domingo, 6 de fevereiro de 2022

Daiquiri: uma breve história do icônico coquetel cubano

 

Sei você tem vaga noção de coquetelaria ou gosta de umas bebericagens, você já ouviu falar do Daiquiri, um clássico coquetel cubano. Por outro lado, muito provavelmente, você tenha uma visão meio distorcida entre o que tem sido comercializado e uma receita original.

Se sua memória não for boa, usando o Google, você vai ver imagens de Daiquiris como uma bebida clara, de aspecto congelado, muitas vezes aromatizado com frutas decididamente não tropicais, como morangos.

Daí, você se depara livros de receitas de coquetéis cubanos vintage e antigos, como o Manual del Cantinero de 1915, de John B. Escalante (você poderá acessar AQUI), é ele vai te surpreender pois a receita traz sabores e licores inesperados - mas igualmente sem morangos.

Pra um livro que foi publicado logo após a época em que o daiquiri foi supostamente inventado, há que espere encontrar ingredientes como rum, suco de limão e açúcar. Afinal, isso é mais ou menos o que algumas pessoas hoje chamam de daiquiri tradicional ou clássico, basta ver as imagens no Google pra confirmar essa ideia. Em vez disso, a receita pede grenadine, o que não é tão incomum e, o mais interessante, pedia Curaçao.

Alguns tipos de Curaçau

Com isso já percebi as variações do daiquiri desde a primeira metade do século XX em livros de coquetéis cubanos. As receitas variavam tanto, porém os únicos ingredientes constantes eram justamente rum, suco de limão e açúcar. Entretanto, receitas de daiquiri com apenas esses ingredientes são minoria.

Por exemplo, o livreto de 1948 intitulado Ron Daiquiri Coctelera, impresso pela empresa Ron Daiquiri, tem quatro receitas diferentes de daiquiri. O primeiro pede rum, suco de limão e açúcar (ainda não é xarope simples) ou grenadine como adoçante.

As três outras receitas pedem ingredientes como Curaçao, suco de laranja, suco de toranja e Maraschino, além de rum, suco de limão e açúcar(1). Este livreto está em inglês e ainda diferencia entre limão e lima. Outros livros não.

Três das receitas pedem que as misturas sejam agitadas com gelo e coadas. O outro, o daiquiri “Florida Style”, em homenagem ao bar La Florida, manda bater em uma coqueteleira elétrica com gelo picado.

Muitas das mesmas variações estão presentes em um livro anterior de 1939 e outro publicado pelo bar La Florida em 1934. Esses livros incluem várias receitas de daiquiri, duas das quais pedem a mistura em um shaker elétrico, ou “eletricamente”, com gelo finamente raspado ou picado.(2).

Ambos são chamados de “estilo Flórida”, o que significa que esse estilo de daiquiri misturado ou batido com gelo picado era o estilo particular do bar La Florida.

Parece então que, do início a meados da década de 1930, o daiquiri havia assumido sua forma congelada pelo menos parte do tempo. Mas apenas algumas vezes; parece ainda ter sido principalmente um coquetel agitado e coado até a década de 1950, pelo menos.

O Manual de Cocteleria de 1959 tem duas receitas de daiquiri. Uma delas é o Banana Daiquiri, que pede suco de limão, rum e banana (sem açúcar!). O outro pede rum, açúcar, suco de limão e Maraschino (3).

Todos esses ingredientes provavelmente foram adicionados e experimentados com o passar do tempo, com o daiquiri original, que é o primeiro já feito, sendo apenas rum, açúcar e suco de limão.

Uma história em outro livro de 1948, contada por alguém que afirma ter estado presente quando foi inventada, diz que a bebida nasceu por necessidade e escassez. (4)

A história conta que um mineiro chamado Cox na parte oriental de Cuba, em El Cobre mais especificamente, foi convidado a fazer uma bebida para um visitante (o homem que conta a história). Mas o refeitório não tinha vermute. Tudo o que eles tinham era rum, açúcar e suco de limão. Então Cox juntou esses ingredientes, sacudiu com gelo até ficar bem frio, coou e serviu ao convidado. E assim nasceu o Daiquiri (4).

Histórias de origem são sempre difíceis de provar, mas essa é mais ou menos a origem geralmente aceita da icônica bebida cubana. As variações que surgiram ao longo dos anos são exemplos de como as receitas muitas vezes ganham vida própria. Eles evoluem. É por isso que é tão difícil dizer quando ou se algo é ou não “autêntico” ou “tradicional”. Na verdade, eu diria que muito pouco do que consideramos autêntico no reino da comida e bebida realmente é.

O daiquiri, como várias outras bebidas do Caribe, foi alterado. Foi diluído e alterado quase irreconhecível para atender a um público diferente. Mas vale a pena notar que em nenhum momento de sua existência, exceto talvez naquela primeira vez nas minas de El Cobre, houve um acordo sobre uma única receita que é a receita do daiquiri.

A receita abaixo foi publicada em 1915, e retirada de El Manual del Cantinero.5

Daiquiri Cocktail

Ingredientes

suco de um limão

1 colher de sopa de açúcar 

1 colher de sopa de xarope de granadina

1 colher de sopa de Curaçao

50 ml rum light (Bacardí)

Preparo: Coloque vários cubos de gelo em uma coqueteleira. Adicione todos os ingredientes e agite até ficar bem gelado. Coe em uma taça de coquetel ou champanhe e sirva.

Há muito o que explicar nesta receita, da história de Curaçao à história de Grenadine, ao Rum Bacardi e às limas vs. limões!

Mas a granadina de fora por enquanto, mas quero falar brevemente sobre os outros.

Bacardí, embora não seja mais fabricado em Cuba desde logo após a revolução de 1959, ainda é fabricado e disponível.

O Curaçao é um pouco complicado. O Curaçao que muitos conhecem é podem ter em casa é aquele do tipo azul, que é mais ou menos o mais disponível, e mais comercial. Porém, em seu estado natural, Curaçao é claro; a cor é adicionada para a estética. O azul combinado com o grenadine, dá a essa mistura em particular um lindo tom roxo-avermelhado, não tenho certeza de quando o Curaçao ficou azul.

Pelo que pude encontrar, provavelmente não aconteceu até que esta receita fosse publicada. Mas como a cor não dá sabor, imagino que não importaria se não estivesse claro.

E, finalmente, uma nota sobre limas. Quando os cubanos, e de fato a maioria dos latino-americanos, dizem “limón”, que é limão em inglês, eles se referem ao cítrico verde que os americanos chamam de limes (limão Taiti). O limão americano, o amarelo (siciliano), mais escasso na América Latina e raramente solicitado nas receitas.

Há uma história complicada por trás disso. É centrado em quais tipos de cítricos cresceram melhor do que outros nas Américas. No final, foi o tipo verde que assumiu. Então, quando uma pessoa latino-americana diz limón, ela quer dizer o tipo verde (limão taiti). Isso causa todo tipo de confusão quando dizemos que limão significa limão americano(siciliano).

Referência

1. Ron Daiquiri Coctelera: Cocktail Book, Compañia Ron Daiquiri S.A., Habana, Cuba, 1948, 6.

2. Cuna Del Daiquiri Cocktail: La Habana, Cuba (La Habana: Talleres de Artes Graficas, 1939), 25-26. Bar La Florida Cocktails, Habana, Cuba, 1934.

3. Manual de Cocteleria (La Habana: Editorial Excelsior, 1959), recipes 8 and 35.

4. Hilario Alonzo Sanchez, El Arte del Cantinero: Los Vinos y Licores (La Habana: Imprenta Fernandez y Cia, 1948), 264-275.

5. John B. Escalante, Manual del Cantinero (Habana: Imprenta Moderna, 1915), 13. 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

La Chandeleur e a Festa dos crepes na França

 

Hoje é 02 de fevereiro, e aqui no Brasil a data comemora no candomblé o Dia de Iemanjá (Salve Odoyá); enquanto os católicos celebram o Dia de Nossa Senhora da Candelária, a Senhora dos Navegantes; festividades que também envolvem comidas de celebração como o mugunzá branco (canjica branca) adoçado com mel (para Iemanjá) e o pirão de peixe (para a Candelária). Mas você sabia que, na França essa data é chamada de "Fête de la Chandeleur" (Festa da Candeláriia, em francês), uma celebração que relembra a Apresentação de Jesus no Templo? Pois é, mas que na França é também um dia em que se faz festa para comer crepes e galettes (esse é o nome que se dá para os crepes salgados) por todo o país. Agora, você deve estar se perguntado o que tem a ver a religião com os crepes?

Antes que apareça alguém reclamando por eu estar usando “O Crepe’ ao invés de “A Crepe”, eu devo salientar que essa confusão ocorre pelo fato da palavra crepe vem do francês, onde o termo é substantivo feminino. Contudo, no português, o substantivo é masculino. Logo, a maneira correra aqui no Brasil é “O Crepe” – por isso está assim. Dito isso, volto ao que interessa.


Nossa Senhora da Candelária
Iemanjá

A Apresentação de Jesus no Templo é um dia religioso comemorado em vários países. Então, a Festa da Candelária na França, onde também é chamada de Fête des Chandelles (Festa das Velas), embora hoje ela esteja ligada à religião católica, tem origens nas antigas religiões a muitos séculos.

Os Celtas, que também viveram em várias partes da França, tinham uma tradição de fazer uma procissão cheia de tochas para celebrar Brigit, deusa da fecundidade, que abençoava as sementes que seriam plantadas em breve. Os romanos retomaram esse costume e organizavam as Lupercales, que eram procissões com tochas em honra a Lupercus ou Pan, deus da fecundidade. Era uma forma de comemorar o final do inverno e a chegada de dias mais clementes e fecundos para a agricultura.


Lupercalia

Outra interpretação para a origem de La Chandeleur é que a festa seria dedicada à deusa Ceres (Deméter na Mitologia Grega), que representava a colheita e não fertilizava a terra durante três meses, ou seja, no inverno. Uma procissão com tochas era realizada, lembrando a procura da deusa por sua filha, Proserpina (ou Perséfone para os gregos), raptada por Plutão (Hades), o deus dos infernos. A luz das tochas na procissão simbolizava a vitória sobre as sombras da morte. Nos dois casos de origem pagã, a festa era realizada em torno de 15 de fevereiro.

Deusa Deméter

Foi em 472 que o papa Gelásio I decide “cristianizar” a comemoração, tornando-a símbolo da Apresentação de Jesus no Templo. Segundo a tradição hebraica, os bebês primogênitos do sexo masculino deveriam ser levados ao templo, quarenta dias após o nascimento, para serem apresentados a Deus. Quarenta dias após o Natal (nascimento de Jesus) cai em 2 de fevereiro.

De acordo com a Bíblia, um velho homem, Simeão, e a profetisa Ana reconheceram o menino como Deus, a luz de Israel. Por isso, Gelásio associa a antiga festa pagã das velas com a comemoração cristã. Nesse dia, é celebrada também a Purificação da Virgem Maria, outra tradição hebraica que diz que as mulheres deveriam ser purificadas 40 dias após o parto.

Mas, onde os crepes entram nessa história? Ocorre que, o papa Gelásio I apropriou-se a antiga festa pagã dos romanos. Então, no dia 2 de fevereiro, começaram a ser organizadas em Roma procissões, só que em vez de tochas eram velas bentas. No século VII, Festa do Candelarum se tornou tão popular, que antes mesmo da Aurora já havia fiéis chegando à cidade. Aí, para matar a fome dessa multidão, começaram a distribuir os crepes de trigo ‘candial’ (muito branco).

Essa tradição dos crepes com a Chandeleur (Apresentação de Jesus no Templo) continua na França. Na Idade Média, os camponeses iam à Missa pela manhã já com a velas para serem benzidas. Aí eles voltavam para casa, com a vela acesa, e percorriam todos os cômodos da residência, para levar luz e prosperidade ao lar. Durante essa procissão doméstica, a vela deveria ficar acesa. Se ela apagasse, era sinal de azar. Depois, ela era guardada em uma gaveta e só era retirada dali em situações dramáticas, como no caso da morte de alguém da família.


No mesmo dia, à noite, os crepes eram degustados. Pela sua forma redonda, a cor dourada e o fato de ser quente, o crepe lembrava o sol. O que combinava também com a festa religiosa, pois, para os cristãos, Cristo é a luz do Mundo. A tradição mandava que os crepes deveriam ser feitos com o trigo excedente do ano anterior, para trazer prosperidade na colheita do ano que começava. Também era uma forma de aproveitar o que sobrava do cereal.

E não para por aí! Os primeiros crepes deveriam ser feitos no fogo e jogados para o alto várias vezes com a mão direita, enquanto a mão esquerda deveria segurar uma moeda. Isso tudo para atrair a prosperidade. Depois, a moeda era enrolada no crepe, levada em procissão até o quarto para ser jogada em cima do armário, onde deveria ficar até o ano seguinte. Deixar a moeda cair, era azar para o ano todo.

Há historiadores que estabelecem a origem do crepe em 7000 a.C. Naquela época, era uma panqueca bem grossa, feita com uma pasta misturando água e vários cereais triturados. Uma pedra chata, muito quente, permitia o cozimento.

Na Bretanha, região francesa, foi no século XIII que surgiu o crepe. O trigo sarraceno, trazido de volta à França após as cruzadas na Ásia, possibilitou fazer essa fina camada de massa, de forma redonda. Este é o início da tradicional galette bretã! Pois, lá, os crepes salgados são sempre preparados com farinha de trigo sarraceno, também chamada de “farine de blé noir’, a vantagem desta farinha é que não contém glúten.

A galette de trigo mourisco deve ser distinguida do crepe doce, para a qual são utilizados farinha de trigo, leite, ovos e manteiga. Mas em ambos os casos, a preparação ganha em gula com as suas guarnições de recheio – que podem ser os mais variados possíveis.

Graças ao seu percurso histórico, o crepe tem alma viajante e hoje pode ser encontrado em todo o mundo, com pequenas variações: desde a famosa panqueca americana, que é menor e mais grossa; o bonitinho blini do Leste Europeu, ou ainda na tortilla mexicana, preparada com farinha de milho. O crepe francês ainda é primo da piadine italiana ou do baghrir norte-africano, e até da bruaca cearense do nordeste brasileiro. Todos, umas delícias de se perder o rumo.

Hoje não é preciso fazermos tantos rituais. Mas, sem dúvida, crepes e galettes, são excelentes opções para se deliciar.

 

Crepes (Massa Tradicional)

Para a Galette (massa salgada de crepe):

1 xícara de leite

5 colheres (sopa) de manteiga derretida

1 ovo

1 xícara de farinha de trigo

uma pitada de sal

Para a massa doce de crepe:

Adicione 1 colher (sopa) de açúcar.

Preparo: Numa tigela grande, misture o leite, a manteiga e o ovo, batendo com um fouet ou garfo. Vá colocando a farinha de trigo pouco a pouco, misturando bem. Adicione a pitada de sal e/ou, para a versão doce, o açúcar. Misture. Leve à geladeira por uma hora para a massa “descansar”. Para fritar os crepes, esquente bem uma frigideira e coloque uma colher de manteiga. Disponha uma concha da massa e espalhe bem por toda a frigideira. Quando estiver cozido o lado de baixo, vire e deixe cozinhar do outro lado. Retire, reserve num prato e recheie/sirva como quiser! Rende de 6 crepes.