domingo, 28 de dezembro de 2025

BRIGITTE BARDOT: O SABOR DE UMA VIDA

  

Quando a notícia da morte de Brigitte Bardot atravessou meu dia de hoje, algo antigo se moveu dentro de mim, como uma maré que retorna sem avisar. A lembrança veio de muito longe, de um tempo em que eu era criança e o mundo ainda se organizava em sons, impressões e espantos.

A primeira vez que ouvi o nome Brigitte Bardot, não foi acompanhado de imagem alguma — foi apenas o nome, pronunciado por alguém que falava de beleza como se falasse de um acontecimento raro.

A infância, essa arquiteta caprichosa da memória, guarda algumas cenas com precisão quase cruel, como fotografias intocadas, e dissolve outras em lampejos rápidos, que surgem e desaparecem. Não me recordo quem puxou o assunto, nem em que sala, nem em que tarde. Mas lembro perfeitamente do impacto do nome.

Brigitte Bardot.

Ele me empolgou de imediato. Soava chique, inteiro, estrangeiro. Um nome que parecia caminhar de salto alto mesmo quando dito em voz baixa. Logo alguém explicou que era francês — e isso bastou. Ali se fechou o círculo do meu encantamento infantil: o que era francês, para mim, era sinônimo de elegância, de mundo vasto, de algo que existia além do alcance das mãos.

O tempo passou — não com pressa, mas com aquela paciência própria de quem sabe onde quer chegar. Anos muitos, muitos anos depois, o nome ressurgiu. Já não era apenas música: vinha carregado de história. Era o início dos anos 2000, eu cursava Turismo na faculdade, aprendendo a ler os lugares não apenas como espaços, mas como destinos moldados por encontros improváveis. Eu tinha aulas com professores que fizeram parte da primeira turma de Turismo no Brasil, pessoas que traziam nos olhos a memória de quando tudo ainda estava sendo inventado.

Num desses dias, enquanto ajustávamos uma viagem técnica para a Região dos Lagos, mais precisamente para Búzios, no Rio de Janeiro, o professor mencionou Brigitte Bardot. Disse, quase como quem conta um segredo antigo, que fora ela a responsável por colocar Búzios na rota do turismo mundial ainda na década de 1960. Achei curioso, quase poético: o primeiro curso de Turismo no Brasil só surgiria na década de 1970, mas Bardot já havia feito, sozinha, o trabalho que os livros ainda tentariam explicar depois.


Ela esteve em Búzios duas vezes, em 1964. A primeira, em janeiro, quando permaneceu ali por quatro meses, hospedada em Manguinhos, ao lado do então namorado Bob Zagury. A segunda, em dezembro, já sob uma luz mais intensa, quando sua presença deixava de ser apenas curiosidade e passava a ser acontecimento. O que a seduziu foi o aspecto bucólico, a necessidade de isolamento, o silêncio como abrigo. Brigitte aportou na Armação de Búzios para descansar do mundo — e, sem saber, transformou aquele lugar para sempre.

Para os moradores locais, gente simples e hospitaleira, ela não era mito nem estrela. Era descrita como “uma criança bonita, parecida com uma boneca de olhos verdes”, conforme registrou o Jornal do Brasil da época. Essa imagem me toca profundamente: a mulher que o mundo venerava vista ali como algo frágil, quase doméstico, pertencente ao cotidiano da vila.

Depois da visita da jovem Brigitte Bardot, o balneário foi revelado ao mundo. A antiga vila de pescadores começou a mudar, a crescer, a ganhar projeção nacional e internacional. Durante sua estadia, ela viveu de forma simples, caminhando pela cidade, frequentando praias como Manguinhos, convivendo com os moradores — como se estivesse tentando, por alguns meses, ser apenas mais um corpo entre o mar e a areia.

Mas o mundo não esquece facilmente aquilo que toca. Após suas visitas, Búzios passou por mudanças aceleradas, ganhou fama, desejo, nome. E desde então, nunca mais saiu de moda.

Em 1999, a cidade inaugurou a Orla Bardot, onde uma estátua foi instalada em sua homenagem — um gesto de gratidão silenciosa, quase marítima. Brigitte Bardot nunca mais retornou ao município, mas deixou algo mais duradouro que presença: um legado. Algo que permanece no desenho da cidade, no fluxo dos visitantes, na memória coletiva.

Neste domingo, logo após a notícia de sua partida, a Prefeitura de Búzios publicou uma homenagem. O texto destacava a relação rara que ela construiu com o lugar, mesmo sendo chamada de musa. Um trecho dizia: “Você fez diferente: caminhou junto, escolheu o silêncio, preferiu o essencial. Tornou-se parte da alma de Búzios, como se sempre tivesse estado aqui.”



Ao ler essas palavras, senti que aquele nome que me encantara na infância finalmente fechava um ciclo dentro de mim — não como despedida, mas como permanência.

Como turismólogo de formação, eu reconheço com clareza quase técnica — mas nunca fria — que Brigitte Bardot foi um elemento fundamental na construção e na manutenção de Búzios como destino turístico. Há dados, há datas, há análises possíveis. O impacto é mensurável: antes dela, uma vila; depois dela, um nome pronunciável em muitas línguas. Mas essa leitura, embora correta, é insuficiente.

Porque imagino — e essa imaginação me acompanha como uma pergunta que não se cala — que para aqueles que conviveram com ela naquela época, ali, entre o sal do mar e a poeira das ruas de terra, Bardot tenha sido mais do que um fator de transformação econômica ou simbólica. Talvez tenha sido apenas uma presença: alguém que caminhava devagar, que olhava nos olhos, que ria com facilidade. Talvez tenha sido silêncio partilhado, sombra dividida, manhãs sem urgência.

Quando estive em Búzios, não cheguei a entrevistar nenhum antigo morador. Hoje, confesso, isso me pesa. Arrependo-me desse silêncio que deixei existir. Gostaria de ter encontrado essas pessoas, de ter ouvido suas vozes gastas pelo tempo, de recolher fragmentos de uma Brigitte que não aparece nos filmes nem nas fotografias — aquela que existiu apenas ali, naquele intervalo raro da vida em que ela não era espetáculo, mas vizinhança. Ter mais visão dela. Ter mais humanidade emprestada por quem a viu sem moldura.

Hoje, entretanto, ela já não está mais entre nós. E o que fica são imagens. Imagens conhecidas, repetidas, algumas cristalizadas demais. Ficam os gestos eternizados, os enquadramentos, os olhares capturados quando ainda não sabiam que seriam eternos. Fica aquilo que o mundo conseguiu guardar.

Eu conheço o suficiente — e digo isso com respeito e consciência dos limites. Vi alguns de seus filmes, desses que atravessam décadas sem envelhecer por completo. Vez por outra, ouço algumas das músicas que ela gravou, e nelas há sempre algo de leve e de melancólico, como se a voz carregasse a fadiga doce de quem foi vista demais. Conheço também suas escolhas fora das telas, suas recusas, seu afastamento, sua decisão de existir longe do brilho constante.

E, curiosamente, partilho gostos com ela. Particularmente, também gosto de alguns dos pratos que eram os seus preferidos — mas isso ficará para o final deste ensaio, como se deve deixar o sabor repousar até o momento certo. Antes, porém, é preciso falar um pouco sobre ela, para aqueles que não a conheceram, para os que nasceram depois que sua imagem já era mito, para quem só ouviu o nome sem nunca ter parado para senti-lo.

Porque Brigitte Bardot não foi apenas vista.

Ela foi percebida.

E essa diferença muda tudo. 

ELA FOI CORPO E ALMA DE SUA PRÓPRIA LENDA

Quando Brigitte Bardot nasceu em Paris, em setembro de 1934, ela nasceu já envolta em seda e etiqueta — numa grande cidade que é ao mesmo tempo luz e sombra, no lar de uma família burguesa tradicional, com apartamentos elegantes e rotinas marcadas por rigor e expectativas altas. Seu pai era industrial, dono de fábricas e habituado ao poder sereno das grandes máquinas; sua mãe, filha de um diretor de seguros, vivia a elegância da moda e da dança, interessada mais nas formas do que nas fugas do coração. Bardot cresceu entre salões bem arrumados, festas cuidadas e um futuro que, para muitos, já parecia escrito.

Brigitte Bardot (à esquerda) rodeada pela família na escadaria da casa dos avós em Louveciennes, França, maio de 1952. O pai, Louis, a mãe, Anne-Marie, o avô, "Boum-papa", a irmã de 13 anos, Mijanou, e o cachorro. Foto de Walter Crone

Mas havia algo nela que ardia além dos tecidos caros e das salas amplas — uma inquietação, um desejo de respirar o mundo sem a moldura previsível que sua educação tentava impor. No lar onde o rigor católico controlava os passos e onde os amigos eram escolhidos com a mesma precisão de um terno bem cortado, ela sentia vontade de desaparecer daquele desenho perfeito e buscar algo que ninguém ali poderia nomear.

A própria infância de Bardot ficou marcada por estas tensões: em casa, os padrões de comportamento eram estritos, as amizades limitadas e a disciplina — implacável. Numa ocasião que ela mesma recordaria depois, um vaso favorito dos pais foi quebrado durante uma brincadeira — e, em resposta, seus pais reagiram com severidade, exigindo distância emocional e formalidade até na forma de tratamento dentro de casa, como se cada gesto fosse uma chance de desordem a ser evitada.

Mas o corpo dela não nasceu para ser contido. Enquanto aprendia balé e desenhava passos no estúdio, um impulso mais profundo crescia em seu peito: o desejo de sentir a vida em movimento, de ser mais do que um rosto bonito em retratos engessados. Aos quinze anos, quando posou para a capa da revista Elle e foi vista pela primeira vez fora do círculo restrito de sua família, algo dentro dela despertou de vez — era como se uma janela se abrisse para um céu que antes parecia sempre distante.

E então Roger Vadim entrou em cena — não apenas como cineasta ou futuro marido, mas como o agente que desafiou todas as bordas daquela existência burguesa. Ele viu nela não apenas um rosto, mas um espírito que precisava se lançar para fora das paredes controladas da casa parisiense. A partir daquele encontro e daquela primeira câmera que não tirava uma pose educada, Brigitte começou a aprender algo que sua educação jamais ensinara: que a vida verdadeira às vezes acontece fora das grades do esperado, fora das curvas suaves do que é seguro.

               Brigitte Bardot e Roger Vadim tomando café da manhã na cama, década de 1950.

Ela não apenas deixou a riqueza para trás — ela começou a rejeitar a própria ideia de um destino pronto e arrumado. Entrou no cinema como quem atravessa um campo vasto pela primeira vez: com respiração contida e coração solto, sabendo que nada jamais seria como antes. Essa decisão foi um salto para fora da colcha confortável da riqueza, rumo ao desconhecido do palco, da tela, da fama e de um mundo que, por vezes, a quis como objeto antes de percebê-la como alma.

Assim, a transformação de Brigitte Bardot — da menina criada entre cortinas pesadas e ordens repetidas — para a mulher que violou convenções, desafiou normas e reinventou sua própria vida não é apenas uma história biográfica: é um gesto de coragem, de amor próprio e de busca pela autenticidade que poucos conseguem viver.

Foi então que Roger Vadim, jovem cineasta e seu primeiro marido, escreveu um papel que não era apenas retrato, mas uma revolução: And God Created Woman (E Deus Criou a Mulher, 1956). Nesse filme, Brigitte, aos 22 anos, não apenas atuou — ela incendiou a tela com uma energia que parecia descender de outra lógica, uma que recusava personagens dóceis e molduras contidas. A sensualidade que emanava dela era tempestade e brisa ao mesmo tempo, uma música sem nome que atravessava corpos e atravessou décadas.



A fama foi um sol que brilhou forte demais. Não era incomum que fãs atravessassem portões, entrassem em sua casa, rondassem jardins de Saint-Tropez, na esperança de apenas um lampejo de sua presença, uma relíquia qualquer que pudesse tocar e guardar. Os paparazzi, como aves noturnas sedentas, perseguiram cada movimento seu, transformando até os dias quietos em sequência de flashes. Alguns atravessaram o limite do humano: bolas de neve jogadas em seu rosto, uma enfermeira que, em um ataque de loucura, a atacou com um garfo — e que deixou cicatrizes que Brigitte carregou consigo como mapas de batalhas íntimas.

A imagem que o público consome — aquela moldurada, iluminada, pronta para consumo — era apenas a superfície de um corpo que sangrava sob o peso do olhar permanente. Nada disso é exagero poético, mas a verdade crua de uma mulher que foi vista demais, que foi reduzida a cenário e a objeto, sem que quase ninguém perguntasse o que ardia em seus olhos.

Aos 40 anos, esgotada pelo assédio e pelos espinhos invisíveis da fama, Brigitte decidiu virar o rosto para a câmera e escutar o que seu próprio coração gritava em silêncio. Ela tentou tirar sua própria vida em mais de uma ocasião — não como rendição, mas como sinal de que o mundo que a queria inteira e sempre disponível não lhe pertencia.

Foi assim que ela se afastou dos holofotes e descobriu um amor que exigia silêncio, respeito e verdade: o amor pelos animais. Fundou, em 1986, a Fundação Brigitte Bardot, dedicada à proteção e ao bem-estar dos que não têm voz. Não foi um gesto fácil ou decorativo. Para financiar sua causa, ela leiloou joias e objetos pessoais, convertendo lembranças de um passado de glamour em recursos para resgatar vidas indefesas.

Do outro lado da lente, Brigitte viu nos olhos dos animais aquilo que aprendeu a reconhecer em si mesma: a vulnerabilidade, o medo, a vontade de viver sem dor — algo que jamais encontrou no olhar insaciável da fama. Ela viajou, protestou, exigiu mudanças e confrontou tradições que aceitavam sofrimento como normalidade. Seu nome passou a soar nas campanhas contra a caça de focas, contra a crueldade nas fazendas industriais, contra práticas que o mundo justificava com o argumento da necessidade.

E mesmo ali, nessa nova encarnação de si mesma, seu coração continuou a arder em contradições: seu ativismo apaixonado muitas vezes colidiu com palavras duras e posições que a tornaram figura controversa e alvo de condenações por incitação ao ódio em sua França natal — lembrando que as complexidades humanas não são facilmente apaziguadas por intenções nobres.

E assim foi sua vida:

corpo que foi desejo,

alma que foi lente,

espírito que foi voz dos silenciados.

Ela se tornou mito — não porque alguém o decretou, mas porque sua história é feita de luz e de feridas, de brilho e de noites sem estrelas, de amor e de dor.

O GOSTO DO SILÊNCIO: QUANDO A VIDA SE SERVE À MESA

Existe um território da vida que raramente aparece nas biografias oficiais: a cozinha. É ali que a fama se dissolve, que o corpo descansa da pose, que a alma escolhe o que pode ou não ingerir do mundo. Brigitte Bardot, mesmo depois de ter sido imagem excessiva, foi alguém que soube preservar esse território íntimo do sabor.

Quanto à comida, ela continuou cozinhando para si mesma já em idade avançada, com prazer evidente, como quem transforma o ato de comer em gesto de cuidado e permanência. Comer, para Bardot, nunca foi espetáculo — foi refúgio.


Em Saint-Tropez, onde tantos a perseguiram com olhos famintos, havia também um lugar onde ela se sentava como qualquer outra pessoa: o restaurante La Ponche, discreto, antigo, impregnado de Mediterrâneo. Ali, entre paredes que ouviram confidências e passos lentos, o cardápio oferecia muito mais do que a culinária provençal clássica. Havia ecos do mundo: Índia, Tailândia, Líbano, Japão, Marrocos. Uma diversidade que parecia dialogar com a própria trajetória de Bardot — mulher francesa, mas jamais confinada a uma única identidade.

Curiosamente, ninguém sabia dizer qual era, de fato, sua comida favorita. Como se esse detalhe tivesse sido guardado longe do olhar público, protegido da curiosidade que tantas vezes lhe invadiu a vida. Foi apenas mais tarde, num gesto quase fortuito, no posto de turismo de Saint-Tropez, que a resposta surgiu — escondida numa edição local de revista, daquelas que só quem caminha sem pressa encontra. A edição de setembro celebrava as figuras que haviam atravessado as ruas da cidade. Entre elas, Brigitte. E ali, finalmente, estava revelado o prato que lhe era caro: a salada de tabule.

A história vinha contada por Frédéric van Coppernolle, chef belga, cuja vida se entrelaçou à dela de maneira silenciosa e profunda. Em 1980, aos quinze anos, ele foi morar com a avó na propriedade de Bardot, enquanto seus pais atravessavam um divórcio difícil. A avó cuidava da casa — e cozinhava. Bardot, já então uma defensora obstinada dos direitos dos animais, era vegetariana há muitos anos, e a cozinha da casa girava em torno desse princípio: nada de crueldade, nada de excesso, apenas o essencial.

O jovem Frédéric tornou-se ajudante da avó. Preparavam tortas de cebola, ratatouille perfumado de azeite, pizzas simples, quiches de legumes e queijo. Cozinhavam também para os muitos habitantes não humanos da casa: treze cães e cerca de quarenta gatos, alimentados com refeições feitas especialmente para eles — como se a ética de Bardot se estendesse, naturalmente, da mesa ao quintal.

Entre todos os pratos, havia um que se repetia com carinho: o tabule da avó. Tecnicamente, não era tabule, mas cuscuz — e eles sabiam disso. Nunca a corrigiam. Bardot era conhecida por certa teimosia doce, e a paz valia mais do que a precisão culinária. Chamavam de tabule, e assim ficava. Afinal, os ingredientes falavam por si: ervas frescas, limão abundante, azeite generoso. O nome era apenas um detalhe.

Na juventude, durante as filmagens em Saint-Tropez, esse prato acompanhava outro prazer simples: a Tarte Tropézienne. Um brioche macio, aberto ao meio, recheado com creme de confeiteiro misturado a creme de manteiga, coberto por açúcar cristal. A sobremesa ganhou fama mundial e foi batizada pela própria Bardot, em 1956, durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher. Mesmo o doce carregava sua marca: sensual sem ser excessivo, simples sem ser banal.

Com o passar dos anos, sua relação com a comida tornou-se ainda mais ética. Desde o final da década de 1970, Brigitte Bardot militou ativamente por opções vegetarianas em restaurantes, denunciou a crueldade da indústria alimentar e defendeu uma alimentação que não exigisse sofrimento como condição. Comer, para ela, tornou-se também um ato político — silencioso, firme, irrevogável.

E assim, quando pensamos em Bardot à mesa, não a vemos como mito, mas como alguém que escolhia folhas, cortava limões, sentia o perfume da hortelã. Alguém que, depois de ter sido devorada pelos olhares do mundo, aprendeu a escolher cuidadosamente o que deixaria entrar em si.

Se o tabule foi o abraço fresco de uma vida vegetariana, há outro sabor que pertence à memória de Brigitte Bardot como um sopro dourado de verão. Enquanto a salada era leve, cheia de ervas e limão, havia um doce que sussurrava o nome da Riviera Francesa entre cada camada de creme e massa — a Tarte Tropézienne.

A Tarte Tropézienne não é apenas um ‘bolo’. É um pedacinho de Saint Tropez transformado em sobremesa: uma massa de brioche levemente amanteigada, macia como nuvem, dividida ao meio e recheada com um creme tão delicado que parece feito de memórias — mistura de crème pâtissière e creme de manteiga, às vezes aromatizado com água de flor de laranjeira ou um toque de rum. Por cima, pequenos cristais de açúcar brilham como manhã de sol na Côte d’Azur.

Essa sobremesa nasceu nos anos 1950, criada por Alexandre Micka, um confeiteiro polonês que se instalou em Saint Tropez após a Segunda Guerra Mundial e trouxe consigo a receita esquecida de sua avó, adaptada ao clima ensolarado daquele recanto do Mediterrâneo.

Foi ali, enquanto Brigitte Bardot filmava “E Deus Criou a Mulher” nas ruas ensolaradas e nos becos de pedra da vila, que ela encontrou esse presente de textura e sabor. Dizem que ela se apaixonou pela sobremesa e sugeriu ao confeiteiro que desse um nome ao doce que ela tanto pedia — primeiro chamando o de la tarte de Saint Tropez, e, mais tarde, consolidando o nome que conhecemos hoje: Tarte Tropézienne.


A partir desse momento, a Tarte Tropézienne deixou de ser apenas um bolo local e tornou se um ícone, uma poesia em forma de açúcar e creme. Ela ganhou fama junto com Bardot, assumindo seu lugar entre os símbolos da Riviera — tão leve quanto o vento que percorre o mar, tão radiante quanto o sorriso de uma noite de verão.

E então, ao contrário de muitas sobremesas que se perdem com o tempo, ela permaneceu. Permeou cafés escondidos entre ruazinhas, foi servida em mesas com vista para o porto, tornou se objeto de desejo de viajantes e locais. A receita original ainda é guardada com cuidado como um segredo de família, transmitida por gerações de padeiros que mantêm viva essa tradição culinária de Saint Tropez.

Provar uma Tarte Tropézienne é sentir na boca a história de uma mulher que, na juventude, foi desejo e estrela, e que, depois, soube escolher seus prazeres com a mesma honestidade que escolheu sua trajetória de vida — sem concessões, mas com poesia.

A brioche acaricia os lábios, o creme desliza como saudade, e os cristais de açúcar explodem como risos de infância. É uma sobremesa que não se come apenas com a língua — se come com lembranças, com paisagens, com tempo suspenso.

DESPEDIDA À DIVA PELO SABOR E PELA VIDA

E então chegamos ao momento em que a textura encontra o símbolo, em que o sabor se torna voz e a sobremesa se ergue como epitáfio.

Ao fechar os olhos, o nome Brigitte Bardot ressoa como um sussurro de elegância e mistério, carregado do perfume distante do cinema francês. Seu caminhar pelas praias de Búzios, há décadas, transformou aquele recanto em destino mundial, como se cada passo tivesse imprimido magia na areia e nos corações que o mundo ainda descobriria. Não era apenas uma atriz ou um ícone: Brigitte se tornou presença viva, elo entre fantasia e realidade, entre o sonho que a tela projetava e o mundo que podia ser tocado com a imaginação e o encanto. Hoje, sua memória retorna como um sopro suave, lembrando que, embora tenha partido, permanece em cada história, em cada paisagem, em cada passo leve que deixou gravado no tempo.

E se sua vida se revela em imagens e lembranças, há também um sabor que nos aproxima de sua intimidade: a salada de tabule. Cada grão de bulgur, cada folha de hortelã, cada toque de limão nos fala de uma Brigitte que escolheu a simplicidade com elegância, que apreciou o gesto de cozinhar e comer com prazer e consciência. Naquele prato, encontramos não apenas temperos, mas a essência de quem viveu com intensidade, ética e delicadeza, uma mulher que transformou cada escolha, por menor que fosse, em expressão de sua liberdade e de sua alma.

Brigitte Bardot, cuja vida foi um caleidoscópio de beleza, decisão e contradição, encontrou na Tarte Tropézienne — essa poesia açucarada entre duas nuvens de brioche — não apenas um deleite, mas um espelho da própria existência: rica, leve, intensa e definitivamente inesquecível.

Naquele encontro entre atriz e doce, não foi somente uma sobremesa que ganhou um nome. Foi um pedaço de história que se confunde com a crença de um mundo mais livre, mais sensível, mais profundo. A receita, criada por Alexandre Micka a partir de uma herança familiar e consolidada durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher, encontrou em Bardot um coração que a reconheceu e a nomeou — como quem dá nome ao que ama.

Ela, que por tanto tempo viveu sob o peso dos olhares, achou na mesa um lugar de calma e de verdade. Entre ervas frescas e limões vivos do tabule, e o creme generoso da Tropézienne, estava toda a ambiguidade de uma vida que foi cobiçada e serena ao mesmo tempo. A comida que ela escolhia não era apenas alimento: era gesto, era pausa, era afirmação de uma escolha ética — de amar os que não podem falar e de escutar o que o silêncio ensina.

Agora, ao fim, não se trata apenas de lembrar Brigitte Bardot como estrela de cinema ou musa dos anos 1950 e 1960.

Trata se de recordar que, por trás da câmera, havia uma mulher que olhou para a vida com intensidade e lutou por aquilo que acreditava ser justo.

Trata se de contemplar uma forma de existir que não se deu por vencida diante do espetáculo dos outros, mas buscou significado no simples e no essencial.

E, por isso, ao trazer esta sobremesa — a Tarte Tropézienne, com sua massa dourada, seu coração cremoso e seu açúcar cintilante — construo um momento de despedida que é ao mesmo tempo celebração: um convite para sentir cada camada da memória com a mesma delicadeza com que Brigitte viveu, amou e escolheu seus caminhos.

Ao fechar este ensaio, deixo a última imagem não como um fim, mas como um brinde — um pedaço de Saint Tropez servido na língua do tempo, onde cada mordida é lembrança, cada aroma é emoção, e cada memória é um sopro que não se apaga.

Adeus, Brigitte Bardot. Que a eternidade seja tão leve quanto a espuma de um creme e tão luminosa quanto o sol que banha aqueles campos de limão e mar.

SALADA DE TABOULE AO ESTILO DE BRIGITTE BARDOT

Nesta versão atribuída a Brigitte Bardot, a “salada de tabule” é feita com couscous marroquino instantâneo — por isso, tecnicamente, não é o tabule tradicional como se conhece no Oriente Médio, que leva bulgur (trigo para quibe). Mas o resultado é igualmente refrescante, aromático e delicioso, com sabores que evocam as viagens, os jardins e o Mediterrâneo que a diva tanto amou.

 Ingredientes

½ xícara de suco de tomate (bata tomates bem maduros no liquidificador e coe)

1 ½ xícaras de couscous marroquino instantâneo

1 colher de sopa de azeite de oliva (pode ir até ¼ de xícara, conforme gosto)

1 xícara de grãodebico enlatado (bem escorrido)

1 ½ xícaras de tomates picados

1 xícara de pepino, descascado, sem sementes e em cubinhos

1 colher de chá de alho, bem picado

3 colheres de sopa de échalotes ou cebola bem picadinha

Raspas de ½ limão

Suco de 3 colheres de sopa de limão (cerca do suco de 1 limão)

1 ½ a 2 xícaras de folhas de hortelã picadas (conforme preferência)

2 colheres de chá de sal

Pimentadoreino a gosto

Pimentacaiena ou molho picante (opcional, para finalizar)

MODO DE PREPARO: Aqueça líquidos: num pequeno tacho, leve 1 xícara de água e o suco de tomate para começar a ferver. Hidrate o couscous: coloque o couscous marroquino instantâneo numa tigela resistente ao calor e despeje sobre ele a água com suco de tomate ferventes. Tempere: adicione o azeite e misture delicadamente. Cubra com um pano ou com plástico e deixe o couscous repousar, absorvendo o líquido, por alguns minutos até que os grãos estejam macios. Misture os ingredientes frescos: em outra tigela, combine o grãodebico, tomates, pepino, alho, échalotes, raspas e suco de limão. Solte o couscous: com um garfo, solte os grãos agora macios e junteos aos vegetais. Incorpore as ervas: acrescente a hortelã picada, o sal e a pimentadoreino; mexa bem para integrar sabores. Ajuste e refrigere: finalize com pimentacaiena ou um toque de molho picante se desejar, cubra e leve à geladeira por pelo menos 3 horas — o descanso ajuda os sabores a se fundirem e aprofundarem. Sirva frio, como entrada refrescante ou acompanhamento. 

TARTE TROPÉZIENNE

Ingredientes para a massa (brioche):

600 g de farinha de trigo

2 colheres de chá de fermento biológico seco

100 g de açúcar

6 ovos

1 colher de chá de sal

300 g de manteiga sem sal, amolecida

Raspas de 2 limões (opcional, para perfume)

Açúcar em pérola para polvilhar

Creme (Crème Diplomate — combinação de crème pâtissière e creme batido):

500 ml de leite

6 gemas de ovo

80 g de açúcar

60 g de farinha de trigo

60 g de amido de milho

1 fava de baunilha ou essência de baunilha

200 ml de creme de leite fresco batido

Água de flor de laranjeira (opcional)

Modo de preparo – Prepare a brioche: misture farinha, açúcar, fermento, sal e ovos. Sove até ficar elástica. Acrescente a manteiga aos poucos e continue sovando até a massa ficar lisa e macia. Deixe crescer em local morno até dobrar de volume. Modele em forma redonda e asse até dourar levemente. Polvilhe açúcar em pérola por cima antes de ir ao forno. Faça o crème pâtissière: aqueça o leite com baunilha. Bata gemas com açúcar, adicione farinha e amido. Incorpore ao leite quente até engrossar e esfriar. Junte o creme batido: depois de frio, misture delicadamente o creme de leite batido ao crème pâtissière para obter leveza. Monte a torta: corte a brioche ao meio horizontalmente, recheie generosamente com o creme, coloque a “tampa” por cima e leve à geladeira antes de servir.

 

 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

A SENHORA DO INVERNO: FRAU PERCHTA – DA BRUXA DO NATAL AO PRINCÍPIO RITUAL DA ORDEM DO MUNDO


Neste ano, escolhi me afastar dos caminhos excessivamente iluminados do Natal — aqueles que brilham nas vitrines, cintilam nos anúncios e se esgotam no consumo apressado. Voltei-me para as sendas mais discretas, quase ocultas, onde a luz não ofusca, apenas revela. Ali, quis recolher histórias antigas, vindas de culturas distantes, pouco conhecidas no Brasil, mas portadoras de uma densidade simbólica que nenhuma decoração festiva é capaz de conter. Histórias que não começam nem terminam no nascimento do Cristo, mas o antecedem — atravessam séculos, atravessam sombras — e chegam até nós vindas de um tempo em que o sagrado ainda respirava em muitas formas.

São narrativas que sobreviveram apesar das tentativas de silenciamento. Pois houve um tempo em que a Igreja, consciente do poder dessas crenças e da força indomável das culturas ancestrais, optou por moldá-las, transformá-las — ou enterrá-las — para preservar sua própria ordem. Ainda assim, algo permaneceu. Algo resistiu no subterrâneo da memória coletiva, como raiz que insiste sob a neve.

Guiado pelo instinto de pesquisador — e por uma inquietação mais íntima —, deixei-me conduzir pela percepção de que as mulheres foram, tantas vezes, apagadas da história. Apagadas pelo peso do patriarcado, pela misoginia institucional, ou pelo simples, mas devastador, esquecimento. Busquei, então, uma figura feminina capaz de habitar a época mais profunda do ano: aquela em que o frio ensina, o silêncio fala e o mundo parece suspenso entre o fim e o recomeço.

Entre as possibilidades, uma presença se impôs com força silenciosa. Veio de terras geladas, de vales escondidos, de montanhas cobertas de neve e tempo. Weiße Frau – a Dama Branca. Frau Perchta. Aquela que alguns chamam, com temor e fascínio, de a bruxa do Natal.

Ela não é apenas lenda.

É guardiã.

É sombra que vigia sem ameaçar.

É memória viva de um tempo ancestral em que o princípio feminino, personificado nas Grandes Deusas do antigo mundo matriarcal, governava os ciclos da vida, da morte e do renascimento, em harmonia profunda com a respiração da natureza.

Mesmo transformada, distorcida ou sepultada sob camadas de moral e medo, sua imagem continua a ecoar: nas tradições alpinas, nos rituais domésticos, nos gestos simples repetidos geração após geração, muitas vezes sem que se saiba mais por quê.

A partir de agora, convido você a caminhar comigo por esse território antigo. A mergulhar no universo de Frau Perchta: compreender sua importância nas noites de inverno, sentir sua presença silenciosa atravessando as Rauhnächte (as noites ásperas), perceber sua ligação profunda com a tradição — e, inevitavelmente, com o alimento. Pois há também uma cozinha que a acompanha: uma comida ritual, ancestral, onde cada receita carrega cuidado, sobrevivência e poesia; onde cada colher atravessa séculos.

Que, ao percorrer estas páginas, seja possível sentir o frio das montanhas no rosto, o calor da lareira no corpo e a vigilância atenta — quase terna — da Dama Branca.

E que esta história, antiga e ainda pulsante, se revele não como relíquia do passado, mas como algo vivo, necessário, essencial.

ONDE NASCE A BRUXA DO NATAL?

Ela surge quando o ano perde o fôlego.

Quando os dias já não avançam, apenas resistem. Quando o sol se torna tímido, e a noite, soberana, estende seus véus sobre a terra adormecida. É nesse limiar — entre o que morre e o que ainda não nasceu — que ela desperta.

Os nomes que a designam não são simples palavras. Cada sílaba carrega o peso de séculos, o frio ancestral que escorre das montanhas cobertas de neve, os ventos agudos que atravessam desfiladeiros e fazem ranger portas antigas. São nomes que murmuram histórias de aldeias escondidas, de lareiras acesas contra a escuridão, de vales profundos onde o tempo parece ter aprendido a caminhar mais devagar.

Entre o Tirol, Salzburgo, a Alta Áustria e as encostas sombrias da Baviera, ela se revela em múltiplas faces — nenhuma contraditória, todas verdadeiras. Cada região a molda com suas próprias memórias, seus dialetos antigos, seus modos silenciosos de lembrar aquilo que nunca foi totalmente esquecido. Ela muda de nome, de contorno, de gesto, mas sua essência permanece intacta, como uma chama protegida do vento.

Na antiga tradição pagã germânica, havia um nome que cintilava como neve ao sol de inverno: Berchta, ou Bertha, cujo significado — brilhante, radiante — não era apenas etimologia, mas destino. Ela velava mulheres e crianças como quem sustenta o mundo com mãos invisíveis. Era conhecida como a Dama de Branco, ou Dama Branca, parente alpina de Frau Holle e eco terrestre da deusa nórdica Frigga. Onde cresciam bétulas belas e pálidas, ali estava seu olhar; onde a floresta respirava e a vida selvagem pulsava, ali se erguia sua vigília silenciosa.

Mas Berchta não era apenas guardiã do que vive. Ela também guiava os que partiam. Psicopompa, condutora de almas, atravessava os limiares invisíveis conduzindo os mortos ao que vem depois. Seu cuidado mais delicado recaía sobre os Heimchen — as crianças que morriam cedo demais, antes que a vida pudesse nomeá-las plenamente. A elas, Berchta oferecia abrigo no além, como uma mãe que não abandona.

Psicopompo é um termo que brota do grego antigo, da união de psyche, a alma, e pompos, aquele que conduz, que acompanha em solene passagem. Não designa um carrasco da morte, mas um guia liminar, conhecedor dos caminhos invisíveis entre este mundo e o outro. O psicopompo caminha ao lado, sustenta, vela — não apressa nem julga. É nesse papel que Frau Perchta se revela em sua face mais profunda e compassiva. Vestida de branco ou oculta sob a aparência da velha errante, ela conduz as almas com a mesma delicadeza com que protege crianças e mulheres. Como psicopompa, Perchta guarda especialmente os espíritos dos Heimchen, levando-os através do limiar com cuidado materno, afastando-os do abandono e do esquecimento. Sua presença transforma a morte em travessia, o fim em passagem segura, e o medo em silêncio acolhedor — pois sob seu olhar, nenhuma alma caminha sozinha.

Deusa dos espaços intermediários, Berchta habitava as fendas do mundo: entre segurança e perigo, entre vida e morte, entre um ano que se despede e outro que ainda não nasceu. Em Berchtentah, sua epifania, ela reinava sobre o tempo suspenso — o intervalo sagrado entre os anos.

Mas sua natureza era dupla, como a lua que ora acaricia, ora governa as marés mais ferozes. Assim, Berchta também surgia como a Spinnstubenfrau, a mulher das fiandeiras: uma velha bruxa de um pé aberto ou de ganso, apoiada em bengala, errante pelos campos. Nessa face, ela defendia tabus culturais, vigiava excessos e punições, e durante as Raunächte — as noites ruidosas do inverno — unia-se à Caçada Selvagem, espalhando clamor pelas montanhas com sua horda espectral.

Conta uma antiga lenda que uma mulher, devastada pela perda de seu filho ainda pequeno, viu-o certo dia num campo distante. Ele caminhava entre outras crianças, cada uma carregando um cântaro, todas seguindo uma senhora vestida de branco. Quando a Dama Branca saltou um pequeno muro, as crianças a imitaram — exceto o filho, que não conseguia atravessar. A mãe correu, tomou-o nos braços. Ele sorriu ao sentir o calor materno, mas lhe disse com doçura:

— Não chore, mãe. Suas lágrimas encherão meu cântaro até transbordar. Estou seguro com a Dama Branca.

A mulher conteve o pranto, colocou o filho do outro lado do muro junto às demais crianças e retornou para casa em paz, sabendo que ele estava bem cuidado.

Por isso, sobretudo as mulheres recorriam a Berchta — essa prima do sul da Alemanha de Frau Holle — pois ela era figura de abundância, guardiã do lar, das crianças e das tarefas domésticas. Era um tempo de altíssima mortalidade infantil, e as mães precisavam acreditar que seus bebês não estariam sozinhos após a morte. Berchta cuidava dos Heimchen, os espíritos das crianças que morriam antes do batismo.

No século VI, porém, a Igreja Católica, poderosa na Baviera, exigiu que os antigos cultos fossem abandonados. Ainda assim, muitos resistiram — e especialmente as mulheres se recusaram a renunciar às suas deusas. Do púlpito, a Igreja passou a condenar Berchta, acusando o povo de rezar para “Domina Perchta” em vez da Virgem Maria.

No século XIII, armada com o medo, a Igreja renomeou a deusa: Berchta tornou-se Perchta. Os Perchten, monstros guerreiros do folclore, passaram a ser associados a ela, agora vista como sua líder. A outrora bela Dama Branca foi deformada em imagem: uma velha horrenda, rosto de ferro, nariz adunco, trazendo sob a saia uma lâmina destinada a rasgar o ventre de quem ousasse desafiá-la.

Ainda assim, o povo persistiu.

Somente em 1468, no Thesaurus Pauperum — um compêndio de comportamentos aceitáveis, receitas e curas para os pobres, compilado ao longo de sete séculos por oficiais da Igreja — o culto à Perchta foi oficialmente proibido. Tornou-se ilícito deixar-lhe oferendas durante o período natalino.

Mas deuses antigos não morrem com decretos.

Eles sobrevivem na memória, no medo, na ternura — e sobretudo no silêncio entre um ano e outro, onde Berchta ainda caminha, branca e vigilante.

Frau Perchta — simples, direta, incontornável. Nesse nome habita a senhora do inverno, guardiã severa e atenta das Rauhnächte, as chamadas noites ásperas. Noites em que o frio não apenas toca a pele, mas atravessa os ossos; em que o vento corta como lâmina invisível; em que a penumbra não ameaça, mas consagra. Há algo de ritual nessas horas suspensas, algo quase sagrado, como se o mundo estivesse sendo observado por olhos antigos.

Durante essas noites, diz-se que ela caminha. Não para ser vista, mas para ver. Vigia os lares, escuta os silêncios, pesa as intenções humanas com a balança invisível da ordem antiga. Ela não pertence à luz festiva nem ao riso fácil — pertence ao intervalo, ao recolhimento, ao momento em que a alma é chamada a prestar contas ao inverno.

Assim nasce a Bruxa do Natal:

não do medo, mas da memória;

não da sombra, mas do respeito;

não do caos, mas da lei profunda que rege os ciclos da vida.

Quanto as Rauhnächte — doze noites suspensas entre 25 de dezembro e 6 de janeiro — elas não pertenciam inteiramente a este mundo. Eram entendidas como um tempo liminar, um fio delicado estendido entre o visível e o oculto, onde as fronteiras se tornavam tênues como respiração no ar gelado. Nessas noites, o calendário perdia autoridade, e o tempo, antigo e circular, retomava seu domínio.

Dizia-se que nessas noites os espíritos caminhavam livremente — não como invasores, mas como habitantes legítimos daquele intervalo sagrado. Desciam pelos vales cobertos de neve, atravessavam soleiras de casas silenciosas, detinham-se junto às janelas embaçadas. Não vinham para assustar, mas para lembrar: o mundo é mais vasto do que aquilo que os olhos aprendem a ver à luz do dia.

Os destinos do ano seguinte não eram anunciados em voz alta. Eram sussurrados ao vento, escondidos no estalar da lenha, no uivo distante que atravessava as montanhas, no modo como a chama da vela tremia sem razão aparente. Cada som carregava um presságio, cada silêncio, uma resposta possível. Bastava saber escutar.

Nesse período, o humano era convidado a desaprender a pressa. Aprendia a ouvir o invisível, a respeitar o ritmo profundo do mundo, o pulsar silencioso do inverno que tudo recolhe para, mais tarde, devolver transformado. Não era tempo de agir, mas de vigiar a própria alma. De observar sonhos, sinais, pequenos gestos que ganhavam peso ritual.

As portas eram fechadas com cuidado, os trabalhos interrompidos, as palavras escolhidas com reverência. Pois nessas noites, tudo era ouvido. Tudo era visto. E nessas noites, Frau Perchta passava — não como ameaça, mas como medida. Ela observava o equilíbrio entre ordem e desordem, entre o que foi honrado e o que foi esquecido.

Assim, nas Rauhnächte (noites ásperas), o mundo respirava mais fundo. E quem ousasse escutar com atenção podia sentir, sob a neve e o silêncio, o coração antigo da terra — lento, atento, eternamente desperto.

É desse compasso profundo que Frau Perchta nasce.

Ela nasce onde o frio ensina, onde o silêncio fala — e onde o fim do ano, exausto, se inclina diante do mistério que ainda pulsa sob a neve.

Nasce no instante em que a terra parece imóvel, mas sonha. Quando raízes dormem sob o gelo e, mesmo assim, guardam a promessa da seiva futura. O inverno, ali, não é ausência de vida — é gestação. É espera densa, carregada de sentido. E ela, a Bruxa do Natal, é parte desse ventre oculto do mundo.

Ela nasce do sopro branco que escapa dos lábios na madrugada, do ranger lento das árvores antigas, do céu que parece mais próximo quando estrelado pelo frio. Nasce da disciplina do inverno, que ensina limites, recolhimento e verdade. Nada cresce sem antes aprender a suportar a noite.

O silêncio que a envolve não é vazio. É um idioma antigo. Fala aos que sabem permanecer atentos, aos que compreendem que nem toda resposta vem em palavras. Nesse silêncio, ela caminha. Não apressa o passo, não deixa marcas. Sua presença é sentida como se sente a mudança do vento: inevitável, sutil, absoluta.

Quando o ano se curva, cansado de seus excessos e erros, é a ela que se apresenta. Pois ela guarda a memória dos ciclos, conhece o peso das ações humanas e a delicada contabilidade do tempo. Não julga com fúria — mede com exatidão. Onde houve descuido, ela aponta. Onde houve respeito, ela preserva.

Sob a neve, algo pulsa.

Não é apenas a terra — é a continuidade.

E ela é a guardiã desse pulso, a sentinela entre o que termina e o que insiste em nascer outra vez.

Assim, a Bruxa do Natal não vem para romper o encanto, mas para lembrar: que toda luz precisa da noite, que todo início carrega um fim, e que, mesmo no coração do inverno mais profundo, a vida — silenciosa, paciente — jamais deixa de esperar.

Em outras regiões, o seu nome já não é apenas som: é presságio.

Berchta, Perhta — sílabas que o vento aprende a pronunciar ao roçar os galhos, a deslizar pelos vales profundos como um segredo antigo que a terra jamais esqueceu. Seu nome não se diz em voz alta; ele se escuta, dissolvido no murmúrio das florestas e no frio que sobe do chão ao cair da noite.

Quando a chamam Frau Berchta, algo se ergue no ar — uma solenidade quase litúrgica, como se o mundo precisasse endireitar a coluna diante de sua passagem. Há nela uma dignidade que não se aprende, uma autoridade suave e inevitável, feita de eras, de invernos acumulados, de silêncios respeitados.

E então surge a imagem que mais fascina e assombra: Weiße Frau, a Dama Branca. Ela resplandece como neve recém-caída sob a lua cheia, não refletindo a luz, mas parecendo gerá-la. Suas vestes são claras como o primeiro gelo da estação, e seus cabelos confundem-se com o próprio luar de inverno, fios de prata viva escorrendo sobre os ombros do tempo. Seus passos — ah, seus passos — não ferem a terra, não quebram galhos, não despertam ecos. Ela atravessa a escuridão como quem pertence a ela, sem jamais profaná-la.

Nas aldeias do Tirol, nos recantos antigos de Salzburgo, seu nome muda, mas a sensação permanece: um arrepio delicado na espinha, um respeito instintivo, quase sagrado. A Dama Branca passa, e ninguém ousa interromper o encanto da noite. Ela é presença sem peso, silêncio com forma, um vislumbre do que existe entre o mundo visível e aquilo que só o coração, em noites muito frias, consegue reconhecer.

Ela não corre.

Ela não chama.

Ela simplesmente é — e isso basta para que o mundo inteiro pare por um instante e escute.

Assim, Frau Perchta caminha silenciosa pelas casas enquanto o mundo dorme sob a neve. Sua presença não é invasiva, mas imprescindível; não exige luz nem ornamento, apenas atenção e reverência. Ela é sombra e vigilância, memória ancestral, guardiã das noites frias e dos gestos domésticos, e lembra-nos de que, mesmo na escuridão mais densa, há espaço para cuidado, poesia e ritual — a verdadeira essência das Rauhnächte.

Mas o termo Frau Berchta, versão mais formal, sugere respeito, quase solenidade. É a Senhora reconhecida, cuja presença ordena o lar e observa cada gesto humano, cada grão deixado sobre a mesa em oferta.

E ainda há lugares onde sua figura se amplia em cuidado e autoridade, sendo reverenciada como Perchtenmutter — “Mãe dos Perchten” — aquela que lidera os desfiles de inverno, que organiza a ordem do caos, que dá rosto e sentido às máscaras que percorrem vilas e montanhas. Cada variação não é apenas mudança de nome, mas modulação do mito, adaptação à geografia, ao dialeto e à cultura local, uma lembrança de que Frau Perchta é antiga, mutável, mas sempre presente, uma sombra vigilante que une tradição, domesticidade e rituais de inverno em cada gesto, cada palavra, cada suspiro das Rauhnächte.

Sua presença é encontrada nas regiões alpinas do mundo germânico — Áustria, Baviera, Tirol, sul da Alemanha e os confins serranos que tocam a Suíça e a Alsácia — onde o inverno não é metáfora, é sobrevivência.

Ali, o calendário jamais foi um simples conjunto de datas: era um pacto sagrado com a natureza, escrito no sopro gelado do vento, na suspensão das sombras ao crepúsculo e no ritmo profundo dos dias que se encurtavam. O trigo dormia sob o manto branco, os animais se aninhavam mais perto do solo para escapar do frio implacável, e os humanos, pequenos diante das montanhas, aprendiam a respeitar a escassez tanto quanto a própria fonte de sua subsistência.

É nesse mundo que Perchta aparece — não como lenda solta, à deriva do imaginário, mas como memória viva, tecida no silêncio das encostas, nos sussurros das florestas antigas, na dança lenta da neve que jamais se apressa. Ela nasce onde o inverno sente o próprio coração bater mais lento e mais fundo, onde cada estrela, cravada no céu escuro, brilha como promessa de luz no interior da longa noite. Ali, o frio ensina e o silêncio fala — não como ausência, mas como substância — e o fim do ano, exausto de carregar a própria história, curva-se diante do mistério que ainda pulsa sob a neve.

Ela não surge como personagem inventada, mas como necessidade simbólica.

Um espírito que organiza o caos do inverno.

Uma presença que explica por que se trabalha antes do frio chegar, por que se guarda o que foi colhido, por que se respeita o ritmo das estações e se teme aquilo que não se controla. Perchta não adorna o inverno — ela o estrutura. Dá sentido à escassez, disciplina à espera, ordem ao silêncio.

É sobretudo durante as Rauhnächte — as chamadas noites ásperas ou noites fumegantes — que ela caminha. O período entre 25 de dezembro e 6 de janeiro, quando, segundo a tradição, o véu entre os mundos se torna fino como respiração no ar gelado. O próprio nome carrega o som do inverno: rauh, áspero; Nacht, noite. Nessas horas suspensas, nada é suave. Tudo range: a madeira das casas, os galhos das árvores, o próprio tempo.

Frau Perchta não pertence a uma única forma. Ela não se deixa fixar.

Ela se manifesta — ora como a Dama Branca, luminosa e silenciosa; ora como presença severa, vigilante, quase terrível; ora apenas como a sensação de estar sendo observada pelo próprio inverno.

Ela é aquilo que aparece quando o mundo se recolhe, quando o humano se cala, e quando a noite, profunda e antiga, decide falar.

Às vezes, ela se apresenta como uma mulher velha, envolta em tecidos gastos pelo tempo, com o rosto sulcado por anos que não se medem em calendários humanos, mas em eras longas e silenciosas — um tempo geológico, implacável, que dobra montanhas e enrola rios em seu curso. Em outras, surge como figura branca, quase luminosa, a Weiße Frau — a Dama Branca — silenciosa como a neve que ainda não tocou o chão, flutuando entre os galhos nus e a penumbra das montanhas.

Há versões que acrescentam um detalhe inquietante: um pé humano e outro de ganso. Não é grotesco; é profundamente simbólico. Na época em que essas histórias surgiram, esse traço indicava que Perchta não pertencia inteiramente ao mundo humano. O pé de ganso era associado a divindades ligadas à travessia entre mundos, à água e ao limiar — portais entre o conhecido e o desconhecido, entre a vida e a morte, entre o cotidiano e o sagrado.


Para os povos alpinos, o ganso simbolizava também mobilidade, vigilância e transformação. Caminhar com um pé humano e outro de ganso significava que Perchta podia percorrer simultaneamente o mundo terreno e o mundo espiritual, a casa e a floresta, a vida e os mistérios invisíveis. Ela se tornava mediadora de limites: supervisionava o respeito às tradições, a ordem doméstica e os ciclos do inverno, enquanto permanecia além do alcance completo do humano, lembrando que certas forças não se dobram às regras do cotidiano.

Assim, o detalhe que hoje parece estranho ou assustador era, na época, sinal de poder e autoridade sobrenatural, lembrança de que a Dama Branca era guardiã de mundos paralelos, de costumes antigos e da sabedoria que só se revela a quem observa com atenção.

É um vestígio das antigas divindades, aquelas que governavam os limiares, que cruzavam rios e fronteiras entre mundos. Um corpo que não pertence inteiramente a este mundo, mas que transita entre o visível e o invisível, entre a vida e o que escapa da vida.

Ela caminha, então, entre os mundos, lembrando que cada gesto, cada passo, carrega significado. Cada presença sua é um aviso silencioso: há coisas que o humano deve respeitar, ritmos que não se apagam com calendário ou decreto, ciclos que seguem seu próprio pulso, mesmo quando a sociedade tenta ignorá-los.

Frau Perchta não é apenas vigilante; ela é mediadora, guardiã de limites que o mundo moderno tende a esquecer. Onde o inverno parece apenas frio, ela revela a densidade do tempo; onde o silêncio parece vazio, ela revela o eco antigo das eras. E, assim, sua presença — ora severa, ora luminosa — permanece, atravessando séculos, atravessando sombras, ainda viva nas encostas geladas das regiões alpinas.

No silêncio das Rauhnächte, quando o vento atravessa vales e telhados cobertos de neve, surgem palavras sussurradas, frágeis como a fumaça que se ergue das lareiras, mas carregadas de respeito, atenção e intenção. Não havia saudação universal, nenhum rito rígido ou fórmula repetida à exaustão; havia, antes, gestos de reconhecimento que atravessavam séculos, como fios invisíveis que ligam o presente ao passado ancestral.

Entre os camponeses austríacos e bávaros, era costume inclinar-se levemente e dizer: “Grüß Gott, Percht” — literalmente, “Que Deus te saude, Percht”. Não se tratava de invocar Perchta como divindade, mas de oferecer reverência ao espírito do inverno, reconhecendo sua presença invisível. Cada sílaba era um fio de cuidado, uma lembrança silenciosa de que a bruxa do inverno caminhava pelos lares, atenta ao que se deixava sobre a mesa, à ordem da casa e ao respeito pelas tradições.

Em outros lugares, a saudação assumia tons mais formais, quase musicais: “Sei gegrüßt, Frau Berchta” — “Saudações, Senhora Berchta”. As palavras deslizavam pelo ar como neve recém-caída, suaves, quase como canto, pedindo proteção e reconhecimento da sua vigilância silenciosa. Cada saudação era, simultaneamente, ato de hospitalidade e oração não escrita — gesto que lembrava que o inverno só poderia ser atravessado com cuidado, atenção e reverência.

Ao pronunciar essas palavras, mesmo sozinho, o humano se conectava ao invisível, à memória ancestral que transformava uma tigela de mingau em ritual, um gesto cotidiano em poesia, e a escuridão do inverno em espaço sagrado de presença e cuidado. Cada murmúrio era ponte entre mundos: entre o visível e o invisível, entre a sobrevivência e a celebração, entre a vida e o sopro antigo que ainda perambula pelas montanhas cobertas de neve.

Perchta existe porque o inverno exige vigilância. Mas não é uma sentinela arbitrária ou cruel — ela é guardiã do tecido vivo do mundo, aquele que se estende de alma a casa, de mito a rotina.

O fio, o novelo, a roda de fiar — em muitas representações de Frau Perchta, ela surge segurando ou circulando entre esses objetos, não como mero adorno, mas como símbolos vivos de vigilância e ordem; eram símbolos vivos do ritmo do mundo. Nas aldeias alpinas, fiar a lã ou o linho durante o inverno era muito mais que tarefa doméstica: era ritual, sustento e ponte entre o humano e o sagrado. Cada laçada no fuso, cada giro da roda, mantinha não apenas o tecido físico, mas também o tecido invisível da vida, da casa e do tempo. Um fio esquecido, um novelo mal cuidado, não era apenas descuido — era um sinal de desordem, de atenção dispersa, que poderia romper a harmonia entre a família, o inverno e o mundo natural. Era um deslize no tecido invisível que ligava o humano à própria continuidade da existência.

Perchta, com olhos que tudo veem, caminha entre essas rodas e novelos, observando o fio que ainda não foi trançado, a lã que se perdeu entre as mãos cansadas, e lembrando que o inverno exige disciplina, paciência e consciência.

A roda que gira não é apenas instrumento de trabalho: é metáfora do ciclo da vida, do entrelaçar dos destinos, do equilíbrio entre o que foi semeado e o que será colhido.

Assim, a Dama Branca aparece com a roda e o novelo como símbolos visíveis de seu poder, lembrando que o trabalho mais humilde, realizado com atenção e respeito, é ritual ancestral, arte e vigilância, poesia tecida no silêncio do inverno. Sob sua vigilância silenciosa, cada fio se torna ponte entre o cotidiano e o sagrado. Cada novelo, em suas mãos, é promessa de calor, proteção e alimento; cada fio, ponte entre o cotidiano e o ritual, entre a sobrevivência e o sagrado; e a tecelagem, ato aparentemente simples, revela-se ritual ancestral, onde a ordem, a memória e o futuro se entrelaçam, guardados pela presença da Dama Branca.

Ela observa lares, olhos atentos que não se fecham à noite.

Observa pessoas que se movem com passos silenciosos na neve, mãos que remontam fios de lã desgastados, tarefas deixadas inacabadas como se deixássemos parte do próprio destino à deriva.

Ela conhece o fio que não foi fiado, a lã esquecida à beira da roda, o novelo que se desfaz nos dedos cansados. Pois, nas tradições antigas dos Alpes — entre bosques de pinheiros, vales profundos e cumes nevados — o ato de fiar não era apenas trabalho: era rito, era promessa, era medida invisível da ordem do mundo.

E Perchta, mais do que vigiar, intercede entre o humano e o tempo.

Ela não se apresenta como tirana, mas como encarnação da ordem necessária quando tudo pode ruir: o fio imperfeito lembra que a vida, sem vigilância, se desfaz. O novelo sem forma recorda que o destino precisa ser tecido com mãos constantes e coração desperto.

Seu olhar percorre os bornes do inverno como quem lê um tecido ancestral: cada ponto, cada laçada, cada interrupção é um sinal. Ela caminha entre rodas de fiar abandonadas e novéis dispersos, não para punir — mas para mostrar que o verdadeiro fio do mundo se encontra na atenção ao que, de outra forma, seria trivial.

E assim, a bruxa do Natal, silenciosa como o vento sobre a neve,

nos lembra que, nas noites profundas do ano, até o trabalho mais humilde

é ritual, poesia e sobrevivência entrelaçados.

Antes de ser chamada de bruxa, ela foi algo mais antigo: uma senhora do tempo escuro, uma guardiã da transição anual, talvez um eco distante de divindades femininas pré-cristãs ligadas ao destino, ao trabalho doméstico, à continuidade da vida quando a terra parece morta.

Quando o cristianismo chegou aos vales, não a destruiu — a transformou. De deusa implícita em espírito folclórico. De guardiã em juíza. De senhora do inverno em “bruxa do Natal”.

Mas ela permaneceu.

Permaneceu nos desfiles mascarados, nos Perchten, nos sinos, nas peles, nos rostos de madeira esculpidos para espantar o mal. Permaneceu nas histórias sussurradas às crianças, não para aterrorizá-las, mas para ensiná-las que o mundo exige cuidado.

Frau Perchta não é o oposto do Natal.

Ela é o seu lado noturno.

Antes das luzes, há a noite.

Antes do banquete, há a fome lembrada.

Antes do presente, há o trabalho silencioso.

Ela surge exatamente aí — onde o Natal ainda não é celebração, mas sobrevivência ritualizada.

O ROSTO DO INVERNO: A MASCARA DE PERCHTA E A PRESENÇA DOS PERCHTEN

Não é Frau Perchta, em sua forma mais antiga, quem veste a máscara de chifres. E, ainda assim, ela está ali, presente em cada gesto, em cada sombra que atravessa o inverno.

A ideia de Perchta com chifres, rosto demoníaco e boca escancarada nasce não da lenda primitiva, mas do encontro entre sua essência e o corpo ritual dos Perchten. É deslocamento simbólico: o que era coletivo transforma-se em rosto; o que era cortejo, dança entre humanos e espírito, é lido como figura única, monstruosa, teatral.

Em muitas imagens e encenações que sobreviveram ao tempo, os Perchten surgem com máscaras impressionantes, rostos que lembram carcaças de veados chifrudos, feita de madeira entalhada e cores rudes, cornamentas que se erguem como galhos retorcidos na árvore do inverno, bocas escancaradas que parecem rugir antigas canções de outono e neve. Há figuras cujo semblante remete a crânios de animais selvagens, olhos fundos que lançam sombra na noite gélida, e membros cobertos de peles que ribombam com sinos e correntes. Esses corpos mascarados são imagens corporais do inverno e do limiar — bestiais, híbridos, evocando o que escapa à compreensão simples: o medo e o fascínio, o fim e o princípio, o velho ano a morrer e o novo a germinar sob o sopro frio. No cortejo, a máscara não é disfarce insignificante; é símbolo material do encontro entre humano e espírito, lembrando que o inverno impõe seu rosto múltiplo — ora belo, ora perturbador — e que a passagem pelas longas noites exige tanto a expulsão do que é velho como a celebração do que está por nascer.

Essa ideia leva a existência de algumas representações em que Frau Perchta surge com chifres que se erguem como galhos retorcidos, rosto cadavérico lembrando a carcaça de um veado, olhos fundos e sombra nos cantos da boca, como se a própria morte tivesse ensaiado sua fisionomia. Seus braços e corpo podem se revestir de peles, sua presença é híbrida, entre o humano e o selvagem, o limiar entre o mundo visível e o invisível. Essas imagens evocam o medo e o respeito, traduzem em forma concreta a força do inverno e a vigilância que ela exerce sobre a ordem da casa, o trabalho das mãos e o destino das famílias. Mas tudo isso é símbolo, encenação do espírito, uma tentativa de tornar visível aquilo que, na realidade ancestral, se move silencioso, sem precisar de adornos ou disfarces.

O nome Perchten — plural de Percht — ecoa desde o alto alemão antigo, peraht, “brilhante” ou “resplandecente”, lembrando a luz tênue que luta contra as sombras longas do inverno nos Alpes. Mas os Perchten não são apenas palavra ou imagem; são figuras de uma tradição ancestral que caminha entre o visível e o invisível. Não são uma única criatura, mas um cortejo — uma comitiva de presenças que desfilam nas noites frias de fim de ano, em processões chamadas Perchtenlauf, atravessando vilarejos e vales nevados para expulsar os maus espíritos do inverno e saudar a virada do ano


O fato, é que na tradição mais antiga, Frau Perchta não usa máscara. Ela aparece com o rosto nu — seja velho ou jovem — porque seu poder não se encena. Ele habita o mundo sem necessidade de adorno. Ela observa, julga, atravessa. Seu aspecto não assusta pelo excesso, mas pela estranheza: o pé de ganso que marca sua diferença, a brancura que parece absorver a luz da neve, o silêncio que pesa mais do que qualquer grito. Ela pertence ao limiar, ao espaço entre o conhecido e o invisível, e não ao espetáculo que encanta ou assusta a multidão.

Os chifres surgem quando o rito precisa de corpo — quando a comunidade exige encarnação, quando o espírito precisa ser vestido para que o humano compreenda o limite, a presença e o medo. Mas a verdadeira Perchta habita o invisível, e seu poder não se mede por adereços: ele é antigo, inevitável, profundo como o inverno que vigia.

Nas Perchtenläufe — os desfiles de inverno que atravessam os vales alpinos — são os Schiachperchten (Perchten feios) que vestem máscaras de madeira com chifres retorcidos, dentes à mostra, olhos exagerados. Essas máscaras não pretendem retratar Perchta como indivíduo, mas materializar as forças que ela governa. São extensões do seu domínio sobre o caos do inverno, não seu retrato literal.

Os chifres, aqui, não são demoníacos no sentido cristão. Eles são pré-cristãos. Representam: a animalidade indomada; a fertilidade latente, e a força selvagem que precisa ser contida para que a ordem sobreviva.


Antes de serem associados ao diabo, os chifres eram sinais de poder natural. Nos Alpes, evocam o gado, a caça, a montanha — tudo aquilo que resiste ao inverno e, por isso mesmo, inspira temor.

Quando o cristianismo absorve — e distorce — essas figuras, ocorre a fusão. Perchta, senhora pagã do inverno, passa a ser vista através da lente do medo cristão. Os atributos dos Perchten — máscaras, chifres, grotesco — colam nela. A “bruxa do Natal” nasce desse mal-entendido cultural: uma entidade antiga reinterpretada como ameaça moral.

Há versões tardias do folclore — especialmente já no século XIX — em que Perchta é descrita ela mesma mascarada, liderando a Caçada Selvagem ou caminhando à frente dos Perchten. Essas versões não são as mais antigas, mas são reveladoras: mostram como, com o tempo, a líder absorve o rosto do coro. O símbolo vence a fonte.

Assim, quando se diz que Frau Perchta usa uma máscara de chifres, fala-se menos de uma descrição original e mais de uma imagem sincrética: Perchta como princípio, os Perchten como corpo, a máscara como linguagem visível do invisível.

Ela não precisa dos chifres para ser temida.

Mas o inverno precisa deles para ser compreendido.

E talvez seja por isso que, ainda hoje, quando as máscaras surgem nas ruas da Áustria e do sul da Alemanha, não se diz que “os Perchten estão passando”. Diz-se, em tom baixo, quase respeitoso, que Perchta está andando. Mesmo que seu rosto real — aquele sem madeira, sem chifres — permaneça escondido na noite.

SOB A VIGÍLIA DO INVERNO: FRAU PERCHTA E O NATAL ANTES DA LUZ

Antes que o Natal aprendesse a brilhar, ele soube escurecer. Antes que as velas se erguessem em fileiras perfeitas, antes que o cheiro do pinheiro se espalhasse pelas casas, existia um tempo em que o frio era absoluto, cortante e silencioso, e a noite parecia envolver cada aldeia alpina como um manto pesado, tão denso que até o vento se curvava diante dele.

Nas regiões altas, o nascimento de Cristo não despontou sobre uma terra vazia; ele encontrou um calendário já pulsante de memória, tecido por séculos de rituais ancestrais. O inverno não se apresentava apenas como estação, mas como um estado de suspensão do mundo, um interlúdio sagrado em que tudo parecia esperar, respirar em compasso próprio.

O vento percorria vales e florestas como mãos invisíveis, enrolando-se nos pinheiros, fazendo dançar a neve sobre os telhados, trazendo consigo o murmúrio antigo das montanhas, o som da vida contida sob o gelo, o ritmo lento e profundo de rios e grãos adormecidos.

Ali, cada sombra tinha história, cada sopro de ar carregava presságios, cada estrela, pendurada no céu claro do inverno, parecia guardar segredos que atravessavam gerações. Era tempo em que se podia ouvir o mundo se dobrar sobre si mesmo, o pulsar antigo da terra, o silêncio das aldeias imersas na neve, o compasso invisível que unia o humano, o animal e o espírito em uma dança silenciosa de espera e reverência.

Foi nesse limiar — entre o fim do ano solar e o começo incerto do próximo — que Frau Perchta encontrou seu lugar não como opositora, mas como guardiã do ciclo, caminhando lado a lado com o Natal, invisível, porém onipresente. Ela não precisa de luz para existir; habita a sombra, a memória, o ar gelado que entra pelas frestas das casas. Percorre vales e florestas cobertas de neve, desliza silenciosa pelos telhados, sente o calor dos lares e o silêncio dos grãos armazenados. Sua presença não ameaça, mas exige: lembra aos humanos que o mundo é delicado, que a ordem se conquista com cuidado, atenção e respeito — que cada fio de lã, cada novelo trançado, cada gesto, mesmo o mais pequeno, é ritual e sobrevivência, e que o inverno, apesar de imóvel e gélido, vive e observa.

Ela reina sobre as Rauhnächte (“noites ásperas”), os doze dias entre 25 de dezembro e 6 de janeiro, período em que o tempo parece perder sua linearidade. Era um intervalo sagrado entre dois anos, quando o mundo ficava suspenso, e cada gesto — cada favo de mel guardado, cada lã fiada, cada pote de grão — ganhava importância mágica. Não se fiava lã, não se varria a casa à noite, não se iniciavam trabalhos novos; tudo poderia atrair desordem ou despertar os espíritos errantes. Acreditava-se que os fantasmas dos mortos, os gnomos das cavernas e outras entidades invisíveis caminhavam livremente, e que o destino do ano seguinte era sussurrado ao vento e registrado pelo silêncio da noite.

Nesse tempo, cada som — o ranger da madeira, o crepitar da lenha, o toque distante de sinos — tinha significado. As aldeias iluminavam apenas o necessário, e cada lar se transformava em um microcosmo de cuidado e vigilância. Era uma época em que se compreendia profundamente que o Natal não é apenas festa, mas trânsito de forças, ponto de encontro entre o humano e o ancestral, entre o divino e o doméstico.

Frau Perchta não era antagonista do Natal; era sua guardiã ancestral, vestida de silêncio e olhar que pesa mais que o inverno. Ela atravessava as casas como um vento antigo, quase imperceptível, mas de atenção implacável. Seu julgamento não era cruel, mas firme: cada gesto descuidado, cada alimento esquecido, cada ritual negligenciado encontrava nela uma sombra silenciosa, um lembrete de que a celebração plena só floresce quando merecida. Mas aqueles que honravam a ordem, que depositavam o grão certo, a fruta seca escolhida, o mingau de cevada perfumado pelo fogo da cozinha, eram banhados por uma proteção invisível, uma bênção que percorria as veias geladas da noite.

Nesse equilíbrio sagrado entre cuidado e abandono, entre luz e sombra, surgia o espírito do Natal primitivo: não uma alegria efêmera, mas uma música lenta, feita de memória, atenção e respeito pelo ciclo do tempo. Não era um instante passageiro de riso, mas um rito profundo, onde cada gesto carregava a densidade da história humana.

Ao longo dos doze dias, o mundo parecia respirar de forma diferente. As casas retinham histórias como se cada parede fosse um pulmão antigo, cada lareira um coração pulsante de vidas contidas e vidas aguardadas. As velas tremeluziam, o presépio oferecia sua cena silenciosa, mas ainda não era suficiente para dissipar a escuridão. A verdadeira luz vinha de Frau Perchta: presença invisível, severa e maternal, guardiã das sombras e das claridades, que certificava que o inverno fosse atravessado com dignidade e consciência.

O Natal, assim concebido, não era festa imediata. Era limiar. Um tempo onde a luz e a sombra dançavam juntas, onde o espírito humano aprendia a se acostumar à lentidão, à paciência, à espera. Enquanto o presépio mostrava a vida que nasce, Frau Perchta lembrava da vida que deve ser preservada, nutrida, honrada. Ela não negava o nascimento; ela o enraizava. Sem sua presença, o Natal seria leve demais, uma promessa sem solo, um sopro de esperança perdido na neve dura do mundo real.

E no silêncio desses doze dias, cada passo, cada gesto, cada olhar se tornava ritual. A vida, tão frágil quanto o gelo que estala nos telhados, encontrava sustento não apenas na luz que se acende, mas na consciência de que existe alguém – antiga, eterna, severa e maternal – que guarda o equilíbrio entre a festa e o dever, entre a alegria e a memória.

Na linguagem popular, dizia-se que Perchta “passava pelas casas” durante essas noites longas, quando o vento carregava o frio pelo telhado e a escuridão parecia mais densa que a memória. Ela não invadia; atravessava. Observava as mesas gastas pelo uso, os cantos onde o pó dormia silencioso, os trabalhos interrompidos que aguardavam mãos atentas. Cada grão armazenado com zelo ou esquecido era como uma confissão silenciosa: revelava quem se lembrava, quem cuidava, quem deixava a vida fluir com atenção. Cada casa possuía seu próprio ritmo, e cada gesto doméstico — a lã fiada em meadas suaves, a lenha empilhada com precisão, o mingau deixado na tigela para os espíritos — era avaliado com olhos que viam além do visível, olhos de quem conhecia a densidade do mundo e a fragilidade do humano.

Ela não era intrusa; era alguém que sempre pertencia àquele espaço, que respirava o ar da cozinha como se fosse dela, que sabia onde cada sombra se escondia, cada suspiro da lareira, cada fio de fumaça que dançava no ar frio. O lar, afinal, era o epicentro simbólico do inverno, o coração que batia devagar sob a neve e a noite. E Perchta, antes de tudo, era senhora do doméstico: guardiã invisível do que se mantém e do que se perde, protetora do fio tênue entre o cuidado e o abandono.

É nesse ponto que ela se vincula ao Natal de maneira íntima, silenciosa, quase respiratória:

não às igrejas com seus sinos e vitrais, mas às cozinhas, com suas mesas de madeira e fogo brando; não aos coros, mas ao crepitar lento do fogo baixo, ao vapor que sobe do mingau e do pão assando.

Sua presença podia ser sentida na fragrância que se espalhava pelo ar — pão que cresce lentamente, manteiga derretendo, mingau que solta seu vapor perfumado de cevada e memória. Estava no leve rangido do piso de madeira à noite, no tilintar discreto da colher contra a tigela, no cuidado silencioso de cada gesto. Ela habitava a paciência, a atenção que salvava famílias do caos do inverno, a ordem que transformava o ordinário em ritual sagrado.

Cada ato doméstico era uma oferenda, cada detalhe se tornava testemunho de um pacto ancestral: a água que fervia, o grão que cozinhava, a fruta seca cortada com delicadeza — tudo era marca da passagem da bruxa do Natal. E mais do que medo, havia respeito: respeito pelo tempo, pela vida que se mantém, pelo fio invisível que liga o trabalho humano à preservação da alma durante as noites mais longas do ano.

Ela não apenas olhava; ela contava, lembrava, guardava. Era o sopro que tornava cada gesto consciente, cada rituais doméstico capaz de atravessar o inverno com dignidade. Em sua presença, até o silêncio se tornava música, cada sombra, companhia, e cada chama pequena, farol de um mundo que aprende a se conservar em meio à escuridão.

E assim, o Natal sob sua vigilância não era apenas celebração, mas trânsito de forças. A alegria estava entrelaçada ao silêncio; a luz, aos pequenos cuidados; a promessa, à memória ancestral que permeava as casas e as histórias das aldeias. Ela fazia do simples ato de preparar comida, do gesto de cuidar do lar, uma forma de rito, um elo entre o mundo visível e o invisível, entre o humano e o ancestral.

Em cada tigela deixada sobre a mesa, em cada centelha que subia da lareira, Perchta anotava o cuidado e a ordem, garantindo que o ano que viria encontrasse seus habitantes preparados, com gratidão e respeito pelo frio, pelo silêncio e pelo limite. O Natal, assim, se tornava um tempo de consciência, não apenas de festa; de memória, não apenas de presente; de vida preservada, antes da luz verdadeira.

Enquanto a liturgia cristã celebrava o nascimento divino, com suas vozes angélicas e velas que tremeluziam em oração, o folclore velava pela continuidade humana, aquela que não se mede em promessas, mas em cuidado, em gestos simples que sustentam a vida. Nas aldeias alpinas, os sinos podiam soar suavemente, anunciando a alegria celestial, e os coros entoar hinos de esperança, mas havia outro ritmo, mais antigo, mais primitivo, que pulsava por baixo de tudo — um ritmo que lembrava que o mundo precisava ser atravessado, vivido, sentido, e não apenas contemplado de longe.

Nesse mesmo compasso, os desfiles dos Perchten atravessavam as vilas, arrastando consigo o frio cortante da noite, o sopro das montanhas, o odor de neve e madeira molhada. Eram criaturas de sombra e ruído, feitas de madeira, pele e couro, máscaras que deformavam a realidade, sinos que batiam contra o silêncio como corações pulsando na escuridão. Cada passo quebrava a monotonia da noite, cada riso ou grito lembrava que nem toda ordem se revela em claridade.

Eles traziam à luz o que o Natal moderno tende a esquecer: o medo que mora sob a alegria, o caos que se esconde sob as decorações, o excesso de sombra que habita o coração humano durante o inverno, quando a vida se estreita ao calor das casas e se expande no vazio das noites longas. Observando, julgando, mas também preservando, os Perchten lembravam que a celebração não é apenas festa: é travessia, é consciência do que se perde e do que deve ser guardado.

E entre o estrondo dos sinos de ferro e o sussurro da neve que caía, surgia novamente a presença silenciosa de Frau Perchta, antiga, maternal, severa, observando cada lar, cada família, cada gesto de cuidado. Enquanto os aldeões se entreolhavam, assustados ou maravilhados, ela estava ali, firme, lembrando que o Natal verdadeiro não é apenas luz e riso: é também sombra, é memória, é vigilância do que torna a vida possível quando o frio insiste em dominar o mundo.

No entrelaçar dessas duas correntes — a cristã e a folclórica — nascia uma forma de Natal mais profunda, mais densa, quase palpável: uma celebração que não se limita à beleza da cena, mas que se enraíza no suor da cozinha, no vapor do mingau, no estalar da lenha, na atenção silenciosa aos detalhes, e até no medo ancestral que nos recorda de que a existência é frágil e precisa ser honrada.

Na escuridão gelada das aldeias alpinas, quando a neve silenciosa cobria as ruas estreitas e o vento soprava pelas chaminés, surgiam os Perchten — antigos espíritos do inverno, mensageiros da ordem e da desordem, guardiões invisíveis do ciclo humano. Entre eles, caminhavam os Schönperchten, os “Perchten belos”, movendo-se com passos firmes e gestos cerimoniosos, trajando peles claras e roupas e máscaras delicadas, como se cada olhar esculpido na madeira contivesse a promessa de prosperidade, fertilidade e boa sorte. Eram a esperança encarnada, a disciplina que germina no cuidado cotidiano, o bem que floresce no seio da comunidade. Cada gesto era ritual, cada passo carregava o peso de séculos, cada máscara lembrava que o futuro precisa ser cultivado no presente.

Ao lado deles, os Schiachperchten, os “Perchten feios”, corriam e gritavam, batendo sinos e espalhando ruído pelo ar gelado. Suas máscaras grotescas — dentes esculpidos, chifres retorcidos, olhos exageradamente abertos — não eram meramente assustadoras: eram guardiãs, expulsando os maus espíritos, afastando doenças, desordens e infortúnios que poderiam atravessar o ano sem controle. Eram a sombra necessária, o caos ritualizado, a lembrança de que a vida só sobrevive quando se respeita o equilíbrio entre luz e escuridão.

Juntos, Schönperchten e Schiachperchten formavam um coro ancestral: um movimento ritualmente perfeito que transformava medo em ordem, horror em proteção. Caminhavam pelas ruas, pelas praças cobertas de neve, fazendo o chão vibrar com o peso de séculos de crença. Cada sino, cada passo, cada máscara preparava o terreno simbólico para que algo novo pudesse nascer — a promessa de um ano que, embora desconhecido, encontraria os habitantes das aldeias atentos, respeitosos, prontos para honrar o ciclo invisível do mundo.

Nesse ritual, Perchta não precisava aparecer com rosto próprio: ela estava em cada gesto, em cada passo, em cada sopro de vento que atravessava os corredores estreitos das casas. Era a alma do inverno, a guardiã da transição, a memória que lembrava: antes que a alegria do Natal florescesse, havia que atravessar a sombra com coragem, cuidado e atenção.

Perchta, nesse arranjo delicado, não compete com o Menino na manjedoura. Ela guarda a porta. Ela garante que o nascimento não seja em vão. Seu papel é antigo: ordenar o mundo para que a vida permaneça possível, para que a ordem e a atenção se mantenham mesmo na escuridão mais longa. Ela não interrompe a celebração; ela a sustenta, silenciosa, invisível, como o ar frio que entra pela fresta da janela e lembra que a vida se mantém apenas quando respeitamos seus limites.

Por isso, o Natal sob sua vigília não é excessivo. Há comida, mas não desperdício. Cada tigela de mingau, cada pedaço de pão, cada fruta seca cortada com cuidado é uma oferenda silenciosa à continuidade da vida, um gesto de atenção que protege o lar. Há silêncio entre as palavras, pausas que permitem ouvir o estalo da madeira na lareira, o sopro do vento nas chaminés, o eco das montanhas que cercam as aldeias. Há respeito pelo que foi guardado durante o ano, pelo trabalho invisível que sustenta cada família. O sagrado, aqui, não é o brilho das velas nem o esplendor do ouro ou da estrela do presépio — é a contenção, a paciência, a capacidade de perceber a vida em cada detalhe pequeno, aparentemente banal.

Mesmo depois da cristianização, seu nome continuou sendo sussurrado junto às práticas natalinas. Em alguns lugares, chamava-se esse período de Berchtentage (“os dias de Berchta”), e o cuidado que se tinha com a casa, com a comida, com o trabalho interrompido, permanecia ritualizado. O nome dela resistia, colado ao calendário como uma memória antiga, lembrando que o tempo não começa com o calendário cristão, mas com a atenção ao ciclo do ano e à ordem silenciosa que sustenta a vida.

Assim, Frau Perchta torna-se a sombra necessária do Natal. Não sua inimiga, mas sua memória mais antiga. Ela habita o limite entre luz e escuridão, entre festa e silêncio, entre promessa e responsabilidade. Onde há excesso de brilho, ela lembra do vazio; onde há descuido, ela recorda o rigor do inverno. E ainda assim, sua presença não é apenas severa: é maternal, cuidadosa, essencial. Ela nos ensina que o Natal só é pleno quando a vida é respeitada, quando a ordem é honrada e quando cada gesto cotidiano é uma forma de ritual, uma forma de sobrevivência poética.

Sob sua vigilância, as aldeias não apenas sobrevivem ao inverno; elas aprendem a atravessá-lo com consciência, transformando cada gesto doméstico em ponte entre o humano e o ancestral, cada prato de comida em símbolo de memória, cada silêncio em lição de atenção. Perchta nos lembra que o Natal, antes de brilhar, precisa ser vivido no escuro, na contenção, na paciência — e que, somente assim, a alegria que chega com o Menino na manjedoura encontra solo firme para florescer.

Ela nos lembra que antes da celebração houve frio, antes do canto houve silêncio, antes do pão doce houve grão cru armazenado com cuidado. O Natal, sob seu olhar, deixa de ser apenas promessa e se torna responsabilidade.

E é nesse espaço — entre o sagrado cristão e o ritual ancestral — que a mesa se prepara.

Ainda simples.

Ainda contida.

À espera.

O MINGAU DA GUARDA: LENDA, RITUAL E PRESENÇA DE FRAU PERCHTA

Nas noites que parecem eternas, não era o frio que se espalhava pelas aldeias, mas a expectativa silenciosa de uma presença antiga. Frau Perchta não caminhava apenas pelos lares — ela movia-se pelas horas, pelos intervalos entre o sono e o despertar, pelos gestos que ninguém via, mas que davam sentido à ordem cotidiana. Não precisava de telhados cobertos de neve nem de mesas preparadas; seus olhos invisíveis se prendiam às intenções. Observava se o cuidado nascera de hábito ou de atenção verdadeira, se a vida era nutrida com consciência ou deixada à sorte do acaso.

Ela não se limitava aos alimentos, à lenha ou aos grãos: era guardiã das pequenas verdades que sustentam o mundo. Um fio de lã deixado solto, um pão amassado com descuido, uma palavra esquecida entre familiares — tudo vibrava sob seu olhar silencioso. Sua passagem transformava o ordinário em ritual, e o invisível em sagrado. Cada gesto doméstico, cada suspiro da casa, cada lampejo de vida cotidiana era lembrado e honrado, não pelo medo, mas pela consciência de que a existência exige presença, cuidado, atenção.

Frau Perchta, assim, não era apenas espectro da noite, mas guardiã da continuidade humana. Sua força residia em tornar visível aquilo que geralmente passava despercebido: a importância do tempo vivido com consciência, a disciplina que sustenta a vida, o equilíbrio delicado entre o cuidado e o abandono. Ela era memória, vigilância e paciência, tudo condensado em uma presença que ninguém podia tocar, mas que todos sentiam, como uma pulsação silenciosa no coração do inverno.

A lenda mais conhecida fala de suas visitas silenciosas às casas, mas não como uma narrativa de punição ou medo — como um lembrete de que a atenção sustenta a vida. Quem mantivesse a ordem, guardasse o alimento com cuidado, não desperdiçasse nada, encontraria, no ano seguinte, não apenas prosperidade, mas o calor invisível de proteção e continuidade. Mas aqueles que negligenciassem seus lares — deixando restos espalhados, trabalhos inacabados, grãos soltos — acordariam com marcas sutis de sua passagem: objetos ligeiramente fora do lugar, uma sensação de frio mais intenso que o habitual, um sussurro de lembrança de que a existência exige cuidado. Nesta dualidade — rigor e proteção — Frau Perchta revela-se juíza silenciosa do lar e do tempo, guardiã de todos os fios invisíveis que mantêm o mundo em equilíbrio.

Um conto antigo, ainda sussurrado entre os vales e montanhas, narra sua visita a uma família que negligenciara a cevada do celeiro. Ela não entrou com gritos nem com violência; atravessou os quartos como sombra que respira, deixou o ar mais denso, e partiu. Na manhã seguinte, os grãos haviam se tornado duros como pedra, lembrando que o descuido deixa marcas, e que o inverno se recorda de tudo. Mas, se a família demonstrasse atenção — deixando uma tigela de mingau sobre a mesa, quente ou repousando na penumbra do canto — Perchta sorvia silenciosamente, e o próximo ano lhes ofereceria fartura, saúde, proteção contra doenças e o invisível conforto de sua bênção. A comida, nesse contexto, é linguagem secreta: um gesto de aliança entre humano e espírito, entre lar e ciclo do ano, entre o cotidiano e o sagrado.

O mingau ritual, chamado Brein ou Kletzenbrei, transcende o alimento: é memória, intenção, história condensada em sabor e cheiro. Preparado com cevada, mel, leite e especiarias como canela e noz-moscada, cada ingrediente carrega um significado profundo. A cevada resiste ao frio, firme como a vida que persiste; as maçãs secas e as passas guardam a memória da colheita e da preservação; o mel oferece doçura e proteção invisível; as especiarias evocam coragem e força para atravessar o inverno. Cozinhar o mingau é um ato de meditação e atenção: mexer devagar, sentir os aromas, escolher o ponto exato. Colocar a tigela pronta sobre a mesa ou junto à lareira é um gesto de comunhão silenciosa, um ritual que fala mais alto que palavras, onde humano e espírito se encontram na quietude das Rauhnächte.

Em cada gesto, cada ingrediente, cada tigela deixada com cuidado, respira-se a verdade que Frau Perchta sempre guarda: a vida não é apenas vivida, mas sustentada; não é apenas celebrada, mas honrada. E nesse equilíbrio, entre cuidado e lembrança, nasce a verdadeira luz do inverno — aquela que aquece sem ser vista, protege sem ser tocada, e mantém a promessa do tempo intacta, de um ano ao outro.

Nos relatos do folclore germânico, especialmente em fontes dos séculos XIX e XX, encontra-se um registro delicado e persistente: durante as Rauhnächte — os doze dias sagrados entre 25 de dezembro e 6 de janeiro —, as famílias camponesas da Áustria e da Baviera preparavam um mingau de grãos simples, símbolo de subsistência e cuidado ritual. Esse mingau assumia diferentes formas e nomes, cada um carregado de nuance cultural e funcional.

O Brein (simplesmente mingau de grãos) era o mais básico, feito com cevada, aveia ou trigo, cozido lentamente em água ou leite. Sua simplicidade refletia a austeridade do inverno, o respeito pela modéstia e a consciência de que cada grão era precioso. Não se tratava de sabor, mas de presença: o Brein garantia que houvesse alimento para os dias frios e simbolizava a atenção ao lar, à ordem e ao cuidado.

O Perchtenbrei (mingau dos Perchten) carregava em seu nome a conexão direta com os rituais de inverno e os desfiles das figuras mascaradas. De textura mais densa e muitas vezes enriquecido com pequenas frutas secas ou mel, servia como oferenda silenciosa, um gesto de cooperação com os espíritos que caminhavam livres durante as Rauhnächte. Cada colher era um ato de diálogo com o invisível, um reconhecimento de que o inverno só podia ser atravessado com atenção e cuidado.

O Berchtenbrei (mingau de Berchta) era preparado especialmente para as noites em que a própria Frau Perchta era lembrada em cada gesto doméstico. Diferente do Perchtenbrei, que era ligado ao coletivo do desfile e à presença ritual do grupo, o Berchtenbrei enfatizava o culto individual e doméstico, servido na cozinha, ao lado da lareira, como sinal de hospitalidade e de observação silenciosa. A quantidade, a ordem e o cuidado na preparação refletiam diretamente o respeito ao espírito guardião do inverno.


Por fim, o Kletzenbrei (mingau de peras secas), talvez o mais conhecido fora das aldeias, incorporava frutas secas — sobretudo peras, mas também maçãs ou passas — transformando o mingau simples em símbolo de preservação e abundância. Cada pera seca (Kletze em alemão) não era apenas ingrediente; era memória do verão, da colheita, da paciência da terra, cozida lentamente para manter viva a promessa de alimento e cuidado. A textura ligeiramente mais doce e densa do Kletzenbrei o tornava particularmente associado à atenção, ao ritual de oferecer alimento ao espírito e à proteção simbólica da família durante o inverno.

O ponto central desses registros — sejam estudos sobre Frau Perchta, relatos de costumes camponeses ou descrições de rituais domésticos de inverno — não é o sabor, mas a intenção e a forma. Cada tipo de mingau, com seu nome, ingrediente e textura específicos, é manifestação do respeito pelo ciclo da vida, alimento de subsistência transformado em rito doméstico, linguagem silenciosa entre humanos e espíritos. Na preparação, cada grão, cada fruta, cada gesto de mexer ou servir torna-se um ato poético, lembrando que, mesmo nas noites mais longas e frias, a atenção, a disciplina e a memória ancestral sustentam a vida.

Em algumas aldeias, contam que, se a tigela fosse esquecida ou derrubada, a bruxa faria seu julgamento de maneira visível: manchas escuras surgiriam no chão, o vento sopraria com força pelas chaminés, e o mingau desapareceria sem explicação. Em outras regiões, ela poderia simplesmente trocar o mingau por pequenos objetos do dia a dia, lembrando os humanos que a ordem precisa ser mantida, mesmo quando invisível.

A tradição do mingau também se entrelaça com os Perchten, que desfilam pelas vilas durante o mesmo período. Entre eles, os Schönperchten espalham sorte e prosperidade, enquanto os Schiachperchten, com suas máscaras de madeira e chifres retorcidos, evocam a animalidade indomada e o caos que Frau Perchta governa. O mingau deixado nas casas funciona como ponte entre o lar e o desfile, como lembrete silencioso de que o cuidado diário se conecta às forças invisíveis que circulam o mundo.

Outras lendas contam que Perchta, em noites especialmente frias, poderia aparecer na cozinha, tocando levemente os objetos, apenas para testar a atenção dos humanos. Quem a observasse sem medo e sem desordem, sentiria calor invadir a casa, um sinal de que a proteção estava presente. Dizem também que ela adora quando o mingau é feito com frutas secas recém-colhidas, simbolizando a preservação do ciclo da vida, e que cada pitada de canela é reconhecida como um gesto de cuidado.

No entanto, nem todas as lendas são ternas. Há histórias em que crianças desobedientes ou famílias negligentes acordam com sombras estranhas nas paredes, vultos fugidios que desaparecem antes que possam ser vistos claramente. Nada de terrível acontece; é apenas o lembrete de que a ordem precisa ser respeitada. Em algumas aldeias da Áustria e do sul da Alemanha, ainda se diz que, quando as máscaras dos Perchten passam nas ruas, “Perchta está andando”, e todos fecham as janelas e observam, silenciosos, sabendo que o inverno só se atravessa com atenção e respeito.

Assim, a figura de Frau Perchta não é apenas temor ou disciplina. É memória materializada, é ritual de continuidade, é a consciência do homem diante do inverno e do ciclo da vida. O mingau não é apenas comida: é poesia em forma de sustento, é história e cuidado cozidos lentamente, fragrância de canela e mel que atravessa gerações. Cada colher, cada tigela deixada sobre a mesa, é um gesto de diálogo com o invisível, um pequeno ato de resistência contra a desordem e o esquecimento.

No fundo, todas essas histórias se entrelaçam: a bruxa que observa, o mingau que protege, os Perchten que caminham nas ruas. São capítulos de uma mesma narrativa, onde o Natal não é apenas celebração, mas trânsito de forças, ritual de atenção e respeito pelo ciclo da vida. Frau Perchta, invisível e atenta, garante que a passagem do tempo seja sentida, compreendida e honrada, e que cada inverno seja atravessado com consciência, cuidado e poesia. 

CONCLUSÃO – O INVERNO, O MINGAU E A VIGILÂNCIA SILENCIOSA DE PERCHTA

Quando as luzes do Natal acendem, cintilando sobre árvores e presépios, é fácil esquecer que antes do brilho havia silêncio, sombra e atenção. Frau Perchta nos lembra disso: não como ameaça, mas como guardiã do limiar, da ordem invisível que sustenta a vida. Ela caminha nas Rauhnächte, atravessa casas com olhos que não se veem, observa cozinhas e mesas, e verifica que cada grão, cada fruta seca, cada tigela de Brein, Perchtenbrei, Berchtenbrei ou Kletzenbrei esteja disposto com cuidado. Cada um desses mingaus, em sua simplicidade, não é apenas alimento, mas palavra silenciosa, oferenda e memória, gesto de humanidade em diálogo com o ancestral.

O Natal, sob a vigilância de Perchta, não é apenas celebração ou festa. É ritual de atenção, é respeito pelo ciclo da vida, é a lembrança de que a fartura se constrói com paciência, disciplina e cuidado. O mingau cozido lentamente na cozinha alpina não é só sustento; é ponte entre o visível e o invisível, entre o humano e o espírito, entre o calor da lareira e a neve lá fora. Cada colher, cada aroma de canela e mel, cada grão de cevada é testemunha de que o inverno só se atravessa com consciência, que a vida se mantém não pelo excesso, mas pela atenção e pelo gesto delicado.

E assim, Frau Perchta não é inimiga, nem figura de terror gratuito. Ela é a memória viva do que antecede o Natal, sombra necessária que nos ensina a atravessar o inverno com cuidado, e nos lembra que cada alimento, cada gesto doméstico, cada silêncio compartilhado é um ato de poesia e de sobrevivência. Entre chifres, máscaras e mingaus, entre sombras e lareiras, ela nos sussurra que o verdadeiro brilho do Natal não está nas luzes ou nos presentes, mas na ordem, na atenção e na presença consciente que cultivamos em cada gesto diário — e que é justamente isso que sustenta a vida quando o frio é mais intenso e a noite mais longa.

No fim, Perchta se dissolve nas lembranças do inverno, mas permanece nos rituais, nos mingaus, nas casas silenciosas: como princípio, como sombra, como poesia que atravessa gerações. E quem cozinha, observa ou oferece um simples Brein à noite, participa desse diálogo antigo, perpetuando a dança entre cuidado, sobrevivência e magia que faz o Natal ser mais do que festa — um ritual de vida, memória e vigilância silenciosa.

E assim, leitor, convido-o a atravessar o inverno com atenção e cuidado, como faziam os camponeses das aldeias alpinas. Pegue seus grãos, suas peras secas, suas passas e canela, e transforme-os em Kletzenbrei, o mingau ancestral que carrega em cada colher o gesto silencioso de respeito e proteção. Enquanto mexe a mistura sobre o fogo baixo, imagine as sombras longas da Rauhnächte dançando nas paredes, e sinta a presença de Frau Perchta, que observa sem pressa, atenta ao cuidado do lar.

Em algumas regiões, ainda se sussurra o costume: colocar a tigela sobre a mesa, inclinando-se levemente, e dizer com reverência: “Für dich, Frau Perchta“— “Para ti, Senhora Perchta”. Não é apenas alimento que se oferece; é gesto de hospitalidade, ato de memória e poesia em forma de sustento, ponte entre o visível e o invisível, entre a cozinha aquecida e o vento gelado do lado de fora. Cada colher é convite: para que o espírito do inverno seja sentido, para que a tradição sobreviva e para que o Natal não se limite ao brilho superficial, mas se viva no cuidado, na presença e na atenção que transformam uma simples tigela de mingau em rito de vida.

KLETZENBREI DE FRAU PERCHTA À MODA DO BARÃO DE GOURMANDISE

Ingredientes (4 porções)

Base

¾ xícara de aveia em flocos grossos (ou cevada em flocos, se quiser algo mais rústico)

1 ½ xícara de leite integral

1 xícara de água

1 pitada de sal

Frutas

½ xícara de peras secas picadas

2 colheres (sopa) de uvas-passas (claras ou escuras) ou damascos picados

Para dar sabor (equilíbrio moderno)

1 ou 2 colheres (sopa) de mel ou açúcar (adoce à gosto)

½ colher (chá) de canela

1 pedacinho de casca de limão ou laranja (sem a parte branca)

Finalização (opcional, mas recomendada)

1 colher (chá) de manteiga ou nata

Nozes, avelãs (ou a castanha que tiver por perto) levemente tostadas

PREPARO: Em uma panela, coloque todos os ingredientes da base e leve ao fogo baixo. Cozinhe mexendo sempre por cerca de 10–15 minutos, até começar a engrossar. Acrescente: peras secas, passas e a casca cítrica e cozinhe mais 5 minutos, até as frutas ficarem macias. Retire a casca cítrica. (se fizer com açúcar, inclua ele na mistura fervente). Acrescente: mel, canela e a manteiga e misture bem. Ajuste a textura com um pouco mais de leite, se necessário. Sirva quente, com nozes por cima.