quinta-feira, 27 de novembro de 2025

AS MÃOS QUE ADOÇAM O MUNDO: SOBRE QUITANDEIRAS E O BOLO DE MANDIOCA DE CORA CORALINA

 

Há algo de mais antigo que o tempo nas quitandas brasileiras. Algo que escapa às horas e se deposita nos poros da madeira da mesa de cozinha, no pano puído do avental, no cheiro que se insinua pelas frestas da porta: forno aceso, milho ou mandioca ralada, açúcar se rendendo ao fogo, o café gemendo no coador de pano. Não são apenas bolos, roscas e biscoitos— são relicários de memória coletiva. Não são só quitandas — são catedrais do cotidiano, onde o sagrado era servido em prato de ágata.

Foi entre quintais de terra batida e becos de calçamento incerto que surgiram, como flores teimosas, as quitandeiras. Suas mãos — firmes como rochas, ternas como chuva mansa — sabiam do poder da repetição. Sabiam que bater um bolo era invocar a avó, a mãe, a tia. Sabiam que oferecer um biscoito era doar um pedaço da alma.

Quitandeira (a market scene), 1845. Frederico Guilherme Briggs. 1813-1870. Acervo Biblioteca Nacional Digital. 

Desde os dias sombrios do Brasil Colônia até o brilho inquieto do Brasil Imperial, era pelas mãos de tantas mulheres — negras em sua maioria, mas também indígenas, mestiças, brancas pobres e viúvas lançadas à própria sorte — que o país aprendia a se alimentar de si mesmo.

Elas surgiam ao amanhecer como sacerdotisas do cotidiano, carregando nos braços tabuleiros que eram ao mesmo tempo sustento e altar. E, nas frestas abertas pela violência e pelo silêncio imposto, erguiam seus pequenos reinos de cheiro e doçura: broas douradas, cocadas que cintilavam como luas breves, bolos cuja maciez parecia guardar segredos, beijus que traziam a memória mais antiga da terra.

Cada venda era um gesto de insurgência.

Cada receita, um fragmento de ancestralidade.

Cada sabor, a escrita clandestina de uma história que não coube nos livros. Assim, caminhando entre becos, largos e mercados, essas mulheres — múltiplas em origem, porém unidas pela mesma coragem — bordaram, com açúcar, fogo e fé, a primeira narrativa alimentar do Brasil: uma história feita de resistência, ternura e sobrevivência, que até hoje perfuma a memória do país como um perfume antigo que insiste em permanecer na pele.

Eram sacerdotisas de um culto sem templo, mas cheio de fé. Dentre elas, surgiam as quitandeiras de Congonhas, Ouro Preto, São João del-Rei, Sobral, Salvador, Rio de Janeiro — verdadeiras artífices do gosto, cujos saberes não vinham dos livros, mas do cheiro, do tempo da massa, do ouvido atento à bolha que se forma na panela. Seus saberes não moravam nos olhos, mas nos dedos. E o que faziam era mais que vender comida: perpetuavam a existência por meio da doçura.

E ali, nesses tabuleiros que tremiam levemente com o peso do dia, havia algo que beirava o sagrado. Cada broinha de milho era um sol domesticado; cada cocada, uma lua branca arrancada da noite; cada beiju, uma lembrança das primeiras mãos indígenas que moldaram o alimento da terra. Naquelas superfícies de madeira gasta repousava um altar que atravessava séculos, heranças e cicatrizes.

As quitandeiras caminhavam entre ladeiras, becos e largos como quem percorre um destino antigo. Havia em suas posturas uma espécie de nobreza rebelde — a dignidade que nasce não da ausência de dor, mas da ousadia de continuar apesar dela. O perfume que deixavam atrás de si era mais que cheiro de açúcar queimando, de massa assada, de coco recém-ralado: era uma declaração silenciosa de permanência.

Não anunciavam sua força em voz alta. Elas a sussurravam.

No rumor da panela.

No vapor que sobe.

No gesto exato de virar a massa antes que o mundo desabe.

E assim, dia após dia, teciam uma liturgia de sabores que desafiava o esquecimento. Alimentavam cidades inteiras e, sem pretender, nutriam também a memória do país — uma memória doce, firme e persistente, capaz de atravessar o tempo como uma braçada de luz atravessa a água escura.

Pois cada quitute que ofereciam era, no fundo, uma pequena redenção.

Uma promessa de que a vida continua.

Uma bênção servida em papel pardo.

E ao entregar um bolo, uma cocada, um pedaço de céu feito de farinha e fogo, elas devolviam ao mundo algo que o mundo tantas vezes lhes negara: a liberdade de criar beleza.

Com o século XX, o cenário muda: a escravidão fora abolida, mas não o preconceito. A informalidade persiste, agora nos quintais das casas, com fogões de lenha acesos ao amanhecer e tabuleiros à venda nas janelas e nas bancas colocadas na calçada, na rua. As quitandeiras, agora chamadas “tradicionais”, seguem ali, obstinadas, firmes, transformando ingredientes humildes — o leite, o polvilho, o fubá, a mandioca, o milho, o coco, as frutas locais — em oferendas de resistência.

Eram como guardiãs de um fogo que não podia se apagar. Nos quintais onde galinhas ciscavam o silêncio e o cheiro de lenha queimando se misturava ao da terra molhada, essas mulheres reinventavam diariamente a própria sobrevivência. O mundo mudara, sim — mas a mesa delas continuava sendo o primeiro altar de muitas manhãs brasileiras.

Cada iguaria que nascia de suas mãos carregava o peso de ancestralidades que o tempo tentara dispersar. O pão de queijo, inflado de ar e memória; o bolo de fubá que tremeluzia dourado como promessa de sol; os sequilhos que se desfaziam entre os dentes com a mesma delicadeza com que um segredo se dissolve no ouvido de quem sabe ouvir. Nada ali era apenas alimento. Havia neles a persistência daquilo que insiste em existir mesmo quando não há lugar para existir.

E se, antes, o tabuleiro lhes servira como arma silenciosa contra o apagamento, agora era também testemunha da persistência. Um tabuleiro numa janela, outro apoiado num caixote na calçada, outro equilibrado sobre um pano bordado — cada um desses pequenos altares dizia: aqui ainda pulsa o que tentaram calar.

As quitandeiras caminhavam entre a tradição e o cotidiano com uma espécie de gravidade suave — a gravidade de quem carrega histórias, de quem dosa o açúcar e a coragem na mesma medida. Não buscavam glória; buscavam apenas continuar. E, nesse continuar, moldavam o gosto de um país inteiro.

Porque resistir, para elas, nunca foi um grito.

Foi um gesto.

Foi um aroma.

Foi o estalo da lenha ardendo ao romper da manhã.

E assim, no século que prometia modernidade, elas mantiveram viva a mais antiga verdade da cozinha: que transformar o simples em extraordinário é, em si, uma forma de liberdade.

Entre elas, uma quitandeira que virou célebre, Cora Coralina — não apenas poetisa tardia, mas doceira desde sempre, alquimista de tachos e colher de pau. Muito antes que o Brasil a lesse, o povo já a provava, em compotas de figo, doces de abóbora com coco e bolos que perfumavam o ar ao redor da Casa da Ponte.

Era procurada como se procura uma santa — mas não para bênçãos, e sim para quitutes e quitandas — e ali, de portas entreabertas e mãos adoçadas de calda quente, Cora fazia o que tantas outras quitandeiras fizeram por séculos: alimentava corpos, adoçava almas e guardava silêncios.


Sua poesia nasceu depois, muito depois — quando já não partilhava a casa com aquele homem severo, vinte e tantos anos mais velho, cuja presença pesava como porta fechada.

Se juntara com o tal Cantídio Tolentino de Mesquita que, trouxe consigo não apenas os filhos de outra vida, mas também os fantasmas de problemas com a lei que o perseguiam como um eco constante. Não houve casamento oficial, apenas uma convivência marcada por impedimentos legais e pelo estigma cruel que a época impunha às mulheres que ousavam amar fora das convenções.

E Cora, tão jovem, suportou esse peso sozinha: o olhar torto da cidade, o julgamento serrado das vizinhas, a violência silenciosa de uma vida construída sobre a corda bamba da precariedade. Ainda assim, foi nessa atmosfera áspera e clandestina que ela continuou acendendo fogões, criando filhos, moldando doces — e guardando dentro do peito uma voz que só muito mais tarde encontraria liberdade para nascer.

Esse homem lhe tolheu os sonhos, abafou conversas, diminuiu gestos, instalou silêncios que doíam mais que gritos. Era um companheiro de sombras: duro, desconfiado, incapaz de ternura, trazendo consigo o peso das próprias culpas e das próprias falhas perante a lei, que recaíam sobre ela como um fardo que nunca lhe pertenceu.

Durante décadas, Cora viveu entre as paredes estreitas de uma vida comandada por ele — cuidando de filhos e enteados, sustentando a casa com seu trabalho, suportando a pobreza e as línguas afiadas de uma sociedade que a julgava, mas nunca a enxergava. Sua voz, naquele tempo, não encontrava espaço. O que existia era a panela — sempre ela —, a colher de pau que girava no tacho como quem guarda uma chama secreta.


E talvez tenha sido por isso que sua poesia demorou a nascer: porque antes precisou sobreviver ao apagamento.

Precisou resistir ao marido que a queria pequena, dócil, muda.

Precisou cultivar dentro de si uma palavra que ele não podia ouvir, mas que ela jamais deixou morrer.

Foi só depois de sua morte, quando enfim se viu livre da atmosfera pesada que durante tantos anos lhe roubou o ar, que sua escrita floresceu — tardia como uma flor de inverno, sim, mas tão forte que rasgou o tempo.

Porque mesmo que ele lhe calasse a voz, Cora nunca deixou de acender o fogo — e foi desse fogo que surgiram seus versos.

E talvez tenha sido justamente ali, nos longos anos em que suas palavras ficaram confinadas ao coração, que sua escrita fermentou — como massa que cresce no escuro, paciente, esperando o momento exato de se revelar. A cozinha foi seu refúgio, sua oficina de encantamentos, onde cada fruta pedaçuda, cada calda âmbar, cada panela pesada lhe oferecia uma liberdade que o mundo ainda lhe negava.

Enquanto a vida a tratava com aspereza, Cora devolvia ao mundo um universo de doçuras.

Era no tacho de cobre que ela deixava repousar aquilo que não podia confidenciar a ninguém. Era sua confidente.

A colher de pau, sua cúmplice.

O fogo, seu grande revelador.

Em cada doce que fazia, havia uma pequena desobediência — uma afirmação de que algo nela sobreviveria intacto, apesar das sombras domésticas, apesar das restrições, apesar do silêncio imposto. Ao redor dela, a cidade de Goiás se perfumava com um misticismo culinário, como se cada tijolinho colonial estivesse impregnado de açúcar, calda e resistência.

Quando, enfim, seus versos vieram à luz, o Brasil descobriu que aquela doceira de avental manchado de melado era também uma poeta de alma incendiada — mas, no fundo, nada disso surpreendia seus vizinhos. Eles já sabiam que havia grandeza naquelas mãos que mexiam a panela. Sabiam que seus doces eram mais que doces: eram confidências, eram memórias eternizadas, eram traduções comestíveis de uma vida inteira guardada em cadernos invisíveis.

Sua poesia — que chegou tardia, sim, mas chegou inteira — não nasceu dos livros.

Nasceu dos tachos.

Nasceu do vapor que sobe quando o açúcar encontra o fogo.

Nasceu do gesto feminino e ancestral de transformar dor em doçura, e doçura em permanência.

Porque antes de ser lida, Cora foi saboreada. Antes de ser a poeta que o mundo reverencia, foi a quitandeira, e o povo já encontrava nela um consolo feito de caldas e mãos pacientes.





Assim como as mulheres negras e pobres que povoam a história esquecida das quitandeiras de Minas, Cora resistiu com o que tinha: a mandioca ralada, o açúcar espumando no cobre, a labuta cotidiana mascarada de receita. Seu bolo de mandioca não é prato: é relicário. Ao prepará-lo, não se cozinha — se confessa. Se convoca a cozinha como altar, a quitanda como trincheira, o ofício como afirmação de existência. Porque para essas mulheres — para Cora, para todas — o gesto de mexer a massa é também o gesto de ficar de pé no mundo. E o sabor que nasce dali é mais que gosto: é sobrevivência com perfume de erva-doce.

E nesse manuseio antigo — o polvilho cedendo sob os dedos, a massa ganhando corpo, o cheiro doce subindo como prece — ergue-se uma força que não depende de palavras. A cada volta da colher, o passado se reordena; a cada mistura, desmancha-se um pedaço da dureza da vida; a cada fornada, reacende-se a esperança de que a existência pode, sim, ser reparada em pequenas porções de doçura. O tacho, a lenha, o forno, o tabuleiro: tudo ali é testemunha do que não se diz, mas permanece.

E quando o bolo enfim se doura, quando a borda se arma em crosta fina e o cheiro invade a casa inteira, não é apenas alimento que se anuncia — é uma história inteira que se oferece. Uma história feita de mulheres que, mesmo diante da pobreza, do cansaço, do preconceito, criaram seus próprios milagres domésticos. Mulheres que nunca tiveram templos, púlpitos ou altares formais, mas que encontraram na cozinha a arquitetura secreta de sua resistência.

Porque o que sai do forno dessas quitandas não é só pão, bolo ou doce.

É coragem.

É continuidade.

É a prova de que, mesmo quando tudo ao redor tenta reduzir uma vida ao silêncio, há sempre um caminho que se faz com fogo, açúcar e fé.

Na doçura silenciosa da quitanda, naquela umidade dourada que dança na superfície de um bolo de mandioca recém-saído do forno, sobrevive o Brasil que mais importa — o Brasil que resiste. Um país feito de quintais e panelas, onde a comida não é apenas sustento, mas abrigo. Onde o fogão aceso é altar, e cada receita, uma reza de corpo inteiro. Aqui, a comida fala. Ela diz o que o tempo não apaga, o que os livros de história não contam, o que só a memória das mulheres pode sussurrar ao ouvido de quem prova.

Cada quitute é uma oração: feita com fé, com farinha e com dedos calejados. Ali onde a terra dá mandioca e o galo canta cedo, a mulher transforma o bruto em bênção. Cada broa é um testamento. Cada bolinho de milho, uma confidência à boca de quem morde. Cozinhar, para essas mulheres, nunca foi apenas o ato de alimentar: foi, e sempre será, uma forma de permanecer. De escrever na língua e no corpo do outro uma carta invisível de eternidade.

E é nesse gesto — aparentemente simples, discreto, cotidiano — que repousa uma grandeza antiga, feita de fogo e paciência. Quando a massa se entrega ao forno e se metamorfoseia em bolo, quando o cheiro se espalha pela casa e atravessa portas entreabertas, nasce também um tipo de memória que não desbota. São memórias que se colam ao ar, que se depositam nas frestas das janelas, que se enroscam nos cabelos das crianças. Memórias que acompanham quem prova por toda a vida, como se um pedaço de bolo pudesse carregar consigo a exatidão de uma tarde inteira — a lenha estalando, a panela brilhando, a mão da mulher que amassa sabendo exatamente o que faz, mesmo quando o mundo não sabe seu nome.

É por isso que, ao provar uma quitanda, não se prova apenas o sabor.

Prova-se um lugar.

Prova-se um tempo.

Prova-se uma linhagem de mulheres que, diante de todas as tentações do esquecimento, escolheram continuar.

Porque essas quitandeiras — de Minas, do Goiás de Cora, do Nordeste que se perfuma de coco e rapadura, das cidades coloniais, das periferias de hoje — nunca alimentaram apenas corpos. Alimentaram futuros. Mantiveram de pé aquilo que poderia ter desmoronado. Guardaram a alma da casa, da rua, do bairro, do país, em tabuleiros que brilharam ao sol como relíquias vivas.

E assim, no silêncio que se instala quando o primeiro pedaço é partido, entende-se o essencial: que a história do Brasil não foi escrita apenas com tinta, espada ou decreto — mas também com açúcar, farinha e coragem.

E entre essas mulheres — entre tantas — ergue-se, delicada e imensa, a figura de Cora Coralina. Quitandeira por necessidade, doceira por herança, poeta por destino. Muito antes que o Brasil lhe desse ouvidos, o povo já lhe conhecia o gosto. E era bom. Procuravam-na na sua velha casa à beira da ponte, em Goiás Velho, como se buscam benzeduras: com esperança nos olhos e um prato nas mãos. Seus doces tinham fama — não de glória efêmera, mas de permanência: voltavam na boca dias depois, como um verso bem dito ou uma lembrança de infância.

Cora moldava versos como moldava seus bolos — com paciência, com fogo baixo, com a sabedoria ancestral de quem conhece os tempos da massa e da alma. Enquanto mexia tachos de cobre, tramava poemas que ninguém lia, mas que moravam inteiros dentro dela. Sua cozinha foi seu primeiro livro. Suas colheres, penas de escrever. E o balcão de doces que sustentava seus filhos e seus dias foi também sua primeira editora, onde publicava sabores antes de publicar palavras.

Ali, entre o calor do forno e o aroma de açúcar queimando, Cora encontrou liberdade que a vida ao lado de Cantídio lhe negava. Cada compota de figo, cada doce de abóbora com coco era um ato de afirmação: de que podia existir por inteiro, ainda que a sociedade e a dureza do casamento tentassem contê-la. Cozinhar não era apenas preparar alimento: era declarar ao mundo que sua voz, mesmo silenciada, continuava a existir, e que sua imaginação, guardada nas receitas e nos gestos, jamais seria aprisionada.

E quando, finalmente, seus versos vieram à luz, o Brasil descobriu que aquela doceira antiga, de mãos calejadas e olhos atentos, já havia ensinado seu povo a ler o mundo pelo paladar. Cada poema de Cora era, afinal, feito da mesma matéria que seus doces: tempo, paciência, memória e a certeza de que a beleza persiste quando se ama o que se faz.

Como tantas quitandeiras antes dela, que vendiam seus sonhos em tabuleiros trançados, entre o Império e a República, entre o anonimato e a memória — Cora também soube transformar a exclusão em arte. A falta de reconhecimento virou substância; o silêncio conjugal, fermento; a ausência de espaço, mesa posta. E quando sua poesia finalmente alcançou o mundo, tinha o gosto de pão quente, de compota guardada, de bolo de mandioca repartido entre vizinhas.

É nesse cenário — onde o açúcar encontra a palavra, onde a colher de pau escreve no tacho como quem compõe um poema — que ressurge, manso e luminoso, o bolo de mandioca de Cora Coralina. Rústico na forma, úmido como solo fértil, ele é mais que sobremesa: é confissão em miolo macio, abraço ancestral que se desfaz na língua com a delicadeza de uma lembrança boa. No corpo da massa está a raiz da mandioca — planta forte, mulher da terra; no espírito, a leveza da poesia que brota entre as frestas da vida dura.

Simples, sim — como tudo que atravessa o tempo sem precisar de artifício. Forte — como a mulher que o preparava em silêncio, enquanto o mundo lhe negava voz, e ela aprendia a cantar com o açúcar, com o fogo, com a paciência que é própria de quem sabe que resistir é também criar beleza.

Assim, o bolo de mandioca de Cora Coralina não é apenas receita: é testemunho, memória viva que atravessa mãos e tempos, de forno em forno, como uma prece que não precisa de altar. É a doçura das mulheres que vieram antes — quitandeiras sem nome, mas de coragem infinita, que conheciam o poder do fogo, da paciência e da espera. É resistência que se desfaz em aroma de cravo e canela, ternura que se mastiga devagar, como quem lê um poema em voz baixa, guardando cada palavra no corpo.

É poesia servida em prato de ágata, mas sentida na pele e na memória. É Brasil profundo, feminino, invisível aos livros, mas visível em cada gesto que dobra a massa, em cada forno aceso ao amanhecer, em cada tabuleiro que se oferece ao mundo. Cresce em presença e significado, silencioso, paciente, persistente. E nunca se apaga. Pois ali, na textura que se amassa, no açúcar que derrete, nas mãos que moldam e repartem, habita uma verdade antiga e invencível: que a vida, mesmo negada, pode florescer em doçura; que a coragem pode habitar uma colher de pau; que a poesia pode nascer do forno; e que o Brasil, sempre, se mantém de pé — suave, firme e eterno, como um verso que nunca se esquece.

Salve, quitandeiras do Brasil — mulheres de mãos que conhecem o calor do fogo, a paciência da massa e o mistério do açúcar que derrete. Entre panelas e tabuleiros, erguiam altares invisíveis, escrevendo histórias silenciosas que só a memória e o paladar podem ler. Cada broa, cada bolo, cada doce é resistência que se oferece em forma de ternura; é poesia sem palavra, feita de tempo, de cuidado e de coragem. E assim, de quintal em quintal, de forno em forno, permanece um Brasil invisível aos livros, mas vivo no cheiro do açúcar, na firmeza das mãos, no gesto que dobra a massa com delicadeza e força. Silencioso e persistente, o Brasil das quitandeiras cresce em cada receita passada, em cada tabuleiro que se oferece ao mundo, suave, firme e eterno — como um verso guardado no coração.

BOLO DE MANDIOCA DA CORA CORALINA

6 ovos inteiros batidos ligeiramente

1/2kg de mandioca crua ralada no ralo grosso

1 xícara de queijo minas meia cura ralado no ralo grosso (se não tiver use parmesão)

2 xicaras de açúcar

1 coco inteiro ralado (cerca de 2 xícaras de coco ralado)

Preparo: unte muito bem uma forma de buraco com manteiga (se quiser polvilhar, use fubá) e reserve. Numa tigela grande, coloque os ovos, a mandioca ralada, o queijo, o açúcar e o coco ralado e misture bem até ficar homogêneo. Com a ajuda de uma colher coloque toda a mistura na forma previamente preparada. Leve pra assar em forno pré-aquecido a 180 graus por 45 minutos. Esperar esfriar pra servir. Ele é cremoso e delicioso.

Observação final: Esta receita me foi transmitida pela oralidade, seguindo os ensinamentos de Cora Coralina, como tantas outras tradições guardadas no calor do forno, no toque das mãos e no cheiro da massa. Assim como existem inúmeros doces, compotas e quitandas que Cora ensinou ou inspirou — e que ainda hoje circulam pelas cozinhas do Brasil —, este bolo de mandioca é memória viva. Eu mesmo já compartilhei aqui um doce de mamão enroladinho cuja receita também veio dela, fio invisível que atravessa gerações.

Embora nesta versão o bolo venha assado em forma de buraco, tradição comum para bolos densos, no Nordeste e em muitos interiores do Brasil os bolos de mandioca eram assados em tabuleiros quadrados. O formato facilitava a divisão em fatias regulares, vendidas por quitandeiras — muitas vezes mulheres negras, pobres, que faziam do tabuleiro sua fonte de sustento, oferecendo pequenos lucros com dignidade e arte. Cada quadradinho de bolo, como cada broa ou doce de feira, era mais que alimento: era resistência, sobrevivência e poesia comestível.

Por séculos, essas mulheres de mãos calejadas, invisíveis à história oficial, perpetuaram receitas que não constam nos livros, mas permanecem na memória de quem prova. Cada bolo, cada tabuleiro, cada fatia repartida ao sol da feira ou ao calor da vizinhança carrega coragem, tradição e doçura. Assim, de panela em panela, de forno em tabuleiro, de mão em mão, a memória de Cora e das quitandeiras continua a se espalhar — doce, firme e eterna.

Para sentir o eco dessas mãos, dessa coragem e da doçura da vida, ouça “Meu Coração Vagabundo”, cantada por Gal Costa e Caetano Veloso — uma canção que, como o bolo de mandioca, fala de resistência, saudade e memória.

domingo, 23 de novembro de 2025

RAINHA DE SABÁ, O ENIGMA SERVIDO EM FATIAS

 

Eu era ainda uma criança quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado que eu conhecia melhor: os gibis.

Essa é a delícia de hoje: o bolo rainha de Sabá, mas é preciso um pouco de história até chegar nele...

Eu era ainda uma criança quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado que eu conhecia melhor: os gibis.

Antes de prosseguir, preciso fazer um adendo — talvez vocês, leitoras e leitores, não saibam — mas a própria palavra “gibi” já carregava em si um sopro de mistério, um aroma de curiosidade. Nasceu muito antes de eu existir. Em 1939, a Editora Globo lançou uma revista em quadrinhos com esse nome exato: Gibi.

Na gíria da época, “gibi” era termo para menino negro, para o moleque das ruas — com conotações racistas, infelizmente comuns naquele tempo. Mas o sucesso da revista foi tão grande, tão encantador, que transformou a conotação do termo, apagando o sentido pejorativo original. Aos poucos, “gibi” deixou de ser sinônimo de desprezo e passou a significar travessura, curiosidade, espírito inquieto.

Naquela época, eu não sabia disso. Aprendi muito tempo depois, entre leituras de quadrinhos e outros mundos que minha curiosidade me arrastava a explorar. Foi assim que descobri que a palavra gibi vinha do quimbundo ngibi, sussurrada no Brasil desde o século XIX, e trazia consigo o eco de outro continente, a África — a mesma terra que, séculos antes, dera origem à rainha lendária que eu pressentira em meus olhos de criança.

A revista se espalhou com uma rapidez quase mágica, conquistando crianças e adultos, ocupando bancas e invadindo imaginações. Como acontece com tudo que cresce além de si, seu nome escapou das capas e passou a nomear um universo inteiro.

O destino das palavras, às vezes, é quase mágico: transcender a si mesmas, escapar das limitações do que originalmente significavam, assumir novas vidas. Assim, o “gibi” seguiu o caminho de outras criaturas linguísticas que, como ele, ganharam asas e se tornaram universais — Xerox, que deixou de ser apenas marca e se transformou em fotocópia; Gilete, que se libertou para virar sinônimo de lâmina; Corn Flakes, que atravessou o mundo para nomear todo cereal matinal de flocos de milho; Chiclets, que se espalhou pelos bolsos e mochilas como qualquer goma de mascar; Maizena, que passou a encarnar o próprio amido.

E assim, com o tempo e a persistência encantadora do cotidiano, qualquer revista em quadrinhos, fosse de onde viesse, recebeu o apelido carinhoso e definitivo: gibi — um pequeno feitiço linguístico, capaz de transformar uma palavra em universo.

Em resumo: uma palavra africana atravessou séculos, ganhou nova casa, transformou-se no menino travesso da gíria, tornou-se revista, e depois, como um encantamento cotidiano, passou a nomear todas as histórias desenhadas em quadrinhos que povoaram minha infância.

Naqueles anos, devorava sem trégua as aventuras da Turma da Mônica e da Disney. Meu tio Mário, irmão mais velho da minha mãe, mantinha assinaturas da revista Veja, que de vez em quando enviava, de brinde, revistas infantis. Mas ele também tinha assinaturas próprias de revistas para crianças; não sei se existiam antes do nascimento dos meus primos, seus filhos, mas o fato é que pilhas coloridas chegavam à casa como pequenos tesouros enviados pelo correio, sempre pontuais, sempre encantadas, como se soubessem exatamente onde pousar.

Foi na casa do tio Mário que encontrei um livro da Disney diferente de tudo que eu já conhecera. Estranho, porque não estava junto das revistinhas empilhadas na estante do quarto dos meus primos. Estava escondido numa gaveta da cristaleira — lembro que me pediram para pegar algo em um desses móveis antigos, cheios de gavetas, que ficava na sala de jantar, uma mistura de aparador e cristaleira. Fui atrás do objeto solicitado, abri a gaveta, encontrei o que procurava... e, no mesmo instante, o destino me apresentou outro tesouro: aquele livro.

Levei-o comigo, fascinado. Foi algo tão inesperado, tão arrebatador, que até hoje não consigo me lembrar do que fui buscar naquela gaveta; só me recordo do livro, que parecia ter me escolhido primeiro, como se soubesse que eu precisava encontrá-lo antes de qualquer outra coisa.

Era estranho e incomum: além das histórias curtas, mostrava os personagens clássicos da Disney vestidos como figuras históricas — e, para meu espanto, trazia receitas. Na verdade, era um livro de cozinha. Pertencia à minha tia Cida, esposa do tio Mário. Encantei-me imediatamente.

Foleando o livro, perdido entre as cores e as formas, eu me deixava levar pelo encanto das páginas. Os personagens da Disney, como atores de uma peça fantástica, encenavam cenas históricas com graça e irreverência, e cada ilustração parecia sussurrar histórias por si mesma. Havia comidas, receitas detalhadas, cada passo explicado com a paciência de quem deseja ensinar não apenas a cozinhar, mas a sentir, a tocar, a provar com os olhos antes de experimentar.

E então, parei numa página especial, uma página que ainda hoje pulsa em minha memória: o Pudim de Chocolate e Abacaxi da Rainha de Sabá.



Ilustrações do livro original conseguidos com a ajuda de um dos leitores do blog.

Na ilustração, Margarida — a eterna pata elegante, namorada do Pato Donald — encarnava a Rainha de Sabá. Altiva, envolta em tecidos que pareciam fluídos, adornada com joias que reluziam como pequenas constelações, ela não comandava apenas o palácio, mas parecia dominar o próprio tempo.

Patinhos fantasiados, que eu supunha serem os sobrinhos do Pato Donald, esforçavam-se sob o peso de um pudim gigantesco, quase impossível, que carregavam atrapalhadamente. Vestiam-se como pequenos egípcios — ou, ao menos, era assim que minha infância imaginava toda a África, confundindo continentes e eras, misturando história e fantasia em uma só imagem luminosa.

E, no topo do pudim, erguia-se um abacaxi como um cetro comestível, coroando o monumento doce, imponente e encantador. Aquela visão — tão absurda quanto majestosa, tão impossível quanto real no meu imaginário — jamais se apagou da minha memória. Cada detalhe permanecia, gravado como se o livro tivesse sussurrado para minha alma de criança: isso é magia, e a magia é para sempre.

Aquilo me arrebatou.

Talvez porque foi a primeira vez que me vi questionando uma receita: como poderia alguém imaginar chocolate e abacaxi juntos? Como aquilo poderia ser real, harmonioso, quase mágico? A imagem se gravou em mim como um ícone indecifrável, uma lembrança que se recusava a se apagar.

Anos depois, tentei reencontrar o livro. Vasculhei catálogos, sebos, internet — tudo. Sabia que nos anos 1980 e 1990 a Disney no Brasil era publicada pela Editora Abril, e ainda assim, nada. Procurei até edições em inglês; encontrei uma de 1975, Mickey nas Cozinhas do Mundo, mas no índice não havia sinal do bendito pudim de chocolate e abacaxi da Rainha de Sabá.

E, durante essa busca, outras perguntas começaram a surgir, inquietantes: como poderia a Rainha de Sabá, que viveu antes de Cristo, ter provado chocolate e abacaxi — frutos descobertos séculos depois? Mas logo compreendi: a publicação não buscava fidelidade histórica; buscava abrir portas à imaginação, convidar crianças a adentrar a cozinha de mãos dadas com seus pais.

Ainda assim, o pudim jamais abandonou minha mente. Queria encontrar aquele livro. Queria reencontrar o mistério.

E, enquanto procurava, descobri imagens do tal pudim carregado pelos patinhos, encontrei algo parecido, em imagens antigas de sobremesas vitorianas. Um creme de chocolate montado em moldes antigos, ornado por relevos delicados, idêntico ao pudim da Rainha de Sabá — faltavam apenas os enfeites laterais e o abacaxi coroando o topo, como uma joia comestível.

 Essa era uma sobremesa vitoriana que tinha a aparência desnuda do pudim de chocolate com abacaxi...

Foi por causa daquele pudim impossível que, mais tarde, senti a necessidade de conhecer a verdadeira mulher por trás do mito. Quem era essa Rainha, tão bonita, tão rica, tão famosa — tão poderosa que, na minha imaginação de criança, já degustava chocolate e abacaxi antes que o mundo sequer sonhasse com eles?

Descobri uma mulher envolta em mitos: alguns majestosos, outros hilários, até desrespeitosos — como a lenda de que teria pés de cabra – animal que alguns ligavam ao satanismo. Talvez invenções de adversários políticos; talvez fruto do medo ancestral de que ela fosse um demônio sedutor.

Quanto mais eu lia, mais me perdia e me encontrava naquela figura: misteriosa, lendária, quase indomável, como se cada página sussurrasse segredos que só minha imaginação podia compreender.

E, ironicamente — ou talvez com a precisão poética do destino — anos depois, seu nome acabaria coroando outra delícia, um bolo de chocolate, daqueles que se tornam memória e prazer, um dos que mais amo na vida, como se o próprio passado tivesse decidido que a Rainha de Sabá merecia perpetuar sua majestade em sabor e em lembrança.

A RAINHA DE SABÁ ENTRE O TEMPO E O MISTÉRIO

Não em voz alta — jamais com a urgência de um grito — mas com a atenção suspensa, como se o tempo respirasse entre páginas antigas, senti a história se desprender de uma folha amarelada e flutuar pelo ar, leve, quase imperceptível. Um sussurro que carregava o crepúsculo, tocando ainda a toalha posta sobre a mesa, onde a luz se despedia em faixas de ouro queimado.

 Aqui está a representação da Rainha de Sabá feita por um artista. A imagem vem do manuscrito medieval Bellifortis, de Conrad Kyeser, e data de cerca de 1405.

A Rainha de Sabá. Um nome que paira, quase inalcançável, envolto em especiarias e ouro, como canela que se queima lentamente no ar quente, ou âmbar líquido derramado em silêncio. Há quem a chame de lenda, como se a memória de uma mulher assim pudesse ser reduzida a mito. Há outros que juram tê-la visto cruzando Jerusalém, deixando reis de joelhos, antes que o último gole de vinho tocasse a boca.

O que restou, afinal? Não são conquistas, não são tronos. É aquilo que persiste invisível e insistente: o gosto que ficou, o gesto que escapou, o perfume que ainda ronda os lugares onde passou. Séculos depois, ainda se manifesta, de formas inesperadas — nos sabores, nas receitas, nos aromas que atravessam o tempo. Como um bolo que não guarda apenas farinha e açúcar, mas a sombra e o eco de sua passagem.

Ela não se desvaneceu. Transformou-se em memória que se mastiga, que se sente na pele, na boca, nos olhos que procuram o brilho de ouro antigo, no aroma que se derrama como promessa.

No cerne de eras apagadas, ergue-se a Rainha de Sabá como um lampejo de ouro atravessando a neblina do tempo, cintilando com a suavidade de uma promessa esquecida. Mulher de olhos que parecem enxergar além do horizonte, cujo raciocínio desliza entre a couraça da diplomacia e o fogo indomável da sedução, revelando segredos que apenas a lua poderia compreender.

Ela vem de um reino onde o vento carrega incenso e mirra, e entoa murmúrios secretos às palmeiras, histórias que escorrem entre folhas e se infiltram nas pedras antigas. Cada gesto seu é calculado, uma dança entre poder e curiosidade, entre luz e sombra, como se soubesse exatamente onde o mundo hesita.

Nunca se sabe ao certo onde começa sua história — se nos jardins suspensos sobre o Mar Vermelho, onde flores raras curvam-se à sua passagem, ou na boca entreaberta de um ancião, que jura tê-la visto descer de um tapete de ouro puxado por leopardos de olhar lento e silencioso. Há cantos do mundo onde ainda se murmura que sua pele reluzia como bronze molhado sob a lua; em outros, que escondia pés de cabra sob túnicas de linho perfumado de incenso.

Ela habita o espaço entre mito e carne, entre sombra e brilho, como se a própria história respirasse através dela. Cada rumor, cada lenda, cada aroma que paira no ar parece carregar um fragmento dela — um fragmento que recusa desaparecer, mesmo quando os séculos tentam apagar o seu rastro.

Ainda há quem dissesse que ela viajava num tapete tecido com sombra e aromas de mirra e âmbar, guiada por estrelas e visões. Que poderia ler nos olhos dos camelos a cadência dos caminhos por vir; e que sua coroa era feita de alvorada e escrita invisível.

Em Belkiss, Eugénio de Castro evoca essa majestade simbólica, como se ela surgisse não para ser vista, mas para ser pressentida, reverberando entre o perfume do louro e o eco do mistério.  Um enigma que se devolvia apenas no silêncio do olhar. Como um bolo que parece rígido na crosta, mas guarda um centro tenro e preservado — o convite ao segredo, ao desejo, à lembrança.

Sempre foi assim com mulheres maiores que os limites dos mapas: não se admite que elas tenham apenas nascido. Precisam ter sido moldadas por deuses ou por delírios, como se carregassem em suas veias a essência de tempestades ancestrais, ou o sussurro silencioso de eras esquecidas. Elas não pertencem ao comum, ao mundano — são enigmas ambulantes, figuras que desafiam a lógica dos homens e a linearidade do tempo.

É como se cada gesto seu fosse uma inscrição em um livro proibido, cada olhar um portal para segredos que o mundo tenta esconder sob o véu do silêncio. São sombras que caminham sob a luz, presenças que se sentem antes mesmo de serem vistas, e cuja existência desafia a razão dos mapas, das fronteiras, das histórias contadas e repetidas.

Essas mulheres — tão vastas em sua aura, tão densas em sua essência — não nascem, transcendem. São a encarnação viva dos desejos não confessados, das paixões mais obscuras e dos mistérios que o tempo se recusou a revelar. E é assim que permanecem: eternas, inexplicáveis, soberanas do próprio mistério que as cerca.

Mas havia algo mais em Sabá — Makeda, Balqis, ou qualquer que fosse seu nome real — que nem os mais céticos ousavam negar: sua inteligência era simultaneamente corda de seda e lâmina de aço, uma força que se equilibrava entre a delicadeza e o corte preciso. Mulher capaz de atravessar desertos inteiros apenas para encontrar Salomão, o rei de Jerusalém, não para se curvar diante de sua fama, mas para testá-lo, para medir a substância por trás do mito.

O Rei Salomão e a Rainha de Sabá. Pintura de Giovanni Demin, 1824. 

Sabá não era peregrina em busca de respostas fáceis, nem rainha enfeitiçada pelo brilho alheio de um trono que não era seu. Ela era tempestade e enigma, um furacão contido em vestes de linho e ouro, dona de um conhecimento profundo, um código invisível que se revelava em palavras meticulosamente escolhidas, em perguntas afiadas como lâminas e em silêncios que ressoavam com mais força do que qualquer proclamação.

Cada passo que dava parecia calcular o ritmo do mundo, cada gesto era uma declaração velada de poder que se insinuava sem anunciar sua presença. Ao sentar-se diante do rei, Sabá não buscava sua aprovação — buscava sua verdade, a vulnerabilidade oculta sob a arrogância, a frágil invencibilidade de um homem que se julgava o mais sábio entre os mortais. Ela desafiava não apenas sua sabedoria, mas o próprio conceito de autoridade, de destino, de história contada pelos vencedores.

E enquanto os servos se afastavam em silêncio, como se pressentissem a eletricidade que pulsava entre aqueles dois seres, Sabá permanecia imóvel, como uma esfinge viva, seu olhar atravessando não apenas o rei, mas o tempo, as lendas e os ecos de todos os que tentariam decifrar sua presença.

Ela era um mistério de luz e sombra, uma lenda que escapava das mãos de quem tentava aprisioná-la em histórias. A presença dela não apenas reconfigurava o espaço, mas dobrava o tempo, fazendo com que aquele encontro — mesmo que breve — reverberasse séculos além, como uma inscrição gravada em pedra viva.

E enquanto os cronistas e poetas tentavam eternizá-la em versos e mitos, Sabá continuava além deles, uma força invisível que não se entregava à memória, mas que, silenciosamente, escrevia seu próprio legado nas frestas do mundo.

Até o rei Salomão, que estava acostumado a súditos, oráculos, moedas de ouro e mulheres que se curvavam ao seu olhar, se rendeu totalmente aos encantos dele. Mas Sabá entrou com os olhos retos, a boca firme, os ombros imóveis — como se carregasse mil anos de histórias e desertos nas vértebras. E ele soube: ou a conquistaria ou se perderia para sempre no eco do riso dela.

“Ela veio para prová-lo com enigmas” — dizem as Escrituras, como quem sussurra o prenúncio de algo mais profundo do que uma simples visita. Nos antigos livros de reis e crônicas, está registrado que a Rainha de Sabá atravessou vastidões de areia e silêncio não apenas para saudar Salomão, mas para desafiá-lo — não com armas ou exércitos, mas com o fino fio da inteligência, com enigmas que eram tão antigos quanto o mundo e tão perigosos quanto o desejo.

Essa passagem, gravada nas páginas de 1 Reis 10:1 e 2 Crônicas 9:1, ecoa ainda hoje como uma das mais sutilmente provocadoras da tradição bíblica — e sua sombra se estende também pelo Alcorão, onde a rainha — ali chamada Bilkis — surge não como súdita, mas como espelho de um profeta, num diálogo onde fé, poder e sabedoria se entrelaçam como perfumes raros num salão selado.

Não foi, portanto, uma mulher comum que se apresentou diante do rei. Foi um enigma em forma de presença. Um desafio envolto em ouro, mirra e silêncios. A prova viva de que o verdadeiro poder, muitas vezes, chega sob o disfarce da curiosidade.

“Ela veio para prová-lo com enigmas” — e talvez nunca mais, em toda a história, um eufemismo tenha sido tão carnal.

Porque os enigmas de Sabá não se limitavam à mente. Eram labirintos de desejo, de olhar e palavra, de silêncio e movimento — um jogo sutil onde a lógica se dissolvia na pele e no ar, onde cada gesto podia ser ao mesmo tempo promessa e armadilha.

Ela desafiava Salomão em cada encontro, como se fosse um duelo velado, uma dança de intelecto e vontade, onde a vitória não pertencia a quem respondia primeiro, mas àquele que soubesse seduzir o mistério e deixar o outro perdido em sua própria dúvida.

Os relatos sussurram que Sabá não apenas trouxe presentes de ouro e especiarias, mas também um presente mais perigoso — uma presença que incendiava a corte e enredava o rei em um jogo onde o poder e a paixão se confundiam.

E não era apenas a força de sua beleza ou a precisão de sua mente que encantava, mas a complexidade com que entrelaçava ambos. Sabá era uma tempestade que se permitia ser calma, um fogo que se escondia sob a superfície, um enigma que não se revelava por inteiro, mas se insinuava nas sombras da alma.

Dizem que o rei, sábio e inabalável diante do mundo, encontrou nela um espelho inquietante — alguém que desafiava seus limites e o fazia sentir, pela primeira vez, o peso suave e ao mesmo tempo cruel do desconhecido.

Assim, Sabá não veio apenas para testar a sabedoria de um rei, mas para desafiar o próprio conceito de domínio, reescrevendo, em cada encontro, o que significava poder e rendição.

Durante dias, trocaram enigmas e versos, temperados com vinho, tâmaras e a incerteza do próximo passo. A tensão era tamanha que os escribas esqueceram de registrar as respostas: só se sabe que ela saiu de lá com um filho e ele, com o coração desfeito.

Mas Salomão, rei que era, jamais choraria em praça pública. E Sabá, rainha que era, não ficaria para consolar um homem — ainda que o amasse. Porque se há um drama eterno que o tempo não apaga, é este: o amor entre iguais que não se permite florescer.

Em noites sem nome, talvez ela tenha olhado para o céu, deitada em algum terraço alto, e pensado: "E se eu tivesse ficado? Mas rainhas não ficam. Elas partem. E reis — mesmo os mais sábios — não correm atrás. Eles escrevem provérbios, constroem templos, deixam o coração entre as pedras.

Sabá voltou ao seu reino. Grávida. Dizem que levando a Arca da Aliança. Dizem que nunca mais amou. E o mundo seguiu, desmemoriado e injusto com ela — como sempre é com mulheres que não pedem licença ao desejo, nem ao destino.

E enquanto o tempo lavava cidades e desertos, Sabá carregava consigo não apenas memórias de reis e templos, mas também o gosto de aromas que atravessariam séculos — mirra, canela, especiarias exóticas que tocavam a língua como notas de música distante. Sua presença deixava rastros que não se contavam em histórias, mas em sabores que insistiam em sobreviver, em suspirar por mãos que soubessem transformá-los em algo tangível. Mesmo sem chocolate ou frutos das Américas, cada aroma e cada tempero parecia conter um segredo antigo, uma promessa de luxo e deleite que atravessava o tempo.

Nos interstícios entre lenda e memória, entre pergaminhos amarelados e murmúrios de vento, a rainha de Sabá se tornava também alquimista: convertia a experiência do mundo — perfumes, cores, texturas, calor da cozinha real — em pequenas maravilhas que resistiam à ruína do tempo. Era uma rainha que podia governar o silêncio, mas também transformar o cotidiano em ritual, e a comida em uma narrativa de poder e desejo.

E assim, cada gesto seu, cada segredo guardado nas especiarias do Oriente, parecia implorar por continuidade. Não apenas nas histórias que homens e mulheres contariam, mas naquilo que os sentidos retêm: o aroma da coragem, da audácia, do prazer que se permite existir mesmo diante da eternidade da história. Porque algumas rainhas — assim como certos bolos — não podem ser apenas lembradas: precisam ser saboreadas com atenção, degustada na memória e no tempo, como se cada fragmento fosse um fragmento de mundo que sobrevive.

SABÁ EM FATIAS: A EPIFANIA DE JULIA CHILD NA FORMA DE BOLO DE CHOCOLATE

A rainha de Sabá não é apenas uma lenda esculpida em ouro e histórias antigas — ela é também um sabor, uma presença que se insinua nos sentidos, uma essência que se descortina lentamente, camada por camada, como a mais intricada das poesias, onde cada nota de especiaria, sussurra segredos de reis e desertos longínquos. Há nela algo que não se memoriza apenas com a mente, mas que se prova na pele, no paladar, no ar que se respira com atenção.

E então, permita-me conduzir essa metamorfose: da rainha que caminhava entre palácios e pergaminhos, à rainha que reina entre tigelas e fouets, onde a alquimia do chocolate e das especiarias se torna cerimônia.


Julia Child, cozinheira e apresentadora de TV americana, não era apenas uma mulher que cozinhava — era uma mulher que se entregava por inteiro ao rito da cozinha, com corpo e espírito imersos no amor pelos ingredientes, pelos gestos, pelos aromas que dançam no ar. Sua devoção era generosa, quase magnética, capaz de transformar o ato de preparar uma receita em um verdadeiro tributo à história e ao prazer.

Ela nos legou algo digno de coroar qualquer trono doce: o Bolo Rainha de Sabá — não apenas um bolo, mas uma epifania de chocolate profundo, especiarias que sussurram histórias antigas, e uma sofisticação que se move sem pressa, deixando que cada camada se revele no tempo certo. Cada mordida é reverência, memória e celebração de um poder feminino que atravessa séculos, que carrega em si a majestade de uma rainha que escolheu seu próprio caminho.

Há registros dela preparando este bolo (veja AQUI), e até hoje, ao ver Julia mover-se na cozinha, percebe-se que cada gesto era ritual e poesia, como se o chocolate e as especiarias se dobrassem diante de sua presença, obedecendo à sua vontade e à cadência de sua paixão. Ela não apenas ensinava receitas: ensinava respeito pelo tempo, pelo sabor, pela memória — ensinava a transformar alimento em experiência, em memória viva, em celebração silenciosa do que é essencial e eterno.

O Bolo Rainha de Sabá, assim, torna-se mais do que uma sobremesa: é um elo entre séculos, entre a Rainha lendária e quem se permite sentir, saborear e celebrar o poder feminino que não se curva, que resiste, que se manifesta em cada aroma e em cada pedaço que se leva à boca. Julia Child nos entregou isso como quem entrega um segredo precioso, envolto em chocolate, especiarias e reverência.

Às vezes a elegância reside na opulência do sabor — e este bolo é mais que sobremesa: é celebração em cada fatia.

Assim como a rainha atravessou desertos e desafiou reis, seu bolo carrega em si a mesma promessa de exotismo e poder silencioso. Não é apenas uma sobremesa; é uma viagem delicada e envolvente aos territórios do paladar, onde o doce se entrelaça com especiarias distantes, e a textura seduz como o olhar de uma mulher que conhece seus próprios mistérios e os guarda com graça absoluta.

O Bolo Rainha de Sabá é, em sua elegância, um convite a desvendar segredos — um jogo sutil entre o amargo e o suave, o intenso e o etéreo. Cada mordida é um diálogo: o cacau profundo conversa com notas exóticas, como as histórias que rodeiam sua musa, que jamais se entregava por completo e sempre deixava, no ar, o rastro de um fascínio impossível de apagar.


Ao saborear esta criação, não se trata apenas de alimentar o corpo, mas de nutrir a alma com um fragmento do enigma que foi, e ainda é, a Rainha de Sabá — símbolo de força, inteligência e sedução que transcende séculos, sobrevivendo no gesto, no aroma, no sabor.

Assim, o bolo deixa de ser apenas receita: torna-se celebração da mulher que desafia definições simples, que comanda silenciosamente sua própria história e nos convida a provar, ainda que por um instante, da grandiosidade de seu espírito em cada mordida.

E se alguém perguntar por que este bolo carrega o nome de uma rainha esquecida, sorria. Diga que é porque ela ainda vive — no mito que se recusa a desaparecer, na paixão interrompida que resiste, no aroma de chocolate que sobe da forma como uma lembrança que se recusa a ser apenas lembrança. Diga que ela foi uma mulher que poderia ter escolhido o amor, mas escolheu guardá-lo para sempre, como quem preserva um segredo precioso.

E isso, às vezes, é mais eterno que qualquer gesto entregue ou palavra pronunciada.

Hoje, em tardes silenciosas, talvez se perceba sua presença nas cozinhas onde se prepara um bolo denso, escuro, sutilmente perfumado de chocolate e especiarias, onde cada mexida é um ritual, cada suspiro do forno uma reverência à memória.

Se este bolo tem gosto de algo, é do que sentimos ao lembrar dela: da força silenciosa que atravessa séculos, da inteligência que não se curva, da beleza que desafia o tempo e o espaço. É o sabor de um mistério que não se entrega, do desejo contido em um gesto, do poder contido em um olhar que conhece todos os segredos do mundo.

Cada pedaço é memória e celebração — um fragmento da rainha que escolheu seu próprio caminho, que atravessou desertos e reis, que guardou o amor como quem guarda ouro e incenso. No aroma que sobe da forma, no calor que envolve a cozinha, no sussurro do chocolate e das especiarias, a rainha de Sabá respira.

Para mim, a Rainha de Sabá não é apenas história. Não é apenas mito. Ela é vento que atravessa desertos, luz que cintila sobre ouro antigo, aroma que persiste nas cozinhas silenciosas do tempo. Ela é presença — intensa, sutil, impossível de esquecer — uma epifania que se prova, se saboreia e se sente.

Ela vive na infância daquele menino que pressentia mistérios nos gibis; nos olhos que encontram magia em livros escondidos; no encantamento de um pudim impossível que desafiava a lógica e a imaginação; na curiosidade que o fez buscar o passado como quem busca um segredo guardado. Ela vive nas páginas que não se desgastam, nos aromas que atravessam séculos, nas especiarias que sussurram histórias de reis, desertos e mulheres que não se dobram.

Ela vive no gesto generoso de Julia Child, na alquimia de um bolo que transforma chocolate em memória, em celebração, em ritual. Cada fatia do Bolo Rainha de Sabá é um portal: o amargo do cacau, o perfume das especiarias, a textura que se desmancha na boca — tudo fala de um poder silencioso, de uma inteligência que desafia o tempo, de um desejo que não se entrega, mas se preserva com majestade.

Cada pedaço é memória, cada aroma é história, cada sabor é enigma. A Rainha de Sabá não se foi. Ela se espalhou pelo mundo em pequenas maravilhas — nos olhos de quem observa, no paladar de quem prova, na reverência silenciosa de quem entende que certos seres não se apagam. Eles se transformam em eternidade.

Enquanto houver alguém que feche os olhos diante de um bolo, que respire seu perfume e deixe o chocolate derreter lentamente na língua, a Rainha de Sabá continuará viva. Não apenas em tronos ou pergaminhos, mas nos sentidos que guardam seu mistério, na memória que recusa esquecê-la, na força de uma presença que atravessa séculos sem pedir licença. Ela é poder, inteligência, desejo e magia — e, acima de tudo, é indomável. Sempre foi, sempre será. 

Obs : Depois que postei o texto no Facebook da Confraria, rapidamente um amigo leitor tinha o livro e conseguiu identificar a receita. Entao acrescentei as imagens do livro pra vocês verem que minha memória não é de todo ruim. Agradeço O Luciano Cartegni pelo feito. 

Bolo Rainha de Sabá

[Reine de Saba avec Glaçage au Chocolat, ou Bolo de Amêndoas e Chocolate, da Julia Child]

Para o bolo:

120g de chocolate meio-amargo, com 50% de cacau;

2 colheres de sopa de rum, ou de café quente;

120g de manteiga sem sal, em temperatura ambiente;

2/3 da xícara de açúcar;

3 gemas;

3 claras;

1 pitada de sal;

1 colher de sopa de açúcar;

1/3 da xícara [85g] de farinha de amêndoas;

1/2 xícara de farinha de trigo.

Para o glacé:

70g de chocolate meio-amargo, com 50% de cacau;

75g de manteiga sem sal, em temperatura ambiente;

2 colheres de sopa de rum ou café quente;

Amêndoas em lascas para decorar.

Preparo: Bolo - Pré-aqueça o forno a 170 graus. Unte uma fôrma redonda de 20cm de diâmetro com manteiga e enfarinhe, batendo bem para retirar o excesso de farinha. Reserve. Pique o chocolate em pedaços pequenos, junte o café ou rum e leve ao fogo, em banho-maria, mexendo até derreter [apague o fogo antes da água do banho-maria começar a ferver]. Reserve. Em uma tigela média bata a manteiga com o açúcar até ficar cremoso e claro [pode ser com a batedeira ou com uma colher grande/ fouet]. Adicione as gemas, uma a uma, batendo bem após cada adição. Reserve. Em outra tigela bata as claras em neve, com a pitada de sal, até formar picos moles. Adicione a colherada de açúcar e continue batendo até formar picos firmes. Reserve. Adicione o chocolate derretido à mistura de gemas, misturando para incorporar. Adicione a farinha de amêndoas e misture bem. Junte as claras em neve às colheradas, alternando com colheradas de farinha, e misturando com movimentos circulares de baixo para cima, sem bater. Distribua a massa na fôrma preparada e alise a superfície. Leve ao forno por cerca de 25 minutos, até que nas bordas a massa esteja assada, mas com o centro ainda meio mole. Retire do forno, deixe esfriar por 10 minutos na forma, e desenforme. Passe para o prato de servir e deixe esfriar completamente. Prepare o glacê – Derreta lentamente o chocolate misturado com o rum ou café em uma tigela de metal ou vidro, em banho-maria, sem deixar a água ferver. Retire do banho-maria, acrescente a manteiga, uma colherada por vez, misturando bem após cada adição. Prepare uma tigela grande, com gelo e água gelada, e coloque a tigela do glacé sobre dessa, misturando sempre, até esfriar e ganhar uma consistência de cobertura. Espalhe o glacé sobre o bolo frio, com o auxílio de uma espátula, e decore com as lascas de amêndoas.

Dica de leitura:  CASTRO, Eugénio de. Belkiss, Rainha de Sabá, d’Axum e do Hymiar: poema dramático em prosa. Coimbra: F. França Amado, 1909.