sábado, 6 de setembro de 2025

QUINZE ANOS À MESA COM O BARÃO DE GOURMANDISE: ENTRE SABORES, HISTÓRIAS E MUNDOS EM EBULIÇÃO

 

Enquanto a Grécia afundava em dívidas, e a União Europeia costurava um resgate para evitar um cataclismo fiscal, eu acendia o fogo — do fogão e das palavras.

Enquanto o Haiti se dissolvia em fumaça e escombros num terremoto que arrasou Port‑au‑Prince, eu buscava em minha memória sabores possíveis — uma forma de reconstrução, ainda que apenas via prosa.

Enquanto o mundo observava, estupefato, as manchas de petróleo se espalharem pelo Golfo do México — fruto da explosão da plataforma Deepwater Horizon —, eu me refugiava no calor dos condimentos, convocando calmaria por meio do cotidiano da cozinha.

Enquanto vozes digitais se erguiam, com WikiLeaks só distribuindo verdades embriagadas de política e segredo, eu me permitia o luxo de falar com farinha, ovos e metáforas — um contraponto de doçura e sensibilidade à aridez dos tempos.

Enquanto o Brasil celebrava o fim de uma era política e se preparava para eleger sua primeira presidenta, eu misturava fé e farinha, tentando entender o sabor da mudança. Entre panelas e promessas, fermentava em mim uma vontade de traduzir o país — não em discursos, mas em receitas que guardam silêncios, afetos e contradições.

E no meio do caos — entre colapsos financeiros, ruínas humanas e vendavais de poder — meu gesto mais íntimo e subversivo foi escrever com fome: não a do estômago, mas a do espírito, uma fome antiga que devora silêncios e se alimenta de memória e desejo.

Compreendo os conflitos. Sempre os compreendi. O mundo ardeu — e ainda arde — em dívidas, tragédias, colapsos ambientais, injustiças. Mas enquanto os olhos se voltavam para os epicentros da catástrofe, eu escolhi olhar para aquilo que, por ser constante, nos escapa: a cozinha. Esse território ancestral, subestimado, tantas vezes tratado como apêndice doméstico ou passatempo feminino, é, na verdade, o centro gravitacional da nossa sobrevivência e da nossa humanidade. Ali se dissolvem hierarquias e se acendem vínculos. O que passa despercebido — uma casca de limão ralada, um pão repartido, um café coado com cuidado — carrega uma potência política e afetiva que poucos ousam nomear. Falar de comida é falar do que nos mantém vivos: afeto, hospitalidade, memória, convivência. É, no fundo, uma forma de resistência ao esvaziamento da experiência humana. E foi por isso que escrevi. Não por alienação, mas por reverência. Não por fuga, mas por insistência: de que o que é simples pode ser sagrado.

Em meio ao que fragmentava o mundo — suas crises, seus colapsos e suas urgências incontornáveis — escolhi ancorar meus passos no terreno firme e silencioso da alimentação. Não apenas a cozinha enquanto espaço físico, com suas panelas e ingredientes, mas o vasto território da cultura que se entrelaça a ela: histórias esquecidas e ressurgentes, transformações que o tempo sutilmente inscreve nos sabores, memórias que se preservam e se reinventam a cada prato servido, a cada ensaio escrito.

A Confraria Gastronômica do Barão de Gourmandise nasceu em 6 de setembro de 2010, quando o impulso de deter o tempo — essa força invisível e implacável — me levou a acender uma chama delicada contra o esquecimento. Abrir este espaço foi como abrir um relicário de aromas e sabores guardados, onde cada palavra se tornou um frasco de vidro, onde a curiosidade pudesse repousar em conserva, longe do esquecimento.

Nunca imaginei que, tão cedo, esse espaço silencioso — feito apenas de palavras suspensas no ar digital — se transformaria numa sala viva, pulsante de vozes e lembranças. Leitores chegaram como quem entra devagar numa cozinha aquecida, trazendo seus próprios sabores, suas memórias, suas saudades. E ali, entre textos e afetos, nasceu uma alquimia delicada, onde o íntimo e o coletivo se misturam como aromas que dançam no ar quando a primeira luz da manhã toca o fogão aceso.

Naqueles dias em que os blogs fervilhavam como salões da nova era digital — moda efêmera para uns, mas abrigo para outros — foi neste canto quase secreto que compreendi algo maior. Escrever sobre comida não era apenas relatar sabores: era escrever sobre destino, sobre as tramas invisíveis que unem humanidade e memória em cada receita, em cada gesto culinário. Era — e ainda é — um gesto delicado de escuta e permanência, uma reverência ao tempo, um pacto com o efêmero que insiste em permanecer.

Dois anos depois, em 2012, uma empresa nacional incluiu meu blog entre os indicados ao prêmio de melhores blogs do Brasil na categoria gastronomia. Era um concurso nacional de votação popular, e, ao final, para minha surpresa, a Confraria ficou entre os três ou quatro blogs mais votados do país. Sem patrocínio, sem rede de contatos, sem a estrutura que muitas grandes produções já ostentavam — foi um feito. Um gesto simples, talvez, mas que caiu sobre mim como uma brisa morna vinda de longe: o reconhecimento de que aquela chama, acesa no silêncio, não era vã.

Ainda assim, não me permiti deslumbramentos. Continuei como sempre: de grão em grão, palavra por palavra, mantendo a mesma mesa posta — onde a escrita serve, nunca se exibe.

E, como acontece com toda luz que insiste em arder, também vieram as sombras: houve quem desdenhasse do que chamei de cultura, reduzindo-o a inutilidade.

Houve colegas — professores, inclusive — que torceram o rosto diante da minha escrita, apenas para, mais tarde, copiá-la linha por linha, como se pudessem extrair-lhe a alma e replicá-la em suas aulas: o texto convertido em slides, o conteúdo reaproveitado sem citação, até as mesmas fotos dos pratos, coladas ali como se fossem suas.

Houve quem se ofendesse por ver, num prato, uma narrativa que atravessava suas crenças — políticas ou espirituais — como se o alimento devesse caber em fronteiras tão estreitas.

Lembro exatamente do primeiro hate que recebi — e foi por um pudim. Um pudim Molotov, para ser mais preciso. Bastou o título para que alguns, mais inflamados que informados, tomassem a metáfora ao pé da letra. Sem sequer chegarem à receita, me associaram a discursos incendiários e intenções que jamais estiveram ali. Fui chamado de subversivo, de incitador — o adjetivo exato me escapa, mas vinha sempre colado à imagem do coquetel que confundiram com sobremesa. Foi como se o nome do doce, por si só, fosse uma ameaça.

Depois veio o sábio de dólmã — homem de fala firme e paladar domesticado — que também exercia a profissão de professor de gastronomia, embora lhe faltasse o hábito fundamental de todo verdadeiro mestre: a escuta atenta e a dedicação humilde aos estudos. Bastava que um termo, um ingrediente ou uma história escapasse aos limites do que aprenderam nos corredores da formação técnica, para que o julgamento caísse, rápido e impaciente: “Nunca ouvi falar disso, logo está errado.”

Recordo com nitidez uma dessas ocasiões, em maio de 2012, quando publiquei um texto sobre o lokum — também conhecido como delícia turca. Um doce que carrego desde a infância, sempre em duas cores: vermelho e amarelo, com sabores que se dividiam entre romã e laranja, entrelaçados a memórias aromáticas. Originário do Império Otomano, o lokum nasceu entre os aromas vibrantes dos mercados de Istambul, feito de uma mistura simples: amido de milho ou farinha de trigo, doce na medida certa, perfumado com essências delicadas como água de rosas, pistache e cardamomo. Cada pedaço é uma pequena joia, que pode vir polvilhada com açúcar de confeiteiro, pétalas de rosas secas, ou coberta por nozes, açúcar cristal, gergelim — ou mesmo simplesmente ao natural — um relicário de nuvens açucaradas que derretem suavemente no paladar, deixando um rastro sutil de doçura e mistério.

Naquele ano, por conta do filme As Crônicas de Nárnia, o lokum retornava ao imaginário popular, oferecido pela Feiticeira Branca como símbolo de tentação e encantamento: “Um prazer tão delicioso que fazia Edmund desejar mais e mais.”

Mas nem isso foi suficiente para calar o ataque. O mesmo sábio de dólmã fez questão de tornar pública sua crítica, nos comentários do blog, sendo rude e sem meias palavras: “Dá para ver que você não entende de cozinha. Essa receita está errada. Lokum se faz com amido de milho, não com amido de arroz ou farinha de trigo.” O desdém, exposto em plena luz, soava mais como um esbravejo do que uma correção — uma sentença definitiva que se negava a ouvir qualquer outra verdade.

O problema, como quase sempre, estava na falta de contexto — e na arrogância que dispensa a pesquisa. O amido de milho é uma invenção moderna, surgida apenas no século XIX, nos Estados Unidos, com a industrialização da extração desse ingrediente. Enquanto isso, a receita mais antiga de lokum que encontrei data de 1777, nos bazares de Istambul, quando Hacı Bekir misturava açúcar e… amido — mas não o de milho, claro. Naquele tempo, o milho era apenas um rumor distante, vindo das Américas, ainda ausente dos mercados otomanos. O que se usava era o que havia: amido de arroz ou farinha de trigo, ligados à tradição, à memória sensorial e ao gesto do artesão local.

Essa ignorância — agressiva, barulhenta, cega à história — não me feriu. Pelo contrário, me fez rever a receita para incluir, nas versões modernas, o amido de milho, que hoje já integra a produção contemporânea do doce. E, acima de tudo, ela me ensinou. Aprendi a reconhecer no ruído uma confirmação: o que eu fazia tocava algo vivo, algo que escapava às fórmulas.

Eu, em silêncio, sorria. Não por desdém, mas por saber que há saberes que não cabem em currículos, saberes que florescem além das grades do conhecimento formal. Desde pequeno, aprendi a não me contentar com o que me ensinavam; sempre quis ir além, explorar o que o mundo oferece em seus cantos mais exatos e invisíveis. Porque o mundo, afinal, é o limite — e é nele que mora a riqueza, na busca incessante, no desejo de desbravar cada nuance, cada cheiro, cada história que se esconde sob a superfície do óbvio.

Continuei, então, a seguir por esse caminho, abraçando o silêncio como um espaço fértil, onde o invisível podia ganhar voz, e o trivial se transformava em sagrado. Escrevi com o corpo inteiro, sentindo as palavras como ingredientes, misturando memória, afetos e sabores numa receita que não se aprende em livros, mas se vive a cada instante.

Com o tempo, aprendi a me blindar. Não com indiferença, mas com silêncio fecundo. Recolhi-me — como quem se guarda na casca de uma noz — e ali, protegido pela densidade da memória, continuei escrevendo. Porque contar essas histórias é, para mim, uma forma de devolver ao mundo não apenas o sabor, mas o respeito.

Entre as vozes que torceram o rosto, houve também outras que acolheram com afeto e reconhecimento. Receber um e-mail do então presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi para mim a prova viva de que, naquele país, a gastronomia é tratada com o respeito e o zelo que merece. Naquela mensagem, havia o agradecimento pro eu tratar as preparações da cozinha francesa com cuidado e respeito, e um convite delicado para que eu continuasse a preservar e celebrar os saberes culinários, ressaltando a importância da cozinha como patrimônio cultural e elo entre gerações. Por mais que eu suspeite que tenha sido escrito por algum assessor, o gesto carregava uma intenção genuína: um convite silencioso para transpor os cuidados e a paixão que eles dedicam à mesa para além das fronteiras.

Gostaria de ter salvo aquela correspondência, mas as intempéries digitais — quando meu e-mail foi afetado por invasões e perdas — acabaram bloqueando minha antiga conta oficial no Hotmail, o qu e não me permitiu mais acesso a conta e ao arquivo. Mas isso não apaga o episódio do meu coração.

E não foram só gestos solitários. Faculdades de fora do Ceará reconheceram em meus textos um valor científico e metodológico que ultrapassou o espaço do blog: artigos e ensaios meus passaram a integrar seus manuais, referências em cursos e pesquisas, testemunhas de um ofício que se faz com rigor e amor.

Houve também convites que honram a jornada — para participar de bancas de especialização, palestras em cursos de turismo, hotelaria e gastronomia, espalhados pelo Brasil — momentos que transformaram meu canto quase secreto em um lugar de partilha real, onde sabores, saberes e histórias continuam a se encontrar.

E foi justamente através desse diálogo — entre reconhecimento e resistência — que aprendi a escutar até o desconforto como confirmação: se algo provoca, é porque toca. Se incomoda, é porque está vivo. E o que eu escrevia — o que ainda escrevo — pulsa. Não para agradar, mas para despertar.

O que ficou, e segue ficando, são os olhos que leem com delicadeza, como quem pousa a mão numa pele frágil; os retornos que chegam como cartas antigas, guardadas no tempo, carregadas de afeto e memória; as mãos que escrevem de volta, traçando linhas que são como carícias, revelando que o encontro vai além das palavras — é feito de cumplicidade e cuidado. São corações que se reconhecem nos detalhes quase invisíveis — numa receita antiga que guarda o cheiro da infância, numa especiaria esquecida que ainda desperta sensações, numa preparação ousada que desafia o possível, às vezes exótica, que muitos reclamam por não conseguir fazer — seja pelo mistério dos ingredientes, seja pela técnica quase mágica que exige. E é exatamente aí que mora o valor: na preservação dessas nuances, dessas pequenas revoluções em forma de sabor, que resistem ao tempo e ao esquecimento.

Se me perguntam por que continuo, a resposta não cabe no prático, nem no técnico. É visceral, profunda, feita de fogo. Eu sigo porque a curiosidade queima dentro de mim, porque cada leitura reacende a fome essencial — aquela fome que não se sacia com pão, mas com sentido, com significado. Uma fome que não se doma, que persiste mesmo quando o mundo se apresenta áspero, duro, implacável.

E talvez essa seja a mais verdadeira de todas as fomes: a fome de permanecer tocado pelo mundo, de deixar-se atravessar pelas suas dores e belezas, de encontrar, em cada gesto — seja simples ou grandioso —, uma faísca de vida que não se apaga.

Vieram histórias, vieram receitas, vieram encontros — encontros que atravessam o tempo e a distância, que se fazem calor mesmo pelas telas frias da modernidade. Vieram até pedidos para transformar tudo isso em livro — e ele virá, no tempo certo, como uma colheita madura, que não se apressa nem se força. Por ora, celebro. Celebro o fato de que esse espaço, nascido para guardar memórias, se tornou uma verdadeira confraria: não uma simples reunião de corpos em torno de uma mesa, mas de almas dispersas por diferentes cantos do mundo, unidas pelo mesmo apetite — o apetite pela vida, pelo saber, pelo compartilhar.

Quinze anos depois, este blog se revela para mim como um banquete sem fim, onde cada prato servido me devolve um olhar renovado, uma interpretação fresca, um sopro de curiosidade que nunca cessa. Vejo, com ternura, a evolução da minha escrita — que no início era breve, quase despretensiosa, sem a ânsia de aprofundar-se em fontes ou ampliar horizontes. Depois, veio a necessidade de mais rigor, de oferecer ao público não só palavras, mas fundamentos, para que o sabor da história fosse mais pleno, mais verdadeiro.

O estilo dos textos também floresceu com o tempo, sutilmente moldado pelas mudanças incessantes do mundo — que nos transforma a cada instante, como a luz que se dobra e colore as coisas de maneira diferente a cada amanhecer. Cada leitor que chega, então, não é apenas um visitante; é um conviva antigo reencontrado, uma presença cálida que aquece e confirma que o que construímos juntos transcende a mera comida — é uma conexão profunda, uma resistência silenciosa, uma celebração do humano em sua essência mais pura.

Depois, houve o meu quase encontro com a morte — o espanto da fragilidade diante do problema renal — e tudo, de repente, acelerou. O tempo passou como um trator que arou todos os dias, e as informações, na internet cada vez mais veloz, estouravam como pipocas no calor da panela, consumidas numa pressa insaciável. E eu, ao contrário, permaneci no meu ritmo, sorvendo lentamente aquilo que amo, partilhando aquilo que posso, no meu tempo, ao meu modo — um gesto de amor, de resistência, uma dança entre a urgência do mundo e a paciência da alma.

Hoje, ergo um brinde — não com taças de cristal, mas com o pires esquecido do café, ainda quente, onde posso sorver a memória dos gestos simples e a doçura das horas que se prolongam. A Confraria Gastronômica do Barão de Gourmandise completa 15 anos. E como todo verdadeiro banquete, só vale a pena se for partilhado.

Que venham os próximos pratos, os próximos leitores, os próximos instantes. A mesa está posta, iluminada pela chama tênue da curiosidade e aquecida pelo afeto que nos une. Ainda tenho fome. Fome de palavras novas, de receitas antigas, de histórias bem temperadas que atravessam o tempo e se renovam em cada encontro.

E é essa fome — essa sede de vida e significado — que me mantém firme, com uma taça na mão e uma frase no forno, pronto para celebrar o que vem a seguir. Porque toda comemoração pede um bolo, um gesto doce que simbolize o aconchego e a continuidade.

Quinze anos. Quinze anos de um rito próprio, uma passagem que não se anuncia em pompas, mas em sabores e memórias. Como aquele jovem que, ao completar seus quinze anos, se prepara para ser apresentado ao mundo — não em um salão grandioso, mas numa festa onde cada gesto, cada olhar, cada prato é uma confidência, um convite para ser vista, compreendida, acolhida.

Este blog foi, desde o início, essa festa íntima, essa revelação silenciosa. Um espaço onde partilho não apenas receitas, mas pedaços da minha história, fragmentos da história da humanidade, aromas que atravessam tempos e distâncias, como o perfume delicado do alho dourando lentamente na panela — simples, humilde, mas essencial, pulsando com a vida.

E talvez seja justamente isso que torna esta celebração tão significativa: não se trata apenas de olhar para trás, mas de perceber como cada gesto, cada palavra e cada sabor acumulado ao longo do caminho acendem algo novo. Porque celebrar quinze anos não é apenas recordar o passado, mas inaugurar o futuro, é reacender a chama que não se apaga, é transformar cada palavra e cada prato numa ode perpétua à vida que se faz alimento, e ao alimento que se faz poesia.

E neste banquete, onde o simples se torna sagrado, convido vocês a mergulharem comigo na celebração definitiva: a Torta della Nonna — não apenas uma sobremesa, mas um símbolo, um relicário doce da infância, da casa, da tradição que resiste ao desgaste dos anos. Que cada mordida seja um brado silencioso de resistência, um abraço quente, uma promessa de que, enquanto houver histórias para contar, sabores para descobrir, e mesas para compartilhar, o Barão de Gourmandise continuará à mesa — sempre.

A Torta della Nonna que agora ofereço a receita no final, é apenas um gesto de entrega e celebração, uma reverência ao tempo que molda sabores e afetos. Ela carrega a doçura das avós no próprio nome, a textura da infância, a promessa de que, mesmo quando tudo parece veloz demais, é possível desacelerar e encontrar no simples o sagrado.

Que esta receita possa ser preparada também por vocês. Que seja um convite para vocês, queridas leitoras e queridos leitores, para que se sentem à mesa comigo, para que sinta o calor desse fogo que não se apaga, para que celebre comigo esse instante — onde passado e futuro se encontram, onde a memória se torna alimento, e onde o encontro é o prato principal.

Porque, afinal, o verdadeiro banquete não está apenas no que comemos, mas em quem escolhemos para partilhar a mesa. E hoje, eu celebro com vocês, nesta festa que é nossa, este momento sagrado onde as palavras se transformam em sabor, e a vida, em poesia. 

TORTA DELLA NONNA – Receita Tradicional Italiana

INGREDIENTES

Massa (Pasta Frolla – tipo pâte sucrée italiana):

300 g de farinha de trigo

150 g de manteiga sem sal gelada (em cubos)

130 g de açúcar refinado

1 ovo inteiro + 1 gema

Raspas de 1 limão siciliano (ou comum)

1 pitada de sal

Recheio (Crema Pasticcera – creme de confeiteiro):

500 ml de leite integral

1 fava de baunilha (ou 1 colher de chá de extrato)

Casca de 1 limão (sem a parte branca)

4 gemas

120 g de açúcar

40 g de amido de milho (ou farinha de trigo)

Finalização:

50 g de pinoli tostados

Açúcar de confeiteiro – para polvilhar

PREPARO

Prepare a massa (Pasta Frolla): Em uma tigela grande (ou processador), misture a farinha, o açúcar e o sal. Adicione a manteiga em cubos e misture com a ponta dos dedos até virar uma farofa úmida. Junte o ovo, a gema e as raspas de limão. Misture até formar uma massa homogênea. Embrulhe em plástico filme e leve à geladeira por 30–60 minutos.

Prepare o creme (Crema Pasticcera): Em uma panela, aqueça o leite com a casca de limão e a baunilha. Não deixe ferver. Enquanto isso, bata as gemas com o açúcar até clarear. Adicione o amido às gemas e misture bem. Retire a casca de limão do leite quente e despeje aos poucos sobre a mistura de gemas, mexendo sempre. Volte tudo à panela e cozinhe em fogo médio-baixo, mexendo até engrossar (5–7 minutos). Transfira para uma tigela, cubra com plástico filme encostando no creme e deixe esfriar.

Montagem: Pré-aqueça o forno a 180 °C. Divida a massa em duas partes (2/3 para a base, 1/3 para a tampa). Abra a massa maior com rolo e forre uma forma de torta (aprox. 22–24 cm), com fundo removível. Fure o fundo com um garfo.

Coloque o creme já frio sobre a base. Abra o restante da massa e cubra a torta, selando bem as bordas. Pincele com gema ou leite, salpique os pinoli por cima.

Leve ao forno por cerca de 35–40 minutos, ou até dourar levemente.

Finalização: Deixe esfriar completamente. Polvilhe com açúcar de confeiteiro antes de servir.

💡 Dicas:

Os pinoli italianos  dão o toque autêntico. Mas se forem difíceis de encontrar ou muito caros, você pode usar amêndoas laminadas como alternativa — mas o sabor será um pouco diferente. Mas se quiser regionalizar, use as castanhas do  Brasil, temos muitas diferentes e isso dará novos sabores

A torta fica ainda melhor no dia seguinte, quando os sabores se assentam.

Sirva com café espresso ou chá cítrico para harmonizar. 

sábado, 23 de agosto de 2025

O Cappuccino Entre Monges, Modas e Maus Modos: Um Ensaio Gastronômico com Espuma e Ironia

 Deste barão cozinheiro, que virou antropólogo ocasional e poeta do café, entrelaçando amor pela bebida e irreverência contra as etiquetas do paladar

Poucas coisas no mundo têm o poder de transformar uma manhã comum em um pequeno ritual de prazer como uma xícara de cappuccino. A espuma que se eleva suavemente sobre o expresso, o leite aquecido ao ponto da cremosidade, e o aroma que preenche o ar como se fosse um incenso moderno — tudo isso faz do cappuccino mais que uma bebida: ele é um estado de espírito. Mas, como toda boa criação humana, ele também carrega o peso da tradição, da cultura e, infelizmente, da opinião alheia.

O cappuccino, como nos ensina a tradição italiana (e o bom senso), nasceu como uma celebração do equilíbrio. Uma parte de expresso, uma parte de leite vaporizado, uma parte de espuma. Nada de menos. Nada de mais. Diz-se que o nome veio da ordem dos monges capuchinhos, cuja batina marrom-clara coincidia, curiosamente, com o tom da mistura de café e leite.

Contudo, o cappuccino como o conhecemos só se tornou possível e popular a partir da invenção da máquina de expresso no início do século XX, quando Luigi Bezzera patenteou, em 1901, um sistema que extraiu o café de forma mais rápida e intensa, permitindo que a espuma cremosa do leite vaporizado se misturasse ao expresso com perfeição. Décadas depois, Achille Gaggia aprimorou a técnica, trazendo ao cappuccino a textura e o corpo que elevam essa bebida à categoria de arte líquida.

A história, no entanto, se permite também ao capricho da poesia: há algo de monástico na experiência de beber um cappuccino. Um silêncio interno, quase ritualístico, que suspende o tempo entre o primeiro gole e o último suspiro de espuma. É, portanto, irônico que uma bebida nascida do recolhimento e da contemplação seja hoje alvo de patrulhas sociais tão efusivas quanto o vapor de uma máquina de expresso em plena atividade.

Há poucos minutos, suspirei com aquele tipo de desconcerto que só acontece quando a realidade escorrega por entre as frestas da rotina. Estava no meio de uma manhã comum, eu — homem moderno, às vezes cético, quase sempre pragmático, e plenamente soberano no pequeno território da minha cozinha — quando dei de cara com um espectro peculiar da nossa cultura nacional: o vídeo de uma senhora da alta sociedade paulistana, dessas que desfilam entre colunas dóricas e cadeiras Luís XV, provavelmente em uma sala ensolarada de Higienópolis ou dos Jardins.

Com a entonação precisa de quem já corrigiu talheres fora de lugar e risos fora de hora, ela declarava, solenemente, que cappuccino, veja bem, só se deve tomar até as 11 da manhã. Não antes. Não depois. Como se o mundo terminasse ali, no final da espuma.

A senhora do vídeo parecia saída de um romance de época — desses que se passam entre taças de cristal e tigelas de porcelana Limoges. Ela não gritava, claro. Apenas declarava, com a gravidade de um juiz e a compostura de um bordado antigo, que cappuccino depois das 11 era um crime de paladar.

Onze da manhã. Como se o ponteiro do relógio fosse a linha que separa o bom gosto do pecado capital. Como se o sol, ao atingir certo grau de elevação no céu, azedasse o leite do cappuccino, tornando-o vulgar. Como se o sabor se submetesse, resignado, à tirania da etiqueta.

Não se trata aqui de zombar da etiqueta em si — há códigos sociais que, quando bem compreendidos, tornam a convivência mais bela e gentil. Não se pode negar que a etiqueta, em sua origem, visava justamente suavizar encontros, promover o respeito e construir pontes invisíveis entre pessoas. Quando ela é uma dança leve e bem ensaiada, a convivência se torna mais harmoniosa. O que incomoda, porém, é quando essa mesma dança se transforma em um passo de exclusão, onde quem pisa fora do compasso vira alvo de olhares desconfiados e suspiros censores.

A etiqueta do cappuccino às 11h funciona perfeitamente nas ruas estreitas de Bolonha, onde o desjejum ainda é uma cerimônia compacta. Mas transposta para os cafés de São Paulo, onde as pessoas vivem entre fones de ouvido, planilhas abertas e a pressa coreografada do metrô — essa mesma etiqueta se converte em adorno ornamental: bela em teoria, mas deslocada, quase ridícula, como um fraque usado em plena Avenida Paulista sob o sol de janeiro.

E se em São Paulo o gesto já parece estranho, o que dizer de outras geografias do Brasil? Na Recife ardente, na Salvador saturada de maresia, ou no coração do sertão cearense, onde o calor não dá tréguas nem à noite, as pessoas seguem bebendo café fumegante como quem desafia o próprio clima — uma conspiração contra a lógica térmica. Ali, o café não é obediência a um ritual estrangeiro, mas insubordinação cotidiana: prova-se fervente quando a pele já transpira, sorve-se denso quando o corpo pede alívio.

      Eu preciso comprar uma caneca dessas para quando eu for tomar capuccino depois das 11h.

Talvez resida aí a heresia brasileira: o café como insígnia de resistência, não de etiqueta. Enquanto os italianos se debatem com regras de horário, nós o bebemos como quem beija — a qualquer hora, em qualquer lugar, mesmo quando o gesto parece impossível. Porque no fundo, café para nós não é apenas bebida: é insígnia, amuleto, sacramento.

Claro, deve haver uma lógica cultural razoável, ainda que envolta em véus de tradição: na Itália, berço da bebida, o cappuccino é visto como uma bebida matinal, um café da manhã líquido e espumante. A presença do leite — volumosa, cálida e rica em gordura — o torna, aos olhos da etiqueta europeia, algo "pesado demais" para ser consumido após as primeiras horas do dia. À tarde, dizem os manuais não escritos, toma-se café puro. Expresso, seco, direto ao ponto. O leite, assim como a emoção, seria reservado apenas às horas do despertar.

Confesso que por um breve momento, quase considerei desligar a chaleira. Mas eram 11h15. E algo dentro de mim — talvez o espírito dos monges capuchinhos ou apenas o desejo legítimo de saborear um bom cappuccino — ergueu-se com mais convicção do que qualquer código de conduta herdado da aristocracia decadente. A etiqueta, afinal, tem seu charme. Mas o paladar tem sua própria liturgia — e esta, por vezes, exige uma leve transgressão.

Assim, cercado pelo silêncio cúmplice de uma manhã já ferida pelo relógio, caminhei até a cozinha como quem atende a um chamado íntimo. Lá estavam eles: dois pequenos sachets de cappuccino instantâneo da marca holandesa Moccona — resquícios elegantes de uma gentileza antiga, quase relíquia doméstica esquecida entre embalagens mais ordinárias.

Rasguei um deles com a delicadeza que se reserva ao que é raro. O aroma instantâneo subiu como um sussurro de nostalgia, doce e reconfortante. Recusei a porcelana fina, esse símbolo das manhãs ensaiadas, e escolhi, em vez disso, uma caneca de cerâmica espessa, rude e calorosa, capaz de abraçar as mãos com a ternura silenciosa de quem entende o peso das manhãs e a urgência do afeto. Era exatamente esse colo bruto e sincero que o momento requeria.

E o desejo, ali, não era educado. Nem pontual. Veio às 11h15, cruzando com elegância distraída a fronteira imaginária do bom-tom, traçada por uma senhora de voz platinada e convicções vitrificadas em cristaleiras. Ela que me perdoe, mas há vontades que não obedecem ao relógio — e há silêncios que só se preenchem com espuma quente.

O tempo é, como Montaigne bem vislumbrou, esse mestre elástico e imprevisível, um contrato invisível que o corpo e a alma renovam a cada instante. Ele não se dobra às engrenagens dos relógios, tampouco às cobranças sociais. É uma dança íntima entre o desejo e a consciência, onde às vezes o espírito nos chama a quebrar regras — não por frivolidade, mas por necessidade profunda.

Aquilo não era rebeldia — era lucidez. A vontade de saborear o que oferece prazer — um gesto simples, mas carregado da nobreza silenciosa que há em atender a um desejo legítimo. Não por capricho, mas porque o corpo o pediu com a firmeza de uma necessidade íntima, quase espiritual. O tempo, afinal, é um contrato flexível entre a alma e o desejo, entre o instinto e a consciência. Já a etiqueta — essa sim — tende a ser inflexível, muitas vezes mais próxima de uma sentença do que de uma sugestão. E é aí, justamente aí, que o problema começa: quando os códigos se esquecem de quem os vive.

Para compreender a alma do cappuccino, é preciso voltar não apenas à sua receita, mas aos salões de época em que o gesto de misturar café ao leite já anunciava um certo refinamento matinal. Embora o cappuccino moderno — com sua espuma espessa e equilíbrio milimétrico — só tenha se consolidado na Itália do início do século XX, a prática de temperar o amargor do café com a doçura e o calor do leite remonta à Europa do século XVII, onde as manhãs começavam frias e o café ainda era um ritual exótico, quase alquímico.

Em Viena, cidade de candelabros, cafés densos e casacos longos, surgiu o Kapuziner — uma bebida à base de café forte misturado a creme de leite e, às vezes, açúcar ou especiarias. Servido em pequenas xícaras de porcelana, o Kapuziner era denso, aromático e encorpado como uma conversa de inverno. Seu nome, assim como o cappuccino, faz alusão à coloração das vestes dos monges capuchinhos — aquele marrom claro aveludado que também define a cor da bebida perfeitamente equilibrada entre luz e sombra.

Há quem diga que o cappuccino herdou mais do que o nome dos claustros: herdou também um certo espírito contemplativo, quase litúrgico, que ainda hoje persiste nos cafés silenciosos da manhã.

E há ainda Voltaire — o filósofo das luzes, dos salões parisienses e das ideias afiadas — que, segundo registros curiosos de biógrafos, consumia entre 40 e 50 xícaras diárias de uma mistura robusta de café com leite e chocolate, numa alquimia líquida que talvez explicasse seu ritmo mental quase sobrenatural. Evelyn Beatrice Hall, em The Friends of Voltaire, não hesita em registrá-lo assim: como alguém que escrevia ideias incendiárias embalado por goles profundos de uma bebida escura e densa, feita para mentes que não descansam.

O que ele teria dito, se vivo fosse, ao descobrir que seu gosto matutino por algo cremoso e estimulante agora seria passível de censura por conta da hora em que é servido? Provavelmente sorriria com o canto dos olhos e pediria mais uma xícara — às onze e quinze, só por prazer e provocação.

Aliás, se algum personagem literário soube capturar a essência estética, quase voluptuosa, do cappuccino — essa bebida híbrida que transcende o simples café para se tornar uma experiência tátil, olfativa, visual, essa poção ambígua entre o sagrado e o profano — foi Jean des Esseintes, o anti-herói decadente e solitário de À Rebours (“Às Avessas”), de Joris-Karl Huysmans. Des Esseintes, com sua aversão calculada à banalidade do cotidiano e seu mergulho em prazeres extremos e cuidadosamente orquestrados, encarnava a própria ideia de um hedonismo cerebral e exclusivo.

Jean des Esseintes não era apenas um personagem — era o próprio arquétipo do esteta melancólico, imerso em uma mansão que mais parecia um mausoléu dos sentidos, onde cada objeto, cada sabor, cada gesto, era meticulosamente escolhido para provocar, encantar e desafiar o comum. Em “À Rebours”, Joris-Karl Huysmans pintou um retrato da decadência fina, onde o prazer torna-se uma arte cruel e requintada, e a rotina, um inimigo a ser combatido com extravagâncias sensoriais. Para Des Esseintes, a ordem do relógio e da etiqueta era uma prisão de onde escapava com um sorriso de desdém, bebendo seus líquidos preciosos como quem desafia o próprio tempo.

Para ele, o café não seria mera rotina ou hábito social; seria um ritual de distinção, um deleite para os sentidos, uma fuga da mesmice mundana. Como um alquimista dos sabores e das sensações, Des Esseintes desprezaria qualquer etiqueta que regulasse o horário de um gole, rindo com desdém da tirania do relógio. Afinal, para esse esteta melancólico, o verdadeiro luxo reside exatamente na liberdade de ignorar as expectativas alheias — e no prazer sublime de desfrutar aquilo que a alma deseja, no momento em que o corpo e o espírito mandam, sem se importar com convenções ou com os relógios da alta sociedade.

É a esta liberdade, esta audácia sensual, que o café deve seu encanto eterno — não apenas uma bebida, mas um manifesto líquido de rebeldia elegíaca, servida em taças de porcelana ou canecas rústicas, sempre com a mesma promessa: o deleite irrestrito do instante presente.

Mas, para mim, o verdadeiro espírito do cappuccino — sobretudo quando bebido fora dos rígidos horários que a etiqueta arcaica do século passado tenta impor — é muito mais profundo e libertador. Ele sussurra um segredo atemporal, quase filosófico: parte do êxito da vida está em saborear o que realmente se ama, deixando que o alimento lute por você, silencioso e poderoso, dentro do corpo e da alma.

O cappuccino, então, deixa de ser apenas uma bebida; torna-se um gesto de rebeldia doce e silenciosa contra o relógio, um instante de aconchego em meio ao tumulto do cotidiano. A espuma delicada, que repousa sobre o expresso como uma nuvem aveludada, é a carícia que suaviza o amargor dos dias, a promessa de um refúgio efêmero onde o tempo pode se dobrar ao prazer.

É um convite à indulgência genuína — sem desculpas, sem culpa, sem as correntes invisíveis de etiquetas embalsamadas e códigos que parecem querer congelar a vida em formalismos sem alma. Porque o cappuccino, no fundo, é isso: o abraço quente da liberdade, servido numa xícara, a celebração líquida do instante vivido com leveza, sabor e, sobretudo, autenticidade.

Em tempos de redes sociais, onde o mais singelo dos prazeres pode ser lançado às tormentas impiedosas do julgamento coletivo, tomar um cappuccino fora do horário prescrito tornou-se quase um ato de resistência estética — uma dança delicada sobre águas revoltas, onde o sabor e a vontade tentam escapar da correnteza das normas invisíveis. Que a senhora paulista, trancada em sua torre de porcelana e rodeada por regras herdadas dos manuais imaculados da Belle Époque, permaneça ali, com seu relógio e sua rigidez.

Beber um cappuccino fora do horário “permitido” é um pequeno ato revolucionário, uma declaração silenciosa de que o prazer pessoal vale mais do que o relógio implacável ou os olhares julgadores. É um gesto de coragem contra o puritanismo do paladar, uma apoteose discreta da liberdade que escolhemos ao transformar o banal em sublime. Cada gole torna-se um manifesto contra o tédio das regras que congelam a vida, uma celebração do instante que só a alma reconhece como sagrado.

Nós, os hereges do paladar, que tomam capuccino fora das normas da etiqueta, continuaremos com nossas xícaras erguidas, navegando entre o clássico e o improvisado, entre o expresso intenso e o modesto instantâneo, entre o ritual solene e o prazer espontâneo — celebrando o direito sagrado de beber o que se ama, quando se ama.

E que o cappuccino nos encontre, como sempre, na hora certa — a nossa. Que suas nuvens de espuma sejam o nosso céu particular, onde o tempo se dissolve e só resta o prazer sereno de um instante perfeito, eternizado em cada gole. E que o cappuccino nos encontre, como sempre, na hora certa — a nossa.

 

MANUAL PARA PEQUENA REBELDIA NA XÍCARA

E porque toda contemplação digna do nome que se faça sobre o cappuccino — essa poção morna entre o devaneio e o vício — exige, no final, o gesto concreto da xícara entre as mãos, deixo ao leitor duas promessas. Duas possibilidades, como amores de épocas distintas, cada qual com seu ritmo e capricho.

A primeira é um capuccino old-fashioned — expressão que, na melhor tradição anglófona, designa aquilo que, ainda que fora de moda, carrega em si um charme obstinado, nostálgico e deliciosamente resistente ao tempo. Uma bebida feita sob medida, densa como veludo envelhecido, teatral como um romance do século XIX, daqueles que não se lê, mas se atravessa — colherada após colherada — exigindo uma certa entrega ao excesso, quase uma liturgia em si. Há algo de operático em sua espuma, algo que sussurra decadência e prazer em igual medida.

A segunda é sua antítese prática e algo desdenhosa: uma mistura simples, imediata, para os dias em que o desejo se recusa a vestir coletes ou sapatos de verniz. Aqui, basta esquentar a água — e eis que a fumaça se levanta como um espírito antigo, convocado não por rituais, mas por pura urgência. Um café que não pede licença, tampouco poesia.

Entre ambos, o verdadeiro luxo: escolher. Rende-se à pompa e circunstância do prazer demorado — esse antigo flerte com o excesso — ou bebe-se, sem cerimônia, o atalho apressado da vontade. Há espaço para ambos, como há para a ópera e o sussurro, o vinho envelhecido e o trago furtivo. 

MISTURA PRA CAPUCCINO CASEIRO SIMPLINHO

50g de café solúvel de boa qualidade

250g de leite em pó

3 colheres de sopa de chocolate em pó (não achocolatado)

1 colher de chá de bicarbonato de sódio (é o que dá a consistência cremosa)

1 colher de chá de canela em pó

250g de açúcar ou adoçante a gosto

Preparo: Misture todos os ingredientes e guarde em um pote bem fechado. Para preparar a bebida, use duas colheres de sobremesa por xícara. Para um cappuccino mais cremoso, prepare-o com leite, ao invés de apenas água.

Cappuccino Caseiro Obsceno do barão de Gourmandise

(Serve 1 caneca generosa)

Ingredientes

1 dose de café expresso bem forte (ou 60 ml de café coado concentrado)

150 ml de leite integral

1 colher (chá) de açúcar mascavo (opcional)

1 colher (sopa) de chocolate em pó 50% cacau (ou cacau puro para mais intensidade)

1 pitada de canela ou noz-moscada (opcional)

1 colher (sopa) de creme de leite fresco (opcional — para cremosidade pecaminosa)

1 punhado generoso de gotas de chocolate meio amargo (ou ao leite, se quiser algo mais doce)

Chantilly ou espuma extra por cima (opcional, mas... por que não?)

Raspas de chocolate ou cacau em pó para finalizar

Preparo: Prepare o café. Faça uma dose de expresso bem forte. Se não tiver máquina, use café coado mais concentrado (coloque mais pó para menos água).

Aqueça o leite. Em uma panelinha, aqueça o leite com o chocolate em pó, o açúcar (se usar) e as especiarias. Mexa bem até incorporar. Quando estiver bem quente (sem ferver), adicione o creme de leite, mexa mais uma vez e desligue o fogo.

Espume o leite. Se tiver mixer, espumador ou até um batedor manual, use para criar uma espuma rica e espessa.

Monte o capuccino. Em uma caneca larga, coloque o café no fundo. Adicione as gotas de chocolate diretamente sobre o café quente — elas começarão a derreter lentamente. Despeje o leite cremoso e quente por cima, finalizando com a espuma.

Finalização obscena. Cubra com chantilly ou mais espuma, salpique raspas de chocolate ou cacau em pó e, se quiser, finalize com um fio de chocolate derretido ou calda de chocolate dessas pra sorvete.

 Notas finais (com decadência)

Para torná-lo ainda mais "obsceno", use chocolate belga 70% picado em vez de gotas de chocolate.

Uma pitada de sal no leite acentua o sabor do chocolate.

Um toque de licor (como Amarula, Frangelico ou Baileys) transforma isso num dessert-in-a-cup. 

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

17 DE AGOSTO, DIA DO PÃO DE QUEIJO: DA TRADIÇÃO MINEIRA À VITRINE GLOBAL

  

No fundo da tigela, as mãos sabem mais do que a boca jamais diria: medem o polvilho, sentem a umidade do queijo, pressentem o instante em que a massa desperta, como se tivesse alma própria. E nesse silêncio que antecede o forno, já nasce a promessa de um afeto partilhado.

No calor da cozinha, o forno respira antigo, deixando escapar um sopro que parece coração oculto, latejando em brasas invisíveis. O perfume que se ergue não é apenas queijo, não é apenas polvilho: é herança que atravessa séculos, a seiva da terra em brasa condensada em pequenas luas douradas, cada uma prometendo eternidade no instante de ser devorada.

Pra mim, não se pode falar do pão de queijo sem falar de desejo. Não um desejo banal, mas aquele que tangencia o sagrado, que nos possui como uma febre secreta e nos arrasta em silêncio. Minas Gerais o engendrou nas cozinhas coloniais do século XVIII, quando mulheres, guardiãs de lares erguidos sobre serras e veios de ouro, transformaram restos endurecidos de queijo, ovos frescos e o polvilho extraído da mandioca em algo vivo, latejante. Foi alquimia da necessidade: nada se desperdiçava, tudo se transfigurava. No calor do forno de barro, nasceu o sortilégio — pequenas esferas que se inflavam suavemente, firmes por fora, macias e luminosas por dentro. Um sopro de eternidade em forma de alimento, carregando consigo não apenas sabor, mas a memória quente de um lar, de uma pertença que atravessa o tempo.

Mas o feitiço não permaneceu preso às montanhas de Minas. Aos poucos, rompeu fronteiras e deslizou pelos sertões de Goiás e pelo cerrado do Centro-Oeste, acariciou as praias do Nordeste, fez-se presente nas mesas cariocas, percorreu os arrabaldes e avenidas de São Paulo, atravessou os rios amazônicos e o sul frio e verdejante, até se aninhar em cada canto do país. Hoje, viaja para além do Atlântico, brilhando em vitrines estrangeiras, silencioso mensageiro de uma identidade construída com afeto, memória e sabor. O pão de queijo, assim, deixou de ser apenas mineiro: tornou-se brasileiro, quase universal.

Ele é, ao mesmo tempo, ritual e metáfora: o ouro verdadeiro de Minas não saiu das minas profundas, mas dos fornos domésticos, onde o desejo tomou forma de alimento. Comer um pão de queijo é, portanto, um gesto de comunhão: mordemos o passado, mas provamos também a eternidade que se renova a cada fornada.

Ao tocá-lo com os dedos, quando ainda quente, sentimos o mesmo que se sente ao roçar a pele de alguém amado: a tensão da crosta, a maciez escondida no interior. É alimento que seduz, que prende, que nos olha de volta quando mordemos.

E o 17 de agosto passou a ser consagrado ao pão de queijo — como se fosse possível aprisionar em um único dia o feitiço de séculos de tradição. A origem da data é curiosa: em 2007, no palco iluminado do programa Mais Você, Ana Maria Braga encerrou a final do concurso “O Melhor Pão de Queijo do Brasil” com uma proposta que soou, à primeira vista, televisiva e passageira. Mas a sugestão de transformar aquele dia em marco comemorativo ultrapassou o instante do espetáculo: encontrou ressonância em algo maior, no sentimento de pertencimento coletivo que o pão de queijo já carregava em cada mesa mineira e brasileira. O que parecia efêmero tornou-se rito, porque o pão de queijo não é apenas alimento, é memória viva, raiz que atravessa gerações. Desde então, padarias, quitandeiras e vendedores anônimos celebram a data, reafirmando no calendário aquilo que o coração já sabia: o pão de queijo é um símbolo de afeto e identidade nacional.

A verdade, porém, é que o pão de queijo não precisa de decretos nem efemérides.  Ele é eterno, porque vive em cada cozinha que se acende ao amanhecer, em cada tabuleiro que sai do forno como oferenda de calor e de carne transfigurada em massa.

Há nele uma sensualidade discreta: a fumaça que se ergue como véu, o estalo da casca ao romper-se nos lábios, a lenta revelação da sua umidade cremosa. Quem come não se satisfaz — deseja mais, como se buscasse, naquela pequena esfera dourada, a lembrança de uma outra fome, mais profunda e ancestral.

Celebrar o pão de queijo é celebrar o mistério do tempo suspenso. É ser envolvido pela história ao mesmo tempo em que a saboreia. Como se cada fornada fosse um rito secreto, um chamado que ecoa de séculos passados até pousar em nossas manhãs de hoje.

Cada mordida é uma eternidade em miniatura: o instante em que corpo, memória e desejo se entrelaçam suavemente. Nele, não há pressa — apenas o aconchego de um calor que acolhe, de um sabor que abraça, de uma lembrança que nunca se desfaz.

Celebrar o pão de queijo é, enfim, entregar-se a um sortilégio. Ele não é apenas lembrança, nem apenas desejo: é o instante em que a eternidade se materializa em nossas mãos. O dourado que se rompe sob os dentes anuncia não um fim, mas uma promessa — como se cada fornada trouxesse consigo a renovação de um pacto secreto entre gerações.

E assim, o pão de queijo se afirma não apenas como alimento, mas como epifania cotidiana. Um gesto simples que, em sua singeleza, guarda o esplendor daquilo que resiste ao tempo — um feitiço suave, eterno, que continua a nos possuir sem violência, apenas com a doce entrega do sabor.

E quando pensamos que tudo já foi dito, ele nos devolve ao princípio: à mesa, ao afeto, ao calor do forno. O pão de queijo não se explica, se repete. Não se encerra, se reinicia. É círculo, rito, retorno.

E por isso, ao compartilhar a receita que eu uso, não o faço como quem entrega um manual, mas como quem abre um relicário. Que cada ingrediente seja lido como palavra de um encantamento antigo, e cada gesto, uma invocação do que permanece. Pois só assim compreenderemos: não é apenas o pão de queijo que nos alimenta — somos nós que, ao mordê-lo, entramos em sua eternidade.

Pão de Queijo 

Ingredientes:

250 g de polvilho azedo

250 g de polvilho doce

75 ml de leite

75 ml de água

75 ml de óleo

10 g de sal

15 g de manteiga

200 g de queijo minas curado (ralado)

3 ovos pequenos (ou 2 grandes, dependendo do tamanho)

Preparo: Em uma panela, aqueça juntos o leite, a água e o óleo até ferver. Em uma tigela, misture os dois tipos de polvilho e o sal. Escalde essa mistura de polvilho com o líquido quente, mexendo até obter uma massa úmida e homogênea. Incorpore a manteiga e o queijo, misturando bem. Adicione os ovos, um a um, sovando até a massa ficar lisa e elástica. Com as maoes levemente untadas com óleo, modele pequenas bolinhas e disponha em assadeira. Asse em forno preaquecido a 180–200 ºC por aproximadamente 20 a 23 minutos, até que estejam dourados e levemente crocantes por fora.

 

sábado, 16 de agosto de 2025

“Os Filhos dos Dias” o Destino de Wandinha Addams

  

Foi Roland Barthes, em A Câmara Clara (1980, p.89), quem disse que “a fotografia é esse delírio: que as coisas passaram e que, ao mesmo tempo, foram capturadas para sempre”. Enquanto o mundo girava no eixo trincado de tragédias e afundado em manchetes eu, para fugir da loucura do mundo, via amenidades no Instagram. Foi algo mais banal que me deteve.

No Instagram, entre as atualizações e os absurdos do dia, uma imagem cintilou com a força silenciosa dos encantamentos: um casal posando sob uma gigantesca letra M, emoldurado por um cenário gótico e improvável. O mundo podia ruir; eu precisava olhar aquilo de novo.

Uma imagem melancólica, quase bela demais para o caos digital — uma cena polida, envolta em roxo e sombras, capturada num desses eventos da Netflix, tão bem roteirizados quanto os próprios personagens que celebram. Era um modelo francês — de olhar oblíquo e rosto talhado com precisão —, desses que parecem ter sido inventados num espelho veneziano em vez de paridos por uma mãe real. Ele não estava só.

Fotografados sob um arco gótico rendado de ferro forjado, como os últimos convidados de um baile espectral que só começava com o cair da noite, o casal posa diante da monumental letra M — púrpura como um hematoma antigo, imensa como um segredo não dito. O modelo, de silhueta esculpida, veste o preto com a mesma autoridade de quem conhece o silêncio das catedrais. Ao seu lado, o namorado, ligeiramente desalinhado — como quem veio de outro mundo, ou apenas do fim de um expediente — apoia-se nele como quem reconhece sua própria salvação. O rio Sena corre ao fundo como um presságio, e acima deles ao M gigante, que representava a inscrição em francês — Mercredi, nome de meio da semana e da menina que inspirou a série —, iluminado com uma luz oblíqua entre o gótico e o pop. Era o tipo de imagem que eu teria emoldurado na memória, não por vaidade, mas por algum tipo de encantamento inexplicável, como se pressentisse que aquele cenário, por um breve instante, me colocasse dentro de uma canção antiga.

O grande M em púrpura — mais próximo da cor de um segredo mal curado do que de qualquer festa — pairava sobre a entrada como um presságio elegante. Mercredi, identificava. E bastou ver essa palavra, grafada em francês, para que algo dentro de mim se partisse com delicadeza: como a película fina de um crème brûlée ao toque da colher. Mercredi. Quarta-feira. Foi esse nome que me suspendeu. Não foram as manchetes que me fizeram parar — mas sim o nome da filha dos Addams, impresso em francês e aceso como uma lamparina em corredor escuro.


É engraçado como a elegância da língua francesa pode escancarar significados que estavam há muito escondidos no cotidiano. Nessas horas, percebo como saber línguas é, também, herdar as camadas invisíveis das palavras. Porque o nome da Wandinha não foi dado à toa — eu já sabia, que a filha de Morticia e Gomez Addams se chamava Wednesday (Quarta-feira) no original, e que no português ela se tornara Wandinha, talvez numa tentativa de suavizar a escuridão que ganhara como herança de uma cantiga inglesa do século XIX, que mapeava o destino das crianças de acordo com o dia em que nasceram.

Recordei então da antiga cantiga inglesa, daquelas que parecem sussurradas por avós invisíveis entre as frestas de um berço vitoriano. Li-a ainda criança, creio — ou talvez ela tenha me lido primeiro. Chamava-se Monday’s Child, uma rima tradicional que remonta ao século XIX, publicada pela primeira vez em 1838 no livro Solomon Grundy, atribuído ao antiquário James Orchard Halliwell. Tornou-se, com o tempo, uma daquelas melodias de ninar que colam na memória como açúcar mascavo nos dedos.

Em seus versos, cada dia da semana molda o destino das crianças, como se o relógio cósmico temperasse almas com o rigor de um velho cozinheiro do tempo. Ainda hoje, ao repeti-la mentalmente, sinto-a pairar no ar como o cheiro de uma receita esquecida no forno. Um oráculo disfarçado de rima, que diz assim na sua versão mais conhecida:

Monday’s child is fair of face,

Tuesday’s child is full of grace,

Wednesday’s child is full of woe,

Thursday’s child has far to go,

Friday’s child is loving and giving,

Saturday’s child works hard for a living,

And the child that is born on the Sabbath* day

Is bonny and blithe and good and gay.

Poesia de berço, mas também sentença. Sete versos para sete dias. Uma moldura para vidas inteiras.

A criança de segunda é bela de rosto — talvez um encanto fácil, um presságio de espelhos benevolentes. A de terça, cheia de graça — dançarina invisível entre as expectativas sociais. A de quarta-feira — e aqui, Wandinha ganha seu nome — está cheia de aflição, de infortúnio, de angústia. Não tristeza dramática, mas aquela névoa constante que cobre as manhãs de outono. A de quinta-feira, meu dia, “has far to go” — tem muito a percorrer, o que soa como esperança e fadiga ao mesmo tempo. Sexta é puro afeto, sendo amorosa e generosa; Sábado, trabalha duro pra viver. E o Domingo, ah, o domingo… reservado aos afortunados: bons, alegres, sorridentes como se fossem feitos de luz solar e risos em porcelana.

Ao reler esses versos, percebi como as palavras agem como sabores antigos: às vezes doces, às vezes difíceis de tragar. Há algo na ideia de que nosso nascimento num dia comum da semana nos molda, como uma colher que revolve lentamente o fundo de uma panela esquecida no fogo.

Wandinha, ou melhor, Wednesday, ou ainda Mercredi, carrega a maldição da quarta-feira — não como um castigo, mas como um traço essencial de seu tempero: aquele amargor do chocolate 90%, que poucos compreendem, mas muitos respeitam. O ‘woe’ não é mero sofrimento; é profundidade. É o talento de ver a podridão por trás da beleza, e ainda assim seguir em frente, de tranças firmes e olhos sem piscadelas.

E eu, nascido numa quinta-feira, com “far to go”, tenho me sentido às vezes como um trem em trilhos incertos, partindo de lugar algum e sem estação final clara. Há conforto nisso também — o movimento, a busca, o inacabado.

E eu, moldado pelo nascimento numa quinta-feira, com esse “far to go” que sussurra como um vento que nunca cessa, tenho vivido como quem viaja de vagão em vagão, sem mapa nem pressa. Não é errância, é fermentação — há uma leveza em estar a caminho, como massa que cresce no escuro, como caldo que apura com o tempo. Não sei de onde vim exatamente, nem para onde vou com precisão, mas sigo — ora cheio de fervor, ora em silêncio — confiando que há beleza no inacabado, que há verdade no provisório. Ser de quinta é carregar no peito uma bússola sem ponteiro, mas com apetite. É aceitar que o longe não é castigo, mas vocação — uma travessia movida mais pelo desejo do que pelo destino. E assim sigo: não perdido, mas profundamente entregue à arte de ir — com passos inseguros, mas olhos abertos.

Assim, entre memórias de poemas de infância e devaneios, que resolvi ofertar minha quinta-feira ao silêncio. Um gesto simples, mas impregnado de intenção — como quem dobra um guardanapo com delicadeza antes de partir.

Quis, com isso, render uma espécie de homenagem íntima às crianças de todos os dias, mas sobretudo às de quarta-feira. Porque são elas que cozinham com a sombra sentada à mesa, que sabem temperar com silêncios longos, e que olham para o roxo do ube (inhame roxo) ou de uma batata-doce roxa como quem lê um presságio, não apenas uma cor.

Sob aquela inscrição — Mercredi, destacado em roxo pulgente e sobre o ferro forjado — era impossível não pensar na Nightshade Society, aquela irmandade clandestina que se esconde entre paredes de pedra e manuscritos, no subsolo da fictícia Nevermore.  

Para quem não conhece o mundo da série da Wandinha, a Nightshade Society (Sociedade das Beladona, em tradução livre) é um grupo seleto e secreto de estudantes com poderes ou dons especiais, que se reúnem às escondidas nos subterrâneos da escola. Sua história remonta a fundadores da Nevermore Academy e tem laços com a luta por justiça para os "párias" — seres com dons sobrenaturais que são marginalizados pela sociedade "normie" (isto é, normal, sem poderes). Como a flor que lhe dá nome — bela, letal, e incompreendida — esse grupo secreto floresce na sombra, cultivando saberes antigos com a precisão de um feitiço bem medido. Herdeiros de dons estranhos e sensibilidades à margem, eles resistem ao esquecimento por meio de rituais que misturam magia, memória e sabor.

Repleta de mentes dotadas com dons estranhos e almas desalinhadas com o mundo, essa sociedade pulsa com o mesmo ritmo das palavras de Edgard Allan Poe: uma elegância mórbida, uma rebeldia que se oculta sob o verniz da tradição. E se a série nos oferece essa imagem como um espelho da alma de Wandinha, talvez devêssemos considerar que cozinhar, também, é um tipo de rito secreto. Há quem entre na cozinha para seguir receitas; outros, para fugir do mundo. Mas há ainda os que adentram o espaço como quem ingressa numa sociedade discreta e ancestral, onde cada ingrediente guarda um segredo, cada preparo, ativa a memória e gera um encantamento, e a chama ou o forno consagra tudo como um altar.

Então, como quem sussurra um feitiço antigo, fui murmurando minha busca — não por um doce fácil, desses que se acomodam em vitrines como sorrisos prontos, mas por algo que exigisse paciência e camadas, como um segredo bem guardado. Por isso, não foi acaso — mas quase destino — que a receita escolhida para encerrar este percurso fosse justamente a que repousa, com imponência silenciosa, na capa do The Official Wednesday Cookbook. Não é uma escolha decorativa: é um presságio medido.

A imagem que adorna a capa é, na verdade, um convite — uma armadilha elegante — para adentrar o universo de Wandinha pela boca, com o assombro sereno de quem sabe que, com essa receita, a própria Wandinha servisse, ou se deleitasse numa noite chuvosa, quando os corvos se aninham no peitoril das janelas. Um doce com nome de poema, cores de veneno e gosto de sonho: o Nightshade Society Poe Parfait (cuja receita vai estar no final do texto).

O Nightshade Society Poe Parfait — com suas camadas de roxos noturnos e negros abissais — ergue-se como páginas comestíveis de um diário gótico esperando que cada colher fosse uma escavação entre lembranças e presságios. Ali está, envolto em neblina de mistério, coroado por migalhas de biscoito que lembram terra úmida, selando um segredo em textura e cor. Sendo mais que sobremesa; é retrato.

E assim, entre sombras e colheradas, encerra-se essa divagação. Não com um ponto final, mas com reticências que se dissolvem no céu da boca — como se o doce deixasse rastros invisíveis nos corredores do paladar e nas lembranças que preferem a penumbra. Talvez, ao preparar esta receita, você também ouça o eco distante de passos nos subterrâneos de Nevermore, ou perceba, por um breve instante, que o mundo dos párias e o nosso não são tão distintos assim. Porque alguns sabores — como certos segredos — só se revelam a quem está disposto a provar a escuridão com calma.

E se comecei este percurso hipnotizada pelo roxo profundo de grande M — na cor de veneno e de violeta seca —, encerro não com respostas, mas com a doçura ambígua de um pressentimento. Porque, como o próprio nome "Mercredi" sussurra ao ser pronunciado, há uma tristeza antiga costurada na identidade daqueles que nascem entre sombras. Wandinha não escolheu o luto: ela o incorporou. Assim também é esta sobremesa — não feita para agradar multidões, mas para quem encontra beleza no que é denso, em camadas, em silêncio. Talvez certas receitas não alimentam o corpo, mas a parte secreta da alma que observa o mundo de canto, com olhos de bruxa e paladar de poeta. O Nightshade Society Poe Parfait não fecha este texto — ele o continua, como um sussurro que pede outra colher, outra noite, outro segredo.

E eu, que nasci na quinta, sigo. Porque ainda há muito por onde ir.

 Barão de Gourmandise

 *Obs.: Na Inglaterra daquele tempo, o Sabbath day, que tradicionalmente é o sábado no judaísmo, passou a ser observado como o domingo por muitos cristãos, especialmente após a Reforma Protestante e a ascensão do puritanismo. Essa mudança foi influenciada pela crença de que a ressurreição de Jesus ocorreu no domingo, o primeiro dia da semana.

 REFERÊNCIA

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Paulo Neves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.89, 1980.

 NIGHTSHADE SOCIETY POE PARFAIT

Ingredientes:

Para o Crème Pâtissière de Ube:

3 colheres de sopa de amido de milho

⅔ xícara de açúcar

¼ colher de chá de sal

4 gemas de ovo grandes

1½ xícaras de leite integral

½ xícara de creme de leite fresco

2 colheres de sopa de manteiga sem sal

½ colher de chá de extrato de ube (é uma essência de inhame roxo peculiar, se não achar, use um corante roxo e coloque a essência que desejar)

½ colher de chá de baunilha

Para o Crumble de Cacau Preto:

½ xícara de farinha de trigo

¼ xícara de açúcar mascavo claro

2 colheres de sopa de cacau preto em pó

¼ xícara de sementes de gergelim preto

¼ colher de chá de sal

1½ colher de chá de pasta de gergelim preto

4 colheres de sopa de manteiga gelada, em cubos

Para o Chantilly de Ube:

½ xícara de creme de leite fresco

2 colheres de sopa de açúcar de confeiteiro

2 a 3 gotas de extrato de ube

Sementes de gergelim preto para decorar (ou use sementes de papoula, para dar ainda mais sentido)

Modo de Preparo: Prepare o crème pâtissière: Misture todos os ingredientes exceto a manteiga, ube e baunilha. Cozinhe até engrossar, mexendo sempre. Fora do fogo, incorpore a manteiga e os extratos. Refrigere com filme em contato por pelo menos 4 horas.

Crumble: Misture os ingredientes secos e incorpore a manteiga até formar uma farofa. Asse em forno a 175 °C por 15 minutos ou até dourar levemente. Esfrie.

Chantilly: Bata o creme com açúcar e extrato de ube até formar picos firmes.

Montagem: Em taças transparentes, alterne camadas de creme, crumble e chantilly. Finalize com sementes de gergelim e sirva gelado — ou morno, se preferir o lamento quente.

Obs.: aos curiosos, antes que me inundem com perguntas sobre o gosto e o cheio do extrato de ube, já adianto que ele faz a diferença. O extrato de ube é bastante usado para dar cor e sabor em bolos, sorvetes, doces e pães nas receitas Filipinas, de onde ele é originário, trazendo aquele toque exótico e marcante. Mas, talvez não seja difícil de encontrar na internet e nas boas casas de confeitaria.

O aroma do extrato de ube é como um sussurro da terra, doce e terroso, que dança delicadamente no ar — uma lembrança suave de raízes profundas que carregam a quietude da floresta úmida. Há uma doçura natural, quase infantil, que evoca memórias de sobremesas caseiras feitas em tardes preguiçosas. Mas não é uma doçura simples; é complexa, com nuances quase de noz e uma leve cremosidade que lembra o toque de um sonho longínquo.

É o cheiro da terra depois da chuva, misturado a uma brisa leve de flores que se recusam a revelar seu nome, e a um toque sutil, quase etéreo, que lembra um beijo de amêndoas doces sem ostentação. Este aroma envolve, conforta e convida, sem jamais impor — é a promessa de um sabor que é ao mesmo tempo familiar e exótico, discreto e inesquecível. Então, se não conseguir, use as quantidades que a receita pede por um extrato de sua preferência, só não esqueça que precisará usar um corante roxo para dar a cor que a sobremesa pede.