É pra se comer bastante esta idéia de combinar gastronomia, cultura e história unidas num lugar acessível. Principalmente numa época onde as pessoas se entopem de gorduras trans e não alimentam a alma.
Sabendo que o homem não nasce da fome, mas do apetite. Te convido a conjugar o verbo comer em todas as suas possibilidades.
Um brinde a você por estar aqui! Bon apetit!!!
Quando a notícia da morte de
Brigitte Bardot atravessou meu dia de hoje, algo antigo se moveu dentro de mim,
como uma maré que retorna sem avisar. A lembrança veio de muito longe, de um
tempo em que eu era criança e o mundo ainda se organizava em sons, impressões e
espantos.
A primeira vez que ouvi o
nome Brigitte Bardot, não foi acompanhado de imagem alguma — foi apenas o nome,
pronunciado por alguém que falava de beleza como se falasse de um acontecimento
raro.
A infância, essa arquiteta
caprichosa da memória, guarda algumas cenas com precisão quase cruel, como
fotografias intocadas, e dissolve outras em lampejos rápidos, que surgem e
desaparecem. Não me recordo quem puxou o assunto, nem em que sala, nem em que
tarde. Mas lembro perfeitamente do impacto do nome.
Brigitte Bardot.
Ele me empolgou de imediato.
Soava chique, inteiro, estrangeiro. Um nome que parecia caminhar de salto alto
mesmo quando dito em voz baixa. Logo alguém explicou que era francês — e isso
bastou. Ali se fechou o círculo do meu encantamento infantil: o que era
francês, para mim, era sinônimo de elegância, de mundo vasto, de algo que
existia além do alcance das mãos.
O tempo passou — não com
pressa, mas com aquela paciência própria de quem sabe onde quer chegar. Anos
muitos, muitos anos depois, o nome ressurgiu. Já não era apenas música: vinha
carregado de história. Era o início dos anos 2000, eu cursava Turismo na faculdade,
aprendendo a ler os lugares não apenas como espaços, mas como destinos moldados
por encontros improváveis. Eu tinha aulas com professores que fizeram parte da
primeira turma de Turismo no Brasil, pessoas que traziam nos olhos a memória de
quando tudo ainda estava sendo inventado.
Num desses dias, enquanto
ajustávamos uma viagem técnica para a Região dos Lagos, mais precisamente para
Búzios, no Rio de Janeiro, o professor mencionou Brigitte Bardot. Disse, quase
como quem conta um segredo antigo, que fora ela a responsável por colocar
Búzios na rota do turismo mundial ainda na década de 1960. Achei curioso, quase
poético: o primeiro curso de Turismo no Brasil só surgiria na década de 1970,
mas Bardot já havia feito, sozinha, o trabalho que os livros ainda tentariam
explicar depois.
Ela esteve em Búzios duas
vezes, em 1964. A primeira, em janeiro, quando permaneceu ali por quatro meses,
hospedada em Manguinhos, ao lado do então namorado Bob Zagury. A segunda, em
dezembro, já sob uma luz mais intensa, quando sua presença deixava de ser
apenas curiosidade e passava a ser acontecimento. O que a seduziu foi o aspecto
bucólico, a necessidade de isolamento, o silêncio como abrigo. Brigitte aportou
na Armação de Búzios para descansar do mundo — e, sem saber, transformou aquele
lugar para sempre.
Para os moradores locais,
gente simples e hospitaleira, ela não era mito nem estrela. Era descrita como
“uma criança bonita, parecida com uma boneca de olhos verdes”, conforme
registrou o Jornal do Brasil da época. Essa imagem me toca profundamente: a mulher
que o mundo venerava vista ali como algo frágil, quase doméstico, pertencente
ao cotidiano da vila.
Depois da visita da jovem
Brigitte Bardot, o balneário foi revelado ao mundo. A antiga vila de pescadores
começou a mudar, a crescer, a ganhar projeção nacional e internacional. Durante
sua estadia, ela viveu de forma simples, caminhando pela cidade, frequentando
praias como Manguinhos, convivendo com os moradores — como se estivesse
tentando, por alguns meses, ser apenas mais um corpo entre o mar e a areia.
Mas o mundo não esquece
facilmente aquilo que toca. Após suas visitas, Búzios passou por mudanças
aceleradas, ganhou fama, desejo, nome. E desde então, nunca mais saiu de moda.
Em 1999, a cidade inaugurou
a Orla Bardot, onde uma estátua foi instalada em sua homenagem — um gesto de
gratidão silenciosa, quase marítima. Brigitte Bardot nunca mais retornou ao
município, mas deixou algo mais duradouro que presença: um legado. Algo que
permanece no desenho da cidade, no fluxo dos visitantes, na memória coletiva.
Neste domingo, logo após a
notícia de sua partida, a Prefeitura de Búzios publicou uma homenagem. O texto
destacava a relação rara que ela construiu com o lugar, mesmo sendo chamada de
musa. Um trecho dizia: “Você fez diferente: caminhou junto, escolheu o
silêncio, preferiu o essencial. Tornou-se parte da alma de Búzios, como se
sempre tivesse estado aqui.”
Ao ler essas palavras, senti
que aquele nome que me encantara na infância finalmente fechava um ciclo dentro
de mim — não como despedida, mas como permanência.
Como turismólogo de
formação, eu reconheço com clareza quase técnica — mas nunca fria — que
Brigitte Bardot foi um elemento fundamental na construção e na manutenção de
Búzios como destino turístico. Há dados, há datas, há análises possíveis. O
impacto é mensurável: antes dela, uma vila; depois dela, um nome pronunciável
em muitas línguas. Mas essa leitura, embora correta, é insuficiente.
Porque imagino — e essa
imaginação me acompanha como uma pergunta que não se cala — que para aqueles
que conviveram com ela naquela época, ali, entre o sal do mar e a poeira das
ruas de terra, Bardot tenha sido mais do que um fator de transformação econômica
ou simbólica. Talvez tenha sido apenas uma presença: alguém que caminhava
devagar, que olhava nos olhos, que ria com facilidade. Talvez tenha sido
silêncio partilhado, sombra dividida, manhãs sem urgência.
Quando estive em Búzios, não
cheguei a entrevistar nenhum antigo morador. Hoje, confesso, isso me pesa.
Arrependo-me desse silêncio que deixei existir. Gostaria de ter encontrado
essas pessoas, de ter ouvido suas vozes gastas pelo tempo, de recolher fragmentos
de uma Brigitte que não aparece nos filmes nem nas fotografias — aquela que
existiu apenas ali, naquele intervalo raro da vida em que ela não era
espetáculo, mas vizinhança. Ter mais visão dela. Ter mais humanidade emprestada
por quem a viu sem moldura.
Hoje, entretanto, ela já não
está mais entre nós. E o que fica são imagens. Imagens conhecidas, repetidas,
algumas cristalizadas demais. Ficam os gestos eternizados, os enquadramentos,
os olhares capturados quando ainda não sabiam que seriam eternos. Fica aquilo
que o mundo conseguiu guardar.
Eu conheço o suficiente — e
digo isso com respeito e consciência dos limites. Vi alguns de seus filmes,
desses que atravessam décadas sem envelhecer por completo. Vez por outra, ouço
algumas das músicas que ela gravou, e nelas há sempre algo de leve e de
melancólico, como se a voz carregasse a fadiga doce de quem foi vista demais.
Conheço também suas escolhas fora das telas, suas recusas, seu afastamento, sua
decisão de existir longe do brilho constante.
E, curiosamente, partilho
gostos com ela. Particularmente, também gosto de alguns dos pratos que eram os
seus preferidos — mas isso ficará para o final deste ensaio, como se deve
deixar o sabor repousar até o momento certo. Antes, porém, é preciso falar um
pouco sobre ela, para aqueles que não a conheceram, para os que nasceram depois
que sua imagem já era mito, para quem só ouviu o nome sem nunca ter parado para
senti-lo.
Porque Brigitte Bardot não
foi apenas vista.
Ela foi percebida.
E essa diferença muda tudo.
ELA FOI CORPO E ALMA DE
SUA PRÓPRIA LENDA
Quando Brigitte Bardot
nasceu em Paris, em setembro de 1934, ela nasceu já envolta em seda e etiqueta
— numa grande cidade que é ao mesmo tempo luz e sombra, no lar de uma família
burguesa tradicional, com apartamentos elegantes e rotinas marcadas por rigor e
expectativas altas. Seu pai era industrial, dono de fábricas e habituado ao
poder sereno das grandes máquinas; sua mãe, filha de um diretor de seguros,
vivia a elegância da moda e da dança, interessada mais nas formas do que nas
fugas do coração. Bardot cresceu entre salões bem arrumados, festas cuidadas e
um futuro que, para muitos, já parecia escrito.
Brigitte Bardot (à esquerda) rodeada pela família na escadaria da casa dos avós em Louveciennes, França, maio de 1952. O pai, Louis, a mãe, Anne-Marie, o avô, "Boum-papa", a irmã de 13 anos, Mijanou, e o cachorro. Foto de Walter Crone
Mas havia algo nela que
ardia além dos tecidos caros e das salas amplas — uma inquietação, um desejo de
respirar o mundo sem a moldura previsível que sua educação tentava impor. No
lar onde o rigor católico controlava os passos e onde os amigos eram escolhidos
com a mesma precisão de um terno bem cortado, ela sentia vontade de desaparecer
daquele desenho perfeito e buscar algo que ninguém ali poderia nomear.
A própria infância de Bardot
ficou marcada por estas tensões: em casa, os padrões de comportamento eram
estritos, as amizades limitadas e a disciplina — implacável. Numa ocasião que
ela mesma recordaria depois, um vaso favorito dos pais foi quebrado durante uma
brincadeira — e, em resposta, seus pais reagiram com severidade, exigindo
distância emocional e formalidade até na forma de tratamento dentro de casa,
como se cada gesto fosse uma chance de desordem a ser evitada.
Mas o corpo dela não nasceu
para ser contido. Enquanto aprendia balé e desenhava passos no estúdio, um
impulso mais profundo crescia em seu peito: o desejo de sentir a vida em
movimento, de ser mais do que um rosto bonito em retratos engessados. Aos quinze
anos, quando posou para a capa da revista Elle e foi vista pela primeira vez
fora do círculo restrito de sua família, algo dentro dela despertou de vez —
era como se uma janela se abrisse para um céu que antes parecia sempre
distante.
E então Roger Vadim entrou
em cena — não apenas como cineasta ou futuro marido, mas como o agente que
desafiou todas as bordas daquela existência burguesa. Ele viu nela não apenas
um rosto, mas um espírito que precisava se lançar para fora das paredes controladas
da casa parisiense. A partir daquele encontro e daquela primeira câmera que não
tirava uma pose educada, Brigitte começou a aprender algo que sua educação
jamais ensinara: que a vida verdadeira às vezes acontece fora das grades do
esperado, fora das curvas suaves do que é seguro.
Brigitte Bardot e Roger Vadim tomando café da manhã na cama, década de 1950.
Ela não apenas deixou a
riqueza para trás — ela começou a rejeitar a própria ideia de um destino pronto
e arrumado. Entrou no cinema como quem atravessa um campo vasto pela primeira
vez: com respiração contida e coração solto, sabendo que nada jamais seria como
antes. Essa decisão foi um salto para fora da colcha confortável da riqueza,
rumo ao desconhecido do palco, da tela, da fama e de um mundo que, por vezes, a
quis como objeto antes de percebê-la como alma.
Assim, a transformação de
Brigitte Bardot — da menina criada entre cortinas pesadas e ordens repetidas —
para a mulher que violou convenções, desafiou normas e reinventou sua própria
vida não é apenas uma história biográfica: é um gesto de coragem, de amor
próprio e de busca pela autenticidade que poucos conseguem viver.
Foi então que Roger Vadim,
jovem cineasta e seu primeiro marido, escreveu um papel que não era apenas
retrato, mas uma revolução: And God Created Woman (E Deus Criou a Mulher,
1956). Nesse filme, Brigitte, aos 22 anos, não apenas atuou — ela incendiou a tela
com uma energia que parecia descender de outra lógica, uma que recusava
personagens dóceis e molduras contidas. A sensualidade que emanava dela era
tempestade e brisa ao mesmo tempo, uma música sem nome que atravessava corpos e
atravessou décadas.
A fama foi um sol que
brilhou forte demais. Não era incomum que fãs atravessassem portões, entrassem
em sua casa, rondassem jardins de Saint-Tropez, na esperança de apenas um
lampejo de sua presença, uma relíquia qualquer que pudesse tocar e guardar. Os paparazzi,
como aves noturnas sedentas, perseguiram cada movimento seu, transformando até
os dias quietos em sequência de flashes. Alguns atravessaram o limite do
humano: bolas de neve jogadas em seu rosto, uma enfermeira que, em um ataque de
loucura, a atacou com um garfo — e que deixou cicatrizes que Brigitte carregou
consigo como mapas de batalhas íntimas.
A imagem que o público
consome — aquela moldurada, iluminada, pronta para consumo — era apenas a
superfície de um corpo que sangrava sob o peso do olhar permanente. Nada disso
é exagero poético, mas a verdade crua de uma mulher que foi vista demais, que foi
reduzida a cenário e a objeto, sem que quase ninguém perguntasse o que ardia em
seus olhos.
Aos 40 anos, esgotada pelo
assédio e pelos espinhos invisíveis da fama, Brigitte decidiu virar o rosto
para a câmera e escutar o que seu próprio coração gritava em silêncio. Ela
tentou tirar sua própria vida em mais de uma ocasião — não como rendição, mas
como sinal de que o mundo que a queria inteira e sempre disponível não lhe
pertencia.
Foi assim que ela se afastou
dos holofotes e descobriu um amor que exigia silêncio, respeito e verdade: o
amor pelos animais. Fundou, em 1986, a Fundação Brigitte Bardot, dedicada à
proteção e ao bem-estar dos que não têm voz. Não foi um gesto fácil ou decorativo.
Para financiar sua causa, ela leiloou joias e objetos pessoais, convertendo
lembranças de um passado de glamour em recursos para resgatar vidas indefesas.
Do outro lado da lente,
Brigitte viu nos olhos dos animais aquilo que aprendeu a reconhecer em si
mesma: a vulnerabilidade, o medo, a vontade de viver sem dor — algo que jamais
encontrou no olhar insaciável da fama. Ela viajou, protestou, exigiu mudanças e
confrontou tradições que aceitavam sofrimento como normalidade. Seu nome passou
a soar nas campanhas contra a caça de focas, contra a crueldade nas fazendas
industriais, contra práticas que o mundo justificava com o argumento da
necessidade.
E mesmo ali, nessa nova
encarnação de si mesma, seu coração continuou a arder em contradições: seu
ativismo apaixonado muitas vezes colidiu com palavras duras e posições que a
tornaram figura controversa e alvo de condenações por incitação ao ódio em sua
França natal — lembrando que as complexidades humanas não são facilmente
apaziguadas por intenções nobres.
E assim foi sua vida:
corpo que foi desejo,
alma que foi lente,
espírito que foi voz dos
silenciados.
Ela se tornou mito — não
porque alguém o decretou, mas porque sua história é feita de luz e de feridas,
de brilho e de noites sem estrelas, de amor e de dor.
O GOSTO DO SILÊNCIO:
QUANDO A VIDA SE SERVE À MESA
Existe um território da vida
que raramente aparece nas biografias oficiais: a cozinha. É ali que a fama se
dissolve, que o corpo descansa da pose, que a alma escolhe o que pode ou não
ingerir do mundo. Brigitte Bardot, mesmo depois de ter sido imagem excessiva,
foi alguém que soube preservar esse território íntimo do sabor.
Quanto à comida, ela
continuou cozinhando para si mesma já em idade avançada, com prazer evidente,
como quem transforma o ato de comer em gesto de cuidado e permanência. Comer,
para Bardot, nunca foi espetáculo — foi refúgio.
Em Saint-Tropez, onde tantos
a perseguiram com olhos famintos, havia também um lugar onde ela se sentava
como qualquer outra pessoa: o restaurante La Ponche, discreto, antigo,
impregnado de Mediterrâneo. Ali, entre paredes que ouviram confidências e passos
lentos, o cardápio oferecia muito mais do que a culinária provençal clássica.
Havia ecos do mundo: Índia, Tailândia, Líbano, Japão, Marrocos. Uma diversidade
que parecia dialogar com a própria trajetória de Bardot — mulher francesa, mas
jamais confinada a uma única identidade.
Curiosamente, ninguém sabia
dizer qual era, de fato, sua comida favorita. Como se esse detalhe tivesse sido
guardado longe do olhar público, protegido da curiosidade que tantas vezes lhe
invadiu a vida. Foi apenas mais tarde, num gesto quase fortuito, no posto de
turismo de Saint-Tropez, que a resposta surgiu — escondida numa edição local de
revista, daquelas que só quem caminha sem pressa encontra. A edição de setembro
celebrava as figuras que haviam atravessado as ruas da cidade. Entre elas,
Brigitte. E ali, finalmente, estava revelado o prato que lhe era caro: a salada
de tabule.
A história vinha contada por
Frédéric van Coppernolle, chef belga, cuja vida se entrelaçou à dela de maneira
silenciosa e profunda. Em 1980, aos quinze anos, ele foi morar com a avó na
propriedade de Bardot, enquanto seus pais atravessavam um divórcio difícil. A
avó cuidava da casa — e cozinhava. Bardot, já então uma defensora obstinada dos
direitos dos animais, era vegetariana há muitos anos, e a cozinha da casa
girava em torno desse princípio: nada de crueldade, nada de excesso, apenas o
essencial.
O jovem Frédéric tornou-se
ajudante da avó. Preparavam tortas de cebola, ratatouille perfumado de azeite,
pizzas simples, quiches de legumes e queijo. Cozinhavam também para os muitos
habitantes não humanos da casa: treze cães e cerca de quarenta gatos, alimentados
com refeições feitas especialmente para eles — como se a ética de Bardot se
estendesse, naturalmente, da mesa ao quintal.
Entre todos os pratos, havia
um que se repetia com carinho: o tabule da avó. Tecnicamente, não era tabule,
mas cuscuz — e eles sabiam disso. Nunca a corrigiam. Bardot era conhecida por
certa teimosia doce, e a paz valia mais do que a precisão culinária. Chamavam
de tabule, e assim ficava. Afinal, os ingredientes falavam por si: ervas
frescas, limão abundante, azeite generoso. O nome era apenas um detalhe.
Na juventude, durante as
filmagens em Saint-Tropez, esse prato acompanhava outro prazer simples: a Tarte
Tropézienne. Um brioche macio, aberto ao meio, recheado com creme de
confeiteiro misturado a creme de manteiga, coberto por açúcar cristal. A
sobremesa ganhou fama mundial e foi batizada pela própria Bardot, em 1956,
durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher. Mesmo o doce carregava sua
marca: sensual sem ser excessivo, simples sem ser banal.
Com o passar dos anos, sua
relação com a comida tornou-se ainda mais ética. Desde o final da década de
1970, Brigitte Bardot militou ativamente por opções vegetarianas em
restaurantes, denunciou a crueldade da indústria alimentar e defendeu uma
alimentação que não exigisse sofrimento como condição. Comer, para ela,
tornou-se também um ato político — silencioso, firme, irrevogável.
E assim, quando pensamos em
Bardot à mesa, não a vemos como mito, mas como alguém que escolhia folhas,
cortava limões, sentia o perfume da hortelã. Alguém que, depois de ter sido
devorada pelos olhares do mundo, aprendeu a escolher cuidadosamente o que deixaria
entrar em si.
Se o tabule foi o abraço
fresco de uma vida vegetariana, há outro sabor que pertence à memória de
Brigitte Bardot como um sopro dourado de verão. Enquanto a salada era leve,
cheia de ervas e limão, havia um doce que sussurrava o nome da Riviera Francesa
entre cada camada de creme e massa — a Tarte Tropézienne.
A Tarte Tropézienne não é
apenas um ‘bolo’. É um pedacinho de Saint Tropez transformado em sobremesa: uma
massa de brioche levemente amanteigada, macia como nuvem, dividida ao meio e
recheada com um creme tão delicado que parece feito de memórias — mistura de
crème pâtissière e creme de manteiga, às vezes aromatizado com água de flor de
laranjeira ou um toque de rum. Por cima, pequenos cristais de açúcar brilham
como manhã de sol na Côte d’Azur.
Essa sobremesa nasceu nos
anos 1950, criada por Alexandre Micka, um confeiteiro polonês que se instalou
em Saint Tropez após a Segunda Guerra Mundial e trouxe consigo a receita
esquecida de sua avó, adaptada ao clima ensolarado daquele recanto do Mediterrâneo.
Foi ali, enquanto Brigitte
Bardot filmava “E Deus Criou a Mulher” nas ruas ensolaradas e nos becos de
pedra da vila, que ela encontrou esse presente de textura e sabor. Dizem que
ela se apaixonou pela sobremesa e sugeriu ao confeiteiro que desse um nome ao
doce que ela tanto pedia — primeiro chamando o de la tarte de Saint Tropez, e,
mais tarde, consolidando o nome que conhecemos hoje: Tarte Tropézienne.
A partir desse momento, a
Tarte Tropézienne deixou de ser apenas um bolo local e tornou se um ícone, uma
poesia em forma de açúcar e creme. Ela ganhou fama junto com Bardot, assumindo
seu lugar entre os símbolos da Riviera — tão leve quanto o vento que percorre o
mar, tão radiante quanto o sorriso de uma noite de verão.
E então, ao contrário de
muitas sobremesas que se perdem com o tempo, ela permaneceu. Permeou cafés
escondidos entre ruazinhas, foi servida em mesas com vista para o porto, tornou
se objeto de desejo de viajantes e locais. A receita original ainda é guardada
com cuidado como um segredo de família, transmitida por gerações de padeiros
que mantêm viva essa tradição culinária de Saint Tropez.
Provar uma Tarte Tropézienne
é sentir na boca a história de uma mulher que, na juventude, foi desejo e
estrela, e que, depois, soube escolher seus prazeres com a mesma honestidade
que escolheu sua trajetória de vida — sem concessões, mas com poesia.
A brioche acaricia os
lábios, o creme desliza como saudade, e os cristais de açúcar explodem como
risos de infância. É uma sobremesa que não se come apenas com a língua — se
come com lembranças, com paisagens, com tempo suspenso.
DESPEDIDA À DIVA PELO SABOR E PELA VIDA
E então chegamos ao momento
em que a textura encontra o símbolo, em que o sabor se torna voz e a sobremesa
se ergue como epitáfio.
Ao fechar os olhos, o nome
Brigitte Bardot ressoa como um sussurro de elegância e mistério, carregado do
perfume distante do cinema francês. Seu caminhar pelas praias de Búzios, há
décadas, transformou aquele recanto em destino mundial, como se cada passo
tivesse imprimido magia na areia e nos corações que o mundo ainda descobriria.
Não era apenas uma atriz ou um ícone: Brigitte se tornou presença viva, elo
entre fantasia e realidade, entre o sonho que a tela projetava e o mundo que
podia ser tocado com a imaginação e o encanto. Hoje, sua memória retorna como
um sopro suave, lembrando que, embora tenha partido, permanece em cada
história, em cada paisagem, em cada passo leve que deixou gravado no tempo.
E se sua vida se revela em
imagens e lembranças, há também um sabor que nos aproxima de sua intimidade: a
salada de tabule. Cada grão de bulgur, cada folha de hortelã, cada toque de
limão nos fala de uma Brigitte que escolheu a simplicidade com elegância, que
apreciou o gesto de cozinhar e comer com prazer e consciência. Naquele prato,
encontramos não apenas temperos, mas a essência de quem viveu com intensidade,
ética e delicadeza, uma mulher que transformou cada escolha, por menor que
fosse, em expressão de sua liberdade e de sua alma.
Brigitte Bardot, cuja vida
foi um caleidoscópio de beleza, decisão e contradição, encontrou na Tarte
Tropézienne — essa poesia açucarada entre duas nuvens de brioche — não apenas
um deleite, mas um espelho da própria existência: rica, leve, intensa e definitivamente
inesquecível.
Naquele encontro entre atriz
e doce, não foi somente uma sobremesa que ganhou um nome. Foi um pedaço de
história que se confunde com a crença de um mundo mais livre, mais sensível,
mais profundo. A receita, criada por Alexandre Micka a partir de uma herança
familiar e consolidada durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher, encontrou
em Bardot um coração que a reconheceu e a nomeou — como quem dá nome ao que
ama.
Ela, que por tanto tempo
viveu sob o peso dos olhares, achou na mesa um lugar de calma e de verdade.
Entre ervas frescas e limões vivos do tabule, e o creme generoso da
Tropézienne, estava toda a ambiguidade de uma vida que foi cobiçada e serena ao
mesmo tempo. A comida que ela escolhia não era apenas alimento: era gesto, era
pausa, era afirmação de uma escolha ética — de amar os que não podem falar e de
escutar o que o silêncio ensina.
Agora, ao fim, não se trata
apenas de lembrar Brigitte Bardot como estrela de cinema ou musa dos anos 1950
e 1960.
Trata se de recordar que,
por trás da câmera, havia uma mulher que olhou para a vida com intensidade e
lutou por aquilo que acreditava ser justo.
Trata se de contemplar uma
forma de existir que não se deu por vencida diante do espetáculo dos outros,
mas buscou significado no simples e no essencial.
E, por isso, ao trazer esta
sobremesa — a Tarte Tropézienne, com sua massa dourada, seu coração cremoso e
seu açúcar cintilante — construo um momento de despedida que é ao mesmo tempo
celebração: um convite para sentir cada camada da memória com a mesma
delicadeza com que Brigitte viveu, amou e escolheu seus caminhos.
Ao fechar este ensaio, deixo
a última imagem não como um fim, mas como um brinde — um pedaço de Saint Tropez
servido na língua do tempo, onde cada mordida é lembrança, cada aroma é emoção,
e cada memória é um sopro que não se apaga.
Adeus, Brigitte Bardot. Que
a eternidade seja tão leve quanto a espuma de um creme e tão luminosa quanto o
sol que banha aqueles campos de limão e mar.
SALADA DE TABOULE AO ESTILO DE BRIGITTE
BARDOT
Nesta versão atribuída a Brigitte
Bardot, a “salada de tabule” é feita com couscous marroquino instantâneo — por
isso, tecnicamente, não é o tabule tradicional como se conhece no Oriente
Médio, que leva bulgur (trigo para quibe). Mas o resultado é igualmente
refrescante, aromático e delicioso, com sabores que evocam as viagens, os
jardins e o Mediterrâneo que a diva tanto amou.
Ingredientes
½ xícara de suco de tomate (bata tomates
bem maduros no liquidificador e coe)
1 ½ xícaras de couscous marroquino
instantâneo
1 colher de sopa de azeite de oliva
(pode ir até ¼ de xícara, conforme gosto)
1 xícara de grão‑de‑bico
enlatado (bem escorrido)
1 ½ xícaras de tomates picados
1 xícara de pepino, descascado, sem
sementes e em cubinhos
1 colher de chá de alho, bem picado
3 colheres de sopa de échalotes ou
cebola bem picadinha
Raspas de ½ limão
Suco de 3 colheres de sopa de limão
(cerca do suco de 1 limão)
1 ½ a 2 xícaras de folhas de hortelã
picadas (conforme preferência)
2 colheres de chá de sal
Pimenta‑do‑reino
a gosto
Pimenta‑caiena ou molho picante (opcional, para
finalizar)
MODO DE PREPARO: Aqueça líquidos: num pequeno tacho, leve
1 xícara de água e o suco de tomate para começar a ferver. Hidrate o couscous:
coloque o couscous marroquino instantâneo numa tigela resistente ao calor e
despeje sobre ele a água com suco de tomate ferventes. Tempere: adicione o
azeite e misture delicadamente. Cubra com um pano ou com plástico e deixe o
couscous repousar, absorvendo o líquido, por alguns minutos até que os grãos
estejam macios. Misture os ingredientes frescos: em outra tigela, combine o
grão‑de‑bico, tomates, pepino, alho, échalotes,
raspas e suco de limão. Solte o couscous: com um garfo, solte os grãos agora
macios e junte‑os aos
vegetais. Incorpore as ervas: acrescente a hortelã picada, o sal e a pimenta‑do‑reino;
mexa bem para integrar sabores. Ajuste e refrigere: finalize com pimenta‑caiena ou um toque de molho picante se
desejar, cubra e leve à geladeira por pelo menos 3 horas — o descanso ajuda os
sabores a se fundirem e aprofundarem. Sirva frio, como entrada refrescante ou
acompanhamento.
TARTE TROPÉZIENNE
Ingredientes para a massa (brioche):
600 g de farinha de trigo
2 colheres de chá de fermento biológico
seco
100 g de açúcar
6 ovos
1 colher de chá de sal
300 g de manteiga sem sal, amolecida
Raspas de 2 limões (opcional, para
perfume)
Açúcar em pérola para polvilhar
Creme (Crème Diplomate — combinação de crème pâtissière e creme
batido):
500 ml de leite
6 gemas de ovo
80 g de açúcar
60 g de farinha de trigo
60 g de amido de milho
1 fava de baunilha ou essência de
baunilha
200 ml de creme de leite fresco batido
Água de flor de laranjeira (opcional)
Modo de preparo – Prepare a brioche: misture farinha,
açúcar, fermento, sal e ovos. Sove até ficar elástica. Acrescente a manteiga
aos poucos e continue sovando até a massa ficar lisa e macia. Deixe crescer em
local morno até dobrar de volume. Modele em forma redonda e asse até dourar
levemente. Polvilhe açúcar em pérola por cima antes de ir ao forno. Faça o
crème pâtissière: aqueça o leite com baunilha. Bata gemas com açúcar, adicione
farinha e amido. Incorpore ao leite quente até engrossar e esfriar. Junte o
creme batido: depois de frio, misture delicadamente o creme de leite batido ao
crème pâtissière para obter leveza. Monte a torta: corte a brioche ao meio
horizontalmente, recheie generosamente com o creme, coloque a “tampa” por cima
e leve à geladeira antes de servir.
Neste ano, escolhi me
afastar dos caminhos excessivamente iluminados do Natal — aqueles que brilham
nas vitrines, cintilam nos anúncios e se esgotam no consumo apressado.
Voltei-me para as sendas mais discretas, quase ocultas, onde a luz não ofusca,
apenas revela. Ali, quis recolher histórias antigas, vindas de culturas
distantes, pouco conhecidas no Brasil, mas portadoras de uma densidade
simbólica que nenhuma decoração festiva é capaz de conter. Histórias que não
começam nem terminam no nascimento do Cristo, mas o antecedem — atravessam
séculos, atravessam sombras — e chegam até nós vindas de um tempo em que o
sagrado ainda respirava em muitas formas.
São narrativas que
sobreviveram apesar das tentativas de silenciamento. Pois houve um tempo em que
a Igreja, consciente do poder dessas crenças e da força indomável das culturas
ancestrais, optou por moldá-las, transformá-las — ou enterrá-las — para preservar
sua própria ordem. Ainda assim, algo permaneceu. Algo resistiu no subterrâneo
da memória coletiva, como raiz que insiste sob a neve.
Guiado pelo instinto de
pesquisador — e por uma inquietação mais íntima —, deixei-me conduzir pela
percepção de que as mulheres foram, tantas vezes, apagadas da história.
Apagadas pelo peso do patriarcado, pela misoginia institucional, ou pelo
simples, mas devastador, esquecimento. Busquei, então, uma figura feminina
capaz de habitar a época mais profunda do ano: aquela em que o frio ensina, o
silêncio fala e o mundo parece suspenso entre o fim e o recomeço.
Entre as possibilidades, uma
presença se impôs com força silenciosa. Veio de terras geladas, de vales
escondidos, de montanhas cobertas de neve e tempo. Weiße Frau – a Dama Branca.
Frau Perchta. Aquela que alguns chamam, com temor e fascínio, de a bruxa do
Natal.
Ela não é apenas lenda.
É guardiã.
É sombra que vigia sem
ameaçar.
É memória viva de um tempo
ancestral em que o princípio feminino, personificado nas Grandes Deusas do
antigo mundo matriarcal, governava os ciclos da vida, da morte e do
renascimento, em harmonia profunda com a respiração da natureza.
Mesmo transformada,
distorcida ou sepultada sob camadas de moral e medo, sua imagem continua a
ecoar: nas tradições alpinas, nos rituais domésticos, nos gestos simples
repetidos geração após geração, muitas vezes sem que se saiba mais por quê.
A partir de agora, convido
você a caminhar comigo por esse território antigo. A mergulhar no universo de
Frau Perchta: compreender sua importância nas noites de inverno, sentir sua
presença silenciosa atravessando as Rauhnächte (as noites ásperas), perceber
sua ligação profunda com a tradição — e, inevitavelmente, com o alimento. Pois
há também uma cozinha que a acompanha: uma comida ritual, ancestral, onde cada
receita carrega cuidado, sobrevivência e poesia; onde cada colher atravessa
séculos.
Que, ao percorrer estas
páginas, seja possível sentir o frio das montanhas no rosto, o calor da lareira
no corpo e a vigilância atenta — quase terna — da Dama Branca.
E que esta história, antiga
e ainda pulsante, se revele não como relíquia do passado, mas como algo vivo,
necessário, essencial.
ONDE NASCE A BRUXA DO NATAL?
Ela surge quando o ano perde
o fôlego.
Quando os dias já não
avançam, apenas resistem. Quando o sol se torna tímido, e a noite, soberana,
estende seus véus sobre a terra adormecida. É nesse limiar — entre o que morre
e o que ainda não nasceu — que ela desperta.
Os nomes que a designam não
são simples palavras. Cada sílaba carrega o peso de séculos, o frio ancestral
que escorre das montanhas cobertas de neve, os ventos agudos que atravessam
desfiladeiros e fazem ranger portas antigas. São nomes que murmuram histórias
de aldeias escondidas, de lareiras acesas contra a escuridão, de vales
profundos onde o tempo parece ter aprendido a caminhar mais devagar.
Entre o Tirol, Salzburgo, a
Alta Áustria e as encostas sombrias da Baviera, ela se revela em múltiplas
faces — nenhuma contraditória, todas verdadeiras. Cada região a molda com suas
próprias memórias, seus dialetos antigos, seus modos silenciosos de lembrar
aquilo que nunca foi totalmente esquecido. Ela muda de nome, de contorno, de
gesto, mas sua essência permanece intacta, como uma chama protegida do vento.
Na antiga tradição pagã germânica, havia um nome que cintilava como neve ao sol de inverno: Berchta, ou Bertha, cujo significado — brilhante, radiante — não era apenas etimologia, mas destino. Ela velava mulheres e crianças como quem sustenta o mundo com mãos invisíveis. Era conhecida como a Dama de Branco, ou Dama Branca, parente alpina de Frau Holle e eco terrestre da deusa nórdica Frigga. Onde cresciam bétulas belas e pálidas, ali estava seu olhar; onde a floresta respirava e a vida selvagem pulsava, ali se erguia sua vigília silenciosa.
Mas Berchta não era apenas guardiã do que vive. Ela também guiava os que partiam. Psicopompa, condutora de almas, atravessava os limiares invisíveis conduzindo os mortos ao que vem depois. Seu cuidado mais delicado recaía sobre os Heimchen — as crianças que morriam cedo demais, antes que a vida pudesse nomeá-las plenamente. A elas, Berchta oferecia abrigo no além, como uma mãe que não abandona.
Psicopompo é um termo que
brota do grego antigo, da união de psyche, a alma, e pompos, aquele que conduz,
que acompanha em solene passagem. Não designa um carrasco da morte, mas um guia
liminar, conhecedor dos caminhos invisíveis entre este mundo e o outro. O
psicopompo caminha ao lado, sustenta, vela — não apressa nem julga. É nesse
papel que Frau Perchta se revela em sua face mais profunda e compassiva.
Vestida de branco ou oculta sob a aparência da velha errante, ela conduz as
almas com a mesma delicadeza com que protege crianças e mulheres. Como
psicopompa, Perchta guarda especialmente os espíritos dos Heimchen, levando-os
através do limiar com cuidado materno, afastando-os do abandono e do
esquecimento. Sua presença transforma a morte em travessia, o fim em passagem
segura, e o medo em silêncio acolhedor — pois sob seu olhar, nenhuma alma
caminha sozinha.
Deusa dos espaços intermediários, Berchta habitava as fendas do mundo: entre segurança e perigo, entre vida e morte, entre um ano que se despede e outro que ainda não nasceu. Em Berchtentah, sua epifania, ela reinava sobre o tempo suspenso — o intervalo sagrado entre os anos.
Mas sua natureza era dupla, como a lua que ora acaricia, ora governa as marés mais ferozes. Assim, Berchta também surgia como a Spinnstubenfrau, a mulher das fiandeiras: uma velha bruxa de um pé aberto ou de ganso, apoiada em bengala, errante pelos campos. Nessa face, ela defendia tabus culturais, vigiava excessos e punições, e durante as Raunächte — as noites ruidosas do inverno — unia-se à Caçada Selvagem, espalhando clamor pelas montanhas com sua horda espectral.
Conta uma antiga lenda que uma mulher, devastada pela perda de seu filho ainda pequeno, viu-o certo dia num campo distante. Ele caminhava entre outras crianças, cada uma carregando um cântaro, todas seguindo uma senhora vestida de branco. Quando a Dama Branca saltou um pequeno muro, as crianças a imitaram — exceto o filho, que não conseguia atravessar. A mãe correu, tomou-o nos braços. Ele sorriu ao sentir o calor materno, mas lhe disse com doçura:
— Não chore, mãe. Suas lágrimas encherão meu cântaro até transbordar. Estou seguro com a Dama Branca.
A mulher conteve o pranto, colocou o filho do outro lado do muro junto às demais crianças e retornou para casa em paz, sabendo que ele estava bem cuidado.
Por isso, sobretudo as mulheres recorriam a Berchta — essa prima do sul da Alemanha de Frau Holle — pois ela era figura de abundância, guardiã do lar, das crianças e das tarefas domésticas. Era um tempo de altíssima mortalidade infantil, e as mães precisavam acreditar que seus bebês não estariam sozinhos após a morte. Berchta cuidava dos Heimchen, os espíritos das crianças que morriam antes do batismo.
No século VI, porém, a Igreja Católica, poderosa na Baviera, exigiu que os antigos cultos fossem abandonados. Ainda assim, muitos resistiram — e especialmente as mulheres se recusaram a renunciar às suas deusas. Do púlpito, a Igreja passou a condenar Berchta, acusando o povo de rezar para “Domina Perchta” em vez da Virgem Maria.
No século XIII, armada com o medo, a Igreja renomeou a deusa: Berchta tornou-se Perchta. Os Perchten, monstros guerreiros do folclore, passaram a ser associados a ela, agora vista como sua líder. A outrora bela Dama Branca foi deformada em imagem: uma velha horrenda, rosto de ferro, nariz adunco, trazendo sob a saia uma lâmina destinada a rasgar o ventre de quem ousasse desafiá-la.
Ainda assim, o povo persistiu.
Somente em 1468, no Thesaurus Pauperum — um compêndio de comportamentos aceitáveis, receitas e curas para os pobres, compilado ao longo de sete séculos por oficiais da Igreja — o culto à Perchta foi oficialmente proibido. Tornou-se ilícito deixar-lhe oferendas durante o período natalino.
Mas deuses antigos não morrem com decretos.
Eles sobrevivem na memória, no medo, na ternura — e sobretudo no silêncio entre um ano e outro, onde Berchta ainda caminha, branca e vigilante.
Frau Perchta — simples,
direta, incontornável. Nesse nome habita a senhora do inverno, guardiã severa e
atenta das Rauhnächte, as chamadas noites ásperas. Noites em que o frio não
apenas toca a pele, mas atravessa os ossos; em que o vento corta como lâmina
invisível; em que a penumbra não ameaça, mas consagra. Há algo de ritual nessas
horas suspensas, algo quase sagrado, como se o mundo estivesse sendo observado
por olhos antigos.
Durante essas noites, diz-se
que ela caminha. Não para ser vista, mas para ver. Vigia os lares, escuta os
silêncios, pesa as intenções humanas com a balança invisível da ordem antiga.
Ela não pertence à luz festiva nem ao riso fácil — pertence ao intervalo, ao
recolhimento, ao momento em que a alma é chamada a prestar contas ao inverno.
Assim nasce a Bruxa do
Natal:
não do medo, mas da memória;
não da sombra, mas do
respeito;
não do caos, mas da lei
profunda que rege os ciclos da vida.
Quanto as Rauhnächte — doze
noites suspensas entre 25 de dezembro e 6 de janeiro — elas não pertenciam
inteiramente a este mundo. Eram entendidas como um tempo liminar, um fio
delicado estendido entre o visível e o oculto, onde as fronteiras se tornavam tênues
como respiração no ar gelado. Nessas noites, o calendário perdia autoridade, e
o tempo, antigo e circular, retomava seu domínio.
Dizia-se que nessas noites
os espíritos caminhavam livremente — não como invasores, mas como habitantes
legítimos daquele intervalo sagrado. Desciam pelos vales cobertos de neve,
atravessavam soleiras de casas silenciosas, detinham-se junto às janelas embaçadas.
Não vinham para assustar, mas para lembrar: o mundo é mais vasto do que aquilo
que os olhos aprendem a ver à luz do dia.
Os destinos do ano seguinte
não eram anunciados em voz alta. Eram sussurrados ao vento, escondidos no
estalar da lenha, no uivo distante que atravessava as montanhas, no modo como a
chama da vela tremia sem razão aparente. Cada som carregava um presságio, cada
silêncio, uma resposta possível. Bastava saber escutar.
Nesse período, o humano era
convidado a desaprender a pressa. Aprendia a ouvir o invisível, a respeitar o
ritmo profundo do mundo, o pulsar silencioso do inverno que tudo recolhe para,
mais tarde, devolver transformado. Não era tempo de agir, mas de vigiar a
própria alma. De observar sonhos, sinais, pequenos gestos que ganhavam peso
ritual.
As portas eram fechadas com
cuidado, os trabalhos interrompidos, as palavras escolhidas com reverência.
Pois nessas noites, tudo era ouvido. Tudo era visto. E nessas noites, Frau
Perchta passava — não como ameaça, mas como medida. Ela observava o equilíbrio
entre ordem e desordem, entre o que foi honrado e o que foi esquecido.
Assim, nas Rauhnächte
(noites ásperas), o mundo respirava mais fundo. E quem ousasse escutar com
atenção podia sentir, sob a neve e o silêncio, o coração antigo da terra —
lento, atento, eternamente desperto.
É desse compasso profundo
que Frau Perchta nasce.
Ela nasce onde o frio
ensina, onde o silêncio fala — e onde o fim do ano, exausto, se inclina diante
do mistério que ainda pulsa sob a neve.
Nasce no instante em que a
terra parece imóvel, mas sonha. Quando raízes dormem sob o gelo e, mesmo assim,
guardam a promessa da seiva futura. O inverno, ali, não é ausência de vida — é
gestação. É espera densa, carregada de sentido. E ela, a Bruxa do Natal, é
parte desse ventre oculto do mundo.
Ela nasce do sopro branco
que escapa dos lábios na madrugada, do ranger lento das árvores antigas, do céu
que parece mais próximo quando estrelado pelo frio. Nasce da disciplina do
inverno, que ensina limites, recolhimento e verdade. Nada cresce sem antes
aprender a suportar a noite.
O silêncio que a envolve não
é vazio. É um idioma antigo. Fala aos que sabem permanecer atentos, aos que
compreendem que nem toda resposta vem em palavras. Nesse silêncio, ela caminha.
Não apressa o passo, não deixa marcas. Sua presença é sentida como se sente a
mudança do vento: inevitável, sutil, absoluta.
Quando o ano se curva,
cansado de seus excessos e erros, é a ela que se apresenta. Pois ela guarda a
memória dos ciclos, conhece o peso das ações humanas e a delicada contabilidade
do tempo. Não julga com fúria — mede com exatidão. Onde houve descuido, ela
aponta. Onde houve respeito, ela preserva.
Sob a neve, algo pulsa.
Não é apenas a terra — é a
continuidade.
E ela é a guardiã desse
pulso, a sentinela entre o que termina e o que insiste em nascer outra vez.
Assim, a Bruxa do Natal não
vem para romper o encanto, mas para lembrar: que toda luz precisa da noite, que
todo início carrega um fim, e que, mesmo no coração do inverno mais profundo, a
vida — silenciosa, paciente — jamais deixa de esperar.
Em outras regiões, o seu
nome já não é apenas som: é presságio.
Berchta, Perhta — sílabas
que o vento aprende a pronunciar ao roçar os galhos, a deslizar pelos vales
profundos como um segredo antigo que a terra jamais esqueceu. Seu nome não se
diz em voz alta; ele se escuta, dissolvido no murmúrio das florestas e no frio
que sobe do chão ao cair da noite.
Quando a chamam Frau
Berchta, algo se ergue no ar — uma solenidade quase litúrgica, como se o mundo
precisasse endireitar a coluna diante de sua passagem. Há nela uma dignidade
que não se aprende, uma autoridade suave e inevitável, feita de eras, de invernos
acumulados, de silêncios respeitados.
E então surge a imagem que
mais fascina e assombra: Weiße Frau, a Dama Branca. Ela resplandece como neve
recém-caída sob a lua cheia, não refletindo a luz, mas parecendo gerá-la. Suas
vestes são claras como o primeiro gelo da estação, e seus cabelos confundem-se
com o próprio luar de inverno, fios de prata viva escorrendo sobre os ombros do
tempo. Seus passos — ah, seus passos — não ferem a terra, não quebram galhos,
não despertam ecos. Ela atravessa a escuridão como quem pertence a ela, sem
jamais profaná-la.
Nas aldeias do Tirol, nos
recantos antigos de Salzburgo, seu nome muda, mas a sensação permanece: um
arrepio delicado na espinha, um respeito instintivo, quase sagrado. A Dama
Branca passa, e ninguém ousa interromper o encanto da noite. Ela é presença sem
peso, silêncio com forma, um vislumbre do que existe entre o mundo visível e
aquilo que só o coração, em noites muito frias, consegue reconhecer.
Ela não corre.
Ela não chama.
Ela simplesmente é — e isso
basta para que o mundo inteiro pare por um instante e escute.
Assim, Frau Perchta caminha
silenciosa pelas casas enquanto o mundo dorme sob a neve. Sua presença não é
invasiva, mas imprescindível; não exige luz nem ornamento, apenas atenção e
reverência. Ela é sombra e vigilância, memória ancestral, guardiã das noites
frias e dos gestos domésticos, e lembra-nos de que, mesmo na escuridão mais
densa, há espaço para cuidado, poesia e ritual — a verdadeira essência das
Rauhnächte.
Mas o termo Frau Berchta,
versão mais formal, sugere respeito, quase solenidade. É a Senhora reconhecida,
cuja presença ordena o lar e observa cada gesto humano, cada grão deixado sobre
a mesa em oferta.
E ainda há lugares onde sua
figura se amplia em cuidado e autoridade, sendo reverenciada como
Perchtenmutter — “Mãe dos Perchten” — aquela que lidera os desfiles de inverno,
que organiza a ordem do caos, que dá rosto e sentido às máscaras que percorrem
vilas e montanhas. Cada variação não é apenas mudança de nome, mas modulação do
mito, adaptação à geografia, ao dialeto e à cultura local, uma lembrança de que
Frau Perchta é antiga, mutável, mas sempre presente, uma sombra vigilante que
une tradição, domesticidade e rituais de inverno em cada gesto, cada palavra,
cada suspiro das Rauhnächte.
Sua presença é encontrada
nas regiões alpinas do mundo germânico — Áustria, Baviera, Tirol, sul da
Alemanha e os confins serranos que tocam a Suíça e a Alsácia — onde o inverno
não é metáfora, é sobrevivência.
Ali, o calendário jamais foi
um simples conjunto de datas: era um pacto sagrado com a natureza, escrito no
sopro gelado do vento, na suspensão das sombras ao crepúsculo e no ritmo
profundo dos dias que se encurtavam. O trigo dormia sob o manto branco, os
animais se aninhavam mais perto do solo para escapar do frio implacável, e os
humanos, pequenos diante das montanhas, aprendiam a respeitar a escassez tanto
quanto a própria fonte de sua subsistência.
É nesse mundo que Perchta
aparece — não como lenda solta, à deriva do imaginário, mas como memória viva,
tecida no silêncio das encostas, nos sussurros das florestas antigas, na dança
lenta da neve que jamais se apressa. Ela nasce onde o inverno sente o próprio
coração bater mais lento e mais fundo, onde cada estrela, cravada no céu
escuro, brilha como promessa de luz no interior da longa noite. Ali, o frio
ensina e o silêncio fala — não como ausência, mas como substância — e o fim do
ano, exausto de carregar a própria história, curva-se diante do mistério que
ainda pulsa sob a neve.
Ela não surge como
personagem inventada, mas como necessidade simbólica.
Um espírito que organiza o
caos do inverno.
Uma presença que explica por
que se trabalha antes do frio chegar, por que se guarda o que foi colhido, por
que se respeita o ritmo das estações e se teme aquilo que não se controla.
Perchta não adorna o inverno — ela o estrutura. Dá sentido à escassez, disciplina
à espera, ordem ao silêncio.
É sobretudo durante as
Rauhnächte — as chamadas noites ásperas ou noites fumegantes — que ela caminha.
O período entre 25 de dezembro e 6 de janeiro, quando, segundo a tradição, o
véu entre os mundos se torna fino como respiração no ar gelado. O próprio nome
carrega o som do inverno: rauh, áspero; Nacht, noite. Nessas horas suspensas,
nada é suave. Tudo range: a madeira das casas, os galhos das árvores, o próprio
tempo.
Frau Perchta não pertence a
uma única forma. Ela não se deixa fixar.
Ela se manifesta — ora como
a Dama Branca, luminosa e silenciosa; ora como presença severa, vigilante,
quase terrível; ora apenas como a sensação de estar sendo observada pelo
próprio inverno.
Ela é aquilo que aparece
quando o mundo se recolhe, quando o humano se cala, e quando a noite, profunda
e antiga, decide falar.
Às vezes, ela se apresenta
como uma mulher velha, envolta em tecidos gastos pelo tempo, com o rosto
sulcado por anos que não se medem em calendários humanos, mas em eras longas e
silenciosas — um tempo geológico, implacável, que dobra montanhas e enrola rios
em seu curso. Em outras, surge como figura branca, quase luminosa, a Weiße Frau
— a Dama Branca — silenciosa como a neve que ainda não tocou o chão, flutuando
entre os galhos nus e a penumbra das montanhas.
Há versões que acrescentam
um detalhe inquietante: um pé humano e outro de ganso. Não é grotesco; é
profundamente simbólico. Na época em que essas histórias surgiram, esse traço
indicava que Perchta não pertencia inteiramente ao mundo humano. O pé de ganso
era associado a divindades ligadas à travessia entre mundos, à água e ao limiar
— portais entre o conhecido e o desconhecido, entre a vida e a morte, entre o
cotidiano e o sagrado.
Para os povos alpinos, o
ganso simbolizava também mobilidade, vigilância e transformação. Caminhar com
um pé humano e outro de ganso significava que Perchta podia percorrer
simultaneamente o mundo terreno e o mundo espiritual, a casa e a floresta, a
vida e os mistérios invisíveis. Ela se tornava mediadora de limites:
supervisionava o respeito às tradições, a ordem doméstica e os ciclos do
inverno, enquanto permanecia além do alcance completo do humano, lembrando que
certas forças não se dobram às regras do cotidiano.
Assim, o detalhe que hoje
parece estranho ou assustador era, na época, sinal de poder e autoridade
sobrenatural, lembrança de que a Dama Branca era guardiã de mundos paralelos,
de costumes antigos e da sabedoria que só se revela a quem observa com atenção.
É um vestígio das antigas
divindades, aquelas que governavam os limiares, que cruzavam rios e fronteiras
entre mundos. Um corpo que não pertence inteiramente a este mundo, mas que
transita entre o visível e o invisível, entre a vida e o que escapa da vida.
Ela caminha, então, entre os
mundos, lembrando que cada gesto, cada passo, carrega significado. Cada
presença sua é um aviso silencioso: há coisas que o humano deve respeitar,
ritmos que não se apagam com calendário ou decreto, ciclos que seguem seu próprio
pulso, mesmo quando a sociedade tenta ignorá-los.
Frau Perchta não é apenas
vigilante; ela é mediadora, guardiã de limites que o mundo moderno tende a
esquecer. Onde o inverno parece apenas frio, ela revela a densidade do tempo;
onde o silêncio parece vazio, ela revela o eco antigo das eras. E, assim, sua
presença — ora severa, ora luminosa — permanece, atravessando séculos,
atravessando sombras, ainda viva nas encostas geladas das regiões alpinas.
No silêncio das Rauhnächte,
quando o vento atravessa vales e telhados cobertos de neve, surgem palavras
sussurradas, frágeis como a fumaça que se ergue das lareiras, mas carregadas de
respeito, atenção e intenção. Não havia saudação universal, nenhum rito rígido
ou fórmula repetida à exaustão; havia, antes, gestos de reconhecimento que
atravessavam séculos, como fios invisíveis que ligam o presente ao passado
ancestral.
Entre os camponeses
austríacos e bávaros, era costume inclinar-se levemente e dizer: “Grüß Gott,
Percht” — literalmente, “Que Deus te saude, Percht”. Não se tratava de invocar
Perchta como divindade, mas de oferecer reverência ao espírito do inverno, reconhecendo
sua presença invisível. Cada sílaba era um fio de cuidado, uma lembrança
silenciosa de que a bruxa do inverno caminhava pelos lares, atenta ao que se
deixava sobre a mesa, à ordem da casa e ao respeito pelas tradições.
Em outros lugares, a
saudação assumia tons mais formais, quase musicais: “Sei gegrüßt, Frau Berchta”
— “Saudações, Senhora Berchta”. As palavras deslizavam pelo ar como neve
recém-caída, suaves, quase como canto, pedindo proteção e reconhecimento da sua
vigilância silenciosa. Cada saudação era, simultaneamente, ato de hospitalidade
e oração não escrita — gesto que lembrava que o inverno só poderia ser
atravessado com cuidado, atenção e reverência.
Ao pronunciar essas
palavras, mesmo sozinho, o humano se conectava ao invisível, à memória
ancestral que transformava uma tigela de mingau em ritual, um gesto cotidiano
em poesia, e a escuridão do inverno em espaço sagrado de presença e cuidado.
Cada murmúrio era ponte entre mundos: entre o visível e o invisível, entre a
sobrevivência e a celebração, entre a vida e o sopro antigo que ainda perambula
pelas montanhas cobertas de neve.
Perchta existe porque o
inverno exige vigilância. Mas não é uma sentinela arbitrária ou cruel — ela é
guardiã do tecido vivo do mundo, aquele que se estende de alma a casa, de mito
a rotina.
O fio, o novelo, a roda de
fiar — em muitas representações de Frau Perchta, ela surge segurando ou
circulando entre esses objetos, não como mero adorno, mas como símbolos vivos
de vigilância e ordem; eram símbolos vivos do ritmo do mundo. Nas aldeias alpinas,
fiar a lã ou o linho durante o inverno era muito mais que tarefa doméstica: era
ritual, sustento e ponte entre o humano e o sagrado. Cada laçada no fuso, cada
giro da roda, mantinha não apenas o tecido físico, mas também o tecido
invisível da vida, da casa e do tempo. Um fio esquecido, um novelo mal cuidado,
não era apenas descuido — era um sinal de desordem, de atenção dispersa, que
poderia romper a harmonia entre a família, o inverno e o mundo natural. Era um
deslize no tecido invisível que ligava o humano à própria continuidade da
existência.
Perchta, com olhos que tudo
veem, caminha entre essas rodas e novelos, observando o fio que ainda não foi
trançado, a lã que se perdeu entre as mãos cansadas, e lembrando que o inverno
exige disciplina, paciência e consciência.
A roda que gira não é apenas
instrumento de trabalho: é metáfora do ciclo da vida, do entrelaçar dos
destinos, do equilíbrio entre o que foi semeado e o que será colhido.
Assim, a Dama Branca aparece
com a roda e o novelo como símbolos visíveis de seu poder, lembrando que o
trabalho mais humilde, realizado com atenção e respeito, é ritual ancestral,
arte e vigilância, poesia tecida no silêncio do inverno. Sob sua vigilância
silenciosa, cada fio se torna ponte entre o cotidiano e o sagrado. Cada novelo,
em suas mãos, é promessa de calor, proteção e alimento; cada fio, ponte entre o
cotidiano e o ritual, entre a sobrevivência e o sagrado; e a tecelagem, ato
aparentemente simples, revela-se ritual ancestral, onde a ordem, a memória e o
futuro se entrelaçam, guardados pela presença da Dama Branca.
Ela observa lares, olhos
atentos que não se fecham à noite.
Observa pessoas que se movem
com passos silenciosos na neve, mãos que remontam fios de lã desgastados,
tarefas deixadas inacabadas como se deixássemos parte do próprio destino à
deriva.
Ela conhece o fio que não
foi fiado, a lã esquecida à beira da roda, o novelo que se desfaz nos dedos
cansados. Pois, nas tradições antigas dos Alpes — entre bosques de pinheiros,
vales profundos e cumes nevados — o ato de fiar não era apenas trabalho: era
rito, era promessa, era medida invisível da ordem do mundo.
E Perchta, mais do que
vigiar, intercede entre o humano e o tempo.
Ela não se apresenta como
tirana, mas como encarnação da ordem necessária quando tudo pode ruir: o fio
imperfeito lembra que a vida, sem vigilância, se desfaz. O novelo sem forma
recorda que o destino precisa ser tecido com mãos constantes e coração desperto.
Seu olhar percorre os bornes
do inverno como quem lê um tecido ancestral: cada ponto, cada laçada, cada
interrupção é um sinal. Ela caminha entre rodas de fiar abandonadas e novéis
dispersos, não para punir — mas para mostrar que o verdadeiro fio do mundo se
encontra na atenção ao que, de outra forma, seria trivial.
E assim, a bruxa do Natal,
silenciosa como o vento sobre a neve,
nos lembra que, nas noites
profundas do ano, até o trabalho mais humilde
é ritual, poesia e
sobrevivência entrelaçados.
Antes de ser chamada de
bruxa, ela foi algo mais antigo: uma senhora do tempo escuro, uma guardiã da
transição anual, talvez um eco distante de divindades femininas pré-cristãs
ligadas ao destino, ao trabalho doméstico, à continuidade da vida quando a terra
parece morta.
Quando o cristianismo chegou
aos vales, não a destruiu — a transformou. De deusa implícita em espírito
folclórico. De guardiã em juíza. De senhora do inverno em “bruxa do Natal”.
Mas ela permaneceu.
Permaneceu nos desfiles
mascarados, nos Perchten, nos sinos, nas peles, nos rostos de madeira
esculpidos para espantar o mal. Permaneceu nas histórias sussurradas às
crianças, não para aterrorizá-las, mas para ensiná-las que o mundo exige
cuidado.
Frau Perchta não é o oposto
do Natal.
Ela é o seu lado noturno.
Antes das luzes, há a noite.
Antes do banquete, há a fome
lembrada.
Antes do presente, há o
trabalho silencioso.
Ela surge exatamente aí —
onde o Natal ainda não é celebração, mas sobrevivência ritualizada.
O ROSTO DO INVERNO: A MASCARA DE PERCHTA
E A PRESENÇA DOS PERCHTEN
Não é Frau Perchta, em sua
forma mais antiga, quem veste a máscara de chifres. E, ainda assim, ela está
ali, presente em cada gesto, em cada sombra que atravessa o inverno.
A ideia de Perchta com
chifres, rosto demoníaco e boca escancarada nasce não da lenda primitiva, mas
do encontro entre sua essência e o corpo ritual dos Perchten. É deslocamento
simbólico: o que era coletivo transforma-se em rosto; o que era cortejo, dança
entre humanos e espírito, é lido como figura única, monstruosa, teatral.
Em muitas imagens e
encenações que sobreviveram ao tempo, os Perchten surgem com máscaras
impressionantes, rostos que lembram carcaças de veados chifrudos, feita de
madeira entalhada e cores rudes, cornamentas que se erguem como galhos
retorcidos na árvore do inverno, bocas escancaradas que parecem rugir antigas
canções de outono e neve. Há figuras cujo semblante remete a crânios de animais
selvagens, olhos fundos que lançam sombra na noite gélida, e membros cobertos
de peles que ribombam com sinos e correntes. Esses corpos mascarados são
imagens corporais do inverno e do limiar — bestiais, híbridos, evocando o que
escapa à compreensão simples: o medo e o fascínio, o fim e o princípio, o velho
ano a morrer e o novo a germinar sob o sopro frio. No cortejo, a máscara não é
disfarce insignificante; é símbolo material do encontro entre humano e
espírito, lembrando que o inverno impõe seu rosto múltiplo — ora belo, ora
perturbador — e que a passagem pelas longas noites exige tanto a expulsão do
que é velho como a celebração do que está por nascer.
Essa ideia leva a existência
de algumas representações em que Frau Perchta surge com chifres que se erguem
como galhos retorcidos, rosto cadavérico lembrando a carcaça de um veado, olhos
fundos e sombra nos cantos da boca, como se a própria morte tivesse ensaiado
sua fisionomia. Seus braços e corpo podem se revestir de peles, sua presença é
híbrida, entre o humano e o selvagem, o limiar entre o mundo visível e o
invisível. Essas imagens evocam o medo e o respeito, traduzem em forma concreta
a força do inverno e a vigilância que ela exerce sobre a ordem da casa, o
trabalho das mãos e o destino das famílias. Mas tudo isso é símbolo, encenação
do espírito, uma tentativa de tornar visível aquilo que, na realidade
ancestral, se move silencioso, sem precisar de adornos ou disfarces.
O nome Perchten — plural de
Percht — ecoa desde o alto alemão antigo, peraht, “brilhante” ou
“resplandecente”, lembrando a luz tênue que luta contra as sombras longas do
inverno nos Alpes. Mas os Perchten não são apenas palavra ou imagem; são
figuras de uma tradição ancestral que caminha entre o visível e o invisível.
Não são uma única criatura, mas um cortejo — uma comitiva de presenças que
desfilam nas noites frias de fim de ano, em processões chamadas Perchtenlauf,
atravessando vilarejos e vales nevados para expulsar os maus espíritos do
inverno e saudar a virada do ano
O fato, é que na tradição
mais antiga, Frau Perchta não usa máscara. Ela aparece com o rosto nu — seja
velho ou jovem — porque seu poder não se encena. Ele habita o mundo sem
necessidade de adorno. Ela observa, julga, atravessa. Seu aspecto não assusta pelo
excesso, mas pela estranheza: o pé de ganso que marca sua diferença, a brancura
que parece absorver a luz da neve, o silêncio que pesa mais do que qualquer
grito. Ela pertence ao limiar, ao espaço entre o conhecido e o invisível, e não
ao espetáculo que encanta ou assusta a multidão.
Os chifres surgem quando o
rito precisa de corpo — quando a comunidade exige encarnação, quando o espírito
precisa ser vestido para que o humano compreenda o limite, a presença e o medo.
Mas a verdadeira Perchta habita o invisível, e seu poder não se mede por
adereços: ele é antigo, inevitável, profundo como o inverno que vigia.
Nas Perchtenläufe — os
desfiles de inverno que atravessam os vales alpinos — são os Schiachperchten
(Perchten feios) que vestem máscaras de madeira com chifres retorcidos, dentes
à mostra, olhos exagerados. Essas máscaras não pretendem retratar Perchta como
indivíduo, mas materializar as forças que ela governa. São extensões do seu
domínio sobre o caos do inverno, não seu retrato literal.
Os chifres, aqui, não são
demoníacos no sentido cristão. Eles são pré-cristãos. Representam: a
animalidade indomada; a fertilidade latente, e a força selvagem que precisa ser
contida para que a ordem sobreviva.
Antes de serem associados ao
diabo, os chifres eram sinais de poder natural. Nos Alpes, evocam o gado, a
caça, a montanha — tudo aquilo que resiste ao inverno e, por isso mesmo,
inspira temor.
Quando o cristianismo
absorve — e distorce — essas figuras, ocorre a fusão. Perchta, senhora pagã do
inverno, passa a ser vista através da lente do medo cristão. Os atributos dos
Perchten — máscaras, chifres, grotesco — colam nela. A “bruxa do Natal” nasce
desse mal-entendido cultural: uma entidade antiga reinterpretada como ameaça
moral.
Há versões tardias do
folclore — especialmente já no século XIX — em que Perchta é descrita ela mesma
mascarada, liderando a Caçada Selvagem ou caminhando à frente dos Perchten.
Essas versões não são as mais antigas, mas são reveladoras: mostram como, com o
tempo, a líder absorve o rosto do coro. O símbolo vence a fonte.
Assim, quando se diz que
Frau Perchta usa uma máscara de chifres, fala-se menos de uma descrição
original e mais de uma imagem sincrética: Perchta como princípio, os Perchten
como corpo, a máscara como linguagem visível do invisível.
Ela não precisa dos chifres
para ser temida.
Mas o inverno precisa deles
para ser compreendido.
E talvez seja por isso que,
ainda hoje, quando as máscaras surgem nas ruas da Áustria e do sul da Alemanha,
não se diz que “os Perchten estão passando”. Diz-se, em tom baixo, quase
respeitoso, que Perchta está andando. Mesmo que seu rosto real — aquele sem
madeira, sem chifres — permaneça escondido na noite.
SOB A VIGÍLIA DO INVERNO: FRAU PERCHTA E
O NATAL ANTES DA LUZ
Antes que o Natal aprendesse
a brilhar, ele soube escurecer. Antes que as velas se erguessem em fileiras
perfeitas, antes que o cheiro do pinheiro se espalhasse pelas casas, existia um
tempo em que o frio era absoluto, cortante e silencioso, e a noite parecia
envolver cada aldeia alpina como um manto pesado, tão denso que até o vento se
curvava diante dele.
Nas regiões altas, o
nascimento de Cristo não despontou sobre uma terra vazia; ele encontrou um
calendário já pulsante de memória, tecido por séculos de rituais ancestrais. O
inverno não se apresentava apenas como estação, mas como um estado de suspensão
do mundo, um interlúdio sagrado em que tudo parecia esperar, respirar em
compasso próprio.
O vento percorria vales e
florestas como mãos invisíveis, enrolando-se nos pinheiros, fazendo dançar a
neve sobre os telhados, trazendo consigo o murmúrio antigo das montanhas, o som
da vida contida sob o gelo, o ritmo lento e profundo de rios e grãos adormecidos.
Ali, cada sombra tinha
história, cada sopro de ar carregava presságios, cada estrela, pendurada no céu
claro do inverno, parecia guardar segredos que atravessavam gerações. Era tempo
em que se podia ouvir o mundo se dobrar sobre si mesmo, o pulsar antigo da
terra, o silêncio das aldeias imersas na neve, o compasso invisível que unia o
humano, o animal e o espírito em uma dança silenciosa de espera e reverência.
Foi nesse limiar — entre o
fim do ano solar e o começo incerto do próximo — que Frau Perchta encontrou seu
lugar não como opositora, mas como guardiã do ciclo, caminhando lado a lado com
o Natal, invisível, porém onipresente. Ela não precisa de luz para existir;
habita a sombra, a memória, o ar gelado que entra pelas frestas das casas.
Percorre vales e florestas cobertas de neve, desliza silenciosa pelos telhados,
sente o calor dos lares e o silêncio dos grãos armazenados. Sua presença não
ameaça, mas exige: lembra aos humanos que o mundo é delicado, que a ordem se
conquista com cuidado, atenção e respeito — que cada fio de lã, cada novelo
trançado, cada gesto, mesmo o mais pequeno, é ritual e sobrevivência, e que o
inverno, apesar de imóvel e gélido, vive e observa.
Ela reina sobre as
Rauhnächte (“noites ásperas”), os doze dias entre 25 de dezembro e 6 de
janeiro, período em que o tempo parece perder sua linearidade. Era um intervalo
sagrado entre dois anos, quando o mundo ficava suspenso, e cada gesto — cada
favo de mel guardado, cada lã fiada, cada pote de grão — ganhava importância
mágica. Não se fiava lã, não se varria a casa à noite, não se iniciavam
trabalhos novos; tudo poderia atrair desordem ou despertar os espíritos
errantes. Acreditava-se que os fantasmas dos mortos, os gnomos das cavernas e
outras entidades invisíveis caminhavam livremente, e que o destino do ano
seguinte era sussurrado ao vento e registrado pelo silêncio da noite.
Nesse tempo, cada som — o
ranger da madeira, o crepitar da lenha, o toque distante de sinos — tinha
significado. As aldeias iluminavam apenas o necessário, e cada lar se
transformava em um microcosmo de cuidado e vigilância. Era uma época em que se
compreendia profundamente que o Natal não é apenas festa, mas trânsito de
forças, ponto de encontro entre o humano e o ancestral, entre o divino e o
doméstico.
Frau Perchta não era
antagonista do Natal; era sua guardiã ancestral, vestida de silêncio e olhar
que pesa mais que o inverno. Ela atravessava as casas como um vento antigo,
quase imperceptível, mas de atenção implacável. Seu julgamento não era cruel,
mas firme: cada gesto descuidado, cada alimento esquecido, cada ritual
negligenciado encontrava nela uma sombra silenciosa, um lembrete de que a
celebração plena só floresce quando merecida. Mas aqueles que honravam a ordem,
que depositavam o grão certo, a fruta seca escolhida, o mingau de cevada
perfumado pelo fogo da cozinha, eram banhados por uma proteção invisível, uma
bênção que percorria as veias geladas da noite.
Nesse equilíbrio sagrado
entre cuidado e abandono, entre luz e sombra, surgia o espírito do Natal
primitivo: não uma alegria efêmera, mas uma música lenta, feita de memória,
atenção e respeito pelo ciclo do tempo. Não era um instante passageiro de riso,
mas um rito profundo, onde cada gesto carregava a densidade da história humana.
Ao longo dos doze dias, o
mundo parecia respirar de forma diferente. As casas retinham histórias como se
cada parede fosse um pulmão antigo, cada lareira um coração pulsante de vidas
contidas e vidas aguardadas. As velas tremeluziam, o presépio oferecia sua cena
silenciosa, mas ainda não era suficiente para dissipar a escuridão. A
verdadeira luz vinha de Frau Perchta: presença invisível, severa e maternal,
guardiã das sombras e das claridades, que certificava que o inverno fosse
atravessado com dignidade e consciência.
O Natal, assim concebido,
não era festa imediata. Era limiar. Um tempo onde a luz e a sombra dançavam
juntas, onde o espírito humano aprendia a se acostumar à lentidão, à paciência,
à espera. Enquanto o presépio mostrava a vida que nasce, Frau Perchta lembrava
da vida que deve ser preservada, nutrida, honrada. Ela não negava o nascimento;
ela o enraizava. Sem sua presença, o Natal seria leve demais, uma promessa sem
solo, um sopro de esperança perdido na neve dura do mundo real.
E no silêncio desses doze
dias, cada passo, cada gesto, cada olhar se tornava ritual. A vida, tão frágil
quanto o gelo que estala nos telhados, encontrava sustento não apenas na luz
que se acende, mas na consciência de que existe alguém – antiga, eterna, severa
e maternal – que guarda o equilíbrio entre a festa e o dever, entre a alegria e
a memória.
Na linguagem popular,
dizia-se que Perchta “passava pelas casas” durante essas noites longas, quando
o vento carregava o frio pelo telhado e a escuridão parecia mais densa que a
memória. Ela não invadia; atravessava. Observava as mesas gastas pelo uso, os
cantos onde o pó dormia silencioso, os trabalhos interrompidos que aguardavam
mãos atentas. Cada grão armazenado com zelo ou esquecido era como uma confissão
silenciosa: revelava quem se lembrava, quem cuidava, quem deixava a vida fluir
com atenção. Cada casa possuía seu próprio ritmo, e cada gesto doméstico — a lã
fiada em meadas suaves, a lenha empilhada com precisão, o mingau deixado na
tigela para os espíritos — era avaliado com olhos que viam além do visível,
olhos de quem conhecia a densidade do mundo e a fragilidade do humano.
Ela não era intrusa; era
alguém que sempre pertencia àquele espaço, que respirava o ar da cozinha como
se fosse dela, que sabia onde cada sombra se escondia, cada suspiro da lareira,
cada fio de fumaça que dançava no ar frio. O lar, afinal, era o epicentro
simbólico do inverno, o coração que batia devagar sob a neve e a noite. E
Perchta, antes de tudo, era senhora do doméstico: guardiã invisível do que se
mantém e do que se perde, protetora do fio tênue entre o cuidado e o abandono.
É nesse ponto que ela se
vincula ao Natal de maneira íntima, silenciosa, quase respiratória:
não às igrejas com seus
sinos e vitrais, mas às cozinhas, com suas mesas de madeira e fogo brando; não
aos coros, mas ao crepitar lento do fogo baixo, ao vapor que sobe do mingau e
do pão assando.
Sua presença podia ser
sentida na fragrância que se espalhava pelo ar — pão que cresce lentamente,
manteiga derretendo, mingau que solta seu vapor perfumado de cevada e memória.
Estava no leve rangido do piso de madeira à noite, no tilintar discreto da colher
contra a tigela, no cuidado silencioso de cada gesto. Ela habitava a paciência,
a atenção que salvava famílias do caos do inverno, a ordem que transformava o
ordinário em ritual sagrado.
Cada ato doméstico era uma
oferenda, cada detalhe se tornava testemunho de um pacto ancestral: a água que
fervia, o grão que cozinhava, a fruta seca cortada com delicadeza — tudo era
marca da passagem da bruxa do Natal. E mais do que medo, havia respeito:
respeito pelo tempo, pela vida que se mantém, pelo fio invisível que liga o
trabalho humano à preservação da alma durante as noites mais longas do ano.
Ela não apenas olhava; ela
contava, lembrava, guardava. Era o sopro que tornava cada gesto consciente,
cada rituais doméstico capaz de atravessar o inverno com dignidade. Em sua
presença, até o silêncio se tornava música, cada sombra, companhia, e cada chama
pequena, farol de um mundo que aprende a se conservar em meio à escuridão.
E assim, o Natal sob sua
vigilância não era apenas celebração, mas trânsito de forças. A alegria estava
entrelaçada ao silêncio; a luz, aos pequenos cuidados; a promessa, à memória
ancestral que permeava as casas e as histórias das aldeias. Ela fazia do simples
ato de preparar comida, do gesto de cuidar do lar, uma forma de rito, um elo
entre o mundo visível e o invisível, entre o humano e o ancestral.
Em cada tigela deixada sobre
a mesa, em cada centelha que subia da lareira, Perchta anotava o cuidado e a
ordem, garantindo que o ano que viria encontrasse seus habitantes preparados,
com gratidão e respeito pelo frio, pelo silêncio e pelo limite. O Natal, assim,
se tornava um tempo de consciência, não apenas de festa; de memória, não apenas
de presente; de vida preservada, antes da luz verdadeira.
Enquanto a liturgia cristã
celebrava o nascimento divino, com suas vozes angélicas e velas que tremeluziam
em oração, o folclore velava pela continuidade humana, aquela que não se mede
em promessas, mas em cuidado, em gestos simples que sustentam a vida. Nas
aldeias alpinas, os sinos podiam soar suavemente, anunciando a alegria
celestial, e os coros entoar hinos de esperança, mas havia outro ritmo, mais
antigo, mais primitivo, que pulsava por baixo de tudo — um ritmo que lembrava
que o mundo precisava ser atravessado, vivido, sentido, e não apenas
contemplado de longe.
Nesse mesmo compasso, os
desfiles dos Perchten atravessavam as vilas, arrastando consigo o frio cortante
da noite, o sopro das montanhas, o odor de neve e madeira molhada. Eram
criaturas de sombra e ruído, feitas de madeira, pele e couro, máscaras que deformavam
a realidade, sinos que batiam contra o silêncio como corações pulsando na
escuridão. Cada passo quebrava a monotonia da noite, cada riso ou grito
lembrava que nem toda ordem se revela em claridade.
Eles traziam à luz o que o
Natal moderno tende a esquecer: o medo que mora sob a alegria, o caos que se
esconde sob as decorações, o excesso de sombra que habita o coração humano
durante o inverno, quando a vida se estreita ao calor das casas e se expande no
vazio das noites longas. Observando, julgando, mas também preservando, os
Perchten lembravam que a celebração não é apenas festa: é travessia, é
consciência do que se perde e do que deve ser guardado.
E entre o estrondo dos sinos
de ferro e o sussurro da neve que caía, surgia novamente a presença silenciosa
de Frau Perchta, antiga, maternal, severa, observando cada lar, cada família,
cada gesto de cuidado. Enquanto os aldeões se entreolhavam, assustados ou
maravilhados, ela estava ali, firme, lembrando que o Natal verdadeiro não é
apenas luz e riso: é também sombra, é memória, é vigilância do que torna a vida
possível quando o frio insiste em dominar o mundo.
No entrelaçar dessas duas
correntes — a cristã e a folclórica — nascia uma forma de Natal mais profunda,
mais densa, quase palpável: uma celebração que não se limita à beleza da cena,
mas que se enraíza no suor da cozinha, no vapor do mingau, no estalar da lenha,
na atenção silenciosa aos detalhes, e até no medo ancestral que nos recorda de
que a existência é frágil e precisa ser honrada.
Na escuridão gelada das
aldeias alpinas, quando a neve silenciosa cobria as ruas estreitas e o vento
soprava pelas chaminés, surgiam os Perchten — antigos espíritos do inverno,
mensageiros da ordem e da desordem, guardiões invisíveis do ciclo humano. Entre
eles, caminhavam os Schönperchten, os “Perchten belos”, movendo-se com passos
firmes e gestos cerimoniosos, trajando peles claras e roupas e máscaras delicadas, como
se cada olhar esculpido na madeira contivesse a promessa de prosperidade,
fertilidade e boa sorte. Eram a esperança encarnada, a disciplina que germina
no cuidado cotidiano, o bem que floresce no seio da comunidade. Cada gesto era
ritual, cada passo carregava o peso de séculos, cada máscara lembrava que o
futuro precisa ser cultivado no presente.
Ao lado deles, os
Schiachperchten, os “Perchten feios”, corriam e gritavam, batendo sinos e
espalhando ruído pelo ar gelado. Suas máscaras grotescas — dentes esculpidos,
chifres retorcidos, olhos exageradamente abertos — não eram meramente
assustadoras: eram guardiãs, expulsando os maus espíritos, afastando doenças,
desordens e infortúnios que poderiam atravessar o ano sem controle. Eram a
sombra necessária, o caos ritualizado, a lembrança de que a vida só sobrevive
quando se respeita o equilíbrio entre luz e escuridão.
Juntos, Schönperchten e
Schiachperchten formavam um coro ancestral: um movimento ritualmente perfeito
que transformava medo em ordem, horror em proteção. Caminhavam pelas ruas,
pelas praças cobertas de neve, fazendo o chão vibrar com o peso de séculos de
crença. Cada sino, cada passo, cada máscara preparava o terreno simbólico para
que algo novo pudesse nascer — a promessa de um ano que, embora desconhecido,
encontraria os habitantes das aldeias atentos, respeitosos, prontos para honrar
o ciclo invisível do mundo.
Nesse ritual, Perchta não
precisava aparecer com rosto próprio: ela estava em cada gesto, em cada passo,
em cada sopro de vento que atravessava os corredores estreitos das casas. Era a
alma do inverno, a guardiã da transição, a memória que lembrava: antes que a
alegria do Natal florescesse, havia que atravessar a sombra com coragem,
cuidado e atenção.
Perchta, nesse arranjo
delicado, não compete com o Menino na manjedoura. Ela guarda a porta. Ela
garante que o nascimento não seja em vão. Seu papel é antigo: ordenar o mundo
para que a vida permaneça possível, para que a ordem e a atenção se mantenham mesmo
na escuridão mais longa. Ela não interrompe a celebração; ela a sustenta,
silenciosa, invisível, como o ar frio que entra pela fresta da janela e lembra
que a vida se mantém apenas quando respeitamos seus limites.
Por isso, o Natal sob sua
vigília não é excessivo. Há comida, mas não desperdício. Cada tigela de mingau,
cada pedaço de pão, cada fruta seca cortada com cuidado é uma oferenda
silenciosa à continuidade da vida, um gesto de atenção que protege o lar. Há silêncio
entre as palavras, pausas que permitem ouvir o estalo da madeira na lareira, o
sopro do vento nas chaminés, o eco das montanhas que cercam as aldeias. Há
respeito pelo que foi guardado durante o ano, pelo trabalho invisível que
sustenta cada família. O sagrado, aqui, não é o brilho das velas nem o
esplendor do ouro ou da estrela do presépio — é a contenção, a paciência, a
capacidade de perceber a vida em cada detalhe pequeno, aparentemente banal.
Mesmo depois da
cristianização, seu nome continuou sendo sussurrado junto às práticas
natalinas. Em alguns lugares, chamava-se esse período de Berchtentage (“os dias
de Berchta”), e o cuidado que se tinha com a casa, com a comida, com o trabalho
interrompido, permanecia ritualizado. O nome dela resistia, colado ao
calendário como uma memória antiga, lembrando que o tempo não começa com o
calendário cristão, mas com a atenção ao ciclo do ano e à ordem silenciosa que
sustenta a vida.
Assim, Frau Perchta torna-se
a sombra necessária do Natal. Não sua inimiga, mas sua memória mais antiga. Ela
habita o limite entre luz e escuridão, entre festa e silêncio, entre promessa e
responsabilidade. Onde há excesso de brilho, ela lembra do vazio; onde há
descuido, ela recorda o rigor do inverno. E ainda assim, sua presença não é
apenas severa: é maternal, cuidadosa, essencial. Ela nos ensina que o Natal só
é pleno quando a vida é respeitada, quando a ordem é honrada e quando cada
gesto cotidiano é uma forma de ritual, uma forma de sobrevivência poética.
Sob sua vigilância, as
aldeias não apenas sobrevivem ao inverno; elas aprendem a atravessá-lo com
consciência, transformando cada gesto doméstico em ponte entre o humano e o
ancestral, cada prato de comida em símbolo de memória, cada silêncio em lição
de atenção. Perchta nos lembra que o Natal, antes de brilhar, precisa ser
vivido no escuro, na contenção, na paciência — e que, somente assim, a alegria
que chega com o Menino na manjedoura encontra solo firme para florescer.
Ela nos lembra que antes da
celebração houve frio, antes do canto houve silêncio, antes do pão doce houve
grão cru armazenado com cuidado. O Natal, sob seu olhar, deixa de ser apenas
promessa e se torna responsabilidade.
E é nesse espaço — entre o
sagrado cristão e o ritual ancestral — que a mesa se prepara.
Ainda simples.
Ainda contida.
À espera.
O MINGAU DA GUARDA: LENDA, RITUAL E
PRESENÇA DE FRAU PERCHTA
Nas noites que parecem
eternas, não era o frio que se espalhava pelas aldeias, mas a expectativa
silenciosa de uma presença antiga. Frau Perchta não caminhava apenas pelos
lares — ela movia-se pelas horas, pelos intervalos entre o sono e o despertar,
pelos gestos que ninguém via, mas que davam sentido à ordem cotidiana. Não
precisava de telhados cobertos de neve nem de mesas preparadas; seus olhos
invisíveis se prendiam às intenções. Observava se o cuidado nascera de hábito
ou de atenção verdadeira, se a vida era nutrida com consciência ou deixada à
sorte do acaso.
Ela não se limitava aos
alimentos, à lenha ou aos grãos: era guardiã das pequenas verdades que
sustentam o mundo. Um fio de lã deixado solto, um pão amassado com descuido,
uma palavra esquecida entre familiares — tudo vibrava sob seu olhar silencioso.
Sua passagem transformava o ordinário em ritual, e o invisível em sagrado. Cada
gesto doméstico, cada suspiro da casa, cada lampejo de vida cotidiana era
lembrado e honrado, não pelo medo, mas pela consciência de que a existência
exige presença, cuidado, atenção.
Frau Perchta, assim, não era
apenas espectro da noite, mas guardiã da continuidade humana. Sua força residia
em tornar visível aquilo que geralmente passava despercebido: a importância do
tempo vivido com consciência, a disciplina que sustenta a vida, o equilíbrio
delicado entre o cuidado e o abandono. Ela era memória, vigilância e paciência,
tudo condensado em uma presença que ninguém podia tocar, mas que todos sentiam,
como uma pulsação silenciosa no coração do inverno.
A lenda mais conhecida fala
de suas visitas silenciosas às casas, mas não como uma narrativa de punição ou
medo — como um lembrete de que a atenção sustenta a vida. Quem mantivesse a
ordem, guardasse o alimento com cuidado, não desperdiçasse nada, encontraria,
no ano seguinte, não apenas prosperidade, mas o calor invisível de proteção e
continuidade. Mas aqueles que negligenciassem seus lares — deixando restos
espalhados, trabalhos inacabados, grãos soltos — acordariam com marcas sutis de
sua passagem: objetos ligeiramente fora do lugar, uma sensação de frio mais
intenso que o habitual, um sussurro de lembrança de que a existência exige
cuidado. Nesta dualidade — rigor e proteção — Frau Perchta revela-se juíza
silenciosa do lar e do tempo, guardiã de todos os fios invisíveis que mantêm o
mundo em equilíbrio.
Um conto antigo, ainda
sussurrado entre os vales e montanhas, narra sua visita a uma família que
negligenciara a cevada do celeiro. Ela não entrou com gritos nem com violência;
atravessou os quartos como sombra que respira, deixou o ar mais denso, e partiu.
Na manhã seguinte, os grãos haviam se tornado duros como pedra, lembrando que o
descuido deixa marcas, e que o inverno se recorda de tudo. Mas, se a família
demonstrasse atenção — deixando uma tigela de mingau sobre a mesa, quente ou
repousando na penumbra do canto — Perchta sorvia silenciosamente, e o próximo
ano lhes ofereceria fartura, saúde, proteção contra doenças e o invisível
conforto de sua bênção. A comida, nesse contexto, é linguagem secreta: um gesto
de aliança entre humano e espírito, entre lar e ciclo do ano, entre o cotidiano
e o sagrado.
O mingau ritual, chamado
Brein ou Kletzenbrei, transcende o alimento: é memória, intenção, história
condensada em sabor e cheiro. Preparado com cevada, mel, leite e especiarias como canela e noz-moscada, cada ingrediente carrega um significado
profundo. A cevada resiste ao frio, firme como a vida que persiste; as maçãs
secas e as passas guardam a memória da colheita e da preservação; o mel oferece
doçura e proteção invisível; as especiarias evocam coragem e força para
atravessar o inverno. Cozinhar o mingau é um ato de meditação e atenção: mexer
devagar, sentir os aromas, escolher o ponto exato. Colocar a tigela pronta
sobre a mesa ou junto à lareira é um gesto de comunhão silenciosa, um ritual
que fala mais alto que palavras, onde humano e espírito se encontram na
quietude das Rauhnächte.
Em cada gesto, cada
ingrediente, cada tigela deixada com cuidado, respira-se a verdade que Frau
Perchta sempre guarda: a vida não é apenas vivida, mas sustentada; não é apenas
celebrada, mas honrada. E nesse equilíbrio, entre cuidado e lembrança, nasce a
verdadeira luz do inverno — aquela que aquece sem ser vista, protege sem ser
tocada, e mantém a promessa do tempo intacta, de um ano ao outro.
Nos relatos do folclore
germânico, especialmente em fontes dos séculos XIX e XX, encontra-se um
registro delicado e persistente: durante as Rauhnächte — os doze dias sagrados
entre 25 de dezembro e 6 de janeiro —, as famílias camponesas da Áustria e da Baviera
preparavam um mingau de grãos simples, símbolo de subsistência e cuidado
ritual. Esse mingau assumia diferentes formas e nomes, cada um carregado de
nuance cultural e funcional.
O Brein (simplesmente mingau
de grãos) era o mais básico, feito com cevada, aveia ou trigo, cozido
lentamente em água ou leite. Sua simplicidade refletia a austeridade do
inverno, o respeito pela modéstia e a consciência de que cada grão era
precioso. Não se tratava de sabor, mas de presença: o Brein garantia que
houvesse alimento para os dias frios e simbolizava a atenção ao lar, à ordem e
ao cuidado.
O Perchtenbrei (mingau dos
Perchten) carregava em seu nome a conexão direta com os rituais de inverno e os
desfiles das figuras mascaradas. De textura mais densa e muitas vezes
enriquecido com pequenas frutas secas ou mel, servia como oferenda silenciosa,
um gesto de cooperação com os espíritos que caminhavam livres durante as
Rauhnächte. Cada colher era um ato de diálogo com o invisível, um
reconhecimento de que o inverno só podia ser atravessado com atenção e cuidado.
O Berchtenbrei (mingau de
Berchta) era preparado especialmente para as noites em que a própria Frau
Perchta era lembrada em cada gesto doméstico. Diferente do Perchtenbrei, que
era ligado ao coletivo do desfile e à presença ritual do grupo, o Berchtenbrei
enfatizava o culto individual e doméstico, servido na cozinha, ao lado da
lareira, como sinal de hospitalidade e de observação silenciosa. A quantidade,
a ordem e o cuidado na preparação refletiam diretamente o respeito ao espírito
guardião do inverno.
Por fim, o Kletzenbrei
(mingau de peras secas), talvez o mais conhecido fora das aldeias, incorporava
frutas secas — sobretudo peras, mas também maçãs ou passas — transformando o
mingau simples em símbolo de preservação e abundância. Cada pera seca (Kletze
em alemão) não era apenas ingrediente; era memória do verão, da colheita, da
paciência da terra, cozida lentamente para manter viva a promessa de alimento e
cuidado. A textura ligeiramente mais doce e densa do Kletzenbrei o tornava
particularmente associado à atenção, ao ritual de oferecer alimento ao espírito
e à proteção simbólica da família durante o inverno.
O ponto central desses
registros — sejam estudos sobre Frau Perchta, relatos de costumes camponeses ou
descrições de rituais domésticos de inverno — não é o sabor, mas a intenção e a
forma. Cada tipo de mingau, com seu nome, ingrediente e textura específicos, é
manifestação do respeito pelo ciclo da vida, alimento de subsistência
transformado em rito doméstico, linguagem silenciosa entre humanos e espíritos.
Na preparação, cada grão, cada fruta, cada gesto de mexer ou servir torna-se um
ato poético, lembrando que, mesmo nas noites mais longas e frias, a atenção, a
disciplina e a memória ancestral sustentam a vida.
Em algumas aldeias, contam
que, se a tigela fosse esquecida ou derrubada, a bruxa faria seu julgamento de
maneira visível: manchas escuras surgiriam no chão, o vento sopraria com força
pelas chaminés, e o mingau desapareceria sem explicação. Em outras regiões, ela
poderia simplesmente trocar o mingau por pequenos objetos do dia a dia,
lembrando os humanos que a ordem precisa ser mantida, mesmo quando invisível.
A tradição do mingau também
se entrelaça com os Perchten, que desfilam pelas vilas durante o mesmo período.
Entre eles, os Schönperchten espalham sorte e prosperidade, enquanto os
Schiachperchten, com suas máscaras de madeira e chifres retorcidos, evocam a
animalidade indomada e o caos que Frau Perchta governa. O mingau deixado nas
casas funciona como ponte entre o lar e o desfile, como lembrete silencioso de
que o cuidado diário se conecta às forças invisíveis que circulam o mundo.
Outras lendas contam que
Perchta, em noites especialmente frias, poderia aparecer na cozinha, tocando
levemente os objetos, apenas para testar a atenção dos humanos. Quem a
observasse sem medo e sem desordem, sentiria calor invadir a casa, um sinal de
que a proteção estava presente. Dizem também que ela adora quando o mingau é
feito com frutas secas recém-colhidas, simbolizando a preservação do ciclo da
vida, e que cada pitada de canela é reconhecida como um gesto de cuidado.
No entanto, nem todas as
lendas são ternas. Há histórias em que crianças desobedientes ou famílias
negligentes acordam com sombras estranhas nas paredes, vultos fugidios que
desaparecem antes que possam ser vistos claramente. Nada de terrível acontece;
é apenas o lembrete de que a ordem precisa ser respeitada. Em algumas aldeias
da Áustria e do sul da Alemanha, ainda se diz que, quando as máscaras dos
Perchten passam nas ruas, “Perchta está andando”, e todos fecham as janelas e
observam, silenciosos, sabendo que o inverno só se atravessa com atenção e
respeito.
Assim, a figura de Frau
Perchta não é apenas temor ou disciplina. É memória materializada, é ritual de
continuidade, é a consciência do homem diante do inverno e do ciclo da vida. O
mingau não é apenas comida: é poesia em forma de sustento, é história e cuidado
cozidos lentamente, fragrância de canela e mel que atravessa gerações. Cada
colher, cada tigela deixada sobre a mesa, é um gesto de diálogo com o
invisível, um pequeno ato de resistência contra a desordem e o esquecimento.
No fundo, todas essas
histórias se entrelaçam: a bruxa que observa, o mingau que protege, os Perchten
que caminham nas ruas. São capítulos de uma mesma narrativa, onde o Natal não é
apenas celebração, mas trânsito de forças, ritual de atenção e respeito pelo
ciclo da vida. Frau Perchta, invisível e atenta, garante que a passagem do
tempo seja sentida, compreendida e honrada, e que cada inverno seja atravessado
com consciência, cuidado e poesia.
CONCLUSÃO – O INVERNO, O MINGAU E A
VIGILÂNCIA SILENCIOSA DE PERCHTA
Quando as luzes do Natal
acendem, cintilando sobre árvores e presépios, é fácil esquecer que antes do
brilho havia silêncio, sombra e atenção. Frau Perchta nos lembra disso: não
como ameaça, mas como guardiã do limiar, da ordem invisível que sustenta a vida.
Ela caminha nas Rauhnächte, atravessa casas com olhos que não se veem, observa
cozinhas e mesas, e verifica que cada grão, cada fruta seca, cada tigela de
Brein, Perchtenbrei, Berchtenbrei ou Kletzenbrei esteja disposto com cuidado.
Cada um desses mingaus, em sua simplicidade, não é apenas alimento, mas palavra
silenciosa, oferenda e memória, gesto de humanidade em diálogo com o ancestral.
O Natal, sob a vigilância de
Perchta, não é apenas celebração ou festa. É ritual de atenção, é respeito pelo
ciclo da vida, é a lembrança de que a fartura se constrói com paciência,
disciplina e cuidado. O mingau cozido lentamente na cozinha alpina não é só
sustento; é ponte entre o visível e o invisível, entre o humano e o espírito,
entre o calor da lareira e a neve lá fora. Cada colher, cada aroma de canela e
mel, cada grão de cevada é testemunha de que o inverno só se atravessa com
consciência, que a vida se mantém não pelo excesso, mas pela atenção e pelo
gesto delicado.
E assim, Frau Perchta não é
inimiga, nem figura de terror gratuito. Ela é a memória viva do que antecede o
Natal, sombra necessária que nos ensina a atravessar o inverno com cuidado, e
nos lembra que cada alimento, cada gesto doméstico, cada silêncio compartilhado
é um ato de poesia e de sobrevivência. Entre chifres, máscaras e mingaus, entre
sombras e lareiras, ela nos sussurra que o verdadeiro brilho do Natal não está
nas luzes ou nos presentes, mas na ordem, na atenção e na presença consciente
que cultivamos em cada gesto diário — e que é justamente isso que sustenta a
vida quando o frio é mais intenso e a noite mais longa.
No fim, Perchta se dissolve
nas lembranças do inverno, mas permanece nos rituais, nos mingaus, nas casas
silenciosas: como princípio, como sombra, como poesia que atravessa gerações. E
quem cozinha, observa ou oferece um simples Brein à noite, participa desse
diálogo antigo, perpetuando a dança entre cuidado, sobrevivência e magia que
faz o Natal ser mais do que festa — um ritual de vida, memória e vigilância
silenciosa.
E assim, leitor, convido-o a
atravessar o inverno com atenção e cuidado, como faziam os camponeses das
aldeias alpinas. Pegue seus grãos, suas peras secas, suas passas e canela, e
transforme-os em Kletzenbrei, o mingau ancestral que carrega em cada colher o
gesto silencioso de respeito e proteção. Enquanto mexe a mistura sobre o fogo
baixo, imagine as sombras longas da Rauhnächte dançando nas paredes, e sinta a
presença de Frau Perchta, que observa sem pressa, atenta ao cuidado do lar.
Em algumas regiões, ainda se
sussurra o costume: colocar a tigela sobre a mesa, inclinando-se levemente, e
dizer com reverência: “Für dich, Frau Perchta“— “Para ti, Senhora Perchta”. Não
é apenas alimento que se oferece; é gesto de hospitalidade, ato de memória e
poesia em forma de sustento, ponte entre o visível e o invisível, entre a
cozinha aquecida e o vento gelado do lado de fora. Cada colher é convite: para
que o espírito do inverno seja sentido, para que a tradição sobreviva e para
que o Natal não se limite ao brilho superficial, mas se viva no cuidado, na
presença e na atenção que transformam uma simples tigela de mingau em rito de
vida.
KLETZENBREI DE FRAU PERCHTA À MODA DO
BARÃO DE GOURMANDISE
Ingredientes (4 porções)
Base
¾ xícara de aveia em flocos grossos (ou
cevada em flocos, se quiser algo mais rústico)
1 ½ xícara de leite integral
1 xícara de água
1 pitada de sal
Frutas
½ xícara de peras secas picadas
2 colheres (sopa) de uvas-passas (claras
ou escuras) ou damascos picados
Para dar sabor (equilíbrio moderno)
1 ou 2 colheres (sopa) de mel ou açúcar
(adoce à gosto)
½ colher (chá) de canela
1 pedacinho de casca de limão ou laranja
(sem a parte branca)
Finalização (opcional, mas recomendada)
1 colher (chá) de manteiga ou nata
Nozes, avelãs (ou a castanha que tiver
por perto) levemente tostadas
PREPARO: Em uma panela, coloque todos os
ingredientes da base e leve ao fogo baixo. Cozinhe mexendo sempre por cerca de
10–15 minutos, até começar a engrossar. Acrescente: peras secas, passas e a
casca cítrica e cozinhe mais 5 minutos, até as frutas ficarem macias. Retire a
casca cítrica. (se fizer com açúcar, inclua ele na mistura fervente).
Acrescente: mel, canela e a manteiga e misture bem. Ajuste a textura com um
pouco mais de leite, se necessário. Sirva quente, com nozes por cima.