quinta-feira, 30 de outubro de 2025

NOOTRÓPICOS E OS DESEJOS DE UMA ETERNIDADE: DA BUSCA PELOS NÉCTARES PERDIDOS AO TRANSUMANISMO


Desde que alcancei a maioridade, tanto de fato quanto de direito, passei a observar o mundo com um interesse curioso pelos cuidados do corpo — e, em menor, mas não menos importante medida, da mente. Descobri na alimentação não apenas sustento, mas um caminho fundamental de equilíbrio, capaz de harmonizar cada gesto, cada pensamento, cada suspiro. Porém, à medida que amadureço e a compreensão do mundo se aprofunda, percebo que a ciência e a tecnologia oferecem ferramentas poderosas para aprimorar ainda mais essa alquimia entre corpo e mente. 

É nesse cenário de possibilidades que surgem os suplementos variados, promessas concentradas de saúde, vitalidade e foco, destinados a múltiplos propósitos. Hoje, desejo dirigir minha atenção a um deles, um grupo especial de substâncias que prometem não apenas nutrir, mas expandir os horizontes da consciência: os nootrópicos. Já ouviu falar deles?

Há muito tempo, antes que a ciência tivesse um nome, o ser humano já desejava lembrar-se melhor de si mesmo.

Não bastava viver: era preciso entender, expandir, ultrapassar.

Da argila e do sonho nasceu essa inquietação — e dela, o primeiro gole de algo que prometia mais do que saciar: prometia despertar.

Hoje chamamos essas substâncias de nootrópicos.

Mas antes que os laboratórios lhes dessem forma em cápsulas translúcidas, os mitos já as haviam pressentido.

A ALQUIMIA DA MENTE

O termo “nootrópico” veio de um cientista romeno, Corneliu Giurgea, em 1972, que acreditava ter encontrado, no piracetam, um catalisador para o cérebro — um elixir moderno do pensamento.

“Noos”, mente. “Tropos”, direção.

Algo que move o pensamento.

Um vento sobre o espelho da consciência.

Giurgea sonhava com uma droga que não ferisse o corpo, mas o elevasse.

Um alimento da mente que iluminasse o raciocínio, fortalecesse a memória e protegesse a alma elétrica do esquecimento.

O que ele não sabia é que, muito antes de seus frascos de laboratório, os deuses já bebiam disso — em copos de ouro, em taças de marfim ricamente decorado, ou, direto de folhas e raízes.

BOCADOS E GOLES DO INFINITO: O ALVORECER DOS NÉCTARES PERDIDOS

Antes que o tempo fosse medido em relógios e laboratórios, antes que a ciência começasse a mapear a mente e suas potencialidades, o homem buscava o toque do divino através do que a terra e as crenças ofereciam. Cada fruto, cada resina, cada néctar que se experimetava carregava o segredo da vitalidade e da clareza, a promessa de prolongar a juventude e expandir a consciência, a imortalidade. Era nesse labor silencioso, entre mãos que trituravam raízes e olhares que reverenciavam o céu, que se revelavam os primeiros bocados e goles do infinito — encontros íntimos e sensoriais com os néctares que hoje posso chamar de nootrópicos ancestrais.

Nos vales da Índia, sacerdotes moíam uma planta misteriosa e misturavam-na com leite e mel – segundo os hinos védicos, era o Soma, uma bebida divina que prometia a imortalidade. Dizia-se que seu aroma dourado penetrava a alma antes de tocar os lábios, despertando visões e clareza que apenas os deuses podiam conceder. Na China, a deusa Xi Wangmu cultivava pêssegos que floresciam a cada três mil anos; quem deles se alimentava via a juventude perpetuar-se, e cada mordida trazia a doçura de jardins que jamais murchavam.

No Egito, sacerdotes ferviam resinas e flores do Nilo, criando infusões que diziam equilibrar o coração e abrir as portas da mente — misturas de mirra, loto e vinho que perfumavam templos e tumbas, enquanto faraós buscavam prolongar sua presença entre os vivos e os mortos. Em Roma, os convívios luxuosos exaltavam néctares e meles fermentados, temperados com ervas raras; os césares acreditavam que certos vinhos misturados a óleos aromáticos e essências de plantas despertavam a mente e adocicavam o tempo.

Os gregos falavam da Ambrósia e do Néctar, alimentos dos deuses do Olimpo — fragrantes, luminosos, capazes de deter o tempo e conferir não apenas força física, mas claridade de pensamento. No deserto da Mesopotâmia, Gilgamesh mergulhou até o fundo do mundo em busca da planta da vida, apenas para vê-la furtada por uma serpente astuta, lembrando que a imortalidade era um prêmio sempre esquivo, entregue apenas em sonhos e narrativas sagradas.

Entre os maias e astecas, os chás de cacau eram elevados a cerimônia: fervido com especiarias, às vezes misturado com flores e sementes, prometia vigor e insight. No Japão antigo, o matcha não era apenas chá, mas ritual de atenção plena, clareando a mente, equilibrando energia e espírito. E mesmo nos confins do norte, entre os nórdicos, a fermentação de frutos e raízes produzia hidromel e elixires que, acreditavam, davam coragem, sabedoria e resistência ao frio cortante.


Nos confins das matas brasileiras, os povos indígenas descobriram que certas plantas carregavam não apenas sabor, mas portais. A Jurema, com sua casca rugosa e folhas terrosas, era transformada em bebida sagrada, fumegante e amarga, capaz de abrir os caminhos da mente e do espírito. Ao beber dela, o xamã sentia a clareza atravessar cada célula, e a comunidade reunida acompanhava a viagem invisível da consciência, um mergulho em rios de insight, memórias ancestrais e visões que a realidade comum não podia oferecer. Assim, a mente era nutrida e expandida, e o corpo se preparava para enfrentar desafios maiores do que qualquer caçada ou batalha diária.

Na imensidão da floresta amazônica, frutos e sementes de cores vívidas, muitas vezes desconhecidos para os olhos do mundo moderno, são triturados, fermentados ou misturados com água e mel. Cada sabor carrega uma promessa: resistência, vitalidade, vigor mental. O cacau, em especial, com sua amargura terna, era reservado para rituais especiais, conferindo alegria, força e atenção àqueles que dele participavam, tornando-se uma ponte entre a experiência física e o despertar da mente.

Nos terreiros de Candomblé e nos ritos de Umbanda, as oferendas aos Orixás traduzem-se em alimentação ritualizada, mas também em elixires de alma. A mistura de dendê, frutas, farinhas e especiarias não é mera comida; é uma poção de energia espiritual. Ao degustar cada elemento, o devoto sente o corpo preenchido e a mente despertada, como se a própria história dos ancestrais e dos deuses se incorporasse às suas veias. Cada erva, cada bebida, cada gesto carrega um efeito quase alquímico, equilibrando energia, clareza e conexão com o sagrado — uma forma de nootrópico ancestral, que nutre corpo e espírito simultaneamente.

E assim, do Norte ao Sul, das aldeias indígenas aos terreiros, a tradição brasileira revela que a busca pelo elixir da mente e da vitalidade não é invenção moderna. Cada planta, cada fruto, cada mistura ritualizada é um fio na tapeçaria antiga da humanidade, lembrando que, muito antes de cápsulas e laboratórios, a mente e o corpo humanos procuravam os néctares que prolongam a clareza, a força e, talvez, a própria eternidade.

Por toda a humanidade, de oriente a ocidente, do deserto ao vale fértil, a busca por elixires da mente e do corpo se repetiu: vinhos, chás, resinas, raízes, frutas de crescimento milagroso, substâncias aromáticas e viscosas que prometiam juventude, vigor, clareza e, acima de tudo, a ilusão de imortalidade. E é nessa linha ancestral que hoje podemos traçar a origem poética dos nootrópicos, herdeiros modernos de uma busca tão antiga quanto a própria consciência humana.

Afinal, o ser humano sempre quis um pouco do que só os deuses tinham.

Quis lembrar eternamente, pensar melhor, sentir mais, morrer nunca.


DO TEMPLO AO LABORATÓRIO

Hoje, o velho sonho veste jaleco.

O Soma virou cápsula de modafinil, o Néctar virou cafeína purificada, e o Pêssego da Imortalidade se condensou em NAD+ e resveratrol.

Chamamos de biohacking o que os antigos chamavam de magia.

Silicon Valley é o novo Olimpo, onde os deuses bebem café com óleo e batizam seus computadores com nomes de anjos.

E ainda assim, o desejo é o mesmo: a mente clara, a juventude estendida, o corpo obediente ao espírito.

Transumanismo, chamam — o sonho de superar o humano, de soldar carne e silício, pensamento e máquina.


Desde que o biólogo inglês Julian Huxley (1887‑1975) usou, em 1957, o título “Transhumanism” (Transumanismo) no ensaio contido em New Bottles for New Wine — onde ele escreveu:

The human species can, if it wishes, transcend itself — not just sporadically, an individual here in one way, an individual there in another way, but in its entirety, as humanity. We need a name for this new belief. Perhaps transhumanism will serve: man remaining man, but transcending himself, by realizing new possibilities of and for his human nature. 

A espécie humana pode, se assim o desejar, transcender‑se a si mesma — não apenas esporadicamente, um indivíduo aqui de uma forma, um indivíduo ali de outra forma, mas em sua totalidade, como humanidade. Precisamos de um nome para essa nova crença. Talvez ‘transumanismo’ sirva: o homem permanecendo homem, mas transcendo‑se a si mesmo, ao realizar novas possibilidades de e para a sua própria natureza humana)

Assim, emergiu, com elegância e inquietude, uma visão audaciosa: a de que a humanidade não é o destino final, mas apenas um degrau numa escada que ela própria está concluindo.

Huxley, primeiro diretor‑geral da UNESCO a partir de 1946, via na evolução não apenas um fenómeno biológico, mas um chamado ético‑científico: humanos capazes de assumir conscientemente o papel de agente da evolução, dirigindo seu próprio progresso.  Para ele, o transumanismo era menos sobre próteses metálicas e mais sobre a realização das possibilidades humanas latentes — expansão da mente, do espírito, da forma e da função.

E é aqui que os nootrópicos se inserem, como discretos heraldos desta nova era: pequenas fórmulas, substâncias que prometem claridade, memória ampliada, foco prolongado, um corpo que demora mais a obedecer ao relógio do desgaste. São os primeiros acordes de um concerto cujo movimento final é a fusão da carne com o circuito, da sinapse com o silício. Assim como os templos antigos ofereciam elixires míticos à alma, os laboratórios modernos oferecem cápsulas e pilhas bioquímicas à mente inquieta.

Hoje, olho ao redor e percebo “transumanos” caminhando entre nós — não necessariamente em trajes de ficção científica, mas em formas sutis e cotidianas: o executivo que toma nootrópicos para multiplicar suas horas de produtividade; o ciclista que usa sensores neurais para traduzir esforço em dados em tempo real; a paciente que abandona prótese mecânica por uma interface cérebro‑máquina e sente, pela primeira vez, o mundo responder ao pensamento. Essas manifestações discretas já vivem o ideal central de Huxley: humanidade que permanece humana, mas que se transcende — H+, para os modernistas.

Em suma, o transumanismo se tornou o grande palco da modernidade: onde o templo da antiguidade reverenciava o néctar dos deuses, o laboratório contemporâneo reverencia a molécula, o chip e a sinapse aprimorada. Mas há algo que nem os circuitos entendem: a mente clara e o espírito vivo não se compram; a juventude prolongada não se codifica. E, no entanto, a busca continua — com a mesma fome antiga de imortalidade e clareza, agora em jaleco branco e luz azul de tela. 

E o que os nootrópicos representam nesse teatro? São os acordes iniciais da sinfonia transumanista — pequenas substâncias, cápsulas, extratos que prometem expandir a mente, afinar o foco, prolongar a juventude. Assim como os antigos deuses do Olimpo saboreavam a Néctar e a Ambrósia para alcançar o divino, os adeptos do transhumanismo tomam cápsulas e pilhas de suplementos para aproximarem‑se de um estado h+ (humano aumentado).

Mas os “transumanos” já caminham entre nós — talvez mais discretos do que se imagina: o ciclista que usa um implante de pedal sensorial para traduzir movimento em dados, a mulher que controla sua prótese robótica apenas com o pensamento, o empresário que toma nootrópicos para “otimizar” a atenção das dez horas do dia. Cada um deles, sem perceber, ensaia a fusão carne‑silício, mente‑algoritmo, corpo‑máquina. 

E, no entanto, há algo silencioso e quase trágico nessa nova alquimia: muitas vezes, você nem sabe que ela existe. As pílulas que prometem foco, as moléculas que restauram energia celular, os extratos que afinam a mente e apaziguam o cansaço — tudo isso circula em laboratórios, fóruns e clínicas discretas, quase como segredos de uma casta iniciada.

A maioria de nós caminha sem perceber que há ferramentas que poderiam aliviar o peso dos dias, clarear a mente turva, devolver o vigor que o tempo ou a rotina consomem. É a velha barreira entre o saber e o poder: alguns ignoram por desinformação, outros por descrença, e muitos simplesmente porque o preço do progresso, hoje, ainda se paga em moedas que poucos têm. O acesso ao aprimoramento tornou-se o novo privilégio, e talvez essa seja a ironia mais amarga do transumanismo — querer elevar o humano, mas erguer muralhas cada vez mais altas entre os que podem e os que não podem transcender.

E assim, no laboratório onde os jalecos brilham e os LEDs piscam, enquanto o velho sonho do templo ressoa, a alquimia humana modernizou‑se: já não é preciso voar até o Éden ou beber do cálice dos deuses — basta abrir a mente, ingerir o suplemento, conectar‑se ao chip e pedir que o tempo se dobre. Mas não importa o quão rápido o silício pense ou o corpo execute — há algo que nem os circuitos compreendem: a doçura não se programa.

Mas há algo que nem os circuitos entendem: a doçura não se programa.

Talvez por isso, em meio à pressa dos algoritmos e às promessas de imortalidade sintética, seja preciso retornar à cozinha — esse templo nem sempre silencioso onde o fogo e o tempo ainda obedecem ao toque humano. É ali, entre o perfume do açúcar e o canto do leite fervendo, que reencontramos o que nenhuma máquina consegue emular: o gesto de cuidado, o calor da lentidão, a alquimia do afeto.

A DOÇURA QUE NOS HUMANIZA

Antes de nos transumanizarmos, antes de sonharmos com elixires que prometem eternidade e clareza divina, talvez devêssemos recordar o que ainda — e apenas — nos faz humanos. Em meio às telas luminosas, às vozes sintéticas e às mentes exaustas, parece cada vez mais raro encontrar gestos verdadeiramente humanos: a pausa, o toque, o olhar que não pede nada em troca.

Há dias em que ser humano, humano mesmo, soa quase como uma excentricidade. Enquanto uns almejam o pós-humano, o H+ (do inglês Human Plus — “Humano Mais”), esquecemos o simples — a lentidão das manhãs, o cheiro de algo cozinhando devagar, o consolo do doce depois de um dia áspero. E talvez seja aí que se esconda o verdadeiro antídoto contra a frieza das máquinas: naquilo que nos devolve o sabor da imperfeição e o calor da alma.

No Brasil, há um doce que carrega, com discreta ironia, o mesmo nome que o alimento dos deuses: ambrosia. Seu perfume atravessa séculos e oceanos, vindo das cozinhas conventuais de Portugal. Quando essa receita cruzou o Atlântico, encontrou novos ventos e novas mãos. No Brasil, o saber ibérico se misturou ao indígena e ao africano; o leite fresco das fazendas substituiu as medidas austeras da metrópole, e o fogo tropical ensinou outra cadência ao cozimento. Sob o calor paciente das cozinheiras mestiças, a ambrosia se transformou: o leite talhava lentamente, o açúcar se dourava até o ponto de caramelizar, e o aroma, denso e levemente tostado, passava a ter o gosto da terra nova. Nascia, enfim, a ambrosia brasileira — menos celestial, mais humana; menos promessa de eternidade, mais memória viva do afeto.

Diz-se que o segredo não está na receita, mas no tempo. É preciso deixá-la descansar, talhar, ferver devagar — como se cada bolha que estoura no tacho libertasse um fragmento de lembrança. Em cada colherada, há um eco de infância, um sussurro de eternidade possível. O sabor — doce, quase melancólico — é talvez o mais humano dos elixires: não afina a mente como um nootrópico moderno, mas a acalma; não expande a consciência, mas a adoça.

E é nessa simplicidade que o Brasil, com sua vocação para o improviso sagrado, devolve à palavra “ambrosia” o que os deuses esqueceram: o prazer da imperfeição, o consolo do sabor compartilhado, a doçura que nos humaniza. Era simples e sublime — como se o céu, ao se derreter, tivesse o sabor de infância e eternidade.

A ambrosia brasileira não promete imortalidade, mas entrega algo mais humano: lembrança e consolo.

Cada colherada é uma travessia pelo tempo — o leite do agora, o ovo do renascimento, o açúcar do prazer. É a química da alma, o nootrópico do afeto, que ativa não o córtex, mas o coração.

Enquanto os transumanistas empilham suplementos e algoritmos em busca da eternidade, as avós do interior, sem saber, criaram o antídoto perfeito: um doce que não quer durar para sempre, apenas ser inesquecível.

EPÍLOGO: A VERDADEIRA IMORTALIDADE

Os nootrópicos prometem que pensaremos mais rápido.

O transumanismo promete que viveremos mais tempo.

Mas é a ambrosia — essa modesta poção de leite e memória — que nos ensina o segredo que os deuses esqueceram: A eternidade não está em durar, mas em ser oinesquecivel.

O verdadeiro elixir não mora nas cápsulas nem nas máquinas, mas na doçura que compartilhamos, na inteligência dos gestos, no calor da colher que raspa o fundo da panela e toca o tempo.

E talvez, quando a última máquina silenciar e o brilho do ‘silício’ se apagar, restará apenas o gosto doce daquilo que fomos capazes de sentir. Porque, no fim, o que nos salva não é o corpo aperfeiçoado nem a mente ampliada — é o coração que ainda treme diante do sabor de um instante. Ser humano é lembrar. E não há eternidade maior do que essa.

Nenhum chip conhece a ternura do fogo lento, nem algoritmo algum entende o milagre de uma lembrança doce. O humano, afinal, é a chama que insiste em arder dentro da máquina.

E talvez, quando o homem enfim se tornar deus, descobrirá o vazio da perfeição — e pedirá de volta o calor das mãos que mexem o tacho, o aroma do açúcar derretendo, o erro, o toque, o tempo. Só o que sentimos permanece. E não há nootrópico mais poderoso do que o sabor de ser — humano e fugazmente — vivo.

Dica de leitura:

HUXLEY, Julian. Transhumanism. In: NEW BOTTLES FOR NEW WINE. London: Chatto & Windus, 1957. p. 13‑17. 

AMBROSIA: O NOOTRÓPICO AFETIVO DO BARÃO DE GOURMANDISE (SEM OVOS)

3 litros de leite integral (ou desnatado, se a leveza for o seu desejo)

Suco de 3 limões grandes ou 4 pequenos

Raspas e suco de 2 laranjas

3 xícaras (chá) de açúcar (ou, para os que evitam o pecado doce, 1 xícara de adoçante culinário)

Cravos-da-índia e canela em pau a gosto

Preparo: Fora do fogo, despeje o leite em uma panela grande e clara. Junte o suco de limão e observe — é o primeiro milagre: o leite se parte, talha, separa-se entre corpo e espírito.  Acrescente então o suco e as raspas de laranja, metade do açúcar, os cravos e a canela. Misture com calma, como quem conversa com o tempo. Leve ao fogo e deixe cozinhar sem mexer, por cerca de uma hora. O doce deve borbulhar em paz, formando pequenas ilhas douradas de sabor. À parte, caramelize o restante do açúcar até que atinja a cor de âmbar e o perfume de infância — e verta-o lentamente sobre a ambrosia. Cozinhe por mais vinte ou trinta minutos mais, até que o líquido se transforme em calda e o doce ganhe sua textura cremosa, quase celestial. Sirva em temperatura ambiente ou gelada.

Obs.: Há quem prefira atalhos, quem não aguarde as horas silenciosas do fogo paciente, mas ainda assim encontre magia. Nesse método, o açúcar se transforma primeiro em caramelo dourado, dançando no calor da panela. Então, lentamente, o leite é convidado a juntar-se à festa, trazendo consigo as raspas de limão e laranja, o aroma dos cravos e da canela. O encanto acontece quase sozinho: o caramelo dissolve no leite, o leite começa a talhar, pequenas pérolas de ouro líquido surgem, e basta deixar que a mistura cozinhe até atingir a textura desejada — ora cremosa e delicada, ora firme como lembranças cristalizadas. Mais ou menos caldo, mais ou menos consistência, tudo ao gosto de quem saboreia.

E mesmo nesta pressa — que ignora os tempos conventuais e as mãos que aprenderam a paciência — a ambrosia mantém seu poder: toca o coração, desperta memórias, aquece a alma. Um nootrópico afetivo, legado do Barão de Gourmandise, que prova que não é preciso esperar eternidades para sentir a doçura da vida. 

AMBROSIA BRASILEIRA (com ovos)

Ingredientes:

1 litro de leite integral

2 xícaras de açúcar

5 ovos

Casca de 1 limão

1 pau de canela

1 pitada de sal

1 colher de sopa de mel — oferenda aos deuses antigos (opcional)

Preparo: primeiro, bata as claras em neve, até formar picos firmes, então junte as gemas e bata bem até ficar uma mistura fofa e clara. Reserve. Numa panela grande e funda, derreta o açúcar para formar um caramelo, depois disso, junte o leite, o limão, a canela e o sal e espere o caramelo derreter por completo e junte o leite, quando caramelo já estiver misturado ao leite e fervendo, baixe o fogo e junte todo o conteúdo dos ovos batidos e não misture, ela vai subir, o fogo deve ser reduzido ainda mais, se for preciso tire do fogo para ela baixar. Quando ver que as laterais já estão cozidas, você vai misturar devagar, e esperar o doce dar o ponto que desejar, uns 30 minutos são suficientes. Retire do fogo quando o doce estiver cremoso e levemente talhado. Sirva frio, como se servisse uma lembrança. 

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O ÊXTASE DOS POSSUÍDOS: ENTRE BRUXAS, BACANTES E A DEVORAÇÃO DA CARNE

Quando se é criança, parece que a arte da danação se instala silenciosa, como um software invisível, na alma que ainda tropeça nos primeiros passos. Estripulias, artimanhas, pequenas travessuras — termos que os adultos usam para catalogar a nossa descoberta do mundo à nossa maneira. Mas há um rótulo que sempre me encantou, uma sentença que ainda ecoa: “- Esse menino está possuído!”. É nesse ponto, nesse limiar entre a inocência e o sobrenatural, que quero iniciar este devaneio, nesses dias que antecedem o Dia das Bruxas.

Falar em possessão nas vésperas de uma celebração das bruxas é, por si só, um retorno ao lar. Pois tantas histórias antigas narram mulheres supostamente possuídas por demônios, acorrentadas à tortura e à fogueira, condenadas pelos senhores do Santo Ofício, convencidos de que aquelas almas queimavam sob a influência infernal.

Hoje, contemplando os fragmentos de manuscritos e relatos, percebemos que o demônio talvez nunca tenha agido além das mentes dos condenadores. O verdadeiro fogo residia na dominação e no medo, na repressão de um poder feminino que eles não podiam conter.

Um grupo de bruxas atormenta um homem enquanto sobre estas descem animais e génios malignos. Francisco de Goya. 1798. Museu Lázaro Galdiano, Madrid.

Mas, a literatura e o cinema perpetuaram essas visões de possessão.

A literatura sempre fez da bruxaria e da possessão um espelho onde o humano se contempla entre o desejo e o medo. A temática da bruxaria e da possessão percorre séculos de literatura, revelando mais sobre os temores e fantasias humanas do que sobre qualquer realidade sobrenatural. De Macbeth (1606), de Shakespeare — onde as bruxas simbolizam o caos e a ambição desmedida, as feiticeiras dançam entre a névoa e o destino, sussurrando verdades que os homens preferem chamar de maldição —; em As Bruxas de Salem (1953), de Arthur Miller, onde se transpõe o fanatismo religioso para uma crítica política ao macarthismo, o feminino associado ao oculto torna-se metáfora do poder subjugado e da diferença – ali se reaviva o fogo inquisitorial, mostrando que o inferno arde nas bocas dos acusadores. Em romances como O Mestre e Margarida (1966), de Mikhail Bulgákov – o pacto com o diabo é menos pecado que libertação –, ou A Hora das Bruxas (1990), de Anne Rice, a feitiçaria é reconfigurada como força de autonomia e conhecimento proibido – e a linhagem encantada de mulheres guarda em seu sangue o eco do sagrado e do profano.

No entanto, as raízes mais sombrias dessa construção simbólica remontam ao Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), tratado publicado em 1486 pelos inquisidores Heinrich Kramer e Jacob Sprenger. A obra, apresentada como manual para identificar e punir bruxas, consolidou a perseguição misógina sob o disfarce da fé, legitimando séculos de tortura e execuções. Foi escrita com a frieza de quem acreditava servir a Deus enquanto dissecava o corpo e a alma do feminino. É um texto que exala o perfume acre da fé corrompida, onde o medo toma forma de doutrina e a imaginação dos inquisidores se torna mais demoníaca que qualquer feitiço. Ler esse livro hoje é ouvir o murmúrio das fogueiras antigas, ainda crepitando sob a superfície da história. Hoje, lê-se o Martelo não apenas como documento histórico, mas como testemunho da violência institucionalizada contra o feminino e da transformação do medo em instrumento de poder.

Mas o tempo, esse grande alquimista, transformou o medo antigo em novas narrativas. A fogueira cedeu lugar à página, e o demônio — outrora visto no corpo da mulher insubmissa — passou a habitar outros rostos, outras culpas. O século XX herdou da Idade das Trevas não apenas o vocabulário da possessão, mas o fascínio pela fronteira entre fé e delírio. O que antes era grito nas praças tornou-se murmúrio nas salas de leitura, uma inquietação que a modernidade não conseguiu silenciar. É desse eco, desse resíduo de superstição e desejo, que nascem obras como The Exorcist (O Exorcista), onde o horror volta a se erguer, agora sob a forma de literatura — e, depois, de cinema —, trazendo à tona os mesmos temores que ardiam nas chamas da história.

Antes de sua ascensão às telas, havia o livro: The Exorcist (1971), obra de William Peter Blatty. Inspirado por um caso real — o chamado Exorcismo de Roland Doe, ou “Robbie Mannheim”, pseudônimos de Ronald Edwin Hunkeler (1935-2020), um garoto que supostamente sofreu possessão demoníaca e foi submetido a ritos de expulsão do demônio em 1949 — Blatty, ainda estudante universitário, encontrou nesse episódio um sopro inquietante que o empurrou para a criação de seu romance.



Então, o livro encontrou a tela. William Friedkin conduziu a obra ao cinema, guiado pelo próprio Blatty, que participou ativamente da produção e da adaptação do roteiro.

Contudo, o relato que nasceu nas páginas não se prenderia à frieza da história real: dramatizações, invenções, e transformações foram necessárias para que o horror se tornasse palpável. O menino deu lugar à menina Regan MacNeil, e o terror se fez carne e sombra, pronto para assombrar além do papel. O investimento foi vultoso: cerca de 12 milhões de dólares, mas o retorno ultrapassou as mais sombrias previsões, com impressionantes 428,9 milhões de dólares em bilheteria mundial — valor que, ajustado pelo tempo e relançamentos, alcançaria algo como 1,2 bilhão de dólares, segundo o Guinness. O Exorcista não foi apenas um sucesso comercial; foi um marco cultural, erguendo-se como um colosso do gênero terror.

Sua recepção crítica também foi extraordinária, especialmente para uma obra de horror: foram dez indicações ao Oscar, um feito quase inédito na época. Saiu vitorioso em duas categorias: Melhor Roteiro Adaptado, honrando a visão de Blatty, e Melhor Som, celebrado nos nomes de Christopher Newman, Robert Knudson, Robert Glass e Richard P. Rogers. Assim, entre câmeras, páginas e sombras, O Exorcista se tornou não apenas filme ou livro, mas um ritual de suspense, mistério e medo, onde a ficção abraça a realidade e a eterniza.

A primeira questão que se impõe, quase sussurrada pelas sombras do enredo, é esta: a possuída, Regan MacNeil, foi interpretada por Linda Blair. Mas por que alterar o sexo do sujeito possuído, transformando o menino Roland Doe em uma menina?

Meu eu mais comum, terreno, humano, arrisca uma resposta: talvez a época fosse permeada por um pensamento profundamente machista. Era mais fácil, pensava-se, conceber uma mulher — ainda que criança — como receptáculo do mal, pois a fragilidade era-lhe atribuída por natureza. E talvez, também, o próprio diretor intuísse que, nas histórias de possessão que circulavam, a figura feminina aparecia com mais frequência: afinal, quantos bruxos ou jovens possuídos lembramos com clareza, senão mulheres?

Enquanto meu lado cientista, pesquisador, de olhar meticuloso, traz menos especulação e mais lucidez. As razões tornam-se claras, quase didáticas, e se alinham com a liberdade da arte: primeiro, o diretor possuía autonomia criativa; não desejava um documentário, mas uma experiência cinematográfica intensa. Segundo, o impacto emocional: a imagem de uma menina inocente sendo tomada pelo mal desperta maior empatia, e com isso, um terror mais profundo. Terceiro, o símbolo da pureza — uma personagem feminina enfatiza a perda da inocência, tornando o horror ainda mais dolorosamente humano. Por fim, a narrativa cinematográfica: o contraste entre a fragilidade da menina e a violência da possessão cria um efeito perturbador que permanece na retina e na memória, e neste último ponto, meu eu terreno e meu eu estudioso se encontram, cúmplices, reconhecendo a genialidade sombria dessa escolha.

As estatísticas, frias em sua precisão, escondem um terror muito mais profundo que qualquer número poderia revelar. Entre os séculos XV e XVIII, estima-se que entre 40.000 e 60.000 pessoas foram executadas durante as caças às bruxas na Europa. Mas o horror não se encerrava na contagem: ele pulsava nas histórias de possessão, nos transes de mulheres acusadas, nos olhos que refletiam o medo do invisível.

A esmagadora maioria das vítimas eram mulheres — entre 75% e 85% delas. Acusadas de pactos com o diabo, de feitiçaria e de traições à ordem divina, eram julgadas por homens — inquisidores que se consideravam santos —, que interpretavam cada gesto estranho, cada febre ou delírio, como sinais de possessão demoníaca. Muitos relatos da época descrevem essas mulheres em transe, seus corpos e vozes tomadas por forças que pareciam além do entendimento humano, enquanto os inquisidores observavam e decretavam sentenças. A sociedade via nelas a fragilidade, mas também o perigo, e nelas se projetava o medo do sobrenatural, do desconhecido, do mal encarnado.

Os homens, por sua vez, representavam apenas cerca de 15% a 25% das vítimas. Acusados com menos frequência, eram muitas vezes vítimas de associação ou suspeitas de heresia, raramente de possessão direta. Mas em todos os casos, a narrativa girava em torno do corpo possuído, da alma corroída, do controle de forças invisíveis que se manifestavam de forma brutal e aterradora.

É nesse contexto histórico que se percebe o eco do terror retratado em O Exorcista: a imagem da inocência corrompida, da pureza feminina submetida a forças obscuras, não surge do nada. Ela é irmã das mulheres queimadas na fogueira, daquelas vistas em transe, possuídas e condenadas, cujas histórias de medo e poder moldaram a maneira como a sociedade e, posteriormente, a arte, compreendem o conceito de possessão. Cada grito no cinema ressoa com gritos que atravessaram séculos, lembrando que a ideia de possessão feminina — vulnerável, aterrorizante e paradoxalmente poderosa — sempre carregou uma sombra histórica, tão real quanto os números que registram seu destino.

Os antigos gregos também conheciam estados de entrega que ultrapassavam a razão humana. Nas festas dionisíacas, as Bacantes — ou Menades — eram tomadas por Baco, o deus do vinho, do êxtase e da força primitiva da natureza. Não se tratava de uma invasão maléfica, mas de uma possessão divina: o corpo e a voz das devotas se curvavam ao poder do deus, e nelas ressoava o estrondo de Bromios, o rugido selvagem de Dionísio. Nessas noites de Bacanais, a mulher não era submissa; era veículo e relâmpago, atravessada pelo êxtase, libertada dos limites do corpo e da consciência, entregando-se à força primordial que a transformava em algo ao mesmo tempo humano e divino.

                  A dança dos bacantes A dança dos bacantes - Charles Gleyre (1849) 

É possível dizer que, historicamente, as Bacantes ou Menades foram talvez as “possuídas” mais populares da história, arquétipos de transe e transgressão que permaneceram na memória coletiva por séculos. Nelas, a possessão se ligava ao etílico — o vinho que corrompe e liberta — e a aspectos sexuais, à celebração do desejo e da fertilidade, à mistura de prazer e desordem. A força que as atravessava não era maldição, mas poder; e, paradoxalmente, o possuído tornava-se possuidor: instrumento e expressão da energia divina, ao mesmo tempo corpo e extensão de Baco.

O estado de transe das Bacantes, com corpos tomados, vozes alteradas e força além do normal, guarda uma estranha semelhança com as descrições de possessão do cristianismo. Mas o significado cultural é oposto:

Para os gregos, era contato divino, um êxtase positivo que libertava;

Para o cristianismo, passou a ser visto como sinal de possessão demoníaca, ameaça e corrupção.

Assim, o que antes era sacral, uma entrega total ao divino, transformou-se em horror, medo e culpa. E ainda hoje, ao observarmos Regan MacNeil, não podemos deixar de perceber o eco distante dessas Menades: corpos atravessados por forças invisíveis, vozes que não lhes pertencem totalmente, e a tensão entre o sagrado e o profano, entre o êxtase e o terror.

Na mitologia grega, um epíteto não era apenas um nome; era um título sagrado, um apelido que capturava a essência, o poder ou a faceta particular de uma divindade. Atena, por exemplo, é chamada de Palas Atena, a guerreira; Zeus, o soberano, é reverenciado como Zeus Olímpico; e Dionísio, deus do vinho, do êxtase e da transgressão, carrega dezenas de epítetos, cada um refletindo uma dimensão distinta de sua natureza multifacetada.

                   O Baco Bêbado, de Hans Baldung (1520)

Observar esses epítetos é fundamental para qualquer estudo da Antiguidade. Não se trata apenas de curiosidade linguística: eles são janelas para a mentalidade, a religião e a cultura de um povo. Cada título revela o que os antigos consideravam essencial em seus deuses, o modo como buscavam compreender o divino, os poderes que admiravam ou temiam, e a forma como essas forças se manifestavam no cotidiano e no ritual.

É justamente nesse contexto que se entende o termo Bacchanalia, festivais e celebrações dedicadas a Dionísio. Não se trata apenas de festas ou excessos; Bacchanalia é a expressão de um culto complexo, em que o deus se manifesta por meio do vinho, do êxtase e do transe. Nessas cerimônias, o divino atravessava os corpos, e as Bacantes — suas devotas mais conhecidas — eram simultaneamente possuídas e possuidoras, canais do poder de Dionísio, vivenciando uma experiência que os gregos chamavam de entrega total ao deus.

Assim, compreender os epítetos de Dionísio nos ajuda a perceber que Bacchanalia não é apenas folia, mas um rito de comunicação com o divino, onde o corpo tomado, a voz alterada e a consciência diluída tornam-se instrumentos de transcendência. É o mesmo impulso que, séculos depois, a cultura cristã começaria a interpretar como possessão demoníaca — um eco antigo, agora temido, do que antes era sagrado.

             Penteu dilacerado pelas bacantes, vaso ático, ca. séc. V a.C.

Dionísio não era apenas o deus do vinho; ele encarnava a fertilidade, a natureza selvagem, o êxtase religioso e a loucura divina, o teatro, a transformação e a libertação das normas sociais. Cada epíteto do deus revelava uma faceta única de sua personalidade e do culto que lhe era dedicado, uma chave para compreender o poder que atravessava os corpos e as consciências de seus devotos. Entre seus muitos títulos, destacam-se:

Bromios (Βρόμιος) – “O Estrondoso” ou “O Barulhento”

Evoca o rugido da natureza e o som poderoso dos rituais, a força que rompe limites e faz tremer os corpos tomados pelo êxtase.

Eleutherios (Ἐλευθέριος) – “O Libertador”

Reflete a capacidade de libertar o ser humano das amarras sociais e emocionais, de dissolver medos e convenções através do êxtase e do vinho.

Lysios (Λύσιος) – “O Que Dissolve” ou “Liberta”

Um aspecto terapêutico e místico do deus, que libera da dor, da razão e da repressão, oferecendo fuga e transcendência.

Dithyrambos (Διθύραμβος)

Nome de um hino ritual dedicado a Dionísio, conectado ao teatro e à origem da tragédia grega, lembrando a força da música e da poesia na experiência sagrada.

Zagreus – “O Caçador Noturno”

Representa o Dionísio subterrâneo, renascido e órfico, símbolo de morte, renascimento e mistério profundo.

Anthios – “O Florescente”

Ligado à fertilidade, ao crescimento da primavera e à energia vital que brota da terra.

Lenaios (Ληναῖος) – “Do Lagar de Vinho”

Associado à produção e celebração do vinho, elemento central das festas e do contato com o divino.

Bacchus / Bakchos

Nome latino (e também grego posterior) que personifica o êxtase absoluto e o espírito das Bacchanalia, quando o corpo humano se torna veículo do deus.

Omadios – “Comedor de Carne Crua”

Expressa o lado selvagem, primal e ritualístico do culto, lembrando que a possessão pode ser tanto prazerosa quanto assustadora.

Enorches – “O Viril, o Vigoroso”

Ligado à fertilidade masculina e à potência vital que atravessa os corpos, reforçando a força primordial de Dionísio.

                O triunfo de Baco, de Ciro Ferri (Século XVII)

Cada epíteto ilumina uma dimensão do deus: sensual e divino, selvagem e terapêutico, destruidor e libertador. A multiplicidade desses nomes permite perceber a complexidade do êxtase dionisíaco — o mesmo êxtase que, séculos depois, seria interpretado pelo cristianismo como possessão demoníaca. Entre o sagrado e o profano, entre a entrega e o medo, Dionísio permanece como símbolo de forças que ultrapassam a razão e transformam aqueles que se deixam atravessar por elas.

No coração da noite, quando a lua se esgueira entre os ciprestes e o vento arrasta os murmúrios das colinas, surgem as Bacanais — festas de Dionísio, onde o ordinário se desfaz e o homem se curva à selvageria do divino. Não eram meras celebrações; eram convocações à posse do corpo pelo espírito do deus, momentos em que o vinho, o canto e o frenesi se tornavam instrumentos de transgressão e revelação.

Dionísio, o senhor do vinho e do êxtase, carregava em si muitos nomes, cada um fragmento de sua essência. Mas entre todos os epítetos, Bacchus se destacava. Não era apenas um nome: era o bradador, o possuído, aquele que se manifestava nos corpos das Bacantes, nas mãos trêmulas e nos pés que dançavam em transe. Quem o invocava não o recebia com passividade; era engolido por ele, atravessado por sua força, até que a consciência humana se dissolvia em êxtase.

As festas de Dionísio — as Bacanais — não surgiam por capricho, mas como rito necessário para o encontro entre mortal e divino. O vinho tornava-se veículo, o canto, conjuração, e o corpo, templo do deus. Naquele instante, as mulheres e homens não pertenciam mais a si mesmos; eram tomados, possuídos pelo rugido de Bakchos, pelo espírito que bradava dentro de cada fibra, pelo deus que não podia ser contido.

E assim, Bacchus não é apenas Dionísio; Bacchus é a posse, a fúria, o arrebatamento. Quem o invoca dança entre o prazer e o terror, entre a liberdade e a rendição. A Bacanal não é festa para os fracos: é rito de entrega, de abandono total à força que corrói o ordinário e ergue o espírito ao domínio do deus. É no nome de Bacchus que a natureza selvagem do homem se revela, grita e se funde ao divino, possuído, bradando, eterno.

Outra questão que se entrelaça à ideia de possessão é o canibalismo simbólico, uma força que emerge quando o corpo se torna veículo do deus. O próprio Baco, em seus mistérios e epítetos, apresenta essas tensões que merecem ser discutidas. O epíteto Omadios, tantas vezes interpretado como “comedores de carne crua”, exige cuidado: não se trata de canibalismo no sentido clássico. Na tradição grega, o termo para referir-se ao comer humanos seria “anthropophagos” (ἀνθρωποφάγος) — anthropos, humano; phagos, comedor. No latim, “cannibalis” ou “homo edens” cumpririam essa função literal.

Omadios, porém, descreve algo mais profundo e primordial: o comer selvagem, o ser atravessado pela força primal do deus, consumindo o ordinário, devorando a contenção, a racionalidade e a inibição humana. O possuído por Omadios não mata o outro; transforma seu próprio corpo em instrumento do divino, em um rito de energia vital, êxtase e transgressão ritual. É um canibalismo interno, simbólico, ligado à força sexual, ao desejo, à fúria da natureza que Dionísio desperta.

Dessa forma, Omadios aproxima-se mais do sacrifício da carne simbólica e da libertação da ordem que do horror literal do antropófago. O possuído é atravessado pelo selvagem que habita em si, consumindo suas próprias limitações, rendendo-se ao instinto primordial do deus. Nessa entrega absoluta, a possessão de Omadios não apenas domina o corpo: liberta-o, regenera-o e o transforma em templo do divino, mostrando que a verdadeira ferocidade do deus não está na destruição do outro, mas na dissolução do humano contido dentro de si mesmo.

No extremo do mundo conhecido, onde o Mediterrâneo se curva em silêncio e as ondas quebram em fúria, habitavam os Lestrígones — gigantes deformes, humanos apenas na forma, mas selvagens em essência. Homero os descreve como antropófagos, devoradores de estrangeiros, força primitiva que desafia a civilização grega, expulsos do convívio humano, enclausurados em sua ilha isolada. Não eram deuses nem fantasmas, mas homens levados ao extremo do selvagem, corpos gigantes, força descomunal, instintos cruéis.

O canibalismo que praticavam não era ritual divino, não era possessão de um deus; era a expressão literal do poder, do domínio sobre o outro e da violência da natureza incontrolável. Comer o estrangeiro, destruir navios, devorar marinheiros — tudo isso simbolizava a ameaça absoluta do desconhecido, a vulnerabilidade do humano diante do caos, e a impotência da força sem astúcia. Ulisses aprendeu, então, que a sobrevivência não depende apenas da coragem, mas da sagacidade frente a forças que consomem e destroem.

Na Odisseia, a ilha dos Lestrígones torna-se metáfora do limite do mundo civilizado. O canibalismo é a expressão máxima do poder e do perigo, lembrando que a vida humana é frágil frente ao desconhecido. Para quem estuda possessão ou forças que atravessam o corpo e a mente, os Lestrígones funcionam como um reflexo literal daquilo que Omadios simboliza em Dionísio: a força que consome, que atravessa, que devora — mas, no caso de Baco, transforma e regenera; no caso dos Lestrígones, destrói e elimina.

Assim, enquanto o possuído por Dionísio oferece-se ao êxtase e ao selvagem interior, os Lestrígones mostram o selvagem exterior, aquele que não tolera contenção, que devora o outro sem mediação divina. Entre o ritual e a violência, entre a possessão e o canibalismo literal, a mitologia grega desenha um mapa da força, da entrega e do perigo — do corpo que se abre ao divino e da carne que se entrega à selvageria absoluta.

A bruxa da casa de doces, foi a primeira a minha primeira personagem canibal que eu conheci ainda criança, ela tentou devorar João e Maria...

Eu falo de tudo isso porque, cedo, ao ligar o notebook para escrever, deixei a música tocar no YouTube e surgiu, como se fosse convocação do destino, Adriana Calcanhotto cantando “Vamos Comer Caetano”. E eu pensei, quase em um sussurro: “Ela devia estar possuída quando compôs isso!” — e, de repente, todas essas reflexões vieram à mente, como se a própria Bacanal tivesse se infiltrado na minha sala.

A canção é, de certa forma, uma possessão musical. Não pelo demoníaco, mas pelo espírito criativo que atravessa o corpo da artista, que a toma e a transforma em instrumento do desejo de absorver e reinterpretar o legado de Caetano Veloso. A repetição de “Vamos comer Caetano”, “Vamos devorá-lo”, ressoa como o eco de Omadios — não devorando o outro no sentido literal, mas consumindo o ordinário, transgredindo limites, transformando-se pelo poder do artista que se manifesta em cada gesto, cada palavra, cada nota.

O “incesto” e o “pela frente, pelo verso” que a letra sugere são metáforas de entrega total e transe, muito próximas das Bacantes atravessadas por Dionísio, ou dos estados de êxtase onde o corpo se torna veículo do divino. Há sensualidade, há fome — mas é uma fome ritual e simbólica, não antropófaga como a dos Lestrígones. Ao mesmo tempo, a canção cria sua própria ilha de selvageria: uma ilha de desejo criativo, onde o devorar é também celebração, banquete e comunhão com a força do outro, mas sempre dentro do território da arte e do imaginário.

Imagens de bacantes e banquetes evocam Baco Omadios, aquele que desperta a natureza primal e atravessa o corpo da possuída, transformando a carne e a mente em instrumentos de êxtase. O “cru” e o “revelarmo-nos” remetem à entrega absoluta, à transgressão dos limites do convencional — uma espécie de possessão poética, onde a música se torna veículo de libertação e metamorfose.

Assim, ao ouvir “Vamos Comer Caetano”, tudo o que estudamos sobre possessão, Dionísio, Omadios e até os Lestrígones se faz presente: há o selvagem dentro do ser, há o outro que devora simbólico ou literal, há a fusão entre corpo, mente e força criativa que atravessa e transforma. A canção é, portanto, uma Bacanal moderna, um ritual onde o devorar é arte, o possuído é músico e o deus é o próprio impulso de criação que não pode ser contido.

Mais aí, me veio à memória uma lembrança pessoal, e não pude deixar de rir sozinho: eu adoro um tartar, e numa das primeiras vezes que um amigo me viu comendo aquela carne crua, ele soltou, entre o espanto e a brincadeira: “Ele deve estar possuído para comer isso!” — e eu não pude deixar de pensar: talvez ele estivesse certo.


O steak tartare, esse prato que hoje se serve com refinamento e temperos, vem do francês “tartare”, ligado aos Tártaros, um povo nômade da Ásia Central. Diz a lenda que, para amaciar a carne, eles a colocavam sob a sela do cavalo enquanto cavalgavam — e depois a comiam crua. Uma prática que, mais do que mera alimentação, parecia carregar em si um ritual de resistência, força e selvageria, atravessando a carne com a vida e o movimento do cavalo, como se a própria carne tivesse sido possuída pelo impulso vital da jornada.

A história pode ser romantizada, mas é impossível não perceber o paralelo: assim como Omadios, a ideia de devorar não é literalmente antropofágica, mas é uma fome primal, uma posse da carne e da experiência, atravessando limites, transformando o ordinário em ritual. No tartar, não há outro devorado — há o corpo, o instinto, a natureza crua que se deixa consumir, temperar e elevar.

E, assim como nas Bacanais de Dionísio, onde o possuído se deixa atravessar pelo divino, comer tartar se torna um ato que mistura prazer, entrega e transgressão: uma pequena Bacanal na mesa, um encontro entre corpo, instinto e força primal. É também uma metáfora perfeita para a canção de Adriana Calcanhotto: “Vamos Comer Caetano” é o espírito de Omadios musical, possuindo a artista, atravessando limites, devorando o legado e transformando-o em festa, prazer e criação.

Mesmo os Lestrígones, com seu canibalismo literal, funcionam aqui como contraponto: eles devoravam o outro como força destrutiva, ameaça externa. No tartar, na música, na Bacanal, a força atravessa o próprio ser, não o outro, é autotransformadora, libertadora. Comer cru, devorar a arte, entregar-se ao êxtase — tudo se conecta. É a mesma fome de Dionísio, de Omadios, a mesma possessão que atravessa o corpo e a mente, agora em pratos, notas musicais e lembranças.

E eu ri de novo, lembrando do amigo: talvez, para ele, eu estivesse mesmo possuído — mas não pelo mal, nem pelo horror, e sim pela força selvagem, criativa e vital que atravessa o ordinário e transforma o corpo, a mente e a experiência em algo maior.

E foi aí que o pensamento se voltou para o grito antigo, o chamado que ecoa através dos séculos: “Evoé!”. Porque, assim como o Omadios devora a própria contenção, assim como os Lestrígones devoravam sem piedade, eu devorava a experiência da carne crua, atravessado por algo que me lembrava Dionísio: a entrega total, a dissolução das barreiras, a libertação do corpo e da mente.

“Evoé!” — era o grito de Baco, o chamado do deus, a invocação da posse divina, do êxtase e da libertação dos sentidos. Nas Bacanais, “Evoé!” atravessava o ar, atravessava o corpo dos fiéis, anunciando que a razão humana se dobrava perante a força selvagem do divino. Quem gritava “Evoé!” não apenas celebrava: era possuído, tomado pelo rugido de Dionísio, entregue ao vinho, à música, à dança e ao frenesi que dissolvia o ordinário.

O Evoé está diretamente ligado à essência de Baco: ele não é apenas uma festa ou um ritual; é o momento em que o humano se funde com o deus, em que o corpo se torna veículo da força primordial. Assim como o possuído por Omadios consome a própria natureza contida, atravessado pela fome ritual, quem entoa “Evoé!” entrega-se à transformação total — carne, sangue, instinto, emoção, tudo tomado pelo deus. É o mesmo espírito que atravessa as Bacantes, que dança nos corpos, que devora limites e reinventa a experiência de existir.

Portanto, “Evoé!” não é só um grito: é a manifestação sonora da possessão dionisíaca, do encontro entre mortal e divino, do êxtase que atravessa corpo e mente. É o mesmo impulso que vemos simbolizado nos ritos, nos epítetos de Dionísio, no Omadios que devora a própria contenção, e até nas metáforas de devorar — seja um prato cru, uma música ou uma obra de arte. Tudo se encontra na força de Baco, que atravessa e transforma.

E, ao fim de toda essa viagem, percebo que o fio condutor de tudo — do horror do Exorcista à metamorfose de gênero, das bruxas possuídas aos ritos dionisíacos, dos epítetos de Dionísio ao Omadios que devora a própria contenção, das terras selvagens dos Lestrígones à música que devora Caetano, do tartar cru ao grito de Evoé! — é a mesma energia primordial: a possessão. Não aquela possessão restrita à dor ou ao medo, mas a possessão vital, a força que atravessa carne e espírito, que rasga limites, que transforma o ordinário em sagrado, que nos lembra que ser humano é também ser atravessado, tomado, incendiado.

Cada instante de entrega — mastigar a carne crua, dançar na música, ouvir o eco dos rituais antigos — é uma convocação àquilo que nos excede, àquilo que nos pertence sem ser nosso. É a lembrança de que a vida, para ser sentida plenamente, exige libertação, exige travessia, exige o grito, o riso e o arrebatamento. É no mesmo sopro de Evoé! que a loucura e o êxtase se encontram, que o humano se funde ao divino, que o selvagem interior se manifesta em celebração e sacrifício simbólico.

E assim, chega-se ao instante em que a experiência se torna ritual: o prato à frente, a carne crua que guarda história, mitos e energia, esperando para ser transformada em prazer, em ato, em rito. O tartar não é apenas comida; é possessão, é convite à travessia, é celebração do impulso primordial que atravessa séculos, culturas e histórias. Cada mordida será grito, cada sabor será eco, e cada textura será lembrança de que, em nós, o selvagem e o divino coexistem, dançam, bradam e consomem.

Possuídos ou devoradores, somos atravessados pelo prazer, pelo horror, pela transcendência — sempre à beira de uma epifania que só a entrega total pode proporcionar. Somos o corpo que se oferece ao impulso, a mente que se dissolve no excesso, a carne que se torna veículo do sagrado e do selvagem. Cada gesto, cada sabor, cada som nos atravessa e nos transforma, como se estivéssemos tocando o divino com os dentes, com a pele, com a alma.

No instante em que nos permitimos ser consumidos pela experiência, a linha entre o eu e o Outro se desfaz. O medo se mistura ao êxtase, o ordinário ao extraordinário, o humano ao divino. Mastigar, dançar, gritar, delirar — tudo se torna rito, tudo se torna carne e espírito. O Omadios que devora a própria contenção, o Evoé que rasga os céus das Bacanais, o canto que devora Caetano, o tartar que toca a língua — tudo é um mesmo sopro de transcendência, uma convocação para atravessar o mundo sem se apegar a ele.

Somos Lestrígones e Bacantes, homens e deuses, músicos e devoradores, navegando entre caos e ordem, entre fome e saciedade, entre morte simbólica e renascimento ritual. Cada impulso, cada entrega, cada instante de êxtase é uma afirmação de que a vida plena exige que nos deixemos atravessar, que nos deixemos tomar, que nos deixemos devorar — pela arte, pelo mito, pelo vinho, pela carne crua, pelo grito que atravessa séculos: Evoé!

E nesse limiar, entre o selvagem e o divino, é que o ritual se conclui. Respire, contemple e prepare-se: porque agora, o instante se torna corporeidade, o mito se torna sabor, e o tartar não é apenas comida — é o último ato do rito, a consumação da travessia, o momento em que ser possuído e devorador se torna uma experiência única de vida.

Então, respire fundo. Erga a faca e o garfo. Prepare-se para o rito. Porque, no instante em que o tartar tocar sua boca, o Evoé! se fará carne, e você será, por um momento, inteiro, possuído, e absolutamente vivo.

Steak Tartare Clássico à Francesa

Ingredientes:

200g de filé mignon ou alcatra de alta qualidade, moída na hora

1 gema de ovo fresca

1 colher de chá de mostarda Dijon

1 colher de chá de molho inglês (Worcestershire)

1 colher de chá de alcaparras bem picadas

1 colher de chá de cebola roxa bem picada

1 colher de chá de pepinos em conserva (cornichons) picados

Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

1 colher de chá de conhaque (opcional, para um toque sofisticado)

Fatias finas de pão torrado, batatas fritas ou chips de batatas para acompanhar

Preparo: Em uma tigela fria, combine a carne moída com a mostarda, molho inglês, alcaparras, cebola e pepinos em conserva. Misture delicadamente até incorporar bem os ingredientes. Adicione a gema de ovo e o conhaque (se estiver usando). Tempere com sal e pimenta-do-reino a gosto. Modele a mistura em um prato fundo, formando um pequeno montículo. Sirva imediatamente, acompanhado de fatias de pão torrado ou batatas fritas crocantes.   Pra quem gosta de mais untuosidade, pode decorar com uma gema crua ou com gema curada.