segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Doçaria funerária sueca: a tradição dos doces de luto.

 

Outro dia, eu estava lendo sobre umas histórias ocorridas em tempos longínquos no crescente fértil – considerada como o berço da civilização sendo, portanto, importante região localizada entre os rios Tigre, Eufrates, Jordão e Nilo, que se configura em um formato que se assemelha ao de uma lua crescente –, nas quais se falavam sobre o hábito das famílias de algumas tribos “comer os mortos”: eram separados órgão importantes (coração, cérebro, olhos) do restante do corpo que era assado em pedras e que, depois de pronto, deveria ser comido pelo parentes até o fim. Outras culturas, outros tempos...

Se aprende muito estudando os antigos... mas, essa ideia de endocanibalismo, ou seja, a prática do canibalismo no próprio local ou comunidade, ou mesmo o consumo de “relíquias” em um contexto mortuário pode ser observada em outras culturas. Algumas culturas indígenas sul-americanas, como o povo Mayoruna, por exemplo, praticavam o endocanibalismo no passado. Os índios Amahuaca, do Peru, retiraram partículas de osso das cinzas de uma fogueira de cremação, moíam-nas com milho e bebiam como uma espécie de mingau.

Para o povo Wari 'no oeste do Brasil, o endocanibalismo era um ato de compaixão onde os restos torrados de outros Wari' que deveriam ser consumidos em um ambiente mortuário; idealmente, os afins consumiriam o cadáver inteiro e rejeitar a prática seria ofensivo para os membros diretos da família.

Os Ya̧nomamis consumiam os ossos triturados e as cinzas de parentes cremados em um ato de luto; isso ainda é classificado como endocanibalismo, embora, estritamente falando, não se coma "carne". Em geral, não se acreditava que tais práticas fossem motivadas pela necessidade de proteína ou outro alimento. Tratavam-se mais de rituais cheios de simbolismos e crenças.

Pensar os mortos como comida me parece indigesto. Mas, enquanto pesquisador, me aparece cada coisa surpreendente... e tento me dedicar ao entendimento do que pode ser alimento, em todas as suas possibilidades. Partindo disso, resolvi lançar olhar para as comidas funerais e acabei me deparando com uma tradição surpreendente: os doces funerais, ou de luto, suecos.

Franja longa e papel branco muitas vezes representavam a morte de uma criança, enquanto papel preto e franja curta eram usados para adultos.

Foto de KAROLINA KRISTENSSON / NORDISKA MUSEET

Em meados do século XIX, na Suécia, doces duros feitos de açúcar, normalmente com formatos sugestivos e sombrios eram apresentados embrulhados em papel crepom preto com franjas e oferecidos aos participantes de um funeral, com vinho antes do serviço;

As embalagens dos doces tinham franjas e o comprimento e a largura delas sugeriam a idade do falecido: comprido e magro indicaria a morte de uma pessoa idosa; franjas mais curtas e mais largas indicariam uma criança ou indivíduo mais jovem.




Os invólucros às vezes eram adornados com papéis de prata com padrões ornamentais, imagens de querubins ou a escolha mais sombria de um crucifixo em silhueta de caixão ou cenário ao lado do túmulo, por exemplo.

Versos, orações e poemas anexados aos doces também eram comuns e traziam frases como: “o abismo escuro e silencioso; Todos os nossos dias vão acabar assim”. Ou, se o velório tivesse uma motivação mais moralista: “A morte um dia nos acorrentará. Ore, arrependa-se, aja e melhore. Considere, humano, o que você faz. Você nunca sabe quando a vida acaba.”

Foi percebendo o potencial dessa doçaria funeral que a sensibilidade duma pesquisadora do Museu Nordiska de Estocolmo foi responsável por me fazer descobrir essa tradição que vem se perdendo.

Aqui no Brasil, é bem comum recebermos como lembrança de um velório ou de uma missa de sétimo dia, um ‘santinho’ do morto: um cartãozinho de papel com a imagem do falecido acompanhado de poemas reflexivos ou frases bíblicas, que depois esquecemos entre as gavetas ou dentro de livros.

Mas, os suecos faziam diferente: presenteavam com doces caprichadamente decorados como essas pequenas pombas esculpidas em açúcar, empoleiradas entre rendas pretas e flores de tecido, todas fixadas em pedaços de papel preto que eram foram entregues aos que compareceram ao funeral de Adolf Emanuel Kjellén, no outono de 1884 – um dentre os muitos exemplos pertencentes a coleção de doces funerais suecos do Museu Nordiska de Estocolmo.

A confecção elaborada de funeral de Adolf Emanuel Kjellén. ULF BERGER / NORDISKA MUSEU

Esse tipo de doce fazia parte de uma tendência mais ampla do século XIX entre a classe alta sueca, em que as famílias distribuíam doces decorados com ornamentos em eventos importantes.

Além dos doces funerários, havia confeitaria intrincada para casamento, batismo e aniversário. Para essas ocasiões mais felizes, os invólucros apresentavam cores e imagens brilhantes, como bebês, coroas ou fitas rosa.

O design de confeitos funerários costumava ser totalmente macabro. Embora realmente houvesse uma guloseima dentro das embalagens, elas pouco ajudaram a amenizar a triste ocasião, com embalagens contendo litografias de crânios, túmulos e esqueletos.

A curadora do Museu Nordiska, Ulrika Torell, é autora de obra “Açucar e coisas doces: um estudo histórico-cultural do consumo de açúcar na Suécia, deixa claro na obra que mesmo os suecos lidando com a morte e uma grande perda, visualmente as expressões dos doces eram sombrias e mórbidas, que eles não estavam fazendo algo mais suave do que realmente era.

Outro exemplo é o doce que marcou a passagem da Sra. Svedeli, em 1844: o invólucro representa uma figura esquelética cortando os fios do tempo com uma tesoura. Se a mensagem não foi clara o suficiente, ela também apresenta uma foice apoiada sob uma ampulheta.

Este rótulo de bala não se detém, com sua imagem de uma caveira e uma ampulheta. THOMAS ADOLFSSON / NORDISKA MUSEET

Mesmo os doces funerários das crianças não se intimidavam com a extrema finalidade da morte.

De acordo com a inscrição em um papel de bala, Ernst Axel Jacob von Post foi “batizado em apuros” pouco depois de nascer, em 3 de maio de 1871, e morreu no dia seguinte. Os participantes de seu memorial receberam doces embrulhados em papel branco - uma cor comum que denota a morte de uma criança - com um rótulo preto brilhante que trazia uma lápide, uma caveira e ossos cruzados.

“Pense na morte, a hora bate!” lê-se neste doce. KAROLINA KRISTENSSON / NORDISKA MUSEET

O simbolismo dos confeitos lindamente desenhados era muito mais importante do que os doces incluídos dentro. Como o açúcar era uma mercadoria valiosa, os doces eram objetos preciosos para serem guardados como tesouro, não comidos.

Normalmente, os próprios doces eram uma mistura de açúcar e tragacanto - um adesivo semelhante a uma goma que unia os doces. De acordo com os estudos de Torell, alguns confeiteiros chegavam a usar giz ou outro material barato nas balas para reduzir custos, achando que ninguém iria comê-los.

Muitas vezes, os doces eram duros como pedra. Há histórias de crianças que cometeram um erro terrível e tentaram comer esses doces. Comer doces fúnebres não era apenas desaconselhável, mas também frequentemente considerado desrespeitoso.

Algumas embalagens incluíam estatuetas de cera, como esta mão segurando uma flor de tecido. ULF BERGER / NORDISKA MUSEET

No final do século XIX, a doçaria funerária se espalhou por toda a Suécia, desde a burguesia nas cidades até os camponeses, na zona rural. Quando o açúcar de beterraba se tornou cada vez mais disponível e barato no final dos anos 1800, a mercadoria outrora opulenta tornou-se mais acessível.

Com o crescimento dos negócios, toda uma indústria surgiu em torno da confeitaria ritual. Muitos confeiteiros suecos faziam visitas anuais a gráficas na Alemanha e na França para estocar suprimentos para suas embalagens. As imagens pré-impressas também permitiam que as classes mais baixas fizessem seus próprios doces e comprassem rótulos de seus confeiteiros locais.

Esses rótulos importados levaram a uma mudança distinta na imagem do doce. Virando-se mais religioso, assim as obras de arte viram seus crânios, caixões e túmulos substituídos por anjos, Jesus Cristo e pela Virgem Maria. As imagens tornaram-se expressões mais anestesiadas e padronizadas para o luto. Você podia ver a modernização do luto com essas imagens produzidas em massa.

Papel de seda preto com franja e um santo segurando uma cruz no centro.





À medida que o açúcar se tornou comum, ele perdeu seu significado ritual. Você não precisava mais esperar por uma ocasião especial para trazer doces.

A confeitaria funerária sueca, como prática, começou a desaparecer nas décadas de 1920 e 1930, desaparecendo quase que completamente na década de 1960. Com a Primeira Guerra Mundial e o racionamento de açúcar imposto provaram ser a sentença de morte para essa tradição fúnebre. Entretanto, existem algumas referências a pessoas que agora usam os doces sobreviventes como enfeites em árvores de Natal - acho q doces combinam mais com decoração de Natal do que com funerais (risos).

O fato, é que essa tradição desapareceu. O único lugar onde você provavelmente encontrará esses doces, com seu papel amassado e crânios desbotados, seria dentro de um museu ou no sótão de um sueco idoso. Mas eles destacam um período único na história da Suécia, quando o açúcar tinha um imenso poder simbólico. Então, um pouco doce com papel preto, brilhando com uma cruz e uma Madonna, era realmente algo especial.

Fiquei comovido com a história e fui atrás de descobrir algum doce sueco que pudesse aprender para quem sabe, no próximo dia dos Mortos, sair oferecendo como lembrança. E como quem procura acha, descobri um doce, um caramelo sueco chamado Smörkola, que poderia perfeitamente ser a guloseima oferecida – diferente daquelas que não se deveria comer.

Assim, deixo abaixo a receita do “smörkola” (ou apenas “kola”). Lembrando que o tempo da receita não inclui o tempo que leva para esfriar, cortar e embrulhar.

 

SMÖRKOLA

Um deleite típico de férias na Suécia é chamado de “smörkola” (ou apenas “kola”). Explicar em inglês resultaria em algo assim: doce de caramelo pegajoso em borracha. Também semelhante a caramelo fudge, daqueles macios. Caso você não tenha xarope de glicose, pode substituí-lo por mel Karo.

Nota: o tempo da receita não inclui o tempo que leva para esfriar, cortar e embrulhar. Se você quiser experimentar, há muitas oportunidades para dar sabor a esta receita, aqui estão alguns ingredientes que você pode tentar adicionar: canela, gengibre, cardamomo, açafrão, limão, café, chocolate.

Ingredientes

100 g de manteiga

300 g de açúcar 300 ml

200 ml de creme

50 ml de xarope dourado ou xarope de milho

50 ml de xarope de glicose

1 colher de sopa de açúcar baunilha

Preparo: Derreta a manteiga em uma panela. Adicione os ingredientes restantes. Deixe ferver enquanto agita, em seguida, verifique com um termômetro até atingir 125 ° C (250 ° F). Coloque o papel manteiga em uma assadeira com dimensões de 20cm * 30cm (~ 8 * 12 polegadas). Despeje o líquido na panela e deixe esfriar; Corte no tamanho e forma desejados; embrulhe cada pedaço em papel vegetal.

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