quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Vasilopita, uma tradição grega para celebrar o ano novo

 

O Dia de Ano Novo, também dia de festa de São Basílio, é um dia especial no calendário grego. Não só assinala o início de um novo ano, como também é, de certa forma, a versão grega do Dia de Natal, pelo menos no que diz respeito à distribuição de presentes. Diz-se que era nessa altura que São Basílio distribuía presentes às crianças, e não no dia 25 de dezembro como acontece hoje.

O Dia de Ano Novo também é sinônimo, na maioria dos lares gregos, de vasilopita, ou vasilopoulla, como é conhecido em Chipre, um pão/bolo doce especial que é assado com uma moeda no centro.



A tradição de assar e cortar uma “pita” especial (que pode significar um pão, um bolo ou mesmo uma torta) todos os anos no dia 1º de janeiro é observada em homenagem ao nosso Basílio, o Grande, arcebispo de Cesaréia na Capadócia (na Turquia moderna) daí o seu nome “Vasilopita” que significa “Pão de Basílio”. Esta tradição é observada tanto nas igrejas como nas casas dos fiéis pois, segundo a lenda, acredita-se que a vasilopita foi introduzida por São Basílio e, para entender o porquê, devemos nos aprofundar na história de sua vida.

Nascido em Cesaria, Capadócia, em 330 d.C, São Basílio nasceu em uma família rica. Ele passou a estudar teologia em Constantinopla e construiu a igreja Basilíada fora de Cesaréia, da qual se tornou bispo. Sua natureza filantrópica o levou a distribuir sua riqueza entre os pobres.

                                       Basílio da Cesareia, ou Basílio Magno (O Grande)

Durante séculos e séculos, pais, avós e padrinhos relataram o seguinte às crianças sobre São Basílio e a Vasilopita. Certo ano, durante uma época de terrível fome, o imperador cobrou um imposto pecaminosamente excessivo sobre o povo de Cesaréia. O imposto era um fardo tão pesado para as pessoas já empobrecidas que, para evitar a prisão dos devedores, cada família teve de renunciar às poucas moedas e joias restantes, incluindo preciosas relíquias de família. Ao saber desta injustiça sofrida pelo seu rebanho, São Basílio, o Grande, o arcebispo de Cesaréia, pegou no seu bastão de bispo e no livro do santo Evangelho e foi em defesa do seu povo, chamando destemidamente o imperador ao arrependimento. Pela graça de Deus, o imperador se arrependeu! Ele cancelou o imposto e instruiu seus cobradores de impostos a entregarem a São Basílio todos os baús contendo as moedas e joias que haviam sido pagas como impostos pelo povo de Cesaréia.

Mas agora São Basílio se deparou com a difícil e impossível tarefa de devolver esses milhares de moedas e peças de joalheria aos seus legítimos proprietários. Depois de orar por muito tempo, São Basílio colocou todos os tesouros em uma enorme pita. Convocou então todos os habitantes da cidade para rezar na catedral e, após a Divina Liturgia, abençoou e cortou a pita, dando um pedaço a cada pessoa. Milagrosamente, cada proprietário recebeu em seu pedaço de Vasilopita seus próprios objetos de valor.

    Essa imagem, no entanto, mostra que ao invés de uma grande pita, foram feitas várias, o que  faz mais sentido pela quantidade de dinheiro e joias arrecadadas 

Todos voltaram para casa alegres, dando graças a Deus que os livrou da pobreza abjeta e ao seu bom e santo bispo São Basílio, o Grande! Em memória daquele milagre realizado por Deus como resultado do amor de São Basílio e da defesa do seu povo, os Cristãos Ortodoxos têm observado a tradição da Vasilopita todos os anos no dia 01 de janeiro – a data em que São Basílio repousou no Senhor no ano 379.

Desde então a tradição evoluiu, sendo o tesouro uma moeda colocada no centro da vasilopita. Em alguns lugares a Vasilopita é preparada como um pão rico (como o usado para Artoklasia), enquanto em outros lugares assume a forma de um bolo com especiarias (sem cobertura). Mas não importa a forma que uma Vasilopita possa assumir, todas elas têm uma coisa em comum: cada uma contém uma única moeda. Depois de colocar a massa do pão ou do bolo na assadeira adequada, o padeiro faz com a moeda embrulhada em papel alumínio o sinal da Cruz sobre ela, fecha os olhos e a coloca secretamente na Vasilopita não assada. Depois que a Vasilopita é assada e resfriada, ela é abençoada e cortada após a Divina Liturgia para a festa de São Basílio em 1º de janeiro.


O corte da Vasilopita é uma gloriosa tradição familiar não só na Grécia, mas em todo o mundo e é a maneira mais maravilhosa de começar cada Ano Novo. Mas mesmo que você não tenha a sorte de encontrar a moeda no seu pedaço de bolo ao cortar a Vasilopita, não se decepcione. Lembre-se sempre de que a verdadeira sorte está escondida em suas próprias mãos. Porque, como dizia o antigo trágico grego Sófocles: “A senhora sorte nunca ajuda quem não se ajuda”.

Desde a Antiguidade os gregos ofereciam pão e doces amassados com mel para homenagear os deuses durante os principais festivais da colheita. Hoje o costume do pão/Bolo de Ano Novo é mantido em toda a Grécia, e a variedade de receitas utilizadas está ligada à tradição culinária de cada região: pão doce, bolo ou tsoureki (já tratei dele AQUI); tortas doces ou salgadas de massa folhada feitas na Macedônia e no Épiro, já que essas duas áreas são conhecidas por sua confecção tradicional de tortas. Em Atenas, a receita mais popular do Bolo de Ano Novo é aquela chamada Politiki Vasilopita e os ingredientes principais são farinha, ovos, açúcar e leite: vem em todos os formatos e tipos, mas geralmente é um bolo doce e fofo.

Mas, então se observa uma variedade de ingredientes da vasilopita usados em todo a Grécia: Na Ilha Zante, o pão é amassado com massa fermentada, amêndoas e especiarias; em Creta é amassado com tsikoudia (ou raki – uma bebida forte local) e gotas de mástique em pó (já tratei dela AQUI); no norte da Grécia, os habitantes locais preparam uma torta feita com gergelim ou uma torta doce de abóbora; na Ilha de Lesbos é feito com queijo myzithra; na região do Épiro, as tortas são recheadas com carne (cordeiro ou porco), queijo feta e bastante hortelã.

A Mastiha , Mastique ou Mastike é uma especiaria grega resinosa que se assemelha a uma lágrima antes de se solidificar,
                                      Mastiha em resina

Também existem diferenças na forma como são decoradas ou dimensionadas, embora algumas decorações sejam utilizadas na maioria das Vasilopitas. As mais comuns são: o número do Ano Novo é escrito com amêndoas sem casca ou com açúcar (num bolo doce); formato redondo geralmente é o mais popular; uma moeda que às vezes pode ser de ouro ou de prata, é colocada na massa antes ou depois de assada.

A tradição grega de cortar a Vasilopita é uma tradição praticada todos os anos pelos gregos, não só na Grécia e em Chipre, mas por todos aqueles que conhecem a história e gostam desse pão/bolo de Ano Novo. A razão para isso é que a moeda escondida dentro da Vasilopita, que em grego se chama “flouri” (φλουρί), representa a sorte e mostra quem será o afortunado do Ano Novo. Este costume está relacionado com a necessidade que o homem sente desde o início do mundo de prever o futuro.

Desde o século IX, a vasilopita se estabeleceu como um costume na tradição ortodoxa grega. Embora se diga que o motivo para fazer vasilopita é a comemoração de São Basílio, o costume tem uma história complicada. A Vasilopita também está ligada aos antigos pães e bolos gregos que se destinavam exclusivamente como oferendas religiosas aos deuses e aos espíritos da natureza e aos bolos romanos que eram oferecidos ao deus de duplo rosto Janus, o deus que dá nome a Janouarios/Janeiro.

                                           Janus e Bellona

É um costume rico em história e remonta à antiga civilização grega. Durante essa grande época, os gregos antigos costumavam realizar todos os meses rituais dedicados a cada um dos 12 deuses do Olimpo. Uma das cerimônias envolvidas era o cozimento de “pães festivos” – “eortastikoi artoi” (εορταστικοί άρτοι) feitos com os primeiros grãos da nova estação. Esses pães eram dados como oferenda - por exemplo - a Deméter, a deusa da agricultura, dos cereais e do pão, durante o ritual “Thalisia” (Θαλύσια) e, neste caso eram chamados de “thalissios artos” (θαλύσιος άρτος); quando eram oderedido à Apolo, o deus da música, artes plásticas, adivinhação e purificação, durante o ritual “Thargilia” (Θαργήλια), era chamado de “thargilos artos” (θάργηλος άρτος); já quando era dedicado a Hades, o deus do submundo e era chamado de “milihios plakous” (μειλίχιος πλακούς) ou “ melitouta” (μελιτούττα) (uma espécie de pão doce com mel) e assim por diante. Além disso, todo soldado ateniense era obrigado a dedicar três pedaços de pão a Ares, o deus da guerra, antes de partir para a guerra. O primeiro era o desejo de vencer a batalha. O segundo era um desejo de voltar para casa. E o terceiro era um desejo de voltar saudável e capaz de corpo e mente.

Curiosamente o “milihios plakous” ou “melitutta” dos antigos gregos era uma sobremesa doce conhecido como placenta que os antigos gregos ofereciam aos deuses do inferno pelos seus mortos. O Termo grego que dá nome a essa sobremesa significa em português algo como "conversa mansa" e é compreensível quando se pensa que o mel e a doçura usados ​​neste caso são para adoçar o inferno, de modo que seria benéfico para os mortos. O termo “conversa mansa” (milihios plakous) se refere aquela fala que é pronunciada de uma forma simpática e doce, tal como o tipo de vasilopita. mas enquanto “milihios plakous”, era destinada aos deuses do inferno é demonstrada pelo fato de ter sido cortada nas horas da noite ou durante o período dos Doze Dias, que segundo a crença popular era um período de ascensão ou turbulência das almas. As cabanas nos memoriais ou o pão oferecido nos memoriais e untado com açúcar eram considerados uma continuação deste evento.

Mais tarde, os romanos adotaram os costumes dos gregos e começaram a fazer o seu próprio pão doce, durante o Festival Saturnalia (Kronia para os gregos), como oferenda a Saturno, o deus da agricultura, que envolvia a seleção de um “rei” por sorteio. Foram os primeiros a estabelecer a fava ou moeda escondida no pão como sinal de saúde e sorte. Também colocavam no pão um pedacinho de papiro, que daria liberdade ao escravo que o encontrasse. A mesma tradição foi adotada pelos habitantes de Bizâncio e de todas as nações latinas.

Quando o cristianismo se espalhou pelo mundo, a tradição da Vasilopita coincidiu com a festa de São Basílio, o Grande - Agios Vasilios O Megas (Άγιος Βασίλειος ο Μέγας) que é comemorada no dia 1º de janeiro, no início do Ano Novo e na época da Epifania, conhecida como “Observância Vasilopita”.

Na Arcádia (Peloponeso), até ao século XIX, a moeda era colocada numa galinha empalhada, a vasilokota (kota = galinha). Embora não seja tecnicamente pão ou torta, deve-se mencionar os loukoumades (já tratei deles AQUI) e a halva (regiões da Ásia Menor) do Ano Novo, que também continham uma moeda. Hoje em dia predomina a torta doce, que antes era feita principalmente em áreas urbanas, transformada em um grande bolo luxuoso.

Do início ao fim, a vasilopita é tratada com muita seriedade. Em alguns lugares a pita ainda é feita pela dona da casa, que usa suas melhores roupas e joias para a ocasião. De profundo significado religioso e agrícola, é considerado o pão ou a torta da fertilidade e da boa sorte e é acompanhado de ações de magia. Até recentemente, os camponeses gregos faziam o sinal da cruz antes de assá-lo. Chaves, agulhas etc. eram usadas para fazer formas estranhas em vasilopites doces e pães, com a intenção de trancar os mexericos ou impedir que o mau-olhado entrasse nas casas. As esposas dos agricultores faziam árvores e animais de massa, as esposas dos pastores faziam ovelhas, cães e potes de leite, os tipos que São Vasilios deveria abençoar. Na saborosa vasilopita feita com muitas folhas de massa folhada, símbolos e sinais, além da moeda, estavam escondidos no recheio: um pauzinho para o pastor, uma palha ou um grão de trigo para o agricultor, um feijão ou uma noz para a fertilidade dos campos e da família. Quando a torta era cortada, quem encontrou a palha ou o palito em seu pedaço teve sorte para sua colheita ou para seus animais e quem encontrou a moeda teve sorte para si.

Tradicionalmente, na chegada do Ano Novo o pai de família gira a torta três vezes em nome da Santíssima Trindade. Depois ele faz o formato de uma cruz acima da pita com uma faca e corta a torta em pedaços nomeando cada um deles em um turno estabelecido. A primeira peça é dedicada a Jesus, a segunda à Virgem Maria, a terceira a São Basilio, a quarta à casa, a quinta ao estrangeiro pobre e necessitado que possa bater à porta, e o resto aos membros do família por ordem de idade.

A peça para os pobres e estrangeiros é de especial interesse porque simboliza o nosso dever para com os desafortunados do mundo. Dado que o cuidado dos pobres e necessitados não é apenas a base da filoxenia e da filantropia, valores fundamentais da ética social grega, mas também um princípio do cristianismo, a torta de Ano Novo é mágica tanto para os desafortunados como para aqueles que lhes oferecem abrigo. O conselho homérico ‘O estrangeiro e o suplicante são como seu irmão. E estranho, você é bem-vindo. Nossa casa é sua.” (Homero. Odisseu. IX, 546-547) e o cristão “Dou hospitalidade ao estranho para que Deus não se torne um estranho para mim” encontraram seu eco em um pedaço de torta.

Vasilopita

1 xícara de manteiga sem sal

1 xícara de açúcar

3 ovos extragrandes

Casca ralada de 2 laranjas grandes

Casca ralada de 2 limões grandes

1/2 colher de chá de caroços de cereja azeda esmagados/em pó (especiaria compara com o nome de mahleb, em árabe, ou makhlepi, em grego)

2 colheres de chá de mastique de goma triturada/em pó (miski árabe, mastikha grego)

4 xícaras de farinha de trigo

2 colheres de chá de fermento em pó

1/2 colher de chá de sal

1/2 xícara de leite

1 gema de ovo misturada com 1 colher de sopa de leite

sementes de gergelim

Amêndoas descascadas ou em lâminas para decorar

uma moeda limpa - embrulhada em folha de papel alumínio

Preparo: Pré-aqueça o forno a 180 C graus. Unte com manteiga uma forma redonda de 25 centímetros e reserve. Em uma tigela grande (ou na batedeira), bata a manteiga até obter um creme claro e fofo. Junte o açúcar e bata até obter uma mistura clara. Junte os ovos, um de cada vez, batendo bem a cada adição. Junte as cascas de laranja e limão, os caroços de cereja azeda triturados/em pó e a mastique. Em uma tigela separada, peneire três xícaras de farinha, o fermento e o sal. Com a batedeira em velocidade baixa, acrescente aos poucos a mistura seca alternadamente com o leite. A massa ficará bem grossa. Com uma colher de pau, misture aos poucos o restante da farinha, batendo bem até ficar homogêneo. Espalhe a massa na forma, coloque a moeda em uma parte da massa até que esteja completamente coberta (não deixe ninguém ver onde você a colocou!) e alise a superfície. Pincele o topo uniformemente com a mistura de ovo e leite e polvilhe com sementes de gergelim. Pressione suavemente as amêndoas sem casca ou as lâminas de amêndoas no topo, faça um sinal da cruz e soletre a data do ano novo. Asse por 45 minutos, até dourar (se dourar muito rápido, cubra com papel alumínio). Deixe esfriar na assadeira por 15 minutos antes de retirar da forma e deixe esfriar bem antes de fatiar.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O Zelten trentino: O pão/bolo natalino da tradição do Alto Adige

 

Poucos lugares conseguem transmitir a atmosfera invernal como a região italiana de Trentino-Alto Adige. As suas antigas aldeias iluminadas para as celebrações, os telhados inclinados carregados de neve, as casas bordadas de luz; as Dolomitas com os seus altos picos rochosos - o Cime di Lavaredo, o grupo Sella ou o Pale di San Martino - os lagos, as pistas de esqui, os vales imaculados emolduram as aldeias tornando esta região uma experiência única e evocativa para uma paisagem clássica natalina.

A cozinha do Trentino Alto-Adige tem duas almas: as receitas típicas são, de fato, influenciadas tanto pela gastronomia veneziana, com fortes toques montanhosos, como pelos hábitos alimentares austríacos. Não só isso: os pratos são muitas vezes uma mistura de tradições da cozinha camponesas e da cozinha de montanha, por um lado, e refinamentos trazidos à região pelos chefs da Casa dos Habsburgos. As sobremesas do Trentino e do Tirol do Sul também apresentam essas características. Entre todas elas, uma se destaca nessa época natalina pela singularidade e riqueza de ingredientes: o zelten, uma sobremesa festiva por excelência.

Um bolo? Um pão recheado? Com frutas cristalizadas ou frutas secas? E, porque não: tudo isso junto! O que é o Zelten não é uma questão resolvida: o fato, é que ele é a sobremesa de Natal trentina por excelência, e sua receita tem muitas variações. Alguns preferem-no macio, outros mais seco – tipo um pão de campanha. O Zelten clássico, geralmente redondo ou quadrado, ainda pode ser encontrado em forma de coração: o segredo é que, tal como o pão, fica bom mesmo muitos dias depois de cozinhado. Este poderá ser precisamente o segredo do sucesso do Zelten, nascido como um pão de “viagem”, substancial e bom mesmo quando maturado.

No Trentino-Alto Adige não há Natal sem ele. O Zelten é uma sobremesa típica feita de frutas secas e cristalizadas. O nome de origem alemã deriva do advérbio alemão “selten” que significa “às vezes ou raramente” – justamente porque antigamente era preparado em poucas ocasiões selecionadas, devido à sua extrema riqueza.


Nascido como sobremesa de inverno, época em que os frutos secos eram mais encontrados nos vales, hoje está disponível durante todo o ano. Membro de pleno direito da família dos pães doces, característica de muitas regiões italianas, o Zelten consiste em uma variante enriquecida de pães/bolos caseiros. Esta sobremesa é um exemplo típico da “cozinha de montanha”, preparada apenas com ingredientes facilmente disponíveis e que podem ser conservados por muito tempo. Embora a receita varie ligeiramente de vale para vale e quase de família para família, em toda a região italiana convenciona-se uma massa à base de farinha, ovos, manteiga, açúcar e fermento, com adição de frutos secos, principalmente passas, figos secos, amêndoas, pinoles e nozes.


Investigando a história desta sobremesa típica descobri que não é tão claro a que feriado se destinava inicialmente. Segundo uma tradição antiga, no século XVIII, o Zelten era preparado por ocasião da festa de Santa Lúcia, no dia 13 de dezembro, para ser consumido durante os feriados de Natal.

Outra tradição, porém, afirma que era típico preparar a sobremesa por ocasião do dia 21 de dezembro, véspera de São Tomás. Durante a preparação, da qual toda a família participava em agradecimento pela comida, as mulheres rezavam ao santo para que ele trouxesse amor para suas vidas. Antes de ser assado, a mãe, unindo o sagrado ao profano, marcava uma cruz no centro do Zelten como bênção. Depois de pronto era colocado no armário para maturar o sabor.

Também existem versões conflitantes sobre a ocasião em que a sobremesa deveria ser consumida. A primeira afirma que a sobremesa deveria ser comida no dia de Natal. Outros, porém, acreditam que ela deveria ser comida no Dia da Epifania (6 de janeiro). Segundo a tradição do "Natal", um Zelten era comido no retorno da missa da meia-noite entre os familiares, enquanto os demais eram dados de presente pelas filhas prometidas aos seus futuros maridos.

A receita do Zelten é uma verdadeira joia. Preservada na Biblioteca Cívica Tartarotti de Rovereto, encontra-se a fórmula do que, para alguns, é a receita “oficial” do zelten. Datada do século XVIII, essa receita descrita em “A arte de cozinhar. Receitas de comida e sobremesas", de Don Felice Libera, foi encontrada nesse manuscrito de culinária e confeitaria trentino do século XVIII com o nome de Celteno – que mais tarde viria a ser o zelten. O manuscrito foi doado à Biblioteca Tartarotti pelo Doutor Ruggero de Probizer de Rovereto que encontrou o volume encadernado em pele de bezerro na casa de sua mãe Clotilde Libera de Avio, dona de uma fiação.

                                        O manuscrito que contem o registro do Zelten.

O preciosíssimo manual encadernado em pele de bezerro conta com 301 páginas escritas, em perfeito estado, repleto de receitas, algumas verdadeiramente curiosas como a “sopa pútrida” feita com partes de aves ou a sugestão de conservação de ovos para “um ou dois meses”.

A receita do zelten de Don Felice Libera é provavelmente a mais antiga para zelten registrada e que continuou a ser transmitida. As instruções são simples, ele diz: pegue uvas cristalizadas, passas, pignoli, amêndoas cortadas sem pele, casca de limão picadinha, anis, cidra cristalizada, canela em pó, um pouco de açúcar fino e um pouco de farinha e misture tudo; depois pegue um pedaço de fermento, do tamanho de uma noz, e dilua com uma ou duas claras de ovo; em seguida, misture com o material mencionado acima, forme o Celteno em uma faixa e cozinhe em fogo baixo; depois de cozido, se quiser embelezar com cidra, bata uma clara de ovo com um pouco de açúcar, e com isso molhe o Celteno, e também a cidra, e depois coloque para secar no forno.”

                                        Etapas da preparação do Zelten

De tal forma, vê-se que o Zelten nasce de forma simples:  é claramente uma preparação da cozinha pobre que se utilizava de ingredientes facilmente disponíveis e armazenáveis. E a mesma sobremesa era maturada durante dias porque – dizia-se – era melhor que descansasse para ter mais sabor.

                                        O zelten pode ser um excelente presente gastronômico

Hoje o Zelten é produzido em todo o Trentino-Alto Adige e a receita difere de vale para vale principalmente devido à disponibilidade histórica de certos ingredientes. O Zelten do Tirol do Sul de Bolzano, por exemplo, é rico em frutas, enquanto no Trentino a massa reina suprema com menos frutas e mais frutos secos. No Alto Adige esta sobremesa nem sempre tem formato circular, aliás inúmeras variações podem ser encontradas no mercado: em forma de coração, oval, retangular, alongada. O Zelten do Tirol do Sul também se diferencia dos demais por utilizar menos farinha que neste caso é o centeio. Tal como acontece com todas as sobremesas típicas daquela tradição, cada família tem uma receita muito pessoal que guarda zelosamente, transmitida de geração em geração. As doses de ingredientes utilizadas na massa e na decoração mudam, mas não o espírito de partilha que distingue esta sobremesa de Natal.

 Zelten

150g de figo seco picado

100g de uvas passas

50g de tâmaras sem caroço, picada

150g de frutas cristalizadas

100ml de grappa (ou use um vinho branco do seu gosto)

100ml de água

Casca ralada de meio limão

Casca ralada de meia laranja

150g de manteiga na temperatura ambiente

100g de açúcar

2 ovos inteiros

200g de farinha de trigo

1 colher de fermento em pó

150g de nozes picadas

50g de pinoli

50g de amêndoas laminadas

50g de avelãs picadas

Para decorar

2 colheres sopa de mel

1 colher de sopa de água

Amêndoas peladas

Cerejas cristalizadas ou em calda

Preparo: na noite anterior, junte numa tigela a grappa e a água e adicione as passas, as tâmaras, as frutas cristalizadas, os figos secos picados e as raspas das cascas de limão e de laranja, deixe macerar coberto com uma tampa ou filme plástico até o momento do dia em que preparar a sobremesa. No dia seguinte, bata a manteiga com o açúcar até obter um creme fofo, junte os ovos misturando bem, depois junte o fermento e a farinha até ficar homogêneo. Em seguida, junte as frutas maceradas com todo o liquido restante delas, adicione os frutos secos e misture bem. Numa forma redonda untada e enfarinhada (eu ainda gosto de forrar o fundo com papel manteiga) despeje toda a massa e espalhe para ficar com a mesma altura. Faça decorações florais usando as amêndoas peladas e as cerejas, e leve ao forno preaquecido a 180C para assar por 40 minutos, ou até dourar bem. Depois de assado retire do forno, e prepare a calda de brilho. Numa panela pequena misture as duas colheres de mel e uma de água e deixe dissolver. Depois desligue o fogo e pincele toda a sobremesa para que ela ganhe um lindo brilho.

Observações: você pode incrementar ainda mais o seu Zelten adicionando a esa receita a seguinte quantidade de especiarias: ½ colher de chá de canela , 1 pitada de cravo em pó, 1 pitada de pimenta da Jamaica , 1 pitada de noz moscada.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Antes do peru de Natal havia o pavão do banquete: pequena história sobre o antigo costume da Torta natalina de carnes no formato de pavão

 

Em seu Epulario, ou O Banquete Italiano de 1598, Giovanne de Rosselli oferece instruções para uma impressionante peça central de banquete do século XVI: um pavão dourado que cospe fogo. Embora a carne do pavão seja comestível – a carne era cuidadosamente removida do corpo da ave, assada e depois remontada – a receita era toda uma questão de apresentação.

Detalhe da pintura Taste, de Peter Paul Rubens e Jan Brueghel, apresentando uma elaborada variedade de tortas de carnes de aves

“Se você quiser que o pavão atire fogo na boca, pegue uma onça de cânfora embrulhada em algodão e coloque no bico do pavão com um pouco de Aquanity, ou vinho bem forte, e quando for mandar para a mesa, ateie fogo ao Algodão, e ele lançará minério um bom tempo depois. E para dar uma aparência maior, quando o Pavão estiver descansado, você pode doura-lo com folhas de ouro e colocar a casca sobre o mesmo ouro, que pode ser temperado com muito doce. O mesmo pode ser feito com um faisão ou qualquer outro pássaro.”  -  “To dresse a Peacocke with all his feathers “ (Para vestir um Pavão com todas as suas penas) de Epulario, ou o Banquete Italiano, Giovanne de Rosselli (impresso na Inglaterra em 1598)

Jantares luxuosos - e os livros de receitas e manuais de instruções sobre como executá-los - eram populares durante a Renascença e enfatizavam a arte da comida, além de - e às vezes até - seu sabor. Os pavões eram, portanto, um alimento ideal para banquetes porque sua plumagem colorida proporcionava uma exibição artística. Mas, no início do período moderno, os perus substituíram os pavões como alimento habitual em cerimônias e feriados.

O historiador do século XVI Francisco López de Gómara, nos conta que os perus (então chamados de “pássaros indianos”. Já tratei sobre eles AQUI e AQUI) estavam entre os alimentos que Cristóvão Colombo deu ao rei Fernando e à rainha Isabel no seu regresso a Espanha. Desses alimentos – que incluíam coelho, pimentão, batata doce e pão de milho – o peru foi o mais rapidamente adotado na dieta europeia. Foi a primeira importação americana a aparecer nos livros de receitas reais e, no século XVII, o peru aparecia regularmente nos cardápios de casamentos, festas e feriados.

Uma pintura de 1618 de Jan Brueghel, o Velho, Os sentidos da audição, tato e paladar. Observe à esquerda do centro a torta de pavão à esquerda da mulher de vestido vermelho.


detalhe da pintura anterior - Ampliação da torta de pavão da mesma pintura. Observe a cabeça e a cauda do pavão saindo da torta.

A popularidade do peru continuou: no final do início do período moderno, o peru era (e continua sendo) a comida de Natal por excelência a partir da Inglaterra. O gastrônomo do século XVIII, Jean Anthelme Brillat-Savarin, escreveu que “o peru é certamente um dos mais belos presentes do Novo Mundo para o Velho”.

A popularidade imediata do peru pode ser explicada pela sua semelhança (e, para as pessoas que vivem no início do período moderno, pela sua superioridade) com o pavão. A permutabilidade percebida dos pássaros é exemplificada em um par de pinturas a óleo de natureza morta de 1627, de Pieter Claesz. 

“Natureza morta com torta de pavão”, Pieter Claesz (óleo sobre painel, 1627), imagem cortesia da National Gallery of Art, Washington

A primeira das pinturas do banquete tem como tema central uma grande torta de pavão – feita de massa onde se cozinha a carne do pavão. O pescoço e a cabeça do pássaro são erguidos em cima da massa e suas asas e penas da cauda são posicionadas ao redor dele, de modo que a torta represente o corpo do pássaro.

“Natureza morta com torta de peru”, Pieter Claesz (óleo sobre painel, 1627), Rijksmuseum

 A segunda pintura é notavelmente semelhante, apresentando uma torta de peru no lugar do pavão. A segunda imagem é literalmente modelada na primeira: ranhuras nas bordas da primeira pintura sugerem que Claesz não apenas usou o mesmo desenho para a segunda peça, mas também copiou diretamente da primeira pintura, criando um sistema de grade de cordas para permitir uma transferência mais precisa da imagem. Como nos verdadeiros banquetes, o pavão vinha primeiro.

O pavão e o peru são as peças centrais de suas respectivas pinturas, que também retratam outros bens de luxo importados de todo o mundo, como pratos de porcelana da China, uma concha de nautilus do Indo-Pacífico e facas com cabo de marfim. As próprias tortas incluiriam especiarias do sul da Ásia e do sudeste asiático, como canela, cravo, gengibre e macis – a película que envolve a noz moscada.

Não muito diferente das casas de gingerbread de hoje, os pavões, os perus e as elaboradas tortas feitas com eles não eram necessariamente consumidas, embora as pessoas pudessem comê-las durante a festa. Os primeiros banquetes modernos eram uma forma de teatro doméstico: a encenação e a apresentação da comida eram cuidadosamente elaboradas para criar uma experiência envolvente.

Devido à semelhança em tamanho e aparência, o pavão e o peru poderiam ser substituídos nessas apresentações. Por exemplo, em seu livro marcante sobre escultura de carne, Vincenzo Cervio – um renomado trinchante italiano – trata pavão e peru juntos. Seu método de trinchar carnes – conhecido como método italiano – consistia em segurar a ave no ar sobre um garfo, para que a carne e seu entalhe pudessem ser observados por todos. A fusão imediata de pavão e peru no seu livro de 1581 também demonstra a rapidez com que o peru foi adoptado em Itália, após a sua introdução em Espanha.

O “galo indiano” [galo indiano, ou seja, peru] e “Pavone” [pavão] em Il trinciante [O Escultor], de Vincenzo Cervio, 1593. Biblioteca Britânica.

No início do período moderno, existiam sistemas complexos de hospitalidade e oferta de presentes, e a comida estava no centro destas práticas, uma vez que a comida era ao mesmo tempo obrigatória para ser servida aos convidados e o presente mais comum.

Aliás, me permito abrir um parêntese aqui. Esse hábito de dar presentes gastronômicos no Natal também era uma realidade em solo brasileiro. Prova disso são as cenas da realidade brasileira, pintadas por Jean Baptiste Debret , em particular uma chamada de ‘ Presentes de Natal (de 1927)”. Como um bom pintor de histórias, ele procurou registrar detalhes do que ocorria no tempo de suas visitas ao Brasil do primeiro Império, na cena em questão, vê-se, presentes de Natal sendo entregues por três homens, empregados que pertenciam a alguma família rica. A gravura mostra a entrega de presentes de importância diversa: o primeiro, carregado por três homens negros; já a apresentação do segundo, mais modesto e talvez galante, é confiada à inteligência de uma mulher negra encarregada de entrega-lo num rés-de chão. No plano geral, vemos um homem carregando um leitãozinho e um peru, e uma cesta na cabeça com outros presentes cobertos por uma toalha. Outro homem carrega um leitão de maior porte. Enquanto o homem que caminha mais a frente carrega uma cesta com muitas garrafas de vinho do porto e uma carta de congratulações natalinas. Toda a cena se passa perto do Jardim Público, cujo muro, que dá em parte para o Largo do Convento da Ajuda do rio de Janeiro e em parte para o mar, se percebe ao longe.

Como vemos, seja por sua beleza, utilidade e novidade, pavões e perus eram excelentes presentes, tanto vivos quanto mortos. Os primeiros relatos domésticos ingleses modernos detalham assim as dificuldades da criação de perus, uma prática que decolou em meados do século XVI.

Apesar de toda a atenção que os pavões recebiam como belas paisagens, eles eram considerados como más fontes de nutrição. Em seu tratado dietético intitulado Klinikē [isto é, a arte do médico], ou Klinikē, Or the Diet of the Diseased  (A Dieta dos Doentes, de 1633), James Hart diz que embora “[s] fosse considerado um prato delicado entre os romanos antigos”, “[t] ] O pavão é de carne muito dura, sólida e firme, e de digestão difícil, sendo de uma substância quente e seca, gerando humores grosseiros e melancólicos, e portanto necessita de um estômago forte”, embora ele qualifique que “[outros] , mais uma vez, considero que este é um alimento tão bom quanto um peru.

No sistema humoral galênico, que ainda era uma prática comum no início do período moderno, uma “substância quente e seca” não era necessariamente uma má escolha para todos. No entanto, o pavão não era considerado uma carne ideal e por isso talvez fosse substituído. Mas, o mais importante é que os perus substituíram os pavões porque tinham um sabor melhor: a carne do pavão era notoriamente seca e dura.

Pode ser uma surpresa para nós que o peru – amplamente reconhecido como uma das carnes mais secas – tenha sido considerado uma melhoria em relação ao pavão. Sua secura é talvez uma das razões pelas quais muitas das receitas de peru na coleção de livros de receitas do início da modernidade incluem muito bacon e manteiga.

Hoje, o peru de Natal e de Ação de Graças é tradicionalmente servido com molho, que adiciona a umidade necessária. Esta história de consumo de peru com bastante molho remonta à sua introdução na Europa.

É revelador que quase não haja referências a pavões na coleção de livros de receitas brasileiros, enquanto abundam as receitas de peru: a maioria de nossos livros de receitas foram compilados no final dos séculos XVII e XVIII, época em que os perus já haviam substituído o ' pavão seco” e “pesado” nas mesas de jantar.

A exemplo, o livro brasileiro, o Cozinheiro Nacional, traz no seu capitulo sétimo uma parte exclusiva com quarenta e quatro receitas de como preparar perus, na maioria assados, guisados, cozidos, estufados com molhos. Enquanto no capítulo IX, que apresenta aves silvestres, o pavão está lá presente, e divide receitas com aves silvestres tais como jacú, mútim, araçari, tucano, japú, picapão, siriema, araras, papagaios, maranacás e periquitos, perdizes, cotovias, codornas, pombos juritis, rolas, torquazes, galinhola, marreco e saracura. Mas, há apenas uma receita para pavão assado. Observando a receita você percebe o uso de toucinho e manteiga – o usado com a finalidade de deixar a ave mais suculenta.

Como o Dia de Ação de Graças não é um feriado tão forte no Brasil, como é nos EUA, e como os pavões não eram amplamente consumidos como alimento após sua introdução na América do Norte, o pavão nunca foi um substituto para o peru do Dia de Ação de Graças nem no Natal, como havia sido na Inglaterra.

Outro capítulo dessa história é compreender quem foi o responsável por registrar essa tradição antiga na mesa natalina do passado. E você vai perceber, que a mesma pessoa foi responsável por sustentar muitas outras tradições natalinas.

Nessa época natalina, muitas pessoas enfeitam as casas como decoração de natal. Enfeites nas cores vermelho, verde, dourado, branco e púrpura predominam. As donas de casa já pensam nos cardápios para as festas – e a economia lhe faz pensar no preço dos assados que deseja servir... o que pouca gente lembra é que a Inglaterra e sua colonização nos Estados Unidos foram responsáveis por importar os tais costumes natalinos para as américas. Alguns dos velhos costumes foram desaparecendo com o tempo... um deles era a torta de “pavão’ Natalina.



Uma ilustração do antigo costume de tortas de carne em formato de pavão, retirada de uma edição do século XIX do livro de Irving.

Desde a Idade Média, a importância dos assados pode ser traduzida como um ápice de grandes celebrações, indicando riqueza de que a servia. Além deles, as tortas antigas poderiam ser verdadeiras escultura para enfeitar mesas e conquistar os olhares dos comensais, aguçando o desejo. E a torta de carnes em formato de pavão era uma peça central das festas natalinas inglesas. Mas, como a maioria das pessoas mal lembram o que comeram no almoço, que dirá recordam do que era comido no passado. Então hoje tento resgatar essa memória inglesa do Natal antigo.

A torta de pavão como peça central das festas natalinas inglesas remonta à época de Henrique VIII; aparece em pinturas ao longo dos séculos XVII e XVIII. Mas, foi também uma peça central nas histórias de Washington Irving (um escritor, biógrafo, ensaísta, historiador e diplomata dos Estados Unidos, do início do século XIX), reconhecido pro ser o responsável de resgatar e dar início a manutenção das velhas tradições natalinas na América, especialmente a partir de suas obras literárias como a conhecida  “Literary Christmas” de Odessa, de alguns anos atrás.

Acredito que muitos conhecem ‘The Night Before Christmas’ ou ‘Christmas Carol’ de Charles Dickens, mas o trabalho anterior de Washington Irving se perdeu um pouco em termos da compreensão da cultura popular sobre a origem de nossos costumes natalinos modernos. A essência do que a maioria das pessoas hoje reconhece como um Natal americano “tradicional” é, em muitos aspectos, uma decolagem nos rituais natalinos da vida rural inglesa do século XVII, que Irving documentou pela primeira vez para os americanos no início do século XIX.

A história do legado de Irving começa há séculos, durante a era medieval da Inglaterra, quando a celebração do Natal era uma ocasião altamente popular e alegre - na verdade, às vezes de forma desenfreada. As propriedades rurais feudais que funcionavam como comunidades agrárias independentes com suas próprias populações de senhores nobres, trabalhadores e servos, desenvolveram uma coleção rica e colorida de rituais que transformaram a véspera e o dia de Natal em alegres festivais de festa, companheirismo, troca de presentes. e jogos.

Mas em meados de 1600, como resultado de turbulências religiosas, económicas e políticas, muitas das atividades há muito associadas à observação pública do Natal foram proibidas em todo o reino; em última análise, o Parlamento impôs mesmo punições aos comerciantes que fecharam as suas lojas no dia 25 de Dezembro ou às pessoas que tentaram decorar as suas igrejas com os tradicionais verdes natalícios.

Durante os dois séculos seguintes, o Natal na Inglaterra e nas suas colónias definhou e tornou-se um evento menor dentro da temporada de férias conhecida como “Twelfth Night” (Décima Segunda Noite), no meio do inverno, mesmo que alguns ativistas continuassem a condenar a guerra “contra o Christmas” (Natal), e desafiou as proibições das antigas tradições. Isto era particularmente verdadeiro nas comunidades relativamente isoladas das propriedades rurais da Inglaterra.

Décima Segunda Noite em vez de Natal

Quando cruzaram o oceano para colonizar a América do Norte, os britânicos trouxeram consigo a batalha dos feriados da sua cultura; a sociedade colonial que declarou a sua independência da Inglaterra em 1776 e elegeu George Washington como seu primeiro presidente em 1788 foi em grande parte uma sociedade que celebrava a Décima Segunda Noite em vez do Natal.

O prodígio literário cujo trabalho acabaria por começar a desfazer esse fato cultural nasceu numa família de comerciantes de Nova Iorque em 1783, quando aquela cidade celebrava o fim oficial da Guerra Revolucionária. Ele foi nomeado “Washington” Irving em homenagem ao maior herói da nação.

Desde cedo, Irving desenvolveu um interesse pelas tradições natalinas, especialmente pelas comunidades holandesas ao longo do rio Hudson, onde viveu durante algum tempo quando era adolescente. A figura do “Pai Natal” da Holanda foi apresentada com destaque nas revisões de 1812 de seu primeiro livro, “A History of New York”. Numa seção, Irving criou uma sequência de sonho envolvendo São Nicolau, cujo nome em holandês se pronuncia “Sinterklaas” que viraria o Santa Claus americano. Irving fez São Nicolau voar sobre Manhattan “no mesmo vagão onde ele leva seus presentes anuais para as crianças”. O Papai Noel desceu ao chão para fumar seu cachimbo e então, “colocando o dedo no nariz (e) subindo do trenó, voltou por cima das copas das árvores e desapareceu”.

                                        Sinterklaas - o pai Natal holandês

Em 1815, Irving mudou-se para a Europa e começou a pesquisar antigos costumes natalinos nas bibliotecas e museus daquele país. Ele sintetizou essas descobertas em cinco capítulos de uma coleção de ensaios de 34 capítulos publicada em 1819 como “The Sketchbook of Geoffrey Crayon”. Mais tarde lançado como livro ilustrado separado, “Old Christmas” (Velho Natal), a história comovente permaneceu impressa por dois séculos.

É um relato da visita fictícia de Geoffrey Crayon, na época do Natal, à fictícia propriedade baronial “Bracebridge”, em uma parte remota de Yorkshire, no norte da Inglaterra. Lá, uma família com o mesmo nome manteve obstinadamente os antigos rituais natalinos há muito abandonados pelo resto do país. “Não há nada na Inglaterra que exerça um feitiço mais encantador sobre minha imaginação do que a persistência dos costumes festivos e dos jogos rurais de tempos passados”, escreve Irving no parágrafo de abertura de “Christmas”, o primeiro capítulo de “Old Christmas”.

A busca para encontrar e explorar esses velhos hábitos começa para valer no início de uma véspera de Natal nevada, no capítulo dois, “The Stage Coach”. Depois de muitas horas viajando por paisagens bucólicas de inverno e vilarejos pitorescos, o protagonista de Irving para em uma taverna enfeitada com folhagens verdes, aquecida por uma lareira crepitante e repleta da alegria de uma multidão que se dirige para seus destinos finais de Natal.

Essa cena crucial da taverna também abriu a exposição Old Christmas da mansão Odessa Wilson-Warner, transformando a área da cozinha dos fundos da casa em uma pousada de diligências. Era uma das cinco salas que representavam cada um dos cinco capítulos de Irving. Iluminada à luz de velas, a mesa principal estava repleta de pratos de pastéis da Cornualha, ostras, pão, queijo e canecas de cerveja. Um pudim de Natal fica atraente perto de uma lanterna próxima. Mais perto da lareira há um ninho de assentos aconchegantes como aqueles em que Irving’s Crayon encontrou um velho conhecido, Frank Bracebridge, que estava viajando para casa para passar o Natal na propriedade de sua família em Bracebridge. Ele explica que seu pai, o escudeiro, é um “devoto fanático” da velha escola da alegria do Natal e convida Crayon para acompanhá-lo até sua casa para fazer parte daquela antiga experiência deste feriado.

Eles chegam à propriedade coberta de neve de Bracebridge depois de escurecer e são rapidamente conduzidos a um salão onde um tronco de Natal flamejante e velas especiais de Natal ficam de sentinela sobre uma multidão animada na qual servos e trabalhadores se misturam facilmente com familiares e parentes. Num alarido pontuado por risos e gritos frequentes de crianças entusiasmadas, todos se empanturram de  Mince pie (tarte de carne picada) e vinhos condimentados enquanto distribuem cartas, jogam jogos de chão, cantam canções tradicionais, aplaudem os músicos e regalam-se uns aos outros com histórias de Natais passados.

No alto estava pendurado um grande cacho de visco de frutos brancos que, como observou Irving, representava um “perigo iminente” para todas as jovens. O piano, violino, violão, bandolim, apitos e flautas dos músicos estavam prontos, enquanto brinquedos de madeira de crianças exuberantes estavam espalhados pelos cantos da sala. Mais tarde, à noite, as mesas são colocadas de lado na sala, liberando o chão para a dança que acontece até altas horas da madrugada.

Para o capítulo do “Jantar de Natal”, a casa Wilson-Warner de Odessa transformou a sua sala de jantar num quadro do banquete do livro de Irving situado no grande salão do Squire – onde as paredes estavam decoradas com retratos de antepassados que remontam à época de Henny VII. Uma falange semelhante de retratos do século 18 alinhava-se nas paredes da Wilson-Warner, olhando para as duas características mais marcantes do falso banquete daquela sala de jantar que imitava o relato de Irving: uma grande torta de pavão no centro da mesa e uma cabeça de javali (sobre esse último, saiba mais AQUI) assada brilhando na bandeja do aparador próxima.


No grande salão do escudeiro, a tigela de prata com a bebida chamada Wassail era cerimoniosamente passada de mão em mão enquanto os convidados bebiam diretamente da vasilha. Muitas das mulheres beijaram timidamente a borda antes de beber. Era, escreveu Irving, “a antiga fonte de bons sentimentos, onde todos os corações se encontravam”.

Como sua narrativa termina na noite de Natal, Irving diz que espera que seu conto de cinco capítulos tenha pelo menos divertido os leitores e talvez inspirado alguns deles a estarem “mais de bom humor com seus semelhantes” na época do Natal, provando que o autor tinha não “escrito inteiramente em vão”.

Nesse aspecto, Irving teve um sucesso além de seus sonhos mais loucos. O seu “Sketch Book” catapultou-o para a celebridade e para um lugar distinto na história, tanto como o primeiro autor best-seller internacional da nova República como o homem que iniciou a ressurreição populista do tradicional Natal inglês; sua história de ‘Bracebridge’ deu início à tendência que Clement Clark Moore, Charles Dickens, Thomas Nast e outros embelezaram e promoveram nos costumes de Natal que os americanos mais valorizam hoje.

A escrita de Irving é tão detalhada; quando essa palavra escrita foi combinada com as ilustrações de Randolph Caldecott da edição posterior de ‘Old Christmas’, ela nos deu uma história de grande profundidade e igualmente excelente material visual para se ter exatidão de como era o natal passado. Simplesmente não existe nada melhor do que isso.

Para entender a torta de carnes no formato de pavão é preciso antes entender a “Game Pie’ (Torta de caças). Tortas de caça de vários tipos eram muito populares na Grã-Bretanha e na América nos séculos XVI e XVII. Comiam todo tipo de aves recheadas em tortas, porque era uma forma de conservar a comida. As crostas de massa não eram feitas para serem comidas. Eram bastante densas e serviam mais como recipientes para assar as carnes e mantê-las suculentas. Aqui está uma receita interessante em que as instruções parecem exigir colocar todo o corpo do pavão recheado com ovos em uma casca de torta, assá-la e depois decorá-la com a pele completa com pernas, cauda e cabeça apoiadas em um palito, para que fique parece um pavão inteiro quando se trata da mesa. A comida medieval tende a ser fabulosa, pois foi projetada tanto para exibição quanto para consumo.

Duvido que você queira fazer uma dessas na cozinha de sua casa, mesmo se tivesse acesso a uma pele de pavão, mas provavelmente poderia fazer algo como uma torta de frango, substituindo a carne de pavão. Se quiser aquele autêntico sabor medieval, lembre-se de colocar na receita bastante noz moscada, canela e pimenta preta, além de amêndoas moídas para engrossar o molho, já que o roux ainda não tinha sido inventado.

A torta de carnes no formato de pavão é um tipo de torta saborosa que era popular na época medieval. Normalmente continha carne de pavão, junto com outros ingredientes como groselhas, passas e especiarias. Hoje em dia, a maioria das pessoas usa frango ou peru em vez de carne de pavão. Para fazer uma torta de pavão, você precisará preparar um recheio com carne cozida, vegetais e temperos de sua preferência. Depois, você pode fazer sua própria massa de torta ou usar uma pré-fabricada. Forre uma forma de torta com a massa, acrescente o recheio e cubra com outra camada de massa. Pincele a parte superior com ovo batido e leve ao forno até dourar. É importante notar que a carne de pavão não está comumente disponível para compra e também é ilegal caçar pavões em muitos lugares. Portanto, você pode querer usar um tipo diferente de carne se não conseguir encontrar o pavão.

Torta é uma daquelas coisas que parece que deveria ser simples, mas não é. o truque é aquela crosta de torta perfeita, indescritível e impossível, e há tantas maneiras de chegar lá quanto os padeiros. Algumas pessoas dirão para você ralar a manteiga quando congelada, enquanto outras a preparam em um processador de alimentos. Alguns usam apenas manteiga, alguns banha, alguns uma combinação de manteiga e gordura vegetal, tudo por ser solitário. E alguns fazem crostas com formatos de animais totalmente diferentes do recheio.

Quanto ao recheio, o melhor conselho que posso dar é ficar longe de recheios de tortas enlatadas. Eles tendem a ser excessivamente doces, pegajosos por causa do excesso de amido de milho e sem o toque especial de frutas frescas. Definitivamente, comece com tortas de frutas em vez de tortas à base de creme, porque o creme pode ser complicado e requer tempo preciso e gerenciamento de calor.

O inverno é a estação das maçãs e das peras, e ambas fazem tortas deliciosas. Corte a fruta em fatias finas em vez de em pedaços para que fique plana na torta, adicione uma xícara de açúcar para 4 xícaras de fruta, mais se a fruta for azeda, menos se for muito doce. Adicione também o suco e as raspas de meio limão e três colheres de sopa de fécula de tapioca. Isso irá absorver o suco liberado pela fruta para que você não fique com o fundo encharcado.

Depois dessas dicas, deixarei uma receita para torta de carne que , se você s=for aventureiro, pode se encarregar em dar a forma de um pavão, mas que ela já fica deliciosa sem isso.

Christmas Pie 

2 colheres de sopa de azeite

manteiga

1 cebola picada

500g de linguiça ou linguiça sem pele

raspas raladas de 1 limão

100g de pão ralado branco fresco

85g de damascos secos prontos para consumo, picados

50g de castanha portuguesa em lata ou embalada a vácuo, picada

2 colheres de chá de tomilho fresco picado ou 1 colher de chá de tomilho seco

100g de cranberries, frescos ou congelados

500g de peito de frango desossado e sem pele

Pacote de 500g de massa pobre comprada pronta ou faça a sua receita particular

ovo batido, para glacear

Preparo: Aqueça o forno a 180 C. Numa frigideira aqueça 1 colher de sopa de óleo e a manteiga, junte a cebola e frite por 5 minutos até ficar macia. Deixe esfriar um pouco. Numa tigela, coloque a carne de salsicha, as raspas de limão, o pão ralado, os damascos, as castanhas e o tomilho. Adicione a cebola e os cranberries e misture tudo com as mãos, acrescentando bastante pimenta e um pouco de sal. corte cada peito de frango em três filés no sentido do comprimento e tempere com sal e pimenta. Aqueça o óleo restante na frigideira e frite os filés de frango rapidamente até dourar, cerca de 6 a 8 minutos. Abra dois terços da massa para forrar uma forma de mola de 20-23 cm ou uma forma de torta funda e solta. Pressione metade da mistura de salsicha e espalhe até nivelar. Em seguida, adicione os pedaços de frango em uma camada e cubra com o restante da linguiça. Pressione levemente. Abra a massa restante. Pincele as bordas da massa com ovo batido e cubra com a tampa da massa. Aperte as bordas para selar e depois corte. Pincele o topo da torta com ovo e, em seguida, estenda as guarnições para fazer formas de folhas de azevinho e frutos silvestres. Decore a torta e pincele novamente com ovo. Coloque a forma em uma assadeira e leve ao forno por 50-60 minutos, depois deixe esfriar na forma por 15 minutos. Retire e deixe esfriar completamente. Sirva com salada de inverno e picles.