Outro
dia, eu estava lendo sobre umas histórias ocorridas em tempos longínquos no
crescente fértil – considerada como o berço da civilização sendo, portanto,
importante região localizada entre os rios Tigre, Eufrates, Jordão e Nilo, que
se configura em um formato que se assemelha ao de uma lua crescente –, nas
quais se falavam sobre o hábito das famílias de algumas tribos “comer os
mortos”: eram separados órgão importantes (coração, cérebro, olhos) do restante
do corpo que era assado em pedras e que, depois de pronto, deveria ser comido
pelo parentes até o fim. Outras culturas, outros tempos...
Se
aprende muito estudando os antigos... mas, essa ideia de endocanibalismo, ou
seja, a prática do canibalismo no próprio local ou comunidade, ou mesmo o
consumo de “relíquias” em um contexto mortuário pode ser observada em outras
culturas. Algumas culturas indígenas sul-americanas, como o povo Mayoruna, por
exemplo, praticavam o endocanibalismo no passado. Os índios Amahuaca, do Peru,
retiraram partículas de osso das cinzas de uma fogueira de cremação, moíam-nas
com milho e bebiam como uma espécie de mingau.
Para
o povo Wari 'no oeste do Brasil, o endocanibalismo era um ato de compaixão onde
os restos torrados de outros Wari' que deveriam ser consumidos em um ambiente
mortuário; idealmente, os afins consumiriam o cadáver inteiro e rejeitar a
prática seria ofensivo para os membros diretos da família.
Os
Ya̧nomamis consumiam os ossos triturados e as cinzas de parentes cremados em um
ato de luto; isso ainda é classificado como endocanibalismo, embora,
estritamente falando, não se coma "carne". Em geral, não se
acreditava que tais práticas fossem motivadas pela necessidade de proteína ou
outro alimento. Tratavam-se mais de rituais cheios de simbolismos e crenças.
Pensar
os mortos como comida me parece indigesto. Mas, enquanto pesquisador, me
aparece cada coisa surpreendente... e tento me dedicar ao entendimento do que
pode ser alimento, em todas as suas possibilidades. Partindo disso, resolvi
lançar olhar para as comidas funerais e acabei me deparando com uma tradição
surpreendente: os doces funerais, ou de luto, suecos.
Franja longa e papel branco muitas vezes representavam a morte de uma criança, enquanto papel preto e franja curta eram usados para adultos.
Foto de KAROLINA KRISTENSSON / NORDISKA MUSEET
Em
meados do século XIX, na Suécia, doces duros feitos de açúcar, normalmente com
formatos sugestivos e sombrios eram apresentados embrulhados em papel crepom
preto com franjas e oferecidos aos participantes de um funeral, com vinho antes
do serviço;
As
embalagens dos doces tinham franjas e o comprimento e a largura delas sugeriam
a idade do falecido: comprido e magro indicaria a morte de uma pessoa idosa;
franjas mais curtas e mais largas indicariam uma criança ou indivíduo mais
jovem.
Os
invólucros às vezes eram adornados com papéis de prata com padrões ornamentais,
imagens de querubins ou a escolha mais sombria de um crucifixo em silhueta de
caixão ou cenário ao lado do túmulo, por exemplo.
Versos,
orações e poemas anexados aos doces também eram comuns e traziam frases como:
“o abismo escuro e silencioso; Todos os nossos dias vão acabar assim”. Ou, se o
velório tivesse uma motivação mais moralista: “A morte um dia nos acorrentará.
Ore, arrependa-se, aja e melhore. Considere, humano, o que você faz. Você nunca
sabe quando a vida acaba.”
Foi percebendo o potencial dessa doçaria funeral que a sensibilidade duma pesquisadora do Museu Nordiska de Estocolmo foi responsável por me fazer descobrir essa tradição que vem se perdendo.
Aqui
no Brasil, é bem comum recebermos como lembrança de um velório ou de uma missa
de sétimo dia, um ‘santinho’ do morto: um cartãozinho de papel com a imagem do
falecido acompanhado de poemas reflexivos ou frases bíblicas, que depois
esquecemos entre as gavetas ou dentro de livros.
Mas,
os suecos faziam diferente: presenteavam com doces caprichadamente decorados
como essas pequenas pombas esculpidas em açúcar, empoleiradas entre rendas
pretas e flores de tecido, todas fixadas em pedaços de papel preto que eram
foram entregues aos que compareceram ao funeral de Adolf Emanuel Kjellén, no
outono de 1884 – um dentre os muitos exemplos pertencentes a coleção de doces
funerais suecos do Museu Nordiska de Estocolmo.
A confecção elaborada de funeral de Adolf Emanuel Kjellén. ULF BERGER / NORDISKA MUSEU
Esse tipo de doce fazia parte de uma tendência mais ampla do século XIX entre a classe alta sueca, em que as famílias distribuíam doces decorados com ornamentos em eventos importantes.
Além
dos doces funerários, havia confeitaria intrincada para casamento, batismo e
aniversário. Para essas ocasiões mais felizes, os invólucros apresentavam cores
e imagens brilhantes, como bebês, coroas ou fitas rosa.
O
design de confeitos funerários costumava ser totalmente macabro. Embora realmente
houvesse uma guloseima dentro das embalagens, elas pouco ajudaram a amenizar a
triste ocasião, com embalagens contendo litografias de crânios, túmulos e
esqueletos.
A
curadora do Museu Nordiska, Ulrika Torell, é autora de obra “Açucar e coisas
doces: um estudo histórico-cultural do consumo de açúcar na Suécia, deixa claro
na obra que mesmo os suecos lidando com a morte e uma grande perda, visualmente
as expressões dos doces eram sombrias e mórbidas, que eles não estavam fazendo
algo mais suave do que realmente era.
Outro
exemplo é o doce que marcou a passagem da Sra. Svedeli, em 1844: o invólucro
representa uma figura esquelética cortando os fios do tempo com uma tesoura. Se
a mensagem não foi clara o suficiente, ela também apresenta uma foice apoiada
sob uma ampulheta.
Mesmo
os doces funerários das crianças não se intimidavam com a extrema finalidade da
morte.
De
acordo com a inscrição em um papel de bala, Ernst Axel Jacob von Post foi
“batizado em apuros” pouco depois de nascer, em 3 de maio de 1871, e morreu no
dia seguinte. Os participantes de seu memorial receberam doces embrulhados em
papel branco - uma cor comum que denota a morte de uma criança - com um rótulo
preto brilhante que trazia uma lápide, uma caveira e ossos cruzados.
O
simbolismo dos confeitos lindamente desenhados era muito mais importante do que
os doces incluídos dentro. Como o açúcar era uma mercadoria valiosa, os doces
eram objetos preciosos para serem guardados como tesouro, não comidos.
Normalmente,
os próprios doces eram uma mistura de açúcar e tragacanto - um adesivo
semelhante a uma goma que unia os doces. De acordo com os estudos de Torell,
alguns confeiteiros chegavam a usar giz ou outro material barato nas balas para
reduzir custos, achando que ninguém iria comê-los.
Muitas
vezes, os doces eram duros como pedra. Há histórias de crianças que cometeram
um erro terrível e tentaram comer esses doces. Comer doces fúnebres não era
apenas desaconselhável, mas também frequentemente considerado desrespeitoso.
No
final do século XIX, a doçaria funerária se espalhou por toda a Suécia, desde a
burguesia nas cidades até os camponeses, na zona rural. Quando o açúcar de
beterraba se tornou cada vez mais disponível e barato no final dos anos 1800, a
mercadoria outrora opulenta tornou-se mais acessível.
Com
o crescimento dos negócios, toda uma indústria surgiu em torno da confeitaria
ritual. Muitos confeiteiros suecos faziam visitas anuais a gráficas na Alemanha
e na França para estocar suprimentos para suas embalagens. As imagens
pré-impressas também permitiam que as classes mais baixas fizessem seus
próprios doces e comprassem rótulos de seus confeiteiros locais.
Esses
rótulos importados levaram a uma mudança distinta na imagem do doce. Virando-se
mais religioso, assim as obras de arte viram seus crânios, caixões e túmulos
substituídos por anjos, Jesus Cristo e pela Virgem Maria. As imagens
tornaram-se expressões mais anestesiadas e padronizadas para o luto. Você podia
ver a modernização do luto com essas imagens produzidas em massa.
À
medida que o açúcar se tornou comum, ele perdeu seu significado ritual. Você
não precisava mais esperar por uma ocasião especial para trazer doces.
A
confeitaria funerária sueca, como prática, começou a desaparecer nas décadas de
1920 e 1930, desaparecendo quase que completamente na década de 1960. Com a
Primeira Guerra Mundial e o racionamento de açúcar imposto provaram ser a
sentença de morte para essa tradição fúnebre. Entretanto, existem algumas
referências a pessoas que agora usam os doces sobreviventes como enfeites em árvores
de Natal - acho q doces combinam mais com decoração de Natal do que com
funerais (risos).
O fato, é que essa tradição desapareceu. O único lugar onde você provavelmente encontrará esses doces, com seu papel amassado e crânios desbotados, seria dentro de um museu ou no sótão de um sueco idoso. Mas eles destacam um período único na história da Suécia, quando o açúcar tinha um imenso poder simbólico. Então, um pouco doce com papel preto, brilhando com uma cruz e uma Madonna, era realmente algo especial.
Fiquei comovido com a história e fui atrás de descobrir algum doce sueco que pudesse aprender para quem sabe, no próximo dia dos Mortos, sair oferecendo como lembrança. E como quem procura acha, descobri um doce, um caramelo sueco chamado Smörkola, que poderia perfeitamente ser a guloseima oferecida – diferente daquelas que não se deveria comer.
Assim,
deixo abaixo a receita do “smörkola” (ou apenas “kola”). Lembrando que o tempo
da receita não inclui o tempo que leva para esfriar, cortar e embrulhar.
SMÖRKOLA
Um
deleite típico de férias na Suécia é chamado de “smörkola” (ou apenas “kola”).
Explicar em inglês resultaria em algo assim: doce de caramelo pegajoso em
borracha. Também semelhante a caramelo fudge, daqueles macios. Caso você não
tenha xarope de glicose, pode substituí-lo por mel Karo.
Nota:
o tempo da receita não inclui o tempo que leva para esfriar, cortar e
embrulhar. Se você quiser experimentar, há muitas oportunidades para dar sabor
a esta receita, aqui estão alguns ingredientes que você pode tentar adicionar:
canela, gengibre, cardamomo, açafrão, limão, café, chocolate.
Ingredientes
100 g de manteiga
300 g
de açúcar 300 ml
200 ml
de creme
50 ml
de xarope dourado ou xarope de milho
50 ml
de xarope de glicose
1
colher de sopa de açúcar baunilha
Preparo: Derreta a manteiga em uma panela. Adicione os ingredientes restantes. Deixe ferver enquanto agita, em seguida, verifique com um termômetro até atingir 125 ° C (250 ° F). Coloque o papel manteiga em uma assadeira com dimensões de 20cm * 30cm (~ 8 * 12 polegadas). Despeje o líquido na panela e deixe esfriar; Corte no tamanho e forma desejados; embrulhe cada pedaço em papel vegetal.











O Conteúdo desta página é simplesmente fantástico.
ResponderExcluirMuitos parabéns
Muito interessante!
ResponderExcluirO doce caramelo deve ser bom. E as balinhas fúnebres me levaram a lembrar da cachacinha servida nos velórios do nordeste.
ResponderExcluirCoisas q a gente nem pensava existir pros lados frios da Suécia.
ResponderExcluirMuito interessante, são aulas incríveis essas maravilhas literárias.
ResponderExcluirAdorei esse novo conhecimento, obrigada por compartilhar.
ResponderExcluirNa terra da minha mãe, eles bebem o defunto, aqui eles servem café e merendas ( bolos, biscoitos, pães).