sábado, 15 de novembro de 2025

KARPATKA: A TORTA QUE SABOREIA OS CÁRPATOS E TOCA AS SOMBRAS DE DRÁCULA


Sempre fui apaixonado pela escrita — não como quem escolhe um passatempo, mas como quem reconhece, num sussurro íntimo, a própria natureza. Lembro-me, com uma nitidez quase sobrenatural, de ter dez ou onze anos quando meu avô paterno, Mário Coelho — o querido vô Bidade — fazia de mim seu pequeno espetáculo doméstico. Bastava que alguma visita atravessasse a soleira para que ele, altivo como um mestre de cerimônias, anunciasse: “Este menino é muito inteligente. Recebe cartas do Brasil inteiro… e até do estrangeiro. Todo dia chega uma diferente. É tão sabido que ele entende até o que os estrangeiros escrevem!”


Eu permanecia ali, meio imóvel, enquanto a mão da visita deslizava pelos meus cabelos num gesto que misturava afeto e uma espécie de consagração silenciosa. O arrepio que me subia pela nuca era tímido, mas cheio daquele orgulho inconfessável que as crianças não sabem nomear. Eu sorria de canto, envergonhado — e então vinha a ordem do avô, soberana: que eu fosse buscar as cartas mais recentes, prova viva de que sua história não era exagero.

E não era mesmo. Desde muito cedo, em uma época em que se escreviam cartas com a mesma solenidade com que se acende uma vela, eu me encantava com o ritual: papel, envelope, selo, a caligrafia se derramando conforme o coração ditava. Grande parte das correspondências que ia e vinha pertencia aos lendários SACs (Serviço de Atendimento ao Consumidor) das empresas alimentícias — Nestlé, Lacta, Garoto, Maizena, e mais tarde Unilever, Hellmann’s, Pó Royal, um universo inteiro de marcas que existiam, para mim, como personagens magnânimas.

E, no fundo, havia ali um indício silencioso do que mais tarde se tornaria parte vital de quem eu sou: meu fascínio pela comida, por seus mistérios, por tudo o que vive entre o sabor e a memória. Eu escrevia para aquelas empresas movido por uma curiosidade quase científica — queria entender por que certos chocolates derretiam mais rápido, por que um fermento fazia o bolo erguer-se como uma catedral, ou como o cheiro de uma sopa podia mudar o humor de uma casa inteira.

E, para minha fortuna, naquele tempo as empresas ainda tratavam seus consumidores com uma delicadeza quase artesanal: respondiam a cada carta com esmero, enviavam folhetos ilustrados, pequenos livrinhos de receitas, amostras que pareciam tesouros, e às vezes até delícias embrulhadas com uma generosidade que hoje parece improvável. Cada envelope que chegava não trazia apenas resposta — trazia alimento para a minha imaginação, para o meu paladar e para uma vocação que, sem eu saber, já se desenhava.

Naquele tempo, as empresas ainda cultivavam o hábito de conversar com seus consumidores, quase como vizinhos que dividem receitas no portão. Ofereciam cursos, mandavam pequenos livros culinários, brindes coloridos. E assim, dia após dia, o carteiro deixava em nossa casa um punhado de envelopes que pareciam conter mundos — e era por isso que Bidade tanto me exibia: porque a casa se enchia de cartas, e eu, menino ainda, era o ponto onde todas elas se encontravam.

No cenário internacional, tudo assumia um brilho mais raro, quase encantatório. Eu sonhava estudar no Velho Mundo, e, como mensageiros de um destino possível, empresas de intercâmbio e colégios estrangeiros enviavam programas, convites e um mundo de papéis perfumados de promessa. Era uma festa cada vez que o carteiro surgia aos berros no portão — e o cachorro, em sua travessura jubilosa, corria para decidir se abocanhava a correspondência ou a canela do mensageiro. Para minha sorte, as cartas sempre saíam ilesas, e o carteiro, rendido ao afeto canino, acabou tornando-se seu amigo fiel.

Essa intimidade com a comunicação epistolar moldou profundamente meu modo de existir. Eu era feito de envelopes, selos e expectativas. Foi só com o avanço da internet discada — não ria, se você não conheceu esse período quase paleontológico da tecnologia — que o velho ritual começou a se dissolver no ar.

Eu tinha treze anos quando a internet se abriu ao público brasileiro, em 1995. Antes disso, a primeira conexão do país com esse vasto organismo digital surgira em 1991, restrita ao ambiente acadêmico, um fio sutil estendido entre a FAPESP e universidades norte-americanas. Só em 1995 é que a Internet se tornou comercial, ganhando corpo, voz e acesso às casas comuns — e lentamente transformando o modo como o mundo nos encontrava.

Entre o fim de 1999 e o alvorecer de 2000, quando a América Online Brasil — a lendária AOL — abriu seus portões digitais, eu celebrei com a euforia de quem observa o surgimento de uma nova constelação. Mas não era apenas a AOL que brilhava no céu da conexão: havia também a BOL (Brasil On-Line) e a iG (Internet Group), dois mastros importantes desse universo nascente. A BOL foi lançada em abril de 1996 pelo Grupo Abril e, pouco depois, incorporada ao UOL – daí você entender porque vinha com CDs de gratuidade junto de revistas. Em outubro de 1999, tornou-se pioneira no Brasil como provedor de e-mail gratuito, e em agosto de 2000 já contabilizava mais de 4 milhões de contas registradas. Já a iG (Internet Group) lançou-se no mercado por volta de 2000, oferecendo desde então serviços de portal, notícias e provedor discado.

Era um tempo em que o futuro ainda vinha pelo correio: envelopes espessos, propaganda reluzente, e, dentro deles, pequenos discos prateados que prometiam acesso a um reino invisível. Revistas que eu assinava, lojas que queriam seduzir clientes, empresas em busca de um aceno… todas me enviavam aqueles CDs de instalação, talismãs modernos que iluminavam a mesa onde eu os empilhava como quem coleciona luas. E havia mais — encontravam-se à venda nas livrarias, repousando entre romances e manuais, ou então como brindes esquecidos em bancas de jornal, supermercados, esquinas. Cada um sussurrava a mesma promessa: horas grátis de internet discada.

Mas a internet discada… ah, essa criatura de outra era — é preciso contá-la para quem nasceu depois, para quem nunca ouviu sua voz. Ela não era uma corrente silenciosa como hoje, mas um ritual. Primeiro, conectava-se o cabo telefônico ao computador, como se costurássemos dois mundos distintos. Depois, ao clicar em “conectar”, começava um canto estranho: estalos metálicos, guinchos agudos, um zumbido que parecia emergir das entranhas da própria máquina. Era o modem chamando um outro modem, dois espíritos tentando se reconhecer através dos fios da casa inteira. Só quando o ruído terminava — um suspiro final, quase um selo — é que o portal se abria.

E, no instante da conexão, a casa mudava. O telefone se calava, interditado. Tudo parecia suspenso, como se a própria noite prendesse a respiração. A internet era lenta, sim, mas tinha a intensidade de algo recém-nascido, algo que exigia presença, paciência, quase devoção. As páginas se formavam em lentas camadas, revelando-se como pintura que se completa aos poucos. Cada segundo era conquista. Cada minuto, descoberta. A simples chegada a um site tinha o gosto cerimonioso de atravessar um corredor de velas.

Assim era o mundo naquela época: mágico em sua precariedade, terno em seu barulho estranho, íntimo como um segredo compartilhado entre máquinas e humanos. E eu, cercado de meus inúmeros CDs cintilantes, acreditava, com a mesma fé dos alquimistas, que ali — naquele chiado de modem, naquele fio que roubava o telefone — residia o início de algo que mudaria tudo.

Dentre as muitas novidades trazidas pela internet, o e-mail, era uma forma mais rápida de correspondência. Acho que minha primeira conta de e-mail foi exatamente com a BOL — esse endereço @bol.com.br que, para mim, era como possuir uma chave para atender o mundo. E, sim, a BOL ainda existe — embora seu papel tenha mudado bastante com o tempo, ela continua funcionando dentro do universo do UOL. Talvez não resista mais à velocidade vertiginosa da internet moderna, mas no meu horizonte adolescente ela era tudo.

Mas, para usar E-Mail, naquela época, era preciso estar atualizado; entrei em cursos de informática e de como usar a internet, algo que, na época, era extremamente moderno, chique até. Uma verdadeira evolução: eu ainda usava máquina de escrever, e aprender comandos de computador era quase uma revolução. Somente nos anos 2000, com o início da internet banda larga, houve o declínio da AOL e das demais conexões discadas. Mas aquele barulhinho de modem, inconfundível, ainda ecoa na memória.

A minha correspondência física aumentou com a chegada do e-mail, que chegava mais rápido, e com a automação das malas diretas que despachavam materiais para mim. Até o ano 2000, recebia muitas cartas físicas, muito mais do que e-mails — completamente diferente do que acontece hoje, quando tudo é feito por e-mail ou WhatsApp.

Mas eu sempre tive uma devoção quase litúrgica pelas cartas. Colecionava papéis de carta como quem guarda fragmentos de um mundo mais delicado — alguns eram tão belos que eu jamais ousava escrever neles, preservados como relíquias. Ajuntava também selos, moedas antigas, cartões de felicitação que pareciam carregar ecos de outras vidas. E me encantavam, sobretudo, os livros em que a alma da narrativa era conduzida por correspondências — como se a história respirasse através de envelopes.

Entre esses livros, havia um farol: Drácula, de Bram Stoker. E o curioso é que minha primeira leitura não foi num volume impresso, mas num ritual quase clandestino. Eu tinha treze anos quando, graças à internet discada, consegui acessar uma biblioteca britânica que oferecia o romance para download gratuito. A lentidão daquela conexão — e seu feitiço — exigia astúcia. Cada CD de acesso garantia apenas uma hora de navegação, e os arquivos eram pesados demais para abrir sem paciência monástica. Assim, inventei um método: abria o livro digital com a solenidade de quem empurra uma porta antiga, e tentava imprimir um capítulo por vez, se o tempo, o modem e os deuses da conexão permitissem.


Demorei semanas inteiras para conquistar todas aquelas páginas, capítulo após capítulo, como quem recolhe peças de um corpo adormecido. E quando enfim tive o livro completo nas mãos — impresso, desalinhado, mas inteiro — senti que não possuía ainda a história em sua profundidade; havia apenas trazido Drácula até mim, página a página arrancada ao fluxo caprichoso daquela internet pré-histórica, como quem convoca uma presença que ainda precisa ser decifrada (se tiver curiosidade, veja ISSO).

E, para completar o ritual, havia o temperamento instável das primeiras impressoras — criaturas barulhentas, quase ofegantes. Às vezes engasgavam com o papel, mastigando bordas e cuspindo folhas tortas; outras, famintas de toner, entregavam páginas pálidas, quase ilegíveis, como se o próprio texto se dissolvesse em névoa. Era comum precisar recomeçar tudo, paciente e obstinado, até que cada capítulo viesse ao mundo com alguma dignidade. E assim, entre rangidos mecânicos e páginas renascidas, o livro ia tomando forma — fragmentado, imperfeito, mas meu.


Depois disso, surgiu outro desafio: eu já entendia inglês, talvez até melhor do que hoje, mas não sabia se meu inglês era suficiente para compreender tudo. Descobri então a possibilidade de usar dicionários online, e isso ajudou muito. Minha impressão do livro se tornou uma verdadeira aventura: cheia de rabiscos, círculos em palavras inglesas, setas apontando traduções… um mapa pessoal, detalhado, que acompanhava cada frase, cada mistério do texto.

E por que contar tudo isso? Porque, ao falar hoje da torta Karpatka, descubro que meu caminho até ela passa exatamente por essas memórias: cartas enviadas e recebidas, CDs de internet discada, páginas engolidas e cuspidas por impressoras primitivas, rabiscos de tradução, coleções que guardavam o mundo em miniatura, bibliotecas virtuais que rangiam como portas antigas. Tudo isso se enlaça e, como num feitiço suave, conduz direto a Drácula, de Bram Stoker — ponte delicada e inesperada entre minha adolescência inquieta e o bolo polonês que evoca os Cárpatos, a névoa gótica, os picos irregulares e a doçura clandestina da descoberta.


DRÁCULA DE BRAM STOKER E A REPRESENTAÇÃO DOS CÁRPATOS

Eu não nego: sempre tive uma queda visceral pelos vampiros — esses ícones da literatura fantástica que vivem entre o sagrado e o proibido. E entre todos eles, Drácula permanece como o monarca absoluto, a sombra mais alta, o eco mais persistente.

Meu fascínio era tão vasto, tão antigo em mim quanto um perfume esquecido numa gaveta de infância, que, anos depois, nos corredores silenciosos do meu Mestrado em Turismo, não pude senão transformá-lo em objeto de devoção acadêmica. Ali, entre mapas, teorias e madrugadas insones, ele tomou forma de pesquisa — e dessa alquimia nasceu um artigo científico, “Turismo e balcanismo a partir do Drácula de Bram Stoker”, publicado em 2015 pela RITUR, a Revista Iberoamericana de Turismo.

Foi nesse mergulho profundo, quase um pacto silencioso com sombras e arquivos, que encontrei uma verdade tão inquietante quanto sedutora: o Drácula vampiro que o Ocidente venerou com ardor — esse monarca noturno, envolto em mitos e sangue literário — permanecera, por décadas, quase invisível aos olhos de seu próprio povo. Como se o vampiro houvesse sido expulso do solo que o concebeu, para então renascer, glorioso e distorcido, nas páginas estrangeiras que o adotaram. Um exilado tornado lenda, retornando apenas em eco. Para quem desejar se aprofundar nesse labirinto fascinante, o artigo está disponível aqui: AQUI,


O “castelo de Bram” — a sedução turística do mito. Há um castelo na Romênia que muitos juram ser o lar de Drácula — e de certa forma ele é, mas somente no mesmo sentido em que um palco se torna, por uma noite, a morada temporária de um personagem inventado. O Castelo de Bran, com suas ameias afiadas e paredes brancas que cintilam como ossos sob a neve dos Cárpatos, tornou-se o castelo de Bram: a versão turística, cuidadosamente polida, de um lar imaginado por Bram Stoker, apesar de o escritor jamais ter cruzado aquelas montanhas. Ele é vendido ao viajante com a mesma doçura ardilosa com que um confeiteiro oferece um doce que parece antigo, mas foi criado na véspera. Seu interior ecoa de histórias, sim — mas são histórias herdadas, moldadas pelo desejo ocidental de encontrar, naquele penhasco, a morada do vampiro mais célebre do mundo. Não é o castelo do romance, e tampouco é o castelo verdadeiro de Vlad. Mas é, talvez, o castelo que os turistas querem ver: cênico, gótico, quase teatral.

Mas voltemos ao que importa aqui. A primeira coisa que me arrebatou em Drácula foi seu formato: o romance inteiro é tecido como uma grande colcha epistolar. Diários, cartas, telegramas, recortes de jornal e, em algumas partes, memorandos — cada fragmento é uma janela entreaberta, cada voz uma pulsação distinta, cada documento uma peça de um mosaico de horror e fascínio. É como seguir as pegadas de uma criatura que nunca se mostra inteira, mas cuja presença se insinua em cada página, em cada silêncio. Uma aventura fragmentada e febril, construída sobre o vampiro mais célebre do imaginário humano — entidade que, desde então, habita algum canto meu, tão viva quanto as velhas cartas guardadas em caixas e gavetas.

Naquela época, ainda não conhecia Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu, publicada em 1872 — vinte e cinco anos antes de Drácula. Essa novella gótica possui um peso quase ancestral: uma das primeiras histórias de vampiros claramente delineadas na literatura moderna. Introduz uma vampira feminina que estabelece uma relação íntima e intensa com a protagonista Laura, carregada de um subtexto homoerótico sutil, e deixou marcas profundas em muitas obras que se seguiram, inclusive Drácula.

Ainda assim, foi o cinema ocidental que, provavelmente, me conduziu primeiro ao conde vampiro transilvano. Confesso que degustava o livro aos poucos, com a ansiedade de quem prova uma iguaria proibida. Fiquei particularmente impactado — e enlevado, e um tanto constrangido — com as passagens das chamadas “prostitutas do demônio”. (Ria-se, se quiser; eu ria comigo mesmo)

Desde as primeiras páginas, Stoker constrói um mundo vívido e opressivo, descrevendo tudo com uma riqueza de detalhes que beira o ritual: os picos sombrios dos Cárpatos, a névoa que escorrega sobre os vales, o frio cortante que parece penetrar pelas palavras, e, é claro, o próprio monstro que paira nas sombras. Para não deixar o relato demasiado extenso — como se eu conseguisse domar a vastidão do texto original — deixarei apenas alguns trechos, acompanhados de minha própria tradução, selecionados com cuidado, como se cada fragmento fosse uma joia escolhida para revelar o essencial da presença gótica que me fascinou.

“Diário de Jonathan Harker

Local: Bistritz, Transilvânia

3 de maio de 1897.

Saí de Munique no dia 1º de maio, às 20h35, e cheguei a Viena na manhã seguinte; deveria ter chegado a Bistritz na manhã de 5 de maio, mas o trem atrasou. Ao atravessar a fronteira húngara, percebi uma mudança completa na paisagem e nas pessoas. [...] À medida que avançávamos, o caminho se tornava cada vez mais acidentado, e finalmente entramos nos Cárpatos, uma das regiões mais selvagens e menos conhecidas da Europa. Nunca tinha visto nada igual à beleza de suas encostas e vales profundos, das florestas de faias e pinheiros, e das ravinas que, de vez em quando, se abriam diante de nós.” 

“Diário de Jonathan Harker

4 de maio — A caminho dos Cárpatos.

A região dos Cárpatos é cheia de uma beleza selvagem e misteriosa. As pessoas que encontrei são de muitos tipos — saxões, magiares e valáquios —, mas todas parecem possuir uma superstição profunda. Quando mencionei o nome do Conde Drácula, os camponeses se benzeram e recusaram-se a continuar o assunto. [...] É curioso observar como essas montanhas parecem esconder segredos antigos, como se cada colina tivesse sua própria história e cada vale seu espírito guardião.” 

“Diário de Jonathan Harker

5 de maio de 1897. Castelo do Conde Drácula.

O crepúsculo caía quando partimos de Bistritz. As sombras das montanhas estendiam-se como asas gigantes sobre o vale, e o frio tornava-se mais intenso à medida que subíamos. O luar surgiu entre as nuvens, iluminando os picos nevados dos Cárpatos, que se erguiam diante de nós como muralhas ciclópicas. O cocheiro, envolto em seu grande manto, parecia fazer parte da própria noite. Tudo era tão estranho e silencioso que comecei a sentir um pressentimento de estar entrando em um mundo que não era mais dos vivos.”

À medida que lia cada trecho do diário, cada carta, sentia-me como Jonathan Harker atravessando os Cárpatos: a paisagem mudava diante de meus olhos e, ao mesmo tempo, a minha própria percepção se transformava. As montanhas, com suas encostas misteriosas e vales profundos, não eram apenas cenário; tornavam-se parte de um ritual de iniciação, guiando-me pela cultura, pelos costumes e pelo folclore da Transilvânia. Cada camponês supersticioso, cada aldeia banhada pela névoa, cada lenda sussurrada através das páginas me arrastava para dentro de um mundo que pulsava com histórias ancestrais, onde o medo e a fascinação se entrelaçavam.

Ler Drácula não era apenas absorver palavras; era permitir que meu próprio poder de imaginação tomasse forma. Cada frase, cada descrição, era um convite silencioso: eu não apenas acompanhava Jonathan Harker pelos Cárpatos, eu os habitava. Eu sentia o frio cortar a pele, a névoa subir pelos vales, os sussurros do folclore romeno e o peso ancestral das montanhas.

A leitura, nesse sentido, não me conduzia sozinha — era minha própria mente que erguia castelos, que espalhava sombras, que encarnava a presença do Conde Transilvano. O livro oferecia o mapa, e eu traçava os caminhos, respirava o ar, temia e desejava. Esse é o verdadeiro poder da literatura: não o de impor imagens, mas o de liberar o que já reside em nós, esperando apenas a centelha das palavras.

Houve outro momento, no livro, que me marcou profundamente: o primeiro encontro de Jonathan Harker com o próprio Conde Drácula. É uma passagem que condensa o terror e a fascinação, como se cada gesto do vampiro estivesse carregado de uma força silenciosa capaz de penetrar a alma do visitante.

Quando Harker chega ao castelo, Drácula o recebe com uma cortesia quase ritual, conduzindo-o por escadas sinuosas, corredores silenciosos e aposentos gelados. A primeira impressão é de estranheza e hospitalidade ao mesmo tempo, como se cada gesto escondesse uma intenção secreta: “Bem-vindo à minha casa! … Entre, o ar da noite está frio, e você deve precisar comer e descansar.”

O Conde ajuda Harker com sua bagagem e o leva pelos corredores sombrios, deixando claro que cada pedra, cada porta do castelo tem seu próprio ritmo, sua própria história. É uma recepção cortês, mas carregada de suspense, onde o frio da noite parece infiltrar-se nas palavras. Deposi de instalado, eles descem para o jantar. Mas, aí, Harker, revela a primeira fissura entre anfitrião e hóspede: Drácula não come com ele, mantendo uma distância silenciosa que causa estranheza e tensão. “Sente-se e jante como lhe aprouver … rogo que me desculpe … eu já jantei, e não sou de ‘supper’.” (supper = uma refeição leve à noite).

Harker observa que Drácula já jantou, reforçando uma distância quase ritual entre eles. Enquanto isso, ele próprio come sozinho — frango assado, queijo, salada e vinho Tokay — e nota pequenos detalhes, como o cigarro que o Conde oferece, apenas para recusar em seguida: uma cortesia enigmática, uma pista de que ali tudo funciona segundo regras próprias.

Após a refeição, Harker decide explorar o castelo. Encontra uma biblioteca com muitos livros em inglês, mas logo percebe que não há servos, nenhum som humano além do uivar distante dos lobos. Portas trancadas se multiplicam à sua frente, como barreiras silenciosas. Ele sente a vastidão do lugar, a solidão e a sensação de ser um intruso: “Portas, portas, portas por toda parte, e todas trancadas… O castelo é uma verdadeira prisão, e eu sou um prisioneiro!”

É nesse clima de beleza selvagem e silêncio opressivo que a presença de Drácula se faz sentir: cortês e ao mesmo tempo inquietante, distante, mas profundamente invasiva, como se cada gesto do anfitrião deixasse rastros de algo sobrenatural. A primeira noite é marcada por essa tensão inicial, que combina recepção elegante e mistério latente, preparando o terreno para o que está por vir.

Com o recolhimento, e a volta ao aposento, ele percebe o toque sutil de uma mão, o olhar que brilha com intenções indecifráveis, o mistério absoluto que se mantém mesmo sob a luz do dia — tudo isso cria uma tensão quase física no leitor, uma sensação de proximidade com algo que não deveria existir. É nesse instante que a narrativa deixa de ser apenas relato e se torna experiência: sentimos o frio da pedra do castelo, o perfume das sombras e a inquietação de Harker como se fossem nossos próprios sentidos despertando para o sobrenatural.

“Diário de Jonathan Harker

8 de maio de 1897. Castelo do Conde Drácula.

Comecei a temer, enquanto escrevia neste livro, que estivesse sendo demasiado prolixo; mas agora me alegro de ter entrado em detalhes desde o início, pois há algo tão estranho neste lugar — e em tudo o que nele habita — que não posso deixar de me sentir inquieto… Pendurei meu espelho de barbear junto à janela e estava apenas começando a me barbear, quando, de repente, senti uma mão no meu ombro e ouvi a voz do Conde dizendo: ‘Bom dia.’ Mas não havia reflexo dele no espelho! … Seus olhos brilharam com uma espécie de fúria demoníaca, e ele subitamente tentou agarrar minha garganta.”

Esse encontro, registrado por Harker, é carregado de tensão sobrenatural e simbolismo. É como se, naquele instante, a própria realidade se rompesse: o Conde Drácula, presente e invisível, tão próximo que pode tocar seu ombro — mas sem refletir no espelho, como se não pertencesse ao mundo normal. Esse gesto é uma declaração: ele não é um anfitrião comum, mas uma criatura que desafia as leis da natureza.

Quando seus olhos “brilham com uma fúria demoníaca” diante do sangue, é como se despertasse algo primal, uma sede ancestral e terrível. A mão que toca a garganta de Harker é tanto uma ameaça física quanto um convite sombrio: ao mesmo tempo, poder e perigo se entrelaçam. Há intimidade, mas também violência.

Para mim, esse momento revela o poder dual de Drácula: ele seduz, fascina, mas também domina. Não é apenas um aristocrata misterioso — é um ser cuja presença exige entrega e medo.

E para quem lê, esses fragmentos são como um espelho quebrado: não vemos tudo de uma vez, mas somos arrastados para a escuridão, justamente porque a imaginação corre solta, preenchendo cada lacuna com nossos pensamentos mais íntimos.

Esse encontro inicial entre Harker e o Conde é, para mim, o ápice da sedução gótica: é aí que o véu entre a curiosidade e o horror se rasga, e começamos a vislumbrar quem Drácula realmente é — não apenas nas palavras, mas no silêncio, na sombra e no reflexo que falta.

Pequenos indícios de prazeres proibidos, de encontros carregados de tensão e desejo, começavam a se insinuar com a leitura, como se sob a majestade das montanhas e a serenidade do luar existisse uma escuridão viva, pronta para se revelar.

Esse prenúncio se tornaria evidente em um dos momentos mais perturbadores e fascinantes do livro: a aparição das chamadas “prostitutas do demônio”, vampiras que misturam sedução e perigo em cada gesto.

O impacto desse episódio é múltiplo. Por um lado, senti o perigo físico — o toque, o olhar, os dentes afiados — e a iminência de uma violência literal. Por outro, percebi a tensão sexual quase hipnótica, que não se reduz ao horror: há um prazer perverso e proibido, que o próprio Harker sente, e que eu, enquanto leitor fui compelido a imaginar.

As representa das "moças" no cinema!

No episódio das chamadas “prostitutas do demônio”, é importante notar que não é Mina Harker quem fala diretamente, mas sim Van Helsing, que transcreve e comenta os eventos a partir de seu conhecimento e interpretação do diário de Mina.

“Diário de Mina Harker

6 de novembro 1897

Serei paciente, meu amigo. Não é um inimigo comum com quem lidamos. Ai! Ai de nós que a querida senhora Mina tenha de sofrer! Ele não é o próprio demônio, embora seja de sua linhagem; mas, oh meu Deus! que ‘demônios do Inferno’ eram aquelas criaturas que irromperam sobre nós pela garganta daquela criança? E estamos todos — como estamos, e como haveremos de estar.”

 Aqui, Van Helsing narra a aparição das três vampiras no diário de Mina, reforçando o caráter sobrenatural e aterrador das “Noivas de Drácula”, e preparando o leitor para o confronto entre fascínio e medo.

Enquanto Van Helsing nos alerta, através de sua narração do diário de Mina, para a presença demoníaca e sexualmente carregada das vampiras, Jonathan Harker experimenta esse mesmo terror em primeira pessoa. É ele quem presencia, no castelo, a aproximação dessas criaturas, sentindo a tensão e o perigo de forma quase física: o toque suave e estremecente dos lábios na garganta, a pressão firme dos dentes, os olhares hipnóticos e sussurros sedutores.

Bram Stoker constrói essas cenas com uma delicadeza cruel, mostrando que a atração e o terror caminham lado a lado, e que o prazer não está dissociado do perigo.

Jonathan Harker — 15 de maio 1897

“Eu não estava sozinho. O quarto era o mesmo, mas de algum modo diferente. Embora tivesse fechado as venezianas, o luar entrava pelas frestas, e havia luz suficiente para ver. Eu podia ver seus rostos pálidos, olhos brilhantes e duros, dentes brancos, línguas vermelhas que tocavam os lábios. Senti em meu coração um desejo perverso e ardente de que me beijassem com aqueles lábios vermelhos. Não é bom registrar isto, para que Mina não leia e sofra, mas é a verdade. Elas sussurraram entre si e depois riram uma risada prateada e musical, mas amarga. A moça loura avançou e inclinou-se sobre mim. Senti o toque suave e estremecente de seus lábios na minha garganta, e a pressão firme de seus dentes arranhando minha pele. Fechei os olhos em êxtase lânguido e esperei — esperei com o coração a bater.”

Aqui, a tensão que Van Helsing descreve ganha corpo e intensidade nos olhos de Harker. O leitor sente a mistura de fascínio, medo e desejo que permeia o encontro: a ameaça física se entrelaça com a sedução sexual, e cada gesto das vampiras revela a duplicidade de sua natureza — ao mesmo tempo bela e monstruosa. Esse momento destaca o poder de Stoker em transformar uma cena de terror em experiência sensorial: não lemos apenas os acontecimentos, quase os vivemos, sentindo a respiração gelada do castelo, o perfume do perigo e o magnetismo perverso das criaturas.

Ao mesmo tempo, essas cenas preparam o terreno para a intervenção de Drácula, que, como vimos, reivindica Harker como seu, reforçando a hierarquia perversa do harém de vampiras e a combinação de erotismo e controle absoluto que caracteriza sua presença. É nesse ponto que a narrativa se torna mais do que relato: ela nos arrasta para o mundo gótico e insólito que Stoker construiu, fazendo o sobrenatural palpitar como se fosse real diante dos nossos sentidos.

Drácula interrompe as vampiras

“A moça ajoelhou-se e inclinou-se sobre mim, quase se deleitando. Havia nela uma voluptuosidade deliberada, excitante e repulsiva, e ao arquear o pescoço chegou a lamber os lábios como um animal. Nesse instante, o Conde abriu a porta e, com uma palavra feroz, puxou-a para trás. Seus olhos faiscavam. “Como ousas tocá-lo? Este homem pertence a mim!” Depois, voltando-se para as outras, disse: “Vamos! Vamos! Serei vosso pai no devido tempo; mas ainda não. Ainda não! Vão, eu ordeno!”

Aqui, a citação não é apenas uma descrição de ação: é um instante de tensão máxima, em que o terror e o desejo se entrelaçam. O leitor sente a proximidade do perigo e, ao mesmo tempo, a estranha sedução da cena, como se estivesse espiando um mundo onde as regras humanas são subvertidas. Cada gesto do Conde, cada olhar das vampiras, cada hesitação de Harker nos coloca dentro da narrativa, fazendo-nos experimentar a mistura de medo, fascínio e perversidade que Stoker domina com precisão quase ritualística.

Apesar de muitas outras cenas se seguirem no romance, não me detenho nelas aqui. A intenção é apenas dar um vislumbre do poder de Stoker em criar experiências que nos fazem imaginar — quase sentir — cada toque, cada olhar, cada sombra. É nesse entrelaçar de horror e sedução, de controle e prazer, que a narrativa alcança seu efeito mais profundo: não apenas nos contar uma história, mas nos fazer viver a intensidade do gótico que transcende o papel impresso.

O Monte Cárpatos e o Bolo que Eleva Seu Nome

Após explorar a narrativa epistolar de Bram Stoker em Drácula e as descrições vívidas dos Cárpatos nas anotações de Jonathan Harker, percebo como a literatura gótica se alimenta de geografia e folclore. Não é por acaso que Stoker escolheu os Cárpatos como cenário do castelo do Conde — uma região de montanhas imponentes, florestas densas e mitos antigos, perfeita para o sobrenatural.

A ligação entre o mundo literário e o mundo real dos Cárpatos pode ser observada também em aspectos culturais inesperados, como a gastronomia: é aqui que a cordilheira empresta seu nome a um famoso bolo/torta polonês, mostrando como paisagens e tradições se entrelaçam com a imaginação humana.

As montanhas dos Cárpatos formam uma cordilheira de aproximadamente 1.500 quilômetros na Europa Central e Leste Europeu, estendendo-se em arco do oeste ao leste, da República Tcheca à Romênia. Entre elas, destacam-se os Tatras, na fronteira da Eslováquia com a Polônia, um parque nacional com vários picos acima de 2.400 metros. Mais da metade da cordilheira fica na Romênia, coberta por densas florestas de píceas, lar de ursos-pardos, lobos e linces.

Historicamente, essas montanhas carregam também uma rica mitologia. Na Transilvânia e arredores, histórias sobre vampiros, espíritos e seres sobrenaturais eram transmitidas de geração em geração. Lendas sobre bruxas, guardiões das montanhas e criaturas noturnas permeavam o imaginário popular. Stoker, ao situar o castelo de Drácula nesse cenário, aproveitou essas tradições para criar uma atmosfera que combina o exótico, o misterioso e o assustador.

Essa mesma fusão entre realidade e fantasia se reflete até em elementos aparentemente mundanos: o relevo das montanhas inspirou não apenas descrições literárias, mas também associações culturais, como o bolo que leva o nome dos Cárpatos. É uma lembrança de que o imaginário humano — literário, geográfico e até gastronômico — está profundamente interligado, e que, muitas vezes, o sobrenatural se esconde nas pequenas conexões entre mundo e narrativa.

A Transilvânia ergue-se como um coração selvagem encravado nos Cárpatos, onde a névoa se enrosca nos picos e desce pelas florestas densas, envolvendo vilarejos esquecidos pelo tempo. Cada vale estreito guarda o sussurro de séculos, e cada castelo de pedra parece observar, silencioso, a passagem das gerações. É nesta terra que a realidade se dobra sobre a lenda: onde a história de Vald, o Empalador, se mistura ao imaginário coletivo, e onde as sombras de Drácula, figura literária que nasceu da alma da região, caminham lado a lado com o vento que sopra das montanhas.

Vlad III da Valáquia, conhecido como o Empalador, não foi apenas um príncipe de ferro; sua presença era capaz de inspirar temor e respeito, transformando a crueldade em lenda viva. Suas campanhas contra invasores otomanos, marcadas por punições horrendas, deixaram memórias gravadas nas pedras e nos relatos dos aldeões. Com o tempo, a figura de Vlad se fundiu ao mito do vampiro, criando uma aura de terror e fascínio que atravessou fronteiras e desembocou nas páginas de Bram Stoker, alimentando a imaginação coletiva do Ocidente.

Vlad III, O Empalador, o Drácula da vida real.

Mas a Transilvânia vai além da história e da literatura: é folclore pulsante. Nas florestas sombrias, contam que espíritos da noite percorrem trilhas invisíveis; que bruxas dançam sob a luz da lua cheia; que lobos e corvos atuam como mensageiros entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Lendas de strigoi — almas inquietas que retornam para assombrar os vivos — povoam casas e capelas de pedra, enquanto amuletos e rituais de proteção sobrevivem de geração em geração, como se cada aldeia guardasse um segredo antigo e perigoso.

A Transilvânia é, portanto, um território de tensão e sedução, onde a beleza agreste da natureza convive com uma sombra permanente de mistério. Cada torre, cada muralha de castelo, cada cemitério abandonado carrega ecos de histórias que desafiam a razão e convidam à imaginação. Caminhar por essas terras é percorrer uma ponte entre o real e o fantástico, entre o concreto das montanhas e o etéreo das lendas. É nesse cenário gótico e indomável que Drácula se solidifica como mito — um lugar onde o sobrenatural parece tangível, quase capaz de tocar a pele de quem ousa explorá-lo.

E assim, entre as florestas densas, os cumes nevados dos Cárpatos e a memória de um príncipe que impunha sua justiça com mão de ferro, a Transilvânia se revela não apenas como território, mas como experiência sensorial e emocional: medo e fascínio entrelaçados, beleza e crueldade coexistindo numa dança atemporal, enquanto o visitante percebe o chamado silencioso das sombras, murmurando histórias antigas… e sente, de maneira surpreendente, o eco dessas montanhas traduzido no Karpatka, o bolo que transforma picos nevados em doçura palpável.

Ao atravessar os Cárpatos poloneses, percebe-se a continuidade de um território mítico que, embora distante das fortalezas da Transilvânia, compartilha a mesma aura de mistério e reverência pela natureza indomável. A Polônia se insere nos Cárpatos como um contraponto gelado e encantador, onde o clima rigoroso e as neves eternas moldam picos que inspiram tanto contemplação quanto imaginação.

É nesse cenário que a cultura polonesa encontrou nos relevos da cordilheira inspiração para transformá-los em arte comestível. A massa ondulada do Karpatka, com suas camadas de creme e plissados que recriam as silhuetas irregulares dos picos, leva à mesa a sensação de caminhar pelos cumes nevados: cada fatia é um convite para tocar, ver e saborear as montanhas, unindo memória, geografia e prazer.

Os Cárpatos poloneses, assim, deixam de ser apenas montanhas: tornam-se território de experiências, de histórias sussurradas e de mitos vivos, onde se sente a magnitude da natureza e a magia das alturas. Nesse espaço, as lendas da Transilvânia, o frio da neblina e os ecos dos contos de vampiros encontram um diálogo inesperado com a rusticidade e a doçura do Karpatka, permitindo que o leitor-saboreador viva, em cada mordida, o encontro entre geografia, mito e gastronomia.

KARPATKA: O BOLO/TORTA QUE TRANSFORMOU AS MONTANHAS EM DOÇURA

O Karpatka (pronuncia-se car-pat-kah) é muito mais que um bolo polonês popular; é uma experiência sensorial que leva à mesa a majestade e a rusticidade dos Cárpatos. Composto por duas camadas de massa choux — a mesma delicada massa usada em éclairs e bombas de creme — e recheado com creme mousseline, o Karpatka conquista tanto o olhar quanto o paladar. A superfície irregular, polvilhada com açúcar de confeiteiro, evoca perfeitamente os cumes nevados das montanhas, tornando cada fatia uma reprodução comestível da paisagem.

Mais do que uma simples sobremesa, o Karpatka transforma o rústico em sublime. Ele nasceu inspirado na Kremówka, o clássico “Bolo de Creme Papal” (Kremówka Papieska), originária de Wadowice, na Polônia, que conquistou o jovem Karol Wojtyła — futuro Papa João Paulo II. Conta-se que, após os exames escolares, ele devorava dezenas de fatias com os amigos, experimentando o prazer da sobremesa sem qualquer vestígio de arrependimento.

A Kremówka, originária de Wadowice, já era apreciada pelo jovem Karol Wojtyła no início do século XX, décadas antes de surgir o Karpatka, que só foi desenvolvido como versão robusta do doce nos anos posteriores, inspirando-se tanto na tradição da Kremówka quanto na aparência irregular das montanhas dos Cárpatos.


A Kremówka, feita com delicadas camadas de massa folhada intercaladas por creme de confeiteiro e polvilhada com açúcar, carrega consigo a memória da juventude do Papa e a tradição de uma cidade que respira história a cada fatia. Décadas mais tarde, inspirados por essa herança e pelas montanhas que atravessam a Polônia, confeiteiros criaram o Karpatka: uma versão robusta, feita de massa choux ondulada e creme generoso, cuja superfície irregular lembra os picos nevados dos Cárpatos.

Enquanto a Kremówka evoca doçura, nostalgia e simplicidade, o Karpatka propõe uma experiência tátil e gustativa distinta — firmeza e cremosidade combinam-se como encostas irregulares e vales nevados, transformando cada mordida em uma travessia sensorial. Assim, a tradição se reinventa, mantendo viva a conexão entre memória, território e sabor, unindo a história de Wadowice ao imaginário das montanhas polonesas.

O Karpatka pode ser assado em formato retangular, cortado em quadrados perfeitos, ou em formato redondo, em fatias que convidam a dividir o prazer. Mais do que sabor, oferece uma experiência emocional: cada camada de creme, cada ondulação da massa, cada nuvem de açúcar de confeiteiro transporta quem degusta para o território das montanhas, para o diálogo entre natureza e cultura, mito e cotidiano, frio das alturas e calor da doçura.


O Karpatka, assim, não é apenas um bolo: é geografia, história e poesia comestível, uma ponte que transforma o imaginário em sabor, e as montanhas, em experiência viva e palpável.

Há rumores de que a forma atual do Karpatka tenha surgido por acidente, quando um confeiteiro uniu inadvertidamente várias folhas de massa folhada. Para corrigir o problema, cortou a massa ao meio e recheou com creme. Ao polvilhar açúcar de confeiteiro sobre o topo, o resultado evocava imediatamente as colinas nevadas dos Cárpatos, transformando um erro em uma assinatura visual e sensorial que permanece até hoje.

Segundo livros didáticos de gastronomia, o Karpatka pertence à família dos ciasta parzone (ptysiowe), massas cozidas que formam a base de muitos doces tradicionais poloneses: Konarzewska, M. Technologia gastronomiczna z towaroznawstwem: podręcznik do nauki zawodu kucharz w technikum i szkole policealnej. T. 2. Warszawa: Wydawnictwa Szkolne i Pedagogiczne, 2011, p. 116; e, Flis, K.; Procner, A. Technologia gastronomiczna z towaroznawstwem: podręcznik dla technikum. Część 2. Warszawa: Wyd. XVIII.

O primeiro produto pré-fabricado que facilitou a produção doméstica do Karpatka surgiu em 1986 pela Kujawskie Zakłady Koncentratów Spożywcze w Włocławek, atualmente conhecida como Delecta SA. Em 1995, mesmo ano em que a internet se abriu ao público no Brasil, a marca Karpatka foi registrada oficialmente no Escritório de Patentes da Polônia. Um produto similar lançado em 1996 pela Dr. Oetker deu origem a uma disputa judicial que se estendeu por 12 anos, sendo finalmente resolvida em 2011 a favor da Delecta SA.

Como o Bolo Karpatka é Preparado

Para quem já tentou fazer massa choux em casa, sabe que a técnica exige atenção. O segredo está em preparar corretamente a massa e garantir a consistência ideal, para que o resultado seja leve, aerado e firme. O recheio é um creme mousseline, feito com creme de confeiteiro misturado à manteiga batida, garantindo maciez e cremosidade.

             De repente, esse bolo pode ser uma das suas sobremesas pro Natal!

A Karpatka tradicionalmente tem duas camadas de massa choux, sendo a inferior coberta com geleia e recheio, e a superior colocada por cima, polvilhada com açúcar de confeiteiro. Conforme as referências gastronômicas, a camada inferior poderia ser massa quebrada, e a superior, massa choux, mas a versão mais popular utiliza massa choux em ambas as camadas.

O nome Karpatka reflete diretamente a aparência: o relevo ondulado da massa choux polvilhada de açúcar lembra os picos nevados dos Montes Cárpatos — Karpaty em polonês. Dizem, que primeira menção do nome "karpatka" encontra-se em um livro didático de 1972, publicado por estudantes de filologia polonesa, onde a palavra designava biscoitos, mas não encontrei vestígios reais nem fonte confiáveis sobre isso.

A popularidade da sobremesa se consolidou entre as décadas de 1970 e 1980, e hoje existem misturas prontas para prepará-la em toda a Polônia. Tradicionalmente, uma fatia generosa é servida com café ou chá.

CONCLUSÃO – ENTRE SOMBRAS, MONTANHAS E DOCE MISTÉRIO

Desde os primeiros momentos em que cartas cruzavam continentes, transportando segredos e desejos, até a explosão silenciosa da internet, capaz de atravessar fronteiras com um clique, o mundo parece sempre buscar maneiras de entrelaçar histórias, culturas e sabores. Cada linha escrita, cada página lida, cada gesto de memória tornou-se um fio invisível que me conecta ao passado distante das cordilheiras e às lembranças que elas carregam. É nesse fio delicado que os Cárpatos surgem, não apenas como montanhas, mas como guardiões de mistérios, testemunhas de lendas e palcos silenciosos de narrativas que desafiam o tempo.

Ao folhear as páginas impressas de Drácula, senti a sombra do Conde pairando sobre vales nevados, ouvi o eco de passos nas florestas densas, o sussurro de ventos que carregam mitos antigos. Entre essas lendas, cada pico, cada vale e cada floresta se tornam quase vivos: lar de lobos, linces e ursos-pardos, palco de assombrações e encantamentos, onde o sobrenatural se insinua na vida cotidiana. As histórias se entrelaçam com o ritmo das aldeias, onde tradições folclóricas preservam pedaços da alma das montanhas e do imaginário coletivo.

E, surpreendentemente, é nesse mesmo território que a memória se transforma em sabor: o Karpatka, com sua massa ondulada e creme generoso, traduz as encostas nevadas em experiência sensorial, permitindo que o visitante-saboreador toque, ainda que brevemente, a essência das cordilheiras. Assim, os Cárpatos não são apenas geografia; são território de memórias, de resistência, de sonhos e de sabores que atravessam gerações, unindo o mito à vida cotidiana, a sombra à doçura, o passado ao presente, em uma dança silenciosa entre realidade e imaginação.

E, como se a própria geografia quisesse se traduzir em doçura, surge a Karpatka. Não é apenas um bolo: é território em forma de sobremesa, memória em cada camada de massa choux ondulada, irregular, que imita os picos nevados e os vales profundos dos Cárpatos. O creme mousseline que se esconde entre as ondulações é como a neblina que envolve os cumes — suave, inesperada, impossível de ignorar. Ao provar a Karpatka, sentimos não apenas açúcar e creme, mas o frio da montanha, o silêncio das florestas e a rusticidade transformada em arte pela tradição polonesa. Cada mordida é um pequeno portal que nos leva a caminhar pelas encostas geladas, ouvir o vento entre árvores antigas e imaginar os mistérios guardados pelas alturas.

Assim como os contos góticos atravessam séculos, a Karpatka carrega sua própria história de lendas e acasos criativos. Um confeiteiro distraído, reorganizando massas folhadas, deu origem a uma sobremesa que, sem querer, recriava em açúcar e creme a grandiosidade dos picos. Décadas depois, estudantes de filologia registrariam seu nome, “karpatka”, e a marca se tornaria célebre, atravessando disputas judiciais e fronteiras, mostrando que mesmo a doçura pode ser palco de drama humano.

Cartas, livros, internet, lendas e bolo convergem em uma linha invisível que une imaginação, memória, sabor e história. Não se trata apenas de comer: é sentir os Cárpatos em cada fatia, tocar a neblina, ouvir os ventos antigos e experimentar o mistério que percorre cada curva da massa e cada nuvem de creme. A Karpatka é convite para atravessar o desconhecido, para transformar a sobremesa em experiência, a memória em presença, o simples ato de provar em ritual.

E, como toda história que preserva sua aura de mistério, a promessa permanece: a viagem não termina aqui. Os Cárpatos esperam, escondidos entre camadas de massa e creme, prontos para serem explorados em sua própria cozinha. Prepare-se para sentir o frio da neve, o silêncio das florestas e o encanto das lendas — tudo em uma única mordida. Os mistérios das montanhas, as sombras dos contos góticos e a doçura que atravessou séculos e continentes estão prestes a se revelar… à sua mesa.

KARPATKA

Para a massa choux (suficiente para 2 camadas):

1 xícara (250 ml) de leite

1 tablete (113 g) de manteiga

1 xícara (150 g) de farinha de trigo

5 ovos (médios)

Para o creme do recheio:

3 xícaras (750 ml) de leite

10 colheres de sopa (130 g) de açúcar refinado

1 colher de sopa (1 sachê, 16 g) de açúcar de baunilha, pode substituir por 1 fava de baunilha (sementes) ou 3 colheres de chá de extrato de baunilha

1 ovo

4 gemas

4 colheres de sopa (40 g) de fécula de batata

2 a 2,5 colheres de sopa (20 g) de farinha de trigo

350 g de manteiga, em temperatura ambiente (não pode ser margarina)

2 colheres de sopa (25 g) de açúcar refinado

Para polvilhar: Açúcar de confeiteiro

Preparo: Para a massa choux – Coloque o leite e a manteiga em uma panela. Aqueça em fogo médio-baixo, deixando a manteiga derreter no leite. Leve a mistura para ferver. Adicione 1 xícara de farinha e reduza o fogo. Mexa com um batedor de arame por alguns instantes até formar uma massa espessa e homogênea. Ela deve se soltar das laterais da panela com relativa facilidade. Retire do fogo e deixe esfriar. Depois de completamente fria, incorpore os ovos, um a um, misturando bem após cada adição. A massa deve ficar lisa, um pouco pegajosa e sem grumos. Divida a massa em duas partes. Use uma forma retangular grande (idealmente 23 x 33cm, mas pode preparar numa forma redonda média). Unte-a generosamente com manteiga e polvilhe com farinha. Coloque uma das partes da massa na forma e alise a superfície com uma faca de manteiga ou espátula. Se a massa estiver pegajosa, não se preocupe, isso é normal. Asse a 200 °C por 25 a 30 minutos, ou até que o bolo fique levemente dourado. Não abra o forno enquanto assa! Retire para esfriar numa gradinha e repita com outra porção da massa. Deixe esfriar completamente. Prepare o Creme – coloque para ferver, duas xícaras de leite (meio litro) com açúcar refinado e a baunilha que você vai usar. Numa tigela grande misture muito bem, a xícara restante de leite frio (250 ml) e adicione um ovo, 4 gemas, fécula de batata e farinha de trigo bem, se preferir passe por uma peneira para garantir que não ficou resíduos. Depois, acrescente o leite fervente aos poucos nessa mistura método conteúdo pra panela e continue mexendo até engrossar, depois que ferver, cozinhe bem por uns 5 minutos, mexendo sempre, até formar um creme homogêneo. Quando estiver satisfeito com a textura, retire do fogo. Cubra com filme plástico e deixe esfriar completamente. Na tigela da batedeira, coloque as 350 g de manteiga e duas colheres de sopa de açúcar refinado na tigela da batedeira. Bata até formar uma massa de manteiga leve e fofa (você pode fazer tudo na mão, mas vai demorar um pouco mais). Aos poucos, comece a adicionar o creme, algumas colheradas de cada vez, batendo continuamente. Depois de todo o creme misturado como a mistura de manteiga estiver bem incorporado, estará pronto. Montagem: Coloque uma camada de massa choux assada em um prato de servir para rechear com o creme e depois cobrir com a outra massa e levar para gelar por pelo menos duas horas. Ou, como alternativa, você pode forrar a mesma forma que assou o bolo com filme plástico, colocar a primeira camada de massa, rechear cobrir com outra camada de massa e levar para a geladeira por pelo menos duas pro recheio firmar, e só na hora de servir você desenforma, retira o filme plástico e coloca no prato de servir. E só então, polvilhe generosamente com açúcar de confeiteiro. Corte em porções com uma faca bem afiada.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

O PÃO DE SÃO MARTINHO: O 11 DE OUTONO COM HISTÓRIAS QUE AQUECEM

 

Ontem, véspera do dia de São Martinho, compartilhei aqui a receita de um bolo sueco em homenagem ao santo (se perdeu, veja AQUI. Mais do que um simples doce, ele é um gesto que atravessa fronteiras e séculos — um modo de lembrar que a cultura também se assenta à mesa, com suas histórias silenciosas e seus símbolos de partilha. Há algo de profundamente humano nesse gesto antigo: medir o açúcar, acender o forno, esperar que o calor transforme a massa em lembrança. O aroma que se espalha pela casa não é apenas o de um bolo — é o perfume do tempo em repouso, a tradução doce daquilo que não sabemos dizer. Cozinhar é, talvez, a forma mais silenciosa de oração: um diálogo entre o corpo e o passado, entre o desejo e a memória.

Um bolo, afinal, nunca é só alimento. É uma pequena tentativa de deter o instante — de provar, com o sabor e o calor, que ainda existe ternura no mundo, mesmo quando lá fora as estações se confundem e a vida nos sopra com seus ventos frios.

Tentei, assim, oferecer não apenas uma receita, mas um convite: que cada leitor e leitora permitisse que a doçura aquecesse também sua própria mesa, reacendendo lembranças e sabores que sobrevivem ao passar das estações.

Agora, com o fim do ano se aproximando, o outono no Norte Global se faz sentir como um suspiro antigo — o frio se instala com mãos invisíveis, delicadas e impiedosas ao mesmo tempo. Ele acaricia e fere os campos, pinta de cinza as manhãs e deixa o ar saturado de uma beleza melancólica, quase espiritual. É uma época em que o tempo parece caminhar mais lentamente, como se o mundo se recolhesse para ouvir o próprio coração.

E para ver como é irônico o destino — nesses giros lentos e precisos com que a Terra desenha as estações —, aqui, nestes lados do Sul Global, o Brasil floresce em plena primavera. Mas somos um país de dimensões continentais, e até as estações se confundem, como se o tempo, ao atravessar nossas fronteiras, perdesse a rigidez e se tornasse sonho, miragem ou febre.

Ontem mesmo, enquanto o Norte do mundo se recolhia sob o outono, parte do Sul brasileiro experimentava a fúria da natureza — uma fúria tão intensa que se aproximava do sagrado. Três tornados devastadores rasgaram o céu e a terra brasileira, levando consigo não apenas o que era visível, mas também aquilo que se constrói em silêncio: a esperança, o trabalho, o repouso das pequenas vidas.

Uma das cidades mais atingidas foi Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná. O tornado, classificado como F3 na escala Fujita, varreu mais de oitenta por cento da área urbana, deixando atrás de si um rastro de ruínas, seis mortos e uma comunidade mergulhada no espanto.

Tudo o que parecia sólido — casas, árvores, caminhos — foi arrancado em minutos, como se o próprio céu tivesse decidido lembrar-nos da sua antiga linguagem, aquela que fala em ventos e trovões. Resta-nos o silêncio depois da tormenta, e essa certeza desconcertante de que a natureza, em sua grandeza e desatino, ainda é a narradora mais eloquente das nossas fragilidades.

E, ainda assim, há uma espécie de harmonia sombria nisso tudo: como se o mundo, em sua coreografia de luz e sombra, lembrasse a cada um de nós que nenhuma estação é estática, que a serenidade e a destruição são irmãs que dançam juntas desde o princípio dos tempos. Entre o doce e o devastado, entre o lar e a tormenta, seguimos procurando o sentido — talvez no sabor morno de um bolo, talvez apenas na capacidade humana de continuar acendendo o forno, mesmo quando lá fora o vento parece querer apagar todas as chamas.

Ontem, o bolo sueco trouxe calor e doçura — o consolo morno que só a casa conhece, o perfume que se espalha como lembrança e se entranha nas horas. Mas hoje, neste dia de São Martinho, é o pão que nos chama.

Não um pão qualquer, mas o Pão de São Martinho: redondo, antigo, carregado de símbolos, onde o trigo se mistura à lenda e o fermento parece guardar algo da respiração do próprio santo.

Cada fatia é uma oferenda — um pequeno sacramento de partilha, memória e permanência. No pão repousam ecos de antigas histórias murmuradas à beira do fogo, quando o frio pedia abrigo e a palavra ainda era consolo. Há lembranças de gentileza, gestos que atravessam os séculos e se tornam milagre pela simples coragem de existir.

E há, sobretudo, uma magia discreta — dessas que não resplandecem, mas sustentam. A alquimia silenciosa entre a fé e a fome, entre o corpo que implora por alimento e a alma que, sem saber, busca redenção. Em cada migalha há uma promessa: a de que o humano persiste, mesmo quando o mundo parece desabar — e que o pão, humilde e morno, é ainda a forma mais antiga de esperança.

Mas antes de conhecer o pão e compreender o mistério que o habita, é preciso conhecer o homem — aquele que o tempo, em sua lenta e reverente alquimia, consagrou santo. Porque antes do milagre veio a compaixão; antes da lenda, um gesto humano — simples, ardente e desarmado.

Sua história, feita de coragem e ternura, atravessa os séculos como uma chama que se recusa a apagar. E ainda hoje, se ouvirmos com atenção, é possível perceber sua voz — não um clamor, mas um sussurro — lembrando-nos de que toda santidade começa no gesto anônimo de cuidar do outro. 

SÃO MARTINHO DE TOURS: LUZ E GENEROSIDADE NO OUTONO DA VIDA

                             Representação de São Martinho de Tours

Martinho de Tours — em latim, Martinus Turonensis — nasceu em 316 d.C., na cidade de Sabária (Savaria), na província romana da Panônia, hoje Szombathely, na Hungria moderna. Filho de um centurião, cresceu entre o rigor da disciplina militar e o pulsar delicado de uma fé ainda jovem, tímida e muitas vezes perseguida. A família em que nasceu não era cristã; sua educação seguia os caminhos da religião de seus antepassados, a fé politeísta romana, com seus deuses mitológicos, rituais e templos que perfumavam o ar com incenso e devoção.

Mas a curiosidade infantil de Martinho o conduziu a lugares diferentes. Ainda menino, começou a frequentar uma igreja cristã, onde era introduzido aos mistérios da doutrina, mesmo sem ter recebido o batismo. Aos dez anos (326 d.C.), entrou para o grupo dos catecúmenos — aqueles que se preparam para a imersão na fé — e ali sua alma começou a despertar para uma fé que pulsava como um segredo guardado no coração. Foi nesse ponto que Martinho começou a sentir os primeiros chamados silenciosos de compaixão e luz, ainda criança, mas já com a força de um espírito que buscava algo além do mundo visível.

Desde cedo, a tensão entre espada e oração moldou seu espírito: de um lado, aprendia os ofícios do império, a hierarquia da guerra, o frio da ordem; do outro, sentia o chamado silencioso de um mundo mais compassivo, mais humano, onde a ternura podia florescer em pequenos gestos.

A vida de Martinho se desenrolava como um duelo contínuo entre luz e sombra — o frio das campanhas militares e o calor da fé, a brutalidade da espada e a suavidade de um gesto generoso. Ainda jovem, converteu-se ao cristianismo na antiga Gália, a vasta província romana que corresponde, hoje, à França moderna, um ato que exigia coragem quase heroica, pois abraçar a fé ainda era desafiar os poderes do mundo.



Sua ação missionária e pedagógica, em conjunto com outros homens e mulheres de fé, foi decisiva para a cristianização da Gália — tanto que lhe surgiu o título de “Apóstolo da Gália” ou “Pai das Gálias”. Mas sua influência não se limitou a esta província: espalhou-se por outras regiões ocidentais do Império, plantando sementes de cultura, caridade e espiritualidade que sobreviveriam à própria queda do Império Romano do Ocidente, em 476.

Martinho ajudou a fundar as bases do monaquismo na Europa Ocidental, e seu exemplo de vida — corajoso, compassivo e disciplinado — inspirou reverência ainda em vida. Para aqueles que não sabem do que falo, o monaquismo é, antes de tudo, uma busca de silêncio e intensidade interior. Surgido nos primeiros séculos do cristianismo, é a vida de homens e mulheres que decidem afastar-se do ruído do mundo para se entregar a uma disciplina espiritual profunda, vivendo em mosteiros ou em solidão, dedicando cada gesto, cada palavra e cada silêncio à oração, à meditação e à caridade.

Não se trata apenas de renunciar aos bens materiais ou às distrações do cotidiano; trata-se de ouvir o tempo e o sopro da própria alma, de transformar o simples ato de levantar, cozinhar ou caminhar em um ritual de presença e contemplação. Cada pedra de um mosteiro, cada caminho pelo jardim, cada manto usado com modéstia, se torna testemunha de uma vida dedicada à espiritualidade e à disciplina.

No coração do monaquismo está a ideia de que o espírito se fortalece no isolamento e na repetição, mas também na comunhão com os outros, na oração compartilhada e nos pequenos gestos de caridade. É uma vida que busca equilibrar o silêncio com o serviço, a solidão com a humanidade, a renúncia com a compaixão.

Martinho de Tours foi um dos pioneiros desse modo de vida na Europa Ocidental, mostrando que o monaquismo não é apenas retiro, mas um caminho de grandeza interior, generosidade e memória duradoura. Cada gesto, cada ato de cuidado ou ensino, deixava um eco duradouro, um legado que moldaria a formação da civilização cristã europeia, lembrando-nos de que a verdadeira grandeza não se mede em conquistas militares, mas na generosidade do espírito humano.

Ao atingir a adolescência, aos quinze anos (331 d.C.), Martinho foi alistado pelo pai na cavalaria do exército imperial — uma tentativa de mantê-lo próximo e, talvez, afastá-lo da Igreja nascente. Mas a intenção paterna revelou-se inútil: o jovem Martinho continuava fiel aos ensinamentos cristãos, especialmente à prática da caridade, como se sua alma tivesse feito um pacto silencioso com a compaixão, intocado pela disciplina militar.

Na Gália, a vasta província romana que hoje conhecemos como França, Martinho serviu como soldado, percorrendo caminhos frios e cidades ruidosas, mas nunca abandonando a luz que o cristianismo acendera dentro dele. Foi nesse período que se desenrolou o episódio que atravessaria os séculos: o repartir do manto.

Conta-se que, por volta de 337, aos 21 anos, próximo da cidade de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens, capital da Picardia), aconteceu o milagre da capa, que logo mais apresentarei em detalhes para vocês.

Durante as décadas seguintes, Martinho dedicou-se a cultivar a fé, a caridade e o monaquismo, ensinando, ajudando os pobres e vivendo entre mosteiros e comunidades cristãs, mesmo enquanto a Europa ainda fervilhava com crenças antigas. Cada dia parecia forjar seu espírito, equilibrando o rigor da disciplina e a suavidade da compaixão, preparando-o para o papel que o destino lhe reservava.

Em 371, já reconhecido por sua sabedoria e generosidade, Martinho tornou-se bispo de Tours, em um período em que a Europa fervilhava com crenças antigas e a cristandade tentava consolidar-se em meio a ritos pagãos. Sob sua liderança, construiu igrejas, fundou mosteiros e, sobretudo, tornou-se um farol de caridade e humildade. Diz-se que suas mãos curavam os doentes, que suas palavras consolavam os aflitos, mas que era na partilha do pão e no acolhimento dos pobres que residia sua maior magia. Cada gesto seu parecia carregar o eco das antigas tradições celtas, em que a solidariedade era ritual sagrado e o calor do fogo, da capa ou do pão, representava a luta contra o inverno implacável da alma e da natureza.

E, ainda hoje, a trajetória de Martinho nos chama. Não apenas como santo ou cavaleiro, mas como lembrança viva de que coragem e compaixão são inseparáveis. Ele cavalga por nossas memórias, por nossas mesas de outono, pelo aroma do pão quente que nos convida a continuar seu legado — a partilhar calor, a dividir vida, a transformar o gesto mais simples em eternidade.

O MILAGRE DA CAPA: QUANDO A GENEROSIDADE TRANSFORMOU O OUTONO NUM PEQUENO VERÃO

Saint Martin Dividing his Cloak, by Anthony van Dyck (1618)

São Martinho de Tours, cavaleiro de capa rubra, gesto generoso e olhar que atravessa séculos, ainda cavalga pelas nossas imaginações como uma sombra calorosa contra o frio do outono. A capa vermelha não era mero adorno — era o manto do soldado romano, tecido espesso contra os ventos da campanha, estampado com o rigor da ordem militar, o peso da disciplina e a luz dos estandartes. Martinho vestia esse manto porque, como filho de um tribuno, foi alistado na cavalaria imperial aos quinze anos, enviado a servir nas alas blindadas da Gália.

Ele chegava à estrada próxima de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens, na França, antiga Gália) montado no seu cavalo, a crina solta e os cascos ecoando sobre a pedra fria. A névoa envolvia os portões da cidade como um véu pesado, e as folhas despencavam em suspiros amarelos e ocre, anunciando o inverno que se aproximava com mãos de gelo.

A presença do jovem cavaleiro ali não parecia fora do lugar — a Gália romana estava pontilhada de limitanei, tropas de fronteira que patrulhavam as estradas; estandartes e símbolos da autoridade imperial, os signa militaria, ondulavam ao vento, lembrando a todos da ordem do império; e as unidades montadas, os equites, moviam-se com a disciplina silenciosa de quem garantia a paz e mantinha a tessitura da vida urbana intacta.

Martinho, cavaleiro de capa rubra, trajava o paludamentum, manto militar geralmente preso por um broche no ombro, que balançava suavemente ao ritmo dos cascos do cavalo. O vermelho não era apenas cor, mas símbolo: coragem, força e prontidão para o combate, um sinal de distinção que destacava o oficial no campo de batalha. Ao mesmo tempo, o tecido tinha uma função prática — disfarçava o sangue, lembrança silenciosa da fragilidade da vida que se desenrolava entre guerras e fronteiras.

Ainda assim, Martinho se movia com uma naturalidade rara: jovem cavaleiro, membro da cavalaria, detentor de disciplina e autoridade, carregava no peito a semente da compaixão. Sob aquele manto de poder, pulsava um coração capaz de aquecer o frio do outono e estender calor humano mesmo aos que nada tinham. A capa vermelha, que marcava sua posição no mundo, tornava-se ao mesmo tempo instrumento de bondade, promessa silenciosa de misericórdia que iria atravessar séculos.

Martinho usava a capa não por vaidade, mas por dever; nele estavam os símbolos da autoridade, da proteção e da tradição militar. Aquele tecido vermelho era arma silenciosa contra o frio, armadura contra o desespero, identidade que o império havia lhe conferido. E, no entanto, dentro dele, no íntimo de seu coração, vibrava uma outra veste — a da compaixão, a da partilha, a da fé emergente que recusava calar-se.

Preciso dizer que aprendi um pouco de latim, não por vaidade, mas para ouvir os ecos das palavras antigas, para compreender textos que atravessaram séculos, testemunhos de mundos que já não existem. Na minha época de estudos mitológicos, cada frase em latim era uma porta que se abria para os deuses, para os homens e para os gestos que moldaram a história. E, pro conat disso, resolvi incluir estas palavras de Sulpicius Severus não apenas como registro histórico, mas como encantamento: recitá-las é tocar o passado, perceber o presente e, talvez, semear uma centelha que alcançará o futuro. O gesto de Martinho, congelado na memória das palavras, continua a aquecer corações, lembrando-nos da compaixão e da generosidade que atravessam eras.

«Quodam itaque tempore, cum iam nihil praeter arma et simplicem militiae vestem haberet, media hieme, quae solito asperior inhorruerat, adeo ut plerosque vis algoris exstinxeret, obvium habet inporta Ambianensiumcivitatis pauperem nudum: qui cum praetereuntes ut sui misererentur oraret omnesque miserum praeterirent, intellexit vir Deoplenus sibi illum, aliis misericordiam non praestantibus, reservari. Arrepto itaque ferro, quo accinctus erat, mediam dividit partemque eius pauperi tribuit, reliqua rursus induitur.» Fonte: SEVERUS, Sulpicius. Vita sancti Martini. In: HALM, Karl (ed.). SulpiciiSeveri libri qui supersunt. Wien: CSEL1, 1866. 

“Num certo tempo, portanto, quando já não possuía nada além das armas e das vestes simples da milícia, no meio do inverno, que mais severo que o habitual se tornara, de modo que a força do frio extinguira a maioria, encontrou à porta da cidade dos Ambianos um pobre nu. E, quando os que passavam por ele não cessavam de rogar que se compadecessem dele e todos continuavam a passar adiante, aquele homem cheio de Deus compreendeu que aquele homem, por quem outros não demonstravam misericórdia, era guardado para si. … E então, tendo agarrado a espada com que estava cingido, dividiu ao meio aquela capa, e a parte dela concedeu ao pobre, e a outra voltou a vestir.” 

Essas palavras em latim não são meramente história: são um portal, uma introdução, um sussurro que atravessa os séculos. Elas nos preparam para o instante que se desdobra à nossa frente, para o gesto que Martinho realizou naquela manhã fria, à porta de Amiens.

O latim, com sua cadência ancestral, carrega o peso e a solenidade do passado, como se cada termo trouxesse consigo o sopro do vento gelado, o relincho do cavalo e o calor da compaixão prestes a se revelar. Agora, adentro o coração da narrativa, aquele instante que, ao longo dos séculos, continua a nos tocar e a aquecer nossas almas.

Numa manhã em que o vento parecia arrancar da terra cada gota de calor, Martinho viu o mendigo: carne e ossos, tremendo à porta de Amiens (na Gália), quase dissolvendo-se no ar gelado. A cidade bloqueava-se na rotina e passava, mas Martinho parou. Desmontou, a espada reluzindo um instante contra o céu encoberto. A lâmina cortou a capa ao meio. Ele envolveu o pobre homem não apenas com lã, mas com dignidade e ternura. Uma metade da capa compartilhada — um gesto que rasga o tecido e abre o coração, dividindo calor, esperança e humanidade. A outra metade permaneceu com Martinho, como lembrete de que a verdadeira generosidade não anula o próprio ser, mas o expande, tornando o mundo inteiro um pouco mais quente.

Naquele instante, a capa rubra deixou de ser símbolo de poder para se tornar sinal de misericórdia. O frio recuou, o sol se fez presente e o outono hesitou. Martinho mostrou-nos que nem todo cavaleiro monta por glória — alguns montam para ousar a ternura, para resgatar o calor humano, para vestir o invisível.

E então, como se o universo tivesse guardado seu olhar para esse gesto de bondade, algo extraordinário aconteceu: a neblina recuou, os ventos cessaram, e a chuva deu lugar a um sol tímido, dourado como um pássaro recém-desperto. As pedras, banhadas de orvalho, brilharam como se reconhecessem a justiça do gesto. Por três dias, uma luz suave dominou o outono, aquecendo a terra e o coração das pessoas — um fenômeno que passou a ser lembrado como o “Verão de São Martinho”, breve e milagroso, tão luminoso quanto a generosidade que o provocou.

Naquela noite, Martinho teve um sonho — ou talvez estivesse desperto em um limiar entre o real e o sagrado. Viu Cristo vestido com a metade da capa que havia dado ao pobre, e ouviu entre os anjos: “Aqui está Martinho, ainda catecúmeno, que me vestiu com este manto.” A partir desse instante, seu coração se incendiou. A indiferença desapareceu, e surgiu uma vida inteira dedicada à caridade, ao acolhimento e à construção de um reino feito não de espadas, mas de misericórdia.

O milagre da capa não foi apenas o calor físico que aqueceu um homem ao frio; foi o acontecimento que moldou uma alma, o instante em que Martinho se tornou farol para aqueles que ainda buscariam consolo e compaixão em um mundo áspero. O gesto, simples e extraordinário, continua a ecoar: cada capa dividida, cada pão compartilhado, cada mão estendida ainda é um eco daquele cavaleiro de capa rubra, atravessando os séculos com ternura e coragem.

Mas é preciso lembrar que a Gália era então domínio dos deuses do império romano, um panteão herdado dos gregos, fértil em figuras e rituais, politeísta e majestoso. Mesmo sob essa ordem e disciplina, a terra ainda guardava os sussurros antigos dos druidas, o perfume das florestas sagradas e o murmúrio dos rios que percorriam vales secretos.

Nas aldeias rurais, entre carvalhos venerados e círculos de pedra esquecidos pelo tempo, ecoavam os ritos celtas: celebrações do sol, do fogo, da colheita, memórias de um mundo que respeitava o ritmo da natureza e reverenciava cada mudança de estação.

Martinho cavalgava por essas terras onde a autoridade do império e a disciplina militar se entrelaçavam com a memória viva dos deuses romanos e dos ancestrais celtas, que sentiam o frio do outono como prenúncio e o calor do sol como bênção. Foi nesse entrelaçar de mundos — o concreto do império e o sagrado do bosque — que o milagre da capa encontrou seu cenário perfeito, como se cada folha soprada pelo vento carregasse consigo um convite silencioso à generosidade e à compaixão.

Antes de a espada de Martinho riscar o céu da Gália e de a capa rubra se rasgar em bondade, o solo em que ele cavalgava já carregava o eco antigo dos celtas — aqueles que chamavam a terra de Gallia Celtica, onde as tribos percorriam florestas densas, celebravam os ciclos do ano em ritos ao redor do fogo e sentiam os ventos assoprarem não só entre as árvores, mas também no coração do mundo.

Assim, quando Martinho apareceu em seu paludamentum vermelho, ele encontrou um solo que já conhecia o ritual da partilha, o fogo que salvava e o manto que aquecia mais que o corpo — aquecia a alma. E o milagre que ele protagonizou não rasgou apenas o tecido da capa, mas lembrou àquela terra antiga que a compaixão se assemelha ao sol que inesperadamente rompe a neblina de novembro, exatamente como nas antigas feiras celtas em que a luz retornava entre as estações.

Curiosidades abundam, e a figura de São Martinho se confunde com a memória viva dos deuses cavaleiros da tradição celta, guardiões das colheitas e protetores da generosidade; pois, embora na Gália romana não houvesse cavaleiros como os medievais, os deuses e heróis celtas montavam simbolicamente sobre os corcéis da força, do poder e da sabedoria, atravessando o mundo humano e o espiritual.

É preciso lembra: na tradição celta, não existia exatamente o “cavaleiro” como no mundo romano ou medieval, mas muitos deuses e heróis galopavam nas correntes invisíveis entre os mundos, carregando em seus corcéis a energia da guerra simbólica, da fertilidade e da transformação.

O cavalo, sagrado, era ponte entre o visível e o invisível, entre o humano e o divino, entre o palpável e o sussurro do vento nos bosques antigos, e aqueles que o montavam — homens ou divindades — carregavam nas rédeas não apenas velocidade e coragem, mas a própria energia da vida e da fertilidade.

 O cavalo e seu cavaleiro eram mais que força e velocidade; eram a encarnação do poder sagrado, da liberdade que atravessa mundos, e da audácia que só a coragem guiada pelo coração desperta.

Entre essas divindades celta, Epona, senhora dos cavalos, guardiã das viagens e da fecundidade, move-se silenciosa, como sombra protetora sobre cada estrada e cada campo, inspira a confiança silenciosa de quem parte e de quem retorna; Macha, deusa da guerra e da soberania, corre veloz sobre os rios e planícies, lembrando que a força da coragem pode rasgar o frio da indiferença, que a coragem é também a arte de enfrentar o inevitável; Nuada Airgetlám, rei guerreiro da Tuatha Dé Danann, empunha sua espada reluzente e cavalga entre céus e terras, oferecendo autoridade e justiça àqueles que ousam enfrentar o destino.

                                                  A deusa celta macha

                         Epona e seus cavalos, de Köngen, Alemanha, cerca de 200 a.C.

o deus Nuada Airgetlám tinha um braço de prata, e seu epíteto "Airgetlám" significa "braço de prata"

E assim, depois de galoparmos pelos bosques e rios sagrados da tradição celta, onde deuses e heróis cavalgam entre mundos invisíveis, a paisagem se abre para outra presença antiga e poderosa: a Gália de Martinho não era apenas terra de druidas e florestas encantadas, mas também chão onde o politeísmo greco-romano reinava lado a lado com os cultos celtas.

Ali, deuses que conhecemos de épicos e templos, cavalos sagrados e heróis divinos cruzavam simbolicamente com os corcéis e cavaleiros humanos, mostrando que o mesmo sopro de sacralidade podia habitar o mundo visível e invisível, do bosque à planície romana, da aldeia celta ao templo de mármore. É nesse encontro de mitologias, nesse entrelaçar de tradições e poderes, que se abre o caminho para os corcéis de Poseidon, o Hippios, e a memória dos deuses que carregam força e mistério sobre suas crinas.

Na tradição greco-romana, os cavalos também eram guardiões sagrados, animais que carregavam deuses sobre suas crinas, transportando poder, força e mistério. Poseidon, em sua forma mais profunda e ancestral, era chamado Ἵππιος – Hippios, o “Senhor dos Cavalos”, e em cada relincho sentia-se o eco das ondas do mar, da terra tremendo e das tempestades que só ele podia dominar. Os corcéis eram sua extensão, velozes como ventos, fortes como rochedos, e os cavalos sagrados tornavam-se pontes entre o humano e o divino, ligando campos e mares, guerreiros e deuses.

Quando Roma absorveu os deuses gregos, Poseidon se fez Netuno, e embora seu vínculo com os mares permanecesse mais central, a sacralidade dos cavalos não desapareceu; eles continuavam a carregar a autoridade e a força do deus, como símbolos silenciosos de disciplina, fertilidade e movimento entre mundos visíveis e invisíveis.

Ao mesmo tempo, há vínculos que ligam a deusa da agricultura com a relação com os cavalos e ao surgimento das estações:  Ceres, como os romanos a chamavam, era a terra generosa e os grãos da colheita, mas também o silêncio e a sombra da ausência. Quando sua filha, Perséfone, conhecida em Roma como Proserpina, foi raptada por Hades e levada para o reino das sombras, Ceres iniciou uma busca incansável, vasculhando cada canto do mundo, cada bosque e cada rio, em desespero que fazia a terra murchar e o céu tremer. Nem mesmo a deusa Hécate, guardiã das encruzilhadas e da magia, nem Hélio, que tudo via do alto do sol, puderam conter sua dor, embora lhe mostrassem o paradeiro da filha; a ausência de Proserpina congelava a terra, e a fome e o inverno se abatiam sobre os campos.


Durante essa busca, a deusa encontrou-se perseguida por Poseidon Hippios, seu irmão e Senhor dos Cavalos, que a desejava. Para escapar de sua insistência, Ceres transformou-se em égua, galopando entre os cavalos de Oncius, buscando refúgio na Arcádia. Poseidon, porém, assumiu a forma de um garanhão e, rompendo sua fuga, a violou. Dessa união nasceu Arion, o corcel imortal, espírito veloz que encarnava a união entre cavalos e divindades, tornando-se ponte viva entre o céu e a terra, entre o humano e o divino, entre a semente enterrada e o pão que brota nas mãos do homem.

Marcada pela ira e pelo luto, Ceres assumiu a forma de Deméter Erinys, a Furiosa, e de Deméter Melaina, a Negra, vestida de sombras, recusando-se a comer, beber ou interagir com o mundo, enquanto os campos secavam e a vida parecia suspensa. Quando finalmente se purificou no rio Ladon, recebeu também o epíteto de Deméter Lusia, a Purificadora, mostrando que até na dor e na humilhação há renovação e ritual, e que cada estação, cada seca e cada abundância são parte de um ciclo sagrado que atravessa tempo, memória e alimento.

O mito, espalhado entre Phigalia e Thelpusa na Arcádia, entre Tilphusa na Beócia e outros santuários, celebra não apenas a fertilidade da terra, mas também a força das águas, do cavalo e da divindade, e a dança eterna entre dor e esperança, entre perda e regeneração. Arion, nascido da fúria e da fuga, é testemunho de que a vida pulsa mesmo através da violência e da sombra, lembrando que cada gesto, cada grão, cada pão partilhado carrega consigo a memória dos deuses e a coragem de quem os serve.

Foi da angústia de Ceres, da busca incansável por sua filha Proserpina, que o ritmo das estações se fez visível aos homens. Enquanto a deusa percorria os campos secos e os bosques silenciosos, a terra murchava, os rios diminuíam e o pão desaparecia das mesas; o inverno se alongava como sombra persistente sobre o mundo. Cada passo de Ceres era uma nota no lamento da natureza, cada vestígio de sua dor, uma marca de aridez e ausência. Somente quando Zeus, movido pelo equilíbrio entre deuses e mortais, interveio, ordenando que Proserpina passasse parte do ano com a mãe e parte com Hades, a vida voltou a fluir: as sementes germinaram, os ramos se ergueram e a fertilidade regressou aos campos. Assim, a alternância de presença e ausência da deusa, de calor e frio, de seca e abundância, transformou-se no ciclo sagrado das estações — memória viva de que a perda e a reunião, a dor e a alegria, são fios invisíveis que tecem o tempo, conectando o divino ao humano, a mãe à filha, o campo ao pão, e lembrando que cada estação, cada colheita e cada fome, nasce da dança eterna entre amor, saudade e generosidade.

Com a vida das estações, veio o ciclo dos grãos, que voltaram a oferecer alimento ao mundo, como se a simples felicidade da mãe por ter sua filha de volta — ainda que por apenas seis meses do ano — pudesse restaurar a terra inteira. Assim, nos mitos, nos corcéis e cavaleiros sagrados, cada cavalo, cada rédea segurada por mortal ou divindade, era mais que transporte: era linguagem do sagrado, pulsação entre céu e terra, lembrete de que coragem, poder e liberdade caminham sempre juntos, entrelaçados.

Cada um deles galopa na memória da terra e no sopro dos ventos de outono, revelando que coragem e compaixão podem se unir, que generosidade é poder que se oferece, e que até o mais simples gesto — como compartilhar o calor de uma capa vermelha — ecoa com a força de um milênio, conectando cavaleiros, deuses e homens numa dança eterna entre sombra e luz, lembrando-nos que cada passo, cada relincho, cada estação, é parte de um pacto invisível que atravessa o tempo e a memória.

É nesse imaginário que Martinho se insere: romano e cavaleiro, jovem militar, mas com o coração já incendiado por uma compaixão que transcende ordens e insígnias. Cada passo de seu cavalo sobre a terra galesa ou galorromana ressoa como eco antigo do sagrado, do bosque e da chama que nunca se apaga, lembrança viva de que o humano e o divino se entrelaçam sempre que a generosidade se manifesta, e que coragem, poder e bondade caminham juntos, entre relinchos, vento e memória.

E assim, da memória dos cavalos sagrados, das estações que surgem e se recolhem, e do gesto generoso de um homem que se tornou lenda, ergue-se a ponte para o mundo visível: a compaixão concreta, que se manifesta em calor, alimento e cuidado. Martinho, cavaleiro antigo e símbolo de generosidade, ainda carrega consigo a aura de divindades ancestrais, um resíduo do sagrado que o cristianismo, de alguma forma, jamais conseguiu apagar por completo. O frio do outono, as folhas que caem e o vento que anuncia mudança tornam-se testemunhas desse encontro entre mito e cotidiano, lembrando que a dádiva e a bondade não se limitam à memória: prolongam-se no toque das mãos, no calor compartilhado, no alimento que nutre mais que o corpo — nutre a alma.

E é desse mesmo fio que liga cavalos sagrados, deuses, estações e gestos humanos que, séculos depois, nasce um símbolo concreto de generosidade: o pão de São Martinho. Como o gesto do cavaleiro que estende sua capa ao pobre, o pão surge como lembrança palpável da compaixão que atravessa tempo e memória, traduzindo o calor do coração em alimento compartilhado. Não é coincidência que, em regiões onde as tradições celtas, romanas e cristãs se entrelaçaram, esse pão se transforme em ritual: ele carrega o eco das estações que Deméter/Ceres rege, o sopro do outono que anuncia mudança, e a lembrança de que a bondade, quando se torna gesto, atravessa eras, une mundos e continua a pulsar na mesa de quem se dispõe a partilhar.

O PÃO DE SÃO MARTINHO: UM RITUAL DE OUTONO NA ÚMBRIA

Nas tradições populares, sobretudo nas derivações celtas e rurais, o gesto de Martinho converteu-se em rito e símbolo: o cavaleiro generoso que enfrenta o frio, a mudança repentina do clima como resposta ao ato humano, o pão que nasce da partilha, a capa que aquece e se transforma em memória. Martinho, assim, passa a ser mais do que homem: torna-se ponte entre as estações, entre sombra e luz, entre o frio que comprime e o fogo que liberta.

Cada pão assado em seu nome, cada mesa de novembro, carrega essa aura — o desejo de que o calor não seja apenas físico, mas também espiritual, que o alimento seja gesto, o pão seja promessa, a capa seja símbolo. Mas por que pão? Por que o gesto de Martinho, dividido entre ele e o pobre, se transforma em massa para o forno?

Porque o pão, alimento ancestral e universal, é a metáfora perfeita do que o santo nos ensinou: partilhar, dar calor, oferecer sustento e conforto. No tempo das aldeias medievais, o pão era riqueza, segurança, vida. Preparar pão em sua homenagem é refazer aquele gesto: transformar ingredientes simples em sustento compartilhado, como Martinho transformou sua capa em calor, e a indiferença em humanidade.

Assar pão para São Martinho é, então, muito mais do que tradição: é ritual. Cada mistura de farinha, água e fermento carrega a intenção de generosidade. Cada dobra da massa, cada pincelada de ovo na crosta, é metáfora da capa aberta, do calor estendido. O aroma que se espalha pela cozinha, invadindo a casa, é quase um feitiço de outono — lembrança do “verão de São Martinho”, quando o sol surge após a tempestade, aquecendo a terra e os corações. Nesse gesto simples, sentimos o toque do passado: a mão generosa do cavaleiro ainda percorre nossas mesas, aquece nossas mãos, nos lembra que cada ato de partilha cria calor que vai muito além do corpo.

Cada pão assado em sua homenagem carrega essa memória como um pequeno milagre cotidiano. A massa leveda com paciência, cresce lentamente, dourando na crosta macia que guarda calor e histórias. Ao partir a primeira fatia, sentimos algo além do sabor: o encontro de eras, a mão generosa do cavaleiro que ainda nos toca, o sopro do passado que se mistura com o presente — o outono do Norte e as tempestades do Sul parecem convergir no aroma que se espalha pela cozinha.

O pão, nesse contexto, torna-se metáfora viva: promessa e lembrança de que até nos dias mais cinzentos, um gesto de calor pode transformar a vida de alguém. O cavaleiro antigo, a capa vermelha, o pão compartilhado e o fogo do bosque — todos entrelaçam passado e presente, Romano e Celta, humano e divino. Ainda hoje, na crosta dourada e perfumada de um pão recém-saído do forno ou no vento que sopra folhas pelo outono, sentimos o sopro daquela manhã em Amiens, quando Martinho ensinou que coragem e compaixão não são inimigas, mas irmãs, que montam juntas pelo mundo, atravessando séculos e corações, como eco daquilo que foi e do que ainda pode ser.

Assim, entre brumas suaves e folhas que caem, quando o frio se insinua nas cidades do Norte Global ou as tempestades surpreendem o Sul Global, a tradição da Úmbria nos recorda que a memória não se conserva apenas em textos ou lendas, mas também em sabores e gestos, e que cada pão compartilhado renova o calor da generosidade, conectando o passado e o presente em um ritual vivo.

 É neste cenário que o Pão de São Martinho, conhecido como Pan Nociato ou Pan Caciato, se revela — um pão que não é apenas alimento, mas ritual, símbolo e memória viva.

A história escrita deste pão remonta a um antigo livro da culinária popular de Fabriano (AA. VV.; Angelini, P.; Balilla Beltrame, A.C.; Lipparoni, N.; Picchi, G.; Trecciola, A. Antologia della cucina popolare. Fabriano: Comunità Montana dell’Esino-Frasassi, 1993, reeditado em 1993, p.44), que preserva receitas tradicionais com variantes doces e salgadas, algumas já preparadas nas regiões de Sassoferrato e Matelica. No entanto, na Úmbria, o pão toma uma forma própria: um pequeno pão rústico, aromático, recheado de nozes recém-colhidas, coberto com queijo pecorino e perfumado com pimenta preta (pimenta do reino), às vezes enriquecido com passas ou um toque de vinho, que o torna simultaneamente simples e complexo, humilde e generoso — exatamente como o cavaleiro Martinho de Tours que lhe empresta o nome.

Este pão nasce como celebração da época da colheita, do outono pleno, do chamado “Verão de São Martinho” — aqueles dias inesperadamente amenos ao redor de 11 de novembro, quando, segundo a lenda, após São Martinho dividir sua capa com um mendigo congelado, o céu se abriu e o sol devolveu calor aos ossos e à alma. A Úmbria, com suas vilas de Assis, Perugia, Todi e San Martino in Campo, preserva esta tradição não apenas em mesas familiares, mas também em pequenos santuários culinários, como a Santino Panetteria, onde cada pão é moldado com reverência e atenção aos detalhes.

Cada ingrediente do Pan Nociato tem sua história. As nozes, frutos da terra recém-colhida, representam a generosidade da estação; o pecorino, sólido e pungente, dá força e sabor, lembrando que a bondade exige substância; a pimenta, sutil e inesperada, desperta os sentidos, tal como o gesto de Martinho desperta corações adormecidos. Moldar a massa é um ato de contemplação; esperar que cresça, sentir o aroma se espalhando pela cozinha, é uma meditação sobre o tempo, a paciência e a ligação entre passado e presente. Cada pão que sai do forno é ao mesmo tempo ritual e alquimia: a transformação do simples em extraordinário, do pão em símbolo, da massa em memória viva.

Historicamente, este pão não existe apenas na cozinha: ele permeia a cultura local, figurando até em poesias e tradições populares.

Guido Discepoli, poeta umbriense, evoca em seus versos o Pan Nociato como parte da celebração de novembro, inserindo-o no ciclo de memórias e climas peculiares da estação. Assim, o pão se torna ponte entre eras: a lenda do legionário romano que se converteu em bispo e padroeiro dos viajantes e viticultores, e o viajante moderno que, ao partir a primeira fatia, sente calor humano e memória ancestral se fundirem no instante presente.

Antes disso, o Anuário da cidade de Todi, datado de 1927, registra o ritual de preparo do “pan pepato”, um pão enriquecido com nozes e, às vezes, com uvas passas, consumido tradicionalmente durante o outono, especialmente pelos trabalhadores nos campos. Um pão que carregava em si o esforço e a energia da colheita, mas também o aconchego das memórias de família e comunidade.

A receita, conforme descrita no anuário, diz: “Pegue um punhado de nozes picadas, um punhado de uvas passas, um punhado de queijo pecorino em cubos pequenos, uma pitada do mesmo queijo ralado, uma pitada de pimenta, um pouco de sal, cinco ou seis cravos-da-índia, meio copo de vinho tinto, banha e azeite de oliva a gosto, e misture tudo, deixando a massa descansar por cerca de dez horas. Em seguida, junte um quilo e meio de massa de pão, formando uma mistura que deve ser dividida em três partes, como pães separados. Em cada pão, faça um corte profundo em forma de cruz. Quando a massa estiver fermentada, asse em forno de tijolos.”

Este pão, rico em sabor e energia, era o companheiro fiel dos dias de trabalho nos olivais de novembro, sustentando homens e mulheres durante a colheita. Seu tamanho modesto permitia ser saboreado sem pesar, um pequeno sustento que aquecia corpo e espírito. Embora existam variações doces e salgadas, a receita de Todi permanece clássica: a maciez da banha contrasta com o agridoce das uvas passas e o sal do queijo pecorino, criando uma experiência que atravessa séculos.

De fato, preparações semelhantes já eram conhecidas no mundo clássico: o patriarca Sofrônio, no século VI, mencionava um pão de queijo para crianças, enquanto em Roma antiga existiam múltiplas variantes de pães enriquecidos, que evoluíram ao longo do tempo até chegar à tradição atual.

O “pan nociato”, também chamado “pan caciato”, tornou-se assim uma verdadeira iguaria, preservando-se nas mesas da Úmbria e difundindo-se de Todi para toda a região. Sua importância cultural e afetiva é tal que mereceu lugar de destaque no poema Novembro de Guido Discepoli, incluído na obra Coletânea de poemas e canções populares religiosas de algumas cidades da Úmbria, editada por Oreste Grifoni – hoje, infelizmente, fora de catálogo. Um pão que é, ao mesmo tempo, sustento, memória e celebração da estação.

No ápice desta experiência, quando o pão se revela dourado, crocante por fora e macio por dentro, percebemos que cada fatia oferecida é um ato de partilha e compaixão. Não é o pão sozinho que importa, mas o gesto: dividir é transcender, como Martinho transcendeu o seu tempo com um simples corte de capa. É um momento em que o sagrado encontra o cotidiano, a lenda se mistura ao aroma do forno, e o outono, com sua luz dourada e dias instáveis, se torna palco para pequenos milagres comestíveis — e eternos.

O GRAN FINALE: O PÃO, A CAPA E O SOL DE SÃO MARTINHO

E, assim, quando o Pão de São Martinho emerge do forno, dourado, aromático, pleno de calor e memória, sentimos algo que transcende o paladar: uma ponte entre séculos, entre mãos que moldaram massa e mãos que cortaram capas, entre as neblinas frias do Norte e o sol fugaz que aqueceu a Úmbria. Cada pedaço partilhado carrega o gesto antigo do cavaleiro de capa rubra — generosidade que se torna alimento, coragem que se torna conforto. O aroma se espalha, quase sagrado, como se cada grão de farinha, cada noz triturada, cada fio de queijo pecorino contivesse a própria alma do santo e o sopro das estações.

Martinho, o legionário que abandonou a espada pelo abraço da misericórdia, cavalga invisível ainda, seus passos ecoando entre vilas e colinas, entre igrejas silenciosas e cozinhas cheias de risos e calor. O pão, com sua crosta macia e interior cheio de vida, é a tradução comestível de um milagre que se repete: a luz inesperada de um sol de outono, o calor que nasce do coração humano, o instante em que o gesto mais simples se torna eterno. É a Úmbria inteira, sua terra generosa, seu outono dourado, suas histórias guardadas em afrescos e mesas, que nos envolve — um abraço invisível que atravessa os séculos.

E, então, ao oferecer a primeira fatia, sentimos a plenitude: não há mais passado nem presente, apenas o instante sagrado da partilha, a alquimia da generosidade e do alimento. O Pão de São Martinho é mais que pão, mais que tradição: é poema, é história, é magia palpável, e cada mordida nos lembra que a vida, como o outono, é feita de contrastes — do frio e do calor, da sombra e da luz, da fome e da doçura. E nesse instante, sob o sol que rompeu a neblina, entendemos que o milagre não está apenas no gesto do santo, mas em cada coração que escolhe aquecer outro coração, em cada mesa onde o pão se torna promessa, em cada lembrança que se torna eterno.

O pão termina, mas o encanto permanece. Como Martinho, atravessamos o tempo com coragem, partilhamos calor, e descobrimos que o outono, a Úmbria, e até mesmo nossas cozinhas, podem ser templos de compaixão, poesia e magia. E assim, ao fechar os olhos e respirar profundamente o aroma do pão, sentimos: o mundo inteiro se ilumina com o gesto mais simples, e a história, a lenda e o sabor se tornam um só — perfeito, apoteótico, infinito.

E então o pão repousa, dourado e perfumado, mas a magia não termina. Como Martinho, seguimos viajando pelo tempo, dividindo não apenas calor, mas vida, histórias e memórias. Cada fatia é um gesto de generosidade, cada aroma que se espalha pela cozinha é um sussurro do passado que se curva ao presente. No fulgor do forno, no estalar da crosta, no toque macio da massa, sentimos a Úmbria inteira — suas colinas, suas vinhas, suas igrejas silenciosas e suas aldeias escondidas — pulsando em harmonia com o outono do Norte e os ventos tempestuosos do Sul.

O gesto do cavaleiro, a capa compartilhada, o milagre do sol de novembro, a paciência da massa levedando: tudo se funde em um instante sagrado, quase místico. O pão de São Martinho deixa de ser alimento e se torna oração, poema, pintura viva — um altar efêmero de calor humano. Respiramos profundamente, e no perfume de nozes, queijo e especiarias, o mundo inteiro se ilumina com a simplicidade de um ato de amor.

Assim, ao partir a última fatia, sabemos: não é o pão que termina, mas o encantamento que permanece, eterno e silencioso. Cada mesa, cada lar que acolhe esta tradição, se transforma em templo — onde a história, a lenda e a vida se entrelaçam, e onde o simples gesto de partilhar se eleva ao sublime. O Pão de São Martinho não é apenas receita: é memória, é luz, é eternidade em forma de alimento, e é, sobretudo, a promessa de que o calor da bondade humana pode atravessar séculos, atravessar ventos frios, atravessar vidas. 

PÃO CACIATO DI SAN MARTINO (versão salgada)

500 g de farinha de trigo

20 g de fermento biológico fresco (ou use 1 pacotinho de fermento pra pão seco, 13g)

220 ml de água morna

10 g de sal fino

25 g de azeite de oliva

250 g de passas

100 g de nozes picadas

250 g de queijo pecorino cortado em cubos

1/4 de colher de chá de pimenta-do-reino moída

Modo de preparo: Deixe as passas de molho em água morna por 10–15 minutos. Escorra e seque-as. Pique o queijo pecorino em cubos e as nozes. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Peneire a farinha na batedeira, adicione o sal e a pimenta, e uma parte do fermento dissolvido. Ligue a batedeira e adicione o restante do fermento, depois a água restante e o azeite. Se a massa parecer seca, adicione um pouco mais de água. Transfira a massa para uma superfície enfarinhada, sove um pouco, abra e incorpore as passas, nozes e queijo pecorino no centro, misturando bem. Modele a massa em bola e deixe crescer por 15 minutos coberta com pano. Divida a massa em 9 porções, modele em bolas, disponha 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas cada. Deixe crescer 45–60 minutos. Pré-aqueça o forno a 180°C (com ventilador), coloque os pães e asse 5 minutos a 180°C, depois reduza para 160°C e asse mais 35–40 minutos até dourar. Retire do forno e deixe esfriar antes de servir.

Observação: A adição de pimenta-do-reino dá apenas um leve toque aromático que realça o sabor do queijo e das nozes sem sobrepujar os demais ingredientes.

Pan Nociato (doce)

500 g de farinha de trigo

20 g de fermento biológico fresco (ou 1 pacotinho, 13 g, seco)

220 ml de água morna

10 g de sal fino

25 g de azeite de oliva

300 g de passas (mais doces, podem ser sultanas)

150 g de nozes picadas

100 g de açúcar mascavo ou cristal

1/2 colher de chá de canela em pó

1/4 colher de chá de pimenta-do-reino (opcional, apenas para aroma)

Raspas de 1 limão (opcional, para aroma fresco)

Modo de preparo: Deixe as passas de molho 10–15 min em água morna, escorra e seque. Pique as nozes e reserve. Misture o açúcar, a canela e as raspas de limão. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Na batedeira, peneire a farinha, adicione o sal, a pimenta (se usar) e parte do fermento dissolvido. Ligue a batedeira, adicione o restante do fermento, a água e o azeite. Ajuste a consistência com um pouco mais de água, se necessário. Transfira para superfície enfarinhada, sove levemente e abra a massa. Incorpore passas, nozes e a mistura de açúcar/canela/raspas de limão. Modele em bola, cubra e deixe crescer 15 minutos. Divida em 9 porções, modele em bolas, organize 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas cada. Cresça 45–60 min. Pré-aqueça o forno a 180 °C (ventilado). Asse 5 min a 180 °C, depois reduza para 160 °C e asse 35–40 min até dourar.