quinta-feira, 3 de julho de 2025

Alloro: Sobre Louros e Licores, um brinde ao que permanece.

 

Em certas noites — aquelas em que a refeição se estende como uma boa ópera e a conversa repousa satisfeita sobre pratos vazios — há um momento em que o tempo parece se curvar levemente, como quem pede licença para ficar mais um pouco. É nesse instante que surge “um intervalo sagrado”.

Nesse breve momento, logo após o último talher repousar no prato e a conversa se afinar como música em fim de festa, em que a alma pede algo mais. Não fome. Não sede. Mas uma espécie de consolo, de fecho suave, como quem dobra um guardanapo com vagar e gratidão. Os italianos, que entendem dessas coisas, chamam esse instante de “digestivo”. Na Itália, ele não é apenas uma bebida. É um gesto, um aceno elegante de quem diz: "Fique mais um pouco. Ainda há calor na casa."

Geralmente servido num copo pequeno, quase cerimonial. Passa de mão em mão como uma confidência. Um brinde aqui, um riso ali, e o licor encerra a noite como se nos lembrasse: ainda estamos vivos, e bem alimentados. E não é apenas um costume. É um gesto de civilidade, uma delicadeza cultural que embala o corpo depois de uma refeição generosa — como uma despedida murmurada em voz baixa, junto à porta.

Obviamente, nem todo digestivo é necessariamente um licor, mas a maioria dos digestivos tradicionais são licores porque combinam álcool, doçura e ingredientes aromáticos que, juntos, criam uma bebida equilibrada, saborosa e funcional para o pós-refeição. É o caso do Alloro, o licor de folhas de louro.




Os licores nasceram em paralelo à medicina, são descendentes diretos da alquimia e da farmacopeia antigas – o que indica que, antes de eles serem bebidas sociais ou digestivos, eram remédios –, e muito antes da ‘sobremesa’.

As sobremesas, como as conhecemos, chegaram tarde à mesa — enfeitadas, cerimoniosas, pedindo atenção e talheres delicados. Foram criadas nas cortes e nos salões, com açúcar finalmente domesticado, já não tão raro nem tão reverenciado. São, quase sempre, espetáculos: creme, mousse, bolo, torta, sorvete, suspiro. Têm a leveza de uma ópera com final feliz. A sobremesa é um teatro. Chega à mesa em cena aberta, vestida com decorações atrativas. Tem algo de espetáculo francês: ostenta a doçura como quem dança em pontas. Nasceu nas cortes, entre cristais e porcelanas, quando o açúcar, finalmente domado, pôde abandonar as farmácias e se entregar ao prazer. É uma promessa de leveza, mesmo depois de refeições pesadas — uma forma educada de dizer que a noite ainda não acabou.

Já o licor... o licor é outra coisa. Mais velho, mais calado, mais denso. Antes de ser bebida, foi remédio. E antes de adoçar, curava. Veio de mãos solitárias: monges, feiticeiras, curandeiras, alquimistas, que destilavam folhas e raízes em silêncio, enquanto o mundo pedia milagres. O licor não se impõe — ele permanece. É um fim que não se anuncia. Toma-se devagar, como quem ouve. Seu açúcar não canta: arde e aquece, como o cheiro de uma lembrança boa esquecida no fundo da gaveta.


A sobremesa celebra. O licor sussurra. Uma encerra o banquete. O outro — se bem servido — encerra o dia. E às vezes, quando o corpo se aquieta e a alma consente, inaugura um pensamento. Ou um segredo.

No fundo de cada frasco há sempre um resíduo de alquimia, uma dúvida antiga: cura ou feitiço? Não é à toa que, por séculos, os licores estiveram nas mãos de monges — e de mulheres com reputações perigosamente ambíguas. Como as irmãs Toffana, lendárias criadoras da ‘Água de Toffana’ — um veneno invisível que passava facilmente por um elixir doméstico (já tratei sobre elas AQUI). Não se sabe se elas fabricavam licores, mas sabiam manipular essências, infusões e confiança. E isso já as coloca perigosamente perto da nossa história.

Há licores com nomes que não escondem sua natureza: o Strega, por exemplo, um licor italiano amarelo-dourado feito com cerca de 70 ervas e especiarias, inventado em 1860 em Benevento — cidade conhecida como ponto de encontro de bruxas segundo lendas medievais — terra de bruxas e fogueiras — e carrega em cada gole uma receita que parece saída de um grimório. Em contraste, o Alloro é mais claro, mais solar, mas ainda assim profundamente ligado a esse saber ancestral de quem conhece as plantas pelo cheiro e pelo silêncio.

O Alloro também carrega algo de ritual. Pode-se imaginar uma mulher antiga, num vilarejo esquecido entre colinas e oliveiras, colhendo folhas ao entardecer, infundindo-as não só em álcool, mas em intenção. O mesmo gesto que hoje chamamos de receita, ontem podia ser chamado de feitiço.

Não é raro que os turistas se lancem ao limoncello — aquele amarelo ensolarado, doce até os ossos, como um verão que não sabe a hora de acabar — e deixem passar o verde discreto, insinuante e quase cerimonial do Alloro. Talvez acreditem, equivocadamente, que o mundo das frutas seja mais nobre que o das folhas. Mas o limão grita; o louro sussurra. E há sutilezas que só os ouvidos atentos percebem. Enquanto o limoncello se espalha como riso em mesa cheia, o Alloro chega mais tarde — como quem vem para ficar. Sua presença é mais meditativa, com a gravidade aromática das coisas que vêm da terra e da história. Ele não é espetáculo. É eco. E como todo eco bem-vindo, ele nos conta algo que talvez tenhamos esquecido.

Há também os que preferem os licores de amêndoas — doces, quase afetuosos, com aquela fragrância redonda de marzipã e festa antiga. O mais famoso deles é o Amaretto, que alguns juram ter sido inventado como declaração de amor. Sua doçura envolve, mas não desafia. É feito para terminar noites com suavidade, como um lençol recém passado. Em contraste, o Alloro não acaricia de imediato: ele se impõe com elegância e depois se acomoda, como uma ideia que faz sentido só quando se repete. Onde o Amaretto conforta, o Alloro revela. Onde um adoça a memória, o outro aguça a percepção.

Entre os muitos amari italianos — esses licores herbáceos e misteriosamente amargos que prometem ajudar o estômago a perdoar os excessos da mesa, há um que merece ser resgatado do anonimato: o Alloro, também chamado de Allorino, um licor caseiro de folhas de louro que carrega em cada gole um sopro de história e um punhado de alquimia botânica – e que se destaca por sua simplicidade quase monástica.

Este licor de louro não apenas aquece o corpo em noites de inverno, mas também tem a generosidade de se mostrar versátil: com gelo, vira companhia refrescante em tardes quentes; misturado a Prosecco, transforma-se num bay spritz herbáceo que faz jus ao ritual do aperitivo. E se, por acaso, você tiver uma tosse persistente ou um leve resfriado — ah, dizem que ele ajuda nisso também, principalmente quando levemente aquecido. Um xarope de jardim romano.

Você poderá fazer seu licor de folhas de louro num processo totalmente doméstico, mas não banal. Exige paciência, discrição, e o tipo de atenção silenciosa que só certas avós e certos monges dominam. Aliás, não deixa de ser curioso: o famoso Chartreuse, licor francês que também é verde e misterioso, leva 130 plantas e só pode ser feito por monges cartuxos.

O Alloro, por sua vez, precisa apenas de quatro ingredientes — e de um pouco de fé em sabores que vêm das folhas. Ao abrir a garrafa, há um primeiro sopro: verde, resinoso, quase picante, como o interior de um tronco recém-cortado. O líquido escorre espesso no copo, com a lentidão de quem conhece o tempo. Há algo de mel e de pinho, de veludo...

Mas o Alloro é mais que sabor. É cultura líquida.

A Mitologia grega apresenta a sua versão para o surgimento do louro, uma tragédia grega que só eles poderiam criar: 

   Apolo e Dafne é uma pintura a óleo sobre painel de c. 1470–1480, atribuída a Piero del Pollaiuolo e/ou seu irmão Antonio ).

Era belo demais para caber no mundo — Apolo, o deus ada beleza, o sol em forma de homem, com seus músculos longos e a altivez que só os deuses podiam ostentar sem rubor. Arrogante, julgava que só ele podia manejar o arco de prata, como se o gesto de mirar e ferir pertencesse apenas à luz, não ao desejo. Isso bastou para irritar Eros, o poderoso deus do amor (uma figura complexa, às vezes retratada como um jovem poderoso e perigoso, capaz de provocar caos entre deuses e mortais. O mesmo que os romanos infantilizaram e transformaram em Cupido – que passou a ser representado como um menino bochechudo, alado, com arco e flecha, mais associado ao amor romântico e brincalhão do que ao desejo avassalador que Eros podia inspirar), que conhece os atalhos do amor e da vingança. Com um leve dobrar da corda, lançou duas flechas: uma, dourada e ardente, fincou-se no peito de Apolo, inflamando-lhe um amor absoluto. A outra, fria e opaca, feriu Dafne — ninfa livre, filha do rio Peneu — e trouxe-lhe repulsa, um não que brotava das entranhas. E assim começou a dança trágica: ele correndo atrás, ela fugindo do que não queria sentir. Apolo, embriagado pela paixão, passa a persegui-la pela floresta como quem tenta agarrar um raio de sol com as mãos nuas. Dafne corre, corre até não poder mais, até a pele pedir por outra pele — não a do amante, mas a da árvore. Implora ao pai que a salve, e é atendida com dor: os pés enraízam, os braços se alongam em galhos, o corpo se cobre de casca e folhas. Ainda assim, Apolo a alcança — não a ninfa, mas a árvore que ela se tornou: o loureiro. E a abraça como quem não quer acordar do próprio delírio. Com mãos trêmulas, ele trança seus ramos em coroa. Se ela não podia mais ser sua amada, seria seu símbolo. O loureiro passaria a ornar sua fronte nos momentos de glória, nos palcos da guerra e da poesia, lembrando ao deus — e a nós — que até o desejo mais abrasador pode virar estátua, folha, memória.

A escultura "Apolo e Dafne", de Gian Lorenzo Bernini, é uma obra-prima do barroco italiano, criada entre 1622 e 1625

A metamorfose está eternizada em mármore na Galeria Borghese, em Roma. Bernini, com dedos de gênio barroco, capturou o instante da transformação, quando a carne ainda luta contra a casca e o amor, derrotado, se ajoelha diante da perda. 

Na Grécia e Roma Antigas, o louro era símbolo de conquista e glória. Os ganhadores Olímpicos eram presenteados com uma coroa de louros e comidinhas especiais (já tratei delas AQUI). Os césares romanos, como Júlio César, adornavam-se com coroas da planta não apenas para disfarçar a calvície, mas porque acreditava-se que o louro afastava o raio — uma superstição tão elegante quanto a toga. A expressão “descansar sobre os louros” nasceu daí: dos que podiam, enfim, largar a espada e brindar ao que já haviam feito.

Proust encontrou o tempo nas famosas madalenas – um tipo d ebolinhos amanteigados. Talvez encontrasse o esquecimento num gole de alloro. Ambos exigem o mesmo: recolhimento, silêncio e uma certa disposição para sentir o que se esconde nos detalhes.

Os poetas laureados — laureati — deviam seus louros não apenas à glória, mas à crença de que a planta lhes inspirava palavras. Talvez ainda inspire, quando transformada em licor e bebida à meia-luz.

Hoje, o loureiro sobrevive em vasos domésticos e quintais mediterrâneos, muito mais afeito às panelas do que às batalhas. Ainda assim, conserva um certo prestígio, especialmente quando transformado em licor. O preparo é um ritual doméstico: as folhas frescas (e sim, precisam ser frescas, ou o licor parecerá uma calda de papel velho) são mergulhadas em álcool neutro, onde repousam por um mês como quem sonha em silêncio. O tempo, aqui, não é apenas espera: é coautor. É ele quem extrai do louro suas memórias antigas, sua dignidade aromática. É ele quem adoça o amargor da planta sem apagar sua força. Depois, de curtido o tempo e a alma revelada, uma calda de açúcar entra em cena e o líquido verde, agora com o brilho das coisas que fermentaram em segredo, está pronto para brindar.

É simples, sim, mas essa simplicidade exige atenção: nada de álcool comum de farmácia, que arruína o encanto com seu gosto de hospital e riscos de toxicidade. O ideal é usar álcool de cereais, quase sempre invisível ao paladar, mas perfeito para realçar os óleos essenciais do louro. Na Itália, compra-se álcool de 96% no supermercado como quem compra pão. No Brasil, a solução pode ser a cachaça branca — mas escolha uma de alma leve, sem o calor agressivo que destrói perfumes delicados. Ou, claro, uma boa vodca, embora ela sempre pareça um pouco deslocada entre folhas mediterrâneas.

É curioso como certas folhas, quando esquecidas no fundo de uma gaveta ou mesmo na terra, secam e somem. Mas quando mergulhadas em álcool e cuidado, transformam-se em algo que dura. Como amizades velhas. Como certas histórias que resistem ao tempo — líquidas, discretas, memoráveis.

E se você, como eu, vive em um lugar onde as folhas de louro ainda podem ser encontradas frescas — nas feiras, nos mercados do centro, talvez até no quintal de uma vizinha esquecida da sorte que tem — então, não há mais desculpa. Faça seu Alloro. Guarde em frascos escuros. Ofereça com modéstia, como quem não quer impressionar, mas sabe que impressionará mesmo assim.

Porque há algo profundamente comovente em encerrar uma refeição com uma bebida feita por suas próprias mãos, extraída do verde que cresce sob o sol e guardada em vidro. Um lembrete de que o fim do jantar pode ser, também, o começo de uma boa história.

 Allorino, ou Liquore di Alloro, ou Licor de Folha de Louro

Rende cerca de 1 a 1,5 litros

60 folhas de louro frescas (algumas a mais ou a menos são suficientes)

500 ml de álcool 96% ou 700 ml de vodca

400 g de açúcar refinado ou granulado

500ml de água filtrada

 

Preparo: Lave e seque as folhas de louro. Coloque em uma tigela ou em um recipiente grande de vidro. Despeje o álcool, mexa, cubra frouxamente e deixe macerar em temperatura ambiente. Esqueça por pelo menos 2 semanas. Um mês é melhor. Com o passar dos dias, o álcool realça a cor e o sabor das folhas de louro. Verifique ocasionalmente e admire, as folhas de louro vão perdendo a cor verde dela – um sinal de que o seu preparado está no caminho certo. Depois que a mistura de álcool já estiver na cor verde que desejar – lembre-se quanto menos tempo elas curtindo menos verde ficará – você deve preparar a calda. Aqueça o açúcar com 500 ml de água, mexendo frequentemente, até que o açúcar esteja completamente dissolvido. Deixe esfriar. Coe as folhas de louro do álcool e misture com a calda de açúcar. Transfira para uma(s) garrafa(s) esterilizada(s). Feche bem e guarde em local fresco por mais uma ou duas semanas. E já está pronto para beber com todos os seus aromas.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

A Pasta do Conclave e o outras Curiosidades Gastronômicas desse evento envolto em Mistérios

 

Um conclave está sempre envolto em mistérios e tramas. Muita informação é produzida dentro dos muros vaticanos antes, durante e depois da eleição do novo Papa. E, obviamente, o campo gastronômico não fica de fora dessa questão.

O conclave que elegerá o 267º Papa começou oficialmente: após a Missa pro eligendo Romano Pontifice na Basílica de São Pedro pela manhã (com a presença de mais de 5.000 pessoas), no dia 7 de maio, às 16h30, os 133 cardeais eleitores se reuniram na Capela Sistina.

E tudo começa com uma liturgia centenária: como sempre, o conclave acontece no dia seguinte à anulação do anel do Pescador e do selo papal, e abre com o "Extra Omnes" (desta vez pronunciado por Monsenhor Diego Giovanni Ravelli, Mestre das Celebrações Litúrgicas Pontifícias). Então os cardeais começam a votar e uma primeira fumaça — provavelmente preta — é esperada já no primeiro dia. Só os sinais de fumaça nos darão uma ideia do que acontecerá na Capela Sistina: o conclave é secreto. A própria palavra já diz: vem do latim,"com chaves", serve para indicar que os cardeais ficarão num "quarto trancado", neste caso, a belíssima Capela Sistina. O termo conclave foi usado pela primeira vez pelo Papa Honório III.

Especialmente pelo sigilo que envolve o evento, sabe-se muito pouco sobre o que acontece no conclave, mas há algumas curiosidades gastronômicas e enológicas que podem ao menos nos dar uma ideia do que ocorre nos bastidores do encontro mais secreto do mundo.


O que os cardeais comem no conclave?

A dieta dos cardeais no conclave segue um padrão muito preciso: um café da manhã leve, geralmente com pão e geleia, um almoço completo - com primeiros pratos como risoto e macarrão, carne branca, peixe, vegetais e frutas - e um jantar frugal. Sobremesa só é permitida aos domingos e geralmente é um bolo comum ou outra preparação simples, como pudim. Em suma, uma alimentação saudável e equilibrada, com as devidas limitações para os alérgicos e os (muitos) cardeais que sofrem de diabetes, pressão alta ou outras doenças típicas dos idosos.

Quem "criou" o menu do conclave?

Esse esquema remonta a 1300, quando Clemente VI deu regras muito precisas também sobre as refeições dos cardeais eleitores: três pratos, dos quais um era sopa, carne, peixe ou ovos e, finalmente, queijo ou fruta.

                                                Clemente VI

Que Papa colocou os cardeais do conclave em restrição alimentar para que o resultado do conclave saísse logo?

As regras de Clemente VI tornaram-se necessárias após as restrições impostas por Gregório X, eleito após o mais longo conclave da história (três anos inteiros). Para tornar a estadia dos cardeais menos agradável, ele pensou em obrigá-los a comer pão e água se não elegessem um novo papa em 8 dias.

                                                     Gregório X

Como que é a massa servida no conclave?

A pasta del conclave é mais uma lenda do que uma receita, que pode remontar às restrições impostas por Gregório X: uma massa simples, com manteiga e parmesão. Simboliza a sobriedade à qual os cardeais estão vinculados e a arte de se virar numa situação como a do claustro, em que é preciso cozinhar com poucos ingredientes disponíveis.

Qual foi o conclave mais saboroso?

O conclave em que Júlio III foi eleito, de novembro de 1549 a fevereiro de 1450, também é famoso por ter sido decididamente gourmet. Na época, o cozinheiro era Bartolomeo Scappi, o chef mais famoso do Renascimento (e sem dúvida o primeiro chef mais famoso do mundo), serviu aos Papas Pio IV e Pio V. Seu livro de 1570, Opera dell’Arte del Cucinare – o primeiro livro de receitas publicado por um chef profissional – o catapultou para a fama. Em seu livro, ele conta que os pratos preparados na cozinha para os cardeais eram rigorosamente verificados pelos guardas antes de serem colocados em uma espécie de roda giratória, com uma ordem estabelecida por sorteio. Pelo mesmo motivo, pratos que pudessem conter uma mensagem secreta, como bolos e frangos inteiros ou raviólis recheados, eram proibidos. Até o vinho e a água tinham que ser servidos em copos transparentes (como acontece até hoje). Portanto, parece que o ditado “confiar é bom, não confiar é melhor” era tão verdadeiro naquela época quanto é agora. Em seu livro, Scappi fala sobre refeições elaboradas e fartas, mesmo que sempre extremamente "supervisionadas".


Quem cozinha para os cardeais do Conclave?

Os cardeais eleitores sempre comerão em Santa Marta (Domus Sanctae Marthae), a residência do Papa Francisco, que agora hospeda a maioria dos cardeais do conclave. A preparação das refeições é supervisionada pelas Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, que foram chamadas para administrar a Domus Sanctae Marthae, a moderna residência hoteleira onde a maioria dos 133 cardeais (não todos, pois há 105 suítes e 26 quartos individuais) viverão durante o conclave. Elas terão auxílio de pessoal especializado.

                             A Casa Santa Marta fica logo atrás da Basílica de São Pedro, no Vaticano

Porque não é possível saber exatamente quem cozinha para os cardeais?

Nada mais se sabe sobre os detalhes dos menus diários ou sobre o chef - se houver algum famoso (embora duvide, depois dos ensinamentos de Francesco) - que ficará encarregado de cozinhar diariamente. Assim como os cardeais, os funcionários de restaurantes também devem fazer um juramento de sigilo. Afinal, as refeições estão entre os momentos mais delicados de um conclave.

Por que as refeições dos cardeais eleitores do conclave devem ser silenciosas (e supervisionadas)?

Afinal, as refeições estão entre os poucos momentos que os cardeais eleitores podem passar juntos fora da Capela Sistina e, portanto, são potencialmente os mais arriscados, já que, ao falarem entre si, podem violar seu juramento de sigilo ao planejar estratégias de votação. Por esse motivo, as refeições são servidas em silêncio e o refeitório é um dos locais mais vigiados. Scappi, por exemplo, também conta em seu livro que, antes de serem colocados na cornuta (a cesta onde era colocado o almoço de cada cardeal), todos os pratos eram verificados para garantir que não continham mensagens ocultas. Além disso, durante séculos, até copos e guardanapos foram verificados pelo mesmo motivo.

Vinho no conclave: quais são as regras?

Os cardeais podem tomar um pouco de vinho, mas bebidas destiladas são excluídas. Uma regra que algumas pessoas aparentemente violaram no passado ao carregá-los na mala. Parece que os cardeais gostam muito de conhaque, e que alguns até o beberam na companhia do papa eleito. 

Assim, por mais de 750 anos, regras rígidas protegeram o que os cardeais podiam ou não comer, para evitar mensagens ocultas não apenas na comida, mas também nos guardanapos (uma espécie de pizzini ante litteram). Embora a comida historicamente sempre tenha representado um risco potencial, comer na cantina continua sendo um dos contextos em que as negociações entre cardeais podem ocorrer.

Basta pensar no filme lançado em 2024, Conclave, onde quase todos os diálogos não acontecem nas salas eleitorais, mas sim no refeitório. As refeições barulhentas contrastam com o conclave em si, que é quase completamente silencioso. No entanto, mesmo em torno do silêncio cerimonial, ocorre muita comunicação, grande parte da qual ocorre com e por meio da comida.

Mas o filme tem licença poética criativa e, mesmo, que se possa presumir que o ele não represente com precisão o que acontece a portas fechadas, é indubitavelmente verdade que na cultura gastronômica papal — assim como na cultura em geral — o que você come, como você come e com quem você come diz muito.

O código de sigilo do conclave remonta a 1274, quando o Papa Gregório X estabeleceu as regras que ainda hoje, em parte, ditam como as eleições papais são conduzidas. Além do protocolo rigoroso e das restrições alimentares, as refeições que o “chef” Scappi descreve mais tarde em seu livro parecem substanciosas e equilibradas, e incluem salada, frutas, frios, vinho e água fresca. Da mesma forma, Scappi também fala sobre as acomodações confortáveis para os cardeais. Cada um tinha sua própria cela grande, decorada com seda e mobiliada com bom gosto, com uma cama, uma mesa, um cabideiro, dois bancos, um penico e um jarro trancado, entre outros itens. Segundo Scappi, servir em um conclave papal renascentista não era um trabalho desagradável, desde que não se preocupasse com a vigilância constante, que instilava certo medo.

As regras do falecido Papa Gregório X incluíam o isolamento do conclave — uma regra ainda em vigor hoje — e o racionamento de comida para os cardeais. Após três dias sem consentimento, os cardeais recebiam apenas uma refeição por dia; depois de oito dias, apenas pão e água. Ou seja: mexa-se.

Em meados de 1300, essas regras foram relaxadas por Clemente VI, que permitiu refeições de três pratos consistindo de sopa; um prato principal à base de peixe, carne ou ovos; e uma sobremesa, que pode incluir queijo ou fruta. Embora o racionamento não tenha durado, ainda há um controle rigoroso sobre os conclaves hoje, tanto à mesa quanto em espaços compartilhados dentro dos muros do Vaticano.

Voltando aos dias de hoje, a comida dos cardeais, como previsto, continuará frugal e preparada de acordo com um protocolo rigoroso e sob supervisão rigorosa. A Igreja Católica moderna – especialmente sob a liderança do Papa Francisco – espera comunicar uma imagem simples e genuína. As preocupações de que alimentos (frangos inteiros, em particular, como os servidos no filme Conclave) pudessem conter mensagens secretas reais desapareceram. Mas, enquanto o Vaticano está sendo revistado em busca de dispositivos eletrônicos escondidos em preparação para o próximo conclave — algo que se tornou impossível devido ao desligamento de repetidores em toda a área — os cardeais se prepararão pessoalmente para se aventurar por Roma após as eleições, antes de retornar às suas respectivas dioceses, talvez parando em uma das tavernas da cidade e, quem sabe, se perguntando se esta será sua última ceia após a eleição do novo Papa.

 A Pasta del Conclave, cheia de Mistérios, seria uma Prato de Clausura Nascido (Talvez) para Acelerar a Eleição do Papa

 Mais do que uma tradição secular, existe uma lenda nas origens da "pasta del Conclave". Um mito, se não exatamente “uma invenção. Uma receita pobre que desperta curiosidade, mas da qual não há nenhum vestígio entre os documentos oficiais. Poucos ingredientes, quase nenhuma comprovação, apenas hipóteses entre simplicidade, segredo e simbolismo. Mas que nos dias do conclave acaba virando um emblema da gastronomia papal.

A suposta receita da “pasta del Conclave” é tão nobre quanto básica, dados seus apenas três ingredientes: massa longa ou curta — não há especificação sobre o formato — para ser cozida e depois mexida em uma panela com um pouco de manteiga e uma generosa pitada de parmesão. Longe das liturgias, não faltam versões mais saborosas, facilmente replicáveis, que incluem a adição de pimenta-do-reino moída na hora ou revisitadas com pecorino em vez de parmesão.

O certo é dizer que nas origens do prato reina a incerteza: A receita não parece estar de forma alguma formalmente ligada à liturgia do Conclave. Mas, por outro lado, nem mesmo a dieta em si, à qual os cardeais terão de aderir, é regulamentada. Não há dúvida de que se trata de uma receita pobre, cuja simplicidade de ingredientes e de preparo contrasta com pratos mais elaborados e deliciosos, longe da sobriedade. Também se pode levantar a hipótese de que este nome lhe foi dado em referência a um prato de "regime de clausura". Nasce de poucos e pobres ingredientes, tal como quando nos encontramos confinados à força e sem uma despensa bem abastecida para nos servirmos.

No entanto, parece haver alguma hipótese histórica que justificaria a ligação entre a receita e o claustro cardinalício. O prato pode ter se consolidado na tradição no final do século XIII, com a instituição do próprio Conclave — em 1274 — a mando do Papa Gregório X. Eleito após quase três anos de consultas, o pontífice — na constituição apostólica Ubi Periculum — ditou regras rígidas para acelerar o processo eleitoral, usando a comida como ferramenta de pressão. Em particular, o racionamento progressivo das refeições a serem servidas aos cardeais: de três por dia para apenas uma, se o escrutínio durasse mais de três dias, até apenas água, pão e vinho se o conclave durasse mais de oito dias. Mesmo em caso de desacordo, teria sido a fome que teria levado os cardeais a um acordo sobre o nome do pontífice em pouco tempo. E nesse sentido, após três dias de análise, a substancial "massa do Conclave" teria sido o compromisso certo para servir como única refeição do dia. Mas o segredo que cerca a eleição do pontífice é o mesmo que cerca os livros de receitas do Vaticano.

As Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo preparam refeições a serem servidas aos cardeais durante o período de clausura, de acordo com rigorosos ditames. Um cardápio marcado pela sobriedade e leveza para não forçar a digestão dos cardeais, mas acima de tudo uma alimentação nutritiva para auxiliar a concentração. Receitas inspiradas na tradição gastronômica italiana, propostas em sua versão mais leve. Cereais, carnes brancas, peixes, vegetais e frutas da estação. Tudo preparado dentro do Vaticano, para evitar contaminação.

Qualquer dispositivo eletrônico é proibido, nem mesmo bolos em camadas ou bolo de carne serão servidos aos cardeais: nada que possa conter mensagens secretas em seu interior, sob pena de excomunhão. Uma questão de comida e religião: dois cultos que se entrelaçam e que, no caso da "pasta del Conclave", deram vida a uma tradição romantizada. Mistérios que não excluem, contudo, a possibilidade de que o prato, simbolicamente branco, possa ser o último prato servido às mesas antes do aguardado "Habemus papam".

Logo, a Pasta del Conclave é muito mais que um simples prato de massa in bianco: é uma história, um símbolo de sobriedade e decisão, um sabor que vem de séculos distantes para nos lembrar como, às vezes, até a simplicidade pode ter um peso decisivo. A Receita de Pasta del Conclave é uma preparação essencial, feita apenas com massa, manteiga e parmesão, mas que traz consigo o sabor do tempo e a disciplina da escolha.

Não é apenas uma questão de gosto, mas de memória. Esta massa leva o nome de um episódio histórico emblemático. 



Pasta del Conclave

(Ingredientes para 4 pessoas)

360g de massa a sua escolha.

100 g de manteiga

perguntas de Parmigiano Reggiano

(Se você quiser incrementar, pode colocar um pouco de pimenta do reino moída na hora)

 

Preparo: cozinhe a massa em bastante água quente com sal e, quando estiver cozida, escorra-a e coloque-a em uma tigela com a manteiga. Misture bem, adicione o Parmigiano Reggiano, um pouco da água do cozimento do macarrão ainda quente e misture bem. Depois de obter uma massa cremosa, coloque-a em um prato, polvilhe com pouco de parmesão – e se você quiser burlar a regra, coloque um pouco de pimenta-do-reino moída, e sua Pasta del Conclave estará pronta.

 

 

sábado, 19 de abril de 2025

Da Fritada de Páscoa lá de casa à Torta Capixaba e sua Evolução para a Torta Capixaba de Repolho e Peixe Salgado: uma Quaresma de Legumes, Fé e Reinvenções.

 

Quando eu era criança e morava em Guaraciaba do Norte, no cimo da Serra da Ibiapaba — o ponto mais alto do Ceará — a Semana Santa chegava com o cheiro de terra molhada e promessas de mesa farta. Não era apenas um tempo sagrado pela fé católica que nos guiava, mas pela sincronia mágica entre o calendário litúrgico e a estação das chuvas. Tudo florescia. Tudo era verde. E tudo, na cozinha da minha mãe, se tornava celebração.

Apesar dos jejuns recomendados, a Sexta-feira Santa, o Sábado de Aleluia e, sobretudo, o Domingo de Páscoa eram dias em que a comida nos contava histórias: eu já percebia pelos pratos, fosse lá de casa ou das mesas das casas aonde éramos convidados, a fartura era predominante – talvez o meu lugar de privilégio me reservara isso! Em nossa mesa havia peixada cearense, feijão com abóbora macia, peixe frito, salada de maionese, malassadas simples, farofa de cenoura; muitas tapiocas com queijo, beijus, roscas de goma seca temperada com óleo de coco babaçu, grude, bolos de puba, de macaxeira, bolo mole (de leite).... Mas o prato que mais me tocava era também o mais silencioso: a fritada de legumes que minha mãe preparava com a precisão de quem cozinha não apenas com as mãos, mas com a alma.

Era sempre feita na mesma forma de alumínio com buraco no meio, a mais alta que era pra caber mais conteúdo, uma peça modesta e brilhante de tantas histórias. Os legumes — batata inglesa, cenoura, chuchu, abóbora — eram cozidos e depois refogados no perfume de tomate, cebola, coentro e pimenta-de-cheiro. Um toque de pimenta-do-reino, sal quanto baste. Enquanto isso, minha mãe batia as claras em neve até ficarem firmes, depois juntava as gemas e continuava a bater até tudo crescer em volume e leveza. Às vezes, acrescentava uma colher de farinha de trigo ou de maizena — uma escolha de ocasião, para aquele ingrediente que estivesse mais perto dela na hora do preparo. Às vezes, ela colocava farinha de mandioca peneirada bem fininha, peneirada duas ou mais vezes, e a mistura se transformava como mágica ao ponto de ninguém desconfiar que tinha farinha de mandioca. Mas, eu, esperto, já tinha sacado o truque e o aprendi também, pois essa peneirada da farinha de mandioca também era o segredo para deixar especialmente as malassadas perfeitas, fofinhas e sem grumos.

Ela despejava um terço da mistura de ovos no fundo da forma, acomodava os legumes já refogados e cobria com o restante da mistura espumosa de ovos. A fritada era cozida ali mesmo, na chama mais baixa do fogão, coberta com a tampa de uma panela. E então, esperava-se. Não havia relógio: havia o tempo da comida. O tempo do milagre.

Enquanto isso, eu saia da cozinha onde minha, com os cabelos longos presos de qualquer jeito, concentrada passava para a limpeza dos utensílios, na pia da cozinha; e, eu ia para o chão do meu quarto, ligava a televisão que trazia outro tipo de cozinha: o programa “A Cozinha Maravilhosa da Ofélia”, na Bandeirantes, com sua voz pausada e jeito de tia sábia. Ou então, mais doce ainda, quando a confeitaria delicada da argentina Marta Ballina me encantava ensinando técnicas de confeitaria para bolos, glacês, flores de açúcar e gestos milimétricos. Sem saber, eu estava sendo alimentado por três mulheres: minha mãe, Ofélia, Marta.

Com o tempo, fui tomando gosto pelo fogão. Comecei a cozinhar também, com ambições maiores, pratos mais elaborados. Mas a Semana Santa sempre me chamava de volta para aquela forma de alumínio, para aquele gesto da colher mergulhando nos legumes macios, sem quebrá-los. E, claro, como todo cozinheiro que se forma entre sabores herdados, trouxe meus desvios.

Meu toque pessoal foi acrescentar repolho — bem refogadinho, com sabor de aconchego. Às vezes também colocava uma lata de sardinha, o que era raro, pois acho que esse peixe me deixa com um retrogosto estranho na boca. E em certas ocasiões, ainda misturava os ovos batidos com os legumes, para que ficasse mais parecido com uma torta, uma fusão de memórias e vontades. Ainda assim, o gosto final permanecia o mesmo: o gosto do conforto. Do afeto. De um tempo onde a comida era mais do que alimento — era uma forma de amar.



Hoje, quando penso em Páscoa, também penso na chama baixa do fogão, na forma de alumínio cheia até a borda, na casquinha dourada quebrando sob a colher. E penso na cozinha cheia de vozes femininas — reais e televisivas — que me ensinaram que cozinhar é, no fim das contas, uma forma de contar histórias com o coração.

Com o passar dos anos, o tempo sempre ajudando na riqueza do conhecimento, me fez perceber que a fritada de legumes lá de casa poderia ter ligação com uma produção gastronômica de terras mais distantes, como aquelas onde moram os capixabas. 

Entre a Fritada da Serra e as Tortas capixabas: Ecos de Afeto 

À primeira vista, a fritada de legumes da minha mãe, nascida no coração úmido da Serra da Ibiapaba, e a torta capixaba, filha das marés e da tradição do Espírito Santo, parecem receitas distantes — separadas por geografia, ingredientes e sotaques. Mas ao olhar mais de perto, percebe-se que ambas falam a mesma língua: a da cozinha afetiva, feita com o que se tem, com o que se ama, com o que se aprendeu a passar adiante.

A fritada lá de casa usava os frutos da terra: batata, cenoura, chuchu, abóbora, às vezes repolho, e quando eu estava disposto, as sardinhas davam o ar da graça, todos sempre bem refogados e envoltos em uma camada generosa de ovos batidos em neve — leves, quase como uma nuvem assada sobre o colorido dos legumes. Era feita no fogão a gás, lentamente, numa forma com buraco, coberta com a tampa de uma panela. O fogo baixo era tão importante quanto qualquer ingrediente.

Já a torta capixaba carrega o sabor do litoral. É prato de Sexta-feira Santa também, mas com o perfume dos frutos do mar — bacalhau, siri, camarão, juntados ao palmito — refogados e depois mergulhados em ovos igualmente batidos. A cobertura dourada, o uso do repolho em muitas variações caseiras, a presença de coentro e tomate, tudo ecoa de forma surpreendente a fritada de minha mãe. E como na nossa cozinha, e apesar de ter uma panela de barro caraterística e não uma forma com buraco no meio, todas se assam com cuidado, no compasso do tempo da tradição.

O que as une, acima de tudo, é o gesto: o cuidado de quem prepara, o silêncio reverente de quem espera, o instante em que a casquinha dourada se parte sob a colher, revelando o que há por dentro — memórias, histórias, e aquele gosto de casa que nenhuma receita escrita consegue reproduzir por completo.

A história de um prato raramente se resume aos seus ingredientes. Muitas vezes, ela se mistura com o que não se escreve em livro de receitas: a escassez, a fé, o que havia na feira e o que sobrou do dia anterior. A torta capixaba é uma dessas preparações que carregam, em cada camada, não só sabores, mas também a memória do tempo e da gente que a fez perdurar.

Ela nasceu em dias de silêncio e recolhimento, quando a religião pedia jejum e o mar oferecia consolo. Era, e ainda é, prato de Sexta-feira Santa, de casas quietas e panelas cheias de peixe e lembrança. Mas, como tudo que é vivo, a torta também mudou. Assumiu novas formas, ganhou o corpo do repolho, o sal do peixe seco, e assim se moldou à vida como ela é — feita de fé, mas também de finanças apertadas e da criatividade que só a necessidade ensina.

Na sua versão mais modesta, quase uma prima distante da receita original, a torta de repolho com peixe salgado continua sendo o que sempre foi: um gesto de continuidade, de insistência em manter acesa a chama de uma tradição, mesmo quando o forno é simples e os ingredientes, poucos. É nessa adaptação que se vê o mais bonito — a força discreta de um povo que sabe transformar o possível em sagrado. 

A Torta Capixaba: Raízes e Tradição

A torta capixaba é daquelas receitas que nascem de um rito — e florescem como um símbolo. No Espírito Santo, ela ganhou forma nos dias contidos da Quaresma, quando a fé mandava afastar a carne vermelha e a natureza, generosa, oferecia o mar inteiro em troca. Camarões, mariscos, peixes frescos, palmito recém-colhido — eram esses os ingredientes permitidos, e eram também os mais nobres. A Páscoa se aproximava, e com ela, um prato que soube transformar devoção em sabor.

Nas cozinhas da Ilha de Vitória, enquanto os sinos tocavam para as liturgias, outras mãos trabalhavam em silêncio sobre bancadas de madeira: as mãos das paneleiras de Goiabeiras. Com o barro extraído da própria terra, moldavam com paciência utensílios que fariam história. As panelas que saíam de lá — robustas, negras, quase solenes — tornaram-se tão simbólicas quanto o prato que abrigavam. Em 2002, esse ofício foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, mas sua importância já era conhecida muito antes de qualquer chancela oficial: bastava sentar-se à mesa.




Essas panelas tinham algo de altar. Nelas se preparava a moqueca capixaba, claro, mas também a torta. Eram versáteis: suportavam o fogo direto, iam ao forno, chegavam à mesa ainda exalando calor e memória. E mesmo quem não tinha uma peça original das Goiabeiras dava um jeito — fosse com um tabuleiro de alumínio, uma travessa de vidro ou uma panela de barro menos ilustre. O que importava era o espírito da coisa: que a mistura coubesse, que o forno suportasse, que o gosto não se perdesse.

A torta, afinal, era feita com o que havia. Restos de moqueca, sobras de peixe, pedaços de marisco, às vezes um camarão tímido que escapara do prato principal. Tudo era refogado em azeite com cebola, tomate e o tempero do dia — não o da receita, mas o do quintal ou do bolso. Por fim, era coberta com ovos batidos com vigor — espumosos, arejados, quase festivos. Sobre eles, rodelas de cebola, algumas azeitonas, talvez uma flor de palmito. E então, o forno fazia seu trabalho.

O que saía de lá não era só comida: era uma resposta à escassez, uma forma de obedecer à Igreja sem trair o paladar, uma prova de que a simplicidade não exclui a fartura — pelo contrário, a reinventa.

A torta capixaba, nesse sentido, é um hino à inteligência doméstica. Como tantos pratos tradicionais, ela nos ensina que a verdadeira sofisticação não está nos ingredientes caros, mas na capacidade de fazer do ordinário algo extraordinário. E que a fé, quando bem temperada, pode também ter gosto de festa.

Pode-se dizer que a origem dessa torta está na criatividade popular em tempos de privação. A utilização de ingredientes acessíveis e abundantes, como o peixe e o palmito, e a reutilização de sobras dos pratos principais, reflete a habilidade de adaptação da população local, especialmente em tempos de crise, como as secas prolongadas e a escassez de alimentos frescos.

 A Transformação: A Torta de Repolho com Peixe Salgado

Com o tempo — como acontece com tudo o que sobrevive — a torta capixaba se sofisticou. Ganhou novos trajes, mais finos: bacalhau dessalgado com zelo, azeites vindos de longe, azeitonas reluzentes como pequenas pedras negras. Tornou-se, para muitos, um prato de celebração solene, quase de prestígio, exigindo listas de compras mais caras do que permitia o salário da semana. Mas as mesas continuam a ser postas, com ou sem luxo — e a comida, em sua essência mais terna, não esquece suas origens.

Foi assim que, num movimento silencioso e obstinado, surgiu uma nova torta, mais modesta, mas não menos nobre: a de repolho com peixe salgado. O repolho, verdinho e farto, brotava nos quintais e nas feiras. Era barato, rendia bem, e substituía o palmito com dignidade. No lugar dos mariscos frescos, vieram os peixes salgados — o tipo de ingrediente que atravessa as distâncias sem precisar de refrigeração, que se compra por gramas e se guarda enrolado em papel pardo. E quando nem isso havia, a sardinha de lata dava seu jeito: com seu óleo espesso e gosto forte, entrava na receita com a coragem dos alimentos que sustentam famílias inteiras.

Essa versão da torta — mais singela, mais próxima da vida como ela é — manteve intacto o que importa: o gesto. Ainda se trata de reunir o que sobrou, refogar com afeto, cobrir com ovos batidos e levar ao forno com esperança. É comida que sabe de onde veio. Que não se envergonha das substituições, porque entende que sabor, muitas vezes, é feito mais de memória e cuidado do que de etiqueta de preço.

A torta de repolho capixaba é, assim, um prato de resistência e inventividade. Uma resposta generosa à escassez. E talvez por isso mesmo, mais fiel à alma do que a versão original — porque nela se vê, com nitidez comovente, o que a cozinha sempre foi: uma arte de continuar, mesmo quando quase nada há.

A torta de repolho com peixe salgado não é apenas um eco da torta capixaba original — é sua irmã mais brava, nascida em tempos difíceis, mas com um coração igualmente ardente. É, acima de tudo, um testemunho da capacidade que as pessoas têm de fazer poesia com os restos, de criar beleza mesmo quando tudo ao redor sugere que não há espaço para ela.

Quando a escassez bate à porta, e a feira parece mais cara a cada semana, não é raro que a cozinha se torne um palco silencioso de resistência. Ali, longe dos gabinetes onde se discutem políticas públicas, mãos anônimas encontram saídas com o que têm. O repolho, com seu miolo suculento e folhas largas, substitui o palmito sem alarde. O peixe salgado — às vezes firme, às vezes desfiado, sempre resiliente — entra onde o camarão não pode mais chegar. E o forno, cúmplice de tudo, transforma esse gesto de contenção em um prato cheio de dignidade.

É nesse jogo de substituições que a tradição se revela mais viva do que nunca. Porque tradição, ao contrário do que se pensa, não é repetir à exaustão o que foi feito uma vez — é saber preservar a alma das coisas mesmo quando o corpo precisa mudar. A torta de repolho guarda, intacta, a alma da torta capixaba: ela é feita para reunir, para partilhar, para consagrar com gosto os dias que merecem ser lembrados.

E talvez seja exatamente aí que resida sua beleza mais pungente. Porque esses pratos — esses que nascem da necessidade, mas permanecem por escolha — são mais do que comida. São declarações silenciosas de que a fome pode ser vencida com engenho, e de que a memória cultural não precisa de pompa para continuar a existir. O povo que os faz é o mesmo que, diante do que falta, olha para o fundo da panela e diz: ainda dá.

A torta capixaba e sua versão de repolho são, portanto, mais do que receitas. São histórias comestíveis, páginas quentes de uma narrativa maior. São, como toda boa comida de raiz, um lembrete de que onde há afeto e criatividade, há sempre mesa posta. E isso, por si só, já é uma forma profunda de fé.

Tanto a torta capixaba quanto a sua versão mais humilde de repolho são muito mais do que o que se serve à mesa. Elas são rituais que atravessam o tempo, marcando com sabor os dias em que a fé, a memória e o silêncio se entrelaçam. Durante a Quaresma — esse tempo suspenso entre o pesar e a promessa —, as tortas se tornam um elo visível entre o corpo e o espírito. Servidas em dias solenes como a Quinta-feira Santa e a Sexta-feira da Paixão, elas ocupam o centro da mesa como se fossem, também, orações — só que feitas com legumes, temperos, ovos, sal, e o calor do forno.

São, igualmente, celebrações da solidariedade. Em um tempo anterior ao barulho dos refrigeradores e ao embrulho plástico dos mercados, fazia-se comida em quantidade não por ostentação, mas por cuidado. As travessas quentes passavam pelas janelas, as porções dobradas encontravam o caminho até a casa vizinha. Uma torta, por mais simples que fosse, era partilha. Uma garantia de que ninguém — nem o solitário, nem o esquecido — estaria sem alimento naquele tempo sagrado.

E no coração dessa prática comunitária estavam as mulheres. Com mãos que sabiam medir a farinha “no olho” e ajustar o sal pelo cheiro do refogado, foram elas que moldaram as panelas e as tradições. Mulheres que talvez nunca tenham lido sobre “patrimônio cultural”, mas que criaram, sem saber, algo que o tempo decidiu preservar. A torta capixaba, a de repolho, e até mesmo aquela outra, feita longe do Espírito Santo — a fritada de legumes —, têm em comum essa origem feminina, terrosa, terna.

Porque lá em Guaraciaba do Norte, na Serra da Ibiapaba, havia uma outra torta — embora ninguém a chamasse assim. Era a fritada de legumes que minha mãe preparava com capricho e precisão, numa forma com buraco no meio, dessas comuns de alumínio, posta direto sobre a chama do fogão. Os legumes — batata, cenoura, chuchu, abóbora — vinham refogados com cheiro-verde, cebola, tomate, pimenta-do-reino, e sal. Por cima, o toque que elevava tudo: ovos batidos em neve, virando uma cobertura dourada e etérea, como uma bênção. Não era preciso forno, nem palmito, nem camarão. Só tempo, fogo baixo e olhos atentos. Aquilo também era Quaresma. Aquilo também era fé.

E se há uma ponte invisível que liga essas receitas — da moqueca à sardinha enlatada, do repolho às claras em neve — é o desejo profundo de manter vivo algo mais antigo do que qualquer tradição registrada: a vontade de cuidar, de preservar o que é sagrado através do ato de alimentar. A fritada de legumes era, no seu modo modesto e doméstico, uma prece familiar. Uma adaptação silenciosa às circunstâncias, feita com os ingredientes disponíveis e um sentido claro de continuidade. Como toda boa comida, não servia apenas ao corpo. Servia também à memória.

E talvez seja isso que une todas essas tortas e fritadas, todas essas camadas de ovo, legume, peixe e lembrança: o fato de que, quando a panela chia e o aroma começa a invadir a casa, o tempo parece suspenso. E ali, entre a chama e o prato, uma tradição renasce — feita não de regras, mas de amor.

A história da torta capixaba, e sua evolução para a torta de repolho, é uma história de adaptação, tradição e sobrevivência. Esses pratos representam não apenas uma culinária rica e diversa, mas também a força e a criatividade de um povo que soube manter suas tradições vivas, apesar das adversidades. Eles são, acima de tudo, símbolos de resistência cultural: enquanto a torta capixaba é um prato dos ricos e das festas, a torta de repolho com peixe salgado é o prato das famílias simples, uma versão humilde, mas igualmente representativa de um legado culinário que perdura.

Mas há ainda outras tortas, outros nomes, outras mãos que também participaram desse coro de reinvenções. A fritada de legumes que minha mãe fazia, lá no alto da Serra da Ibiapaba, é um desses ecos. Talvez não tenha a fama nem o peso ritual da torta capixaba, nem a função de resistência clara da torta de repolho. Mas guarda, em sua simplicidade luminosa, a mesma alma: a de uma comida feita com o que se tem, no tempo que se pode, com a fé possível.

Não havia mariscos ou panelas patrimoniais, tampouco decorações elaboradas. Mas havia batata, chuchu, cheiro-verde, ovos batidos em neve e a paciência de quem sabia que cozinhar, naquela casa, era também orar. A fritada de legumes era um tipo de torta sem nome, sem receita fixa, feita sobre a boca do fogão com o fogo baixinho — como quem não quer acordar os vizinhos com a lembrança de tempos difíceis.

Em seu cerne, todas essas receitas — tortas ou fritadas, com mariscos ou com sardinha — são muito mais do que comida. São manifestações silenciosas de continuidade. São a prova de que memória também se come. Que tradição também se inventa. E que mesmo as casas mais humildes, com mesas feitas de tábuas largas e formas de alumínio simples, sabem servir fartura quando o prato é temperado com afeto.

No fim das contas, seja na beira-mar capixaba ou nas altitudes da serra cearense, é sempre a mesma história: mulheres ao redor do fogão, crianças rondando em busca de um pedaço dourado, vizinhos que sentem o cheiro e reconhecem o gesto. Um alimento que consola, que celebra, que sustenta. Uma comida que é, antes de tudo, um modo de lembrar — e de continuar.

Torta Capixaba

500g de peixe fresco (geralmente, é usada garoupa, truta ou siri – pode variar dependendo da disponibilidade)

300g de camarão (descascado)

200g de marisco ou outro fruto do mar (opcional, mas tradicional)

200g de bacalhau dessalgado (o bacalhau é um ingrediente clássico em muitas variações da torta capixaba)

200g de palmito (fresco ou em conserva)

6 ovos (preferencialmente, use ovos caipiras)

1 cebola grande (picada finamente)

3 dentes de alho (picados)

1 pimentão verde (picado)

1 tomate (picado)

1/4 de xícara de azeite de oliva

1/2 colher de chá de urucum (para dar a cor e o sabor típico)

Coentro fresco (a gosto)

Sal e pimenta-do-reino (a gosto)

2 colheres de sopa de azeitonas verdes ou pretas (opcional)

Farinha de trigo (o suficiente para engrossar o molho)

Caldo de peixe (pode ser feito com as espinhas do peixe ou comprados prontos)

1 xícara de leite de coco (opcional, mas muito tradicional em algumas receitas)

Preparo: Corte o peixe em pedaços pequenos e cozinhe-os em uma panela com água e sal até ficarem macios. Após o cozimento, retire as espinhas e desfie o peixe em pedaços pequenos. Cozinhe os camarões e mariscos até ficarem bem cozidos e reserve. Em uma frigideira grande, refogue a cebola, o alho e o pimentão no azeite até ficarem dourados. Acrescente o tomate picado e deixe cozinhar até formar um molho. Adicione o peixe desfiado, o camarão e o marisco refogados, misturando bem. Em outra panela, cozinhe o palmito até ficar bem macio. Caso seja palmito de conserva, basta picá-lo em pedaços pequenos. Misture o palmito picado com os frutos do mar e o peixe. Em seguida, acrescente o urucum, coentro picado, sal e pimenta-do-reino a gosto. Bata os ovos até dobrarem de volume e ficarem bem espumosos.  Pré-aqueça o forno a 180°C. Unte a forma de torta com azeite (se tiver uma panela de barro, use-a) e, em seguida, coloque metade dos ovos batidos, na mistura já preparada de peixe marisco e verduras, misture bem e despeje na forma untada com azeite, nivele bem a mistura e coloque o restante do ovo batido por cima. Para decorar, inclua umas rodelas de cebola com uma azeitona no centro de cada rodela e leve ao forno e asse por aproximadamente 30 a 40 minutos ou até que a torta fique bem dourada por cima e firme. Retire a torta do forno e deixe esfriar por alguns minutos antes de servir. Ela pode ser servida quente ou em temperatura ambiente.

Dicas:

A torta capixaba é muito tradicional na Semana Santa e especialmente na Quinta-Feira Santa, sendo preparada em grande quantidade para a refeição.

O urucum é essencial para dar à torta a cor característica, que é uma das marcas da receita.

O palmito é um ingrediente clássico da torta capixaba e traz uma suavidade única à receita.

O leite de coco não é obrigatório, mas é uma opção para dar um toque mais cremoso à mistura, especialmente em algumas versões da receita.

Para preparar a torta com peixe salgado, o bacalhau é geralmente o mais escolhido, mas lembre-se de retirar todo o sal do peixe antes de preparar.

 Torta Capixaba de Repolho com Sardinha

1 cebola grande

3 latas de sardinha

azeite quanto baste

2 batatas grandes amassadas

1 repolho grande picado em fatias finas

150g de azeitona sem caroço

200g de palmito

1/2 maço de cebolinha

1/2 maço de salsinha

1 maço de coentro

1 e ½ tomates sem semente

sal a gosto

1 colher (café) de pimenta-do-reino

1 colher (sopa) de alho

1 cebola cortada em rodelas com azeitonas

4 ovos inteiros

Preparo: Dourar a cebola no azeite e deixar dourar bem. Juntar o tomate, a pimenta do reino, azeitona, palmito, a sardinha, refogar bem. Juntar metade do cheiro verde e todo o repolho, misturar e refogar bem, até deixar a aguinha que se forma no fundo da panela secar. Não se espante, pois o repolho murchar mesmo. Noutra panela, coloque mais azeite e o colorau, refogue as sardinhas sem o liquido das latinhas, depois de bem refogado, junte na mistura anterior, acerte o sal, junte as batatas cozidas amassadas e misture muito bem. Coloque a mistura num tabuleiro ou refratário untado com azeite , espalhe uniformemente e reserve. bata as claras em neve, até picos firmes, junte as gemas e bata mais. coloca a mistura de ovos por cima do preparado e espalhe bem para nivelar. por cima colocar as rodelas de cebola com uma azeitona no centro de cada uma delas, e levar para assar ate ficar dourada. Servir quente ou fria com arroz branco e salada.