1996, pp. 363-364.

 

Saintyves Pierre. I santi successori degli dei: L'origine pagana del culto dei santi, Edizioni Arkeios, 2016

 

Paul Fieldhouse. Food, Feasts, and Faith: An Encyclopedia of Food Culture in World Religions, ABC-CLIO, 2017

 

Fave dei Morti Tradicional - por Livio Jannattoni em "Cozinha Romana e Lazio"

200 gr de amêndoas peladas

100 gr de farinha de trigo

100 gr de açúcar

1 ovo

Casca de meio limão

1/2 xícara de grappa

25 gr de manteiga

Preparo: Coloque as amêndoas descascadas na mixer ou no liquidificador e deixe funcionar até picar bem fino. Em uma mesa coloque a farinha, o açúcar e as amêndoas picadas, em seguida, acrescente a manteiga derretida, o ovo batido, a grappa e as raspas de limão. Misture bem todos os ingredientes até obter uma mistura homogênea. Forme pequenos cilindros que você irá cortar em pedaços de 1 a 3 cm (como se faz nhoques). Com os pedacinhos cortados modeles seus biscoitos. Depois de preparadas, alise levemente esses pedaços de massa até atingir a altura de cerca de 1 cm. Arrume-os em uma assadeira forrada com papel manteiga, colocando-os bem espaçados uns dos outros, e leve ao forno pré-aquecido a 180 C ° por cerca de 10-15 minutos ou até dourar. Depois de prontos, deixe os biscoitos esfriarem.

 

Fave dei Morti (coloridos)

150 g de farinha de trigo

250 g de amêndoas descascadas

50 g Pinhões

100 g de açúcar de confeiteiro

2 ovos

Raspas de limão de 1 limão

2 colheres de chá de cacau em pó

corante alimentar vermelho

Preparo: Aqueça o forno a 180 ° C. Use um processador de alimentos para misturar as amêndoas e os pinhões em uma "farinha". Bata os ovos até engrossar. Peneire a farinha e o açúcar de confeiteiro, junte aos ovos e misture bem. Divida a massa em três pedaços. Sove as raspas de limão em uma bola, o cacau em pó na segunda e o corante alimentício na terceira, até que estejam uniformemente coloridos. Enrole as bolas de massa em salsichas compridas. Forre uma assadeira com papel manteiga, quebre pedaços de massa um pouco menores do que o tamanho de uma noz, enrole-os em uma bola e, em seguida, alise-os levemente. Coloque-os no tabuleiro com pelo menos 5 cm / 2 de distância entre os biscoitos. Asse por 10-15 minutos até que estejam levemente dourados.

 

Ossa dei mort (Ossos de mortos)

200 gr. de farinha de trigo

200 gr. de açúcar

200 gr. de amêndoas trituradas com casca (ou sem casca se preferir)

2 claras de ovo.

Preparo: bata as claras em neve, junte o açúcar, as amêndoas não descascadas, a farinha. Misture bem e forme os biscoitos em um prato untado e enfarinhado. Asse em forno 180 graus por 12-15 minutos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário