Eu
tenho uma ligação bastante forte com Francisco de Assis, santo católico. Embora
eu não consiga a explicar muito bem, sei que não é deste mundo... hoje, para
celebrar o Dia dedicado a São Francisco vim apresentar uma história e uma
receita que ganhou ainda mais fama por ser uma predileção culinária do santo. E
se Francisco de Assis fosse um admirador de boa comida? E se, entre os muitos
pratos, ele gostasse de doces? A hipótese não é tão remota, como nos mostram
várias fontes documentais. Mas o que realmente devemos nos perguntar é: podemos
culpá-lo?
Embora
seja verdade que muitos detalhes do passado continuam a nos escapar, também é
justo reconhecer o empenho de muitos autores na tentativa de reconstruir alguns
aspectos que podem aprofundar a história oficial, como estudos sobre o clima ou
os hábitos alimentares de nossos predecessores. Aparentemente de importância
secundária, esses tipos de descobertas estão lançando luz sobre os muitos
pontos de sombra que suspendem a linha do tempo, permitindo-nos olhar para as
maiores personalidades do passado de uma forma menos distanciada e com menos
temor, aceitando suas idiossincrasias e fraquezas de seres humanos.
Segundo
fontes hagiográficas, nem mesmo São Francisco, o santíssimo pobre de Assis,
pode se eximir desse discurso. Na verdade, parece que ele era um admirador -
calmo e moderado, é claro - de boa comida, principalmente de doces.
Francisco
nasceu em Assis no inverno de 1182 em uma das famílias mais ricas da cidade.
Sua infância transcorreu pacificamente e ele pôde estudar latim, vernáculo,
provençal e música; suas notas, junto com seus poemas, sempre foram apreciadas
nas festas da cidade. Seu pai, um comerciante de especiarias e tecidos, ansioso
para envolvê-lo nos negócios da família, o educou para essa arte. Mas o
episódio que começou a transformar a vida de Francesco aconteceu com ele aos
vinte anos, quando foi capturado enquanto participava da guerra entre Assis e
Perugia.
O
aprisionamento e as adversidades moldaram sua alma e quanto mais seu corpo se
enfraqueceu, mais um senso de caridade e bem para com os outros começou a tomar
conta. O patrimônio espiritual que o “frade” deixou para iluminar o caminho de
muitos é enorme.
Diz-se
que Jacopa dei Settesoli (Jacoba de septem Soliis, também conhecida como Madonna
Jacopa, Jacoba, ou Giacomina, ou Giacoma,) uma nobre romana, nascida na Cidade
Eterna (Roma) em 1190 no seio de uma ilustre família residente em Trastevere.
Ela
se casou com um homem rico de Roma, um certo Graziano Frangipane de' Settesoli,
membro da nobre família romana de Frangipane, dono do Settizonio , um monumento
construído por Septímio Severo perto do Circo Máximo em Roma e se tornou um
reduto do Frangipane após a queda do Império.
Viúva
aos 27 anos, ela foi forçada a se tornar a administradora de muitas
propriedades de seu marido, incluindo a cidade de Marino. O primeiro ato que
diz respeito a ela remonta a 1210, onde já era viúva e com dois filhos a serem
protegidos, Giovanni e Giacomo, que administravam o território de Marino, Nemi
e outras propriedades Frangipane. Será ela quem assinará, em 31 de maio de
1237, junto com seu filho mais velho, Giovanni Frangipane, a primeira das
constituições ou estatutos que regularão a vida civil nas terras de Marino. No
contrato estipulado com os habitantes do Castello di Marino, estavam previstas
as concessões em forma de estatutos dos séculos seguintes, nos quais as normas
e os costumes em vigor foram estabelecidos com o compromisso de respeitar-se
mutuamente para o bem comum.
Foi
durante sua terceira viagem a Roma em 1222 que São Francisco estreitou laços
com a nobre romana, viúva de Graciano e mãe de dois filhos, para a
implementação da Ordem Terceira, abençoada pelo Papa Honório III, para promover
a adesão dos leigos e organizá-los na sociedade da época nas obras de
assistência e voluntariado.
Jacopa
o encontra a pregar e torna sua fiel seguidora e sua excelente guia pelas ruas
de Roma. Segundo a lenda, São Francisco, em retribuição a Giacoma, deu-lhe um
cordeiro adestrado, que sempre a acompanhava. Desde então, Jacopa de 'Settesoli
se tornou a mais válida colaboradora do recém-nascido movimento franciscano na
cidade dos Papas e também das Clarissas.
Foi
ela quem obteve dos beneditinos de San Cosimato in Trastevere a venda do
hospital de San Biagio, que se tornou o primeiro lugar romano dos Menores. Talvez
poucos saibam, mas foi Jacopa dei Settesoli, uma nobre romana da poderosa
família Frangipane que inspirou Francisco a fundar em 1221 a ordem dos
"Irmãos e Irmãs da Penitência" também conhecidos como “Terceira ordem
franciscana dedicada aos leigos”. Jacopa de 'Settesoli era tão ativa e decidida
que Francesco a chamava afetuosamente de Frate Jacopa. A amizade durou até a
morte do santo, ocorrida na noite entre 3 e 4 de outubro de 1226.
Foi
durante a sua primeira estada em Roma que Francisco experimentou o que viria a
ser o seu "pecado da gula" perene: certos biscoitos "bons e
cheirosos", que a própria Jacopa de 'Settesoli preparava e lhes ofereceu
um dia em sua casa.
Típicos
da época da colheita, eram feitos com um tipo de massa com mel, amêndoas e
mosto de uva - e talvez por fazer uso deste último ingrediente acabou sendo
chamado "mostaccioli". Mas, já na Roma antiga haviam biscoitos
semelhantes com o nome de "mortarioli", feito com mel e amêndoas
trituradas em um pilão...
A
aura de santidade, auxiliada pelos princípios da Regra Franciscana, torna
bastante difícil acreditar que São Francisco fosse apenas humano, quanto mais
imaginá-lo saboreando algumas iguarias com amêndoas, açúcar e mel.
Entre
as várias cartas atribuídas ao Santo, entretanto, existe uma referente a certa Madonna
Jacopa. Conforme relatado no Tratado dos Milagres de Tommaso da Celano
(concluído em 1252-1253, embora posteriormente tenha desaparecido até 1899), a
mulher "era admirada por sua linhagem ilustre, pela nobreza da família,
por sua vasta riqueza, pela maravilhosa perfeição de suas virtudes e de sua
castidade viúva”. Em suma, não era estranho que Francisco, a quem também estava
ligada por uma profunda amizade, a pedisse algo antes do fim.
Mas
o pedido que o frade de Assis ditou na carta dirigida a Jacopa o surpreenderá,
caro leitor e leitora, como aliás os irmãos que o velavam em Santa Maria degli
Angeli. A mulher deveria lhe trazer um pano de cor cinza para cobrir o corpo
moribundo do frade, uma mortalha para o rosto, um travesseiro para a cabeça,
velas e uma certa refeição que ela ofereceu certa vez para o santo e sua estadia
em Roma: o mortariolum, feito de amêndoas, açúcar, mel e outros ingredientes
saborosos - que aprecem no Compilatio
Assisiensis vol. 8, a cura di E. Menestò, in Fontes Franciscani, Assisi (1995).
Em
todo caso, aqueles mostaccioli de Frata Jacopa de 'Settesoli agradou tanto a
São Francisco que ele os desejou mesmo em seu leito de morte! Quando Francisco
sentiu que sua hora se aproximava, quis ditar uma carta a um frade para sua
querida amiga Frata Jacopa, para informá-la de sua morte iminente e pedir-lhe
que se juntasse a ele na Porciúncula, trazendo-lhe um manto para o enterro e
velas para o funeral e ... doces:
“A
donna Jacopa, serva dell'Altissimo, frate Francesco, poverello di Cristo, augura
salute nel Signore e comunione nello Spirito Santo. Sappi, carissima, che il
Signore benedetto mi ha fatto la grazia di rivelarmi che è ormai prossima la
fine della mia vita. Perciò, se vuoi trovarmi ancora vivo, appena ricevuta
questa lettera, affrettati a venire a Santa Maria degli Angeli. Poiché se
giungerai più tardi di sabato, non mi potrai vedere vivo. E porta con te un
panno di colore cenerino per avvolgere il mio corpo e i ceri per la sepoltura.
Ti prego anche di portarmi quei dolci, che tu eri solita darmi quando mi
trovavo malato a Roma”.
“A
Donna Jacopa, serva do Altíssimo, irmã de Francisco, pobre homem de Cristo,
deseja saúde no Senhor e comunhão no Espírito Santo. Saiba, caríssima, que o
bendito Senhor me deu a graça de me revelar que o fim da minha vida está
próximo. Portanto, se você quiser me encontrar ainda vivo, assim que receber
esta carta, apresse-se e venha a Santa Maria degli Angeli. Porque se você vier
mais tarde no sábado, não poderá me ver vivo. E traga com você um pano de cor
cinza para embrulhar meu corpo e as velas funerárias. Por favor, traga-me
também aqueles doces que você me dava quando eu estava doente em Roma”.
A
história conta que Jacopa veio até Francisco moribundo com tudo o que ele havia
pedido, mas sem nunca ter recebido a carta: é aqui que reside o prodígio e é
aqui que todas as fontes que falam dele concordam - não apenas o referido
Tratado sobre Milagres, mas também Considerações sobre os Estigmas, que é a
coleção dos Fioretti del Santo, e Espelho da Perfeição, uma compilação da vida
de Francisco datada de 1318. Graças a este último, sabemos que Francisco, agora
sem forças, desse mortariolum comia muito pouco.
A
nobre romana foi a responsável pela iniciativa de ter encomendado o retrato de
São Francisco, ainda em vida, que se conserva em Greccio com a legenda:
“Verdadeiro retrato do Seráfico Patriarca São Francisco de Assis feito pelos
piedosos A mulher romana Giacoma dei Settesoli vivendo o mesmo Patriarca ”.
Por
estas razões Jacopa foi a única mulher admitida ao lado do leito de São
Francisco, quando este morreu a 3 de outubro de 1226 na pequena igreja da
Porciúncula em Assis. De volta a Roma, Jacopa viveu mais treze anos,
dedicando-se a obras de caridade. Ele ajudou os frades de Francisco a obter do
Papa Gregório IX a propriedade do hospital de San Biagio em 1229, que com o
tempo se tornou o convento de San Francesco a Ripa. Posteriormente, retirou-se
para Assis, onde em 1239 morreu e foi sepultado, única pessoa no mundo a obter
este privilégio, em frente ao túmulo do Santo na cripta da Basílica de São
Francisco.
Tumba de Jacopa dei Settesoli na Basílica inferior de Assis
Mas o
que era essa refeição que Francesco adorava?
Franco
Cardini, em O apetite do imperador (L’appetito dell’imperatore, F. Cardini,
Mondadori: Milano, 2014), tenta reconstituir sua etimologia, embora esse
caminho retrógrado seja bastante incerto: o mortariolum, exatamente no mortier
francês, indicaria um alimento cujos ingredientes são muito triturados e
misturados no almofariz (pilão, que naquele região era chamado de mortaio). Nos
documentos mencionados acima, mortariolum torna-se mostaccioli, um biscoito
seco encontrado em várias regiões da Itália, mas que, na Úmbria,
tradicionalmente acompanha as celebrações dedicadas aos mortos.
No
entanto, dois detalhes importantes devem ser considerados: o primeiro é que a
preparação levaria tanto o nome por conta do almofariz (o pilão, “mortaio”), mas
também por usar mosto de vinho branco para juntar a mistura de farinha com os
demais ingredientes. A segunda diz respeito a Madonna Jacopa, a mulher a quem
Francisco faz o pedido inusitado, que pertence a uma nobre família romana: é
mais provável, portanto, que os pedidos por Francisco sejam os ancestrais
biscoitos feitos com farinha, frutos secos (podendo serem feitoc com amêndoas,
nozes, avelãs), pimenta preta (conhecida como pimenta do reino, aqui no Brasil),
canela, mel e claras de ovo que ainda são preparadas na capital romana.
Em
sua reconstrução ficcional, Cardini imagina antes que os doces tão cobiçados
por Francesco eram semelhantes aos ricciarelli de Siena, resultado de uma
mistura em que se destaca uma mistura de amêndoas, açúcar granulado e outros
ingredientes.
Cabe
ressaltar que, em O Apetite do Imperador, Cardini faz parte da ficção histórica
porque, a partir de fatos históricos, o autor acrescenta elementos credíveis e
historicamente plausíveis que, no entanto, não possuem evidências documentais.
No caso de Profumo d'Aranci (o perfume das laranjas) história dedicada a São
Francisco, Cardini usa parte do encontro - plausível, mas não atestado pelas
fontes - entre o cardeal Ugolino d'Ostia e Elia da Cortona, abalado com a morte
do frade morto discutindo o pedido que este último havia feito em seu leito de
morte para a sua cara amiga,
História
e ficção a parte, esse biscoito é real e de fácil preparação. E, agora, você poderá
prepara-lo para comemorar este dia dedicado à São Francisco.
300g
de farinha de trigo
300g
de amêndoas descascadas quebradas no pilão (ou picadas)
75g de
mel
100g
de açúcar
2
claras de ovo
Casca ralada
de 1 laranja (ou seu equivalente em laranja cristalizada picada)
3
colheres de vinho branco (ou mosto de uva, ou água - para ajudar a dar o ponto)
3
colheres de azeite de oliva
1 colher
de chá de fermento em pó
1
pitada de Pimenta preta (pimenta do reino)
1
pitada de canela
1
pitada de sal
Preparo: Primeiro pique as
amêndoas. Em seguida, coloque-as em uma tigela grande com a farinha, o mel, o
açúcar, o mosto, o óleo, as claras de ovos levemente batidas com um garfo, o
fermento peneirado, as cascas de laranja, a pimenta, a canela e o sal. Mexa com
uma colher de pau até obter uma mistura homogênea e, em seguida, com a ajuda de
uma colher, arrume as pedacinhos de massa em formato de losangos sobre uma
assadeira coberta com papel manteiga. Use os dedos umedecidos para ajudar a forme
biscoitos no formato, contato que eles tenham cerca de 7 cm de comprimento e 1
cm de espessura. Finalmente, leve ao forno pré-aquecido a 180° C por cerca de 15-20
minutos. Servir frio.