Quando a notícia da morte de
Brigitte Bardot atravessou meu dia de hoje, algo antigo se moveu dentro de mim,
como uma maré que retorna sem avisar. A lembrança veio de muito longe, de um
tempo em que eu era criança e o mundo ainda se organizava em sons, impressões e
espantos.
A primeira vez que ouvi o
nome Brigitte Bardot, não foi acompanhado de imagem alguma — foi apenas o nome,
pronunciado por alguém que falava de beleza como se falasse de um acontecimento
raro.
A infância, essa arquiteta
caprichosa da memória, guarda algumas cenas com precisão quase cruel, como
fotografias intocadas, e dissolve outras em lampejos rápidos, que surgem e
desaparecem. Não me recordo quem puxou o assunto, nem em que sala, nem em que
tarde. Mas lembro perfeitamente do impacto do nome.
Brigitte Bardot.
Ele me empolgou de imediato.
Soava chique, inteiro, estrangeiro. Um nome que parecia caminhar de salto alto
mesmo quando dito em voz baixa. Logo alguém explicou que era francês — e isso
bastou. Ali se fechou o círculo do meu encantamento infantil: o que era
francês, para mim, era sinônimo de elegância, de mundo vasto, de algo que
existia além do alcance das mãos.
O tempo passou — não com
pressa, mas com aquela paciência própria de quem sabe onde quer chegar. Anos
muitos, muitos anos depois, o nome ressurgiu. Já não era apenas música: vinha
carregado de história. Era o início dos anos 2000, eu cursava Turismo na faculdade,
aprendendo a ler os lugares não apenas como espaços, mas como destinos moldados
por encontros improváveis. Eu tinha aulas com professores que fizeram parte da
primeira turma de Turismo no Brasil, pessoas que traziam nos olhos a memória de
quando tudo ainda estava sendo inventado.
Num desses dias, enquanto
ajustávamos uma viagem técnica para a Região dos Lagos, mais precisamente para
Búzios, no Rio de Janeiro, o professor mencionou Brigitte Bardot. Disse, quase
como quem conta um segredo antigo, que fora ela a responsável por colocar
Búzios na rota do turismo mundial ainda na década de 1960. Achei curioso, quase
poético: o primeiro curso de Turismo no Brasil só surgiria na década de 1970,
mas Bardot já havia feito, sozinha, o trabalho que os livros ainda tentariam
explicar depois.
Ela esteve em Búzios duas
vezes, em 1964. A primeira, em janeiro, quando permaneceu ali por quatro meses,
hospedada em Manguinhos, ao lado do então namorado Bob Zagury. A segunda, em
dezembro, já sob uma luz mais intensa, quando sua presença deixava de ser
apenas curiosidade e passava a ser acontecimento. O que a seduziu foi o aspecto
bucólico, a necessidade de isolamento, o silêncio como abrigo. Brigitte aportou
na Armação de Búzios para descansar do mundo — e, sem saber, transformou aquele
lugar para sempre.
Para os moradores locais,
gente simples e hospitaleira, ela não era mito nem estrela. Era descrita como
“uma criança bonita, parecida com uma boneca de olhos verdes”, conforme
registrou o Jornal do Brasil da época. Essa imagem me toca profundamente: a mulher
que o mundo venerava vista ali como algo frágil, quase doméstico, pertencente
ao cotidiano da vila.
Depois da visita da jovem
Brigitte Bardot, o balneário foi revelado ao mundo. A antiga vila de pescadores
começou a mudar, a crescer, a ganhar projeção nacional e internacional. Durante
sua estadia, ela viveu de forma simples, caminhando pela cidade, frequentando
praias como Manguinhos, convivendo com os moradores — como se estivesse
tentando, por alguns meses, ser apenas mais um corpo entre o mar e a areia.
Mas o mundo não esquece
facilmente aquilo que toca. Após suas visitas, Búzios passou por mudanças
aceleradas, ganhou fama, desejo, nome. E desde então, nunca mais saiu de moda.
Em 1999, a cidade inaugurou
a Orla Bardot, onde uma estátua foi instalada em sua homenagem — um gesto de
gratidão silenciosa, quase marítima. Brigitte Bardot nunca mais retornou ao
município, mas deixou algo mais duradouro que presença: um legado. Algo que
permanece no desenho da cidade, no fluxo dos visitantes, na memória coletiva.
Neste domingo, logo após a
notícia de sua partida, a Prefeitura de Búzios publicou uma homenagem. O texto
destacava a relação rara que ela construiu com o lugar, mesmo sendo chamada de
musa. Um trecho dizia: “Você fez diferente: caminhou junto, escolheu o
silêncio, preferiu o essencial. Tornou-se parte da alma de Búzios, como se
sempre tivesse estado aqui.”
Ao ler essas palavras, senti
que aquele nome que me encantara na infância finalmente fechava um ciclo dentro
de mim — não como despedida, mas como permanência.
Como turismólogo de
formação, eu reconheço com clareza quase técnica — mas nunca fria — que
Brigitte Bardot foi um elemento fundamental na construção e na manutenção de
Búzios como destino turístico. Há dados, há datas, há análises possíveis. O
impacto é mensurável: antes dela, uma vila; depois dela, um nome pronunciável
em muitas línguas. Mas essa leitura, embora correta, é insuficiente.
Porque imagino — e essa
imaginação me acompanha como uma pergunta que não se cala — que para aqueles
que conviveram com ela naquela época, ali, entre o sal do mar e a poeira das
ruas de terra, Bardot tenha sido mais do que um fator de transformação econômica
ou simbólica. Talvez tenha sido apenas uma presença: alguém que caminhava
devagar, que olhava nos olhos, que ria com facilidade. Talvez tenha sido
silêncio partilhado, sombra dividida, manhãs sem urgência.
Quando estive em Búzios, não
cheguei a entrevistar nenhum antigo morador. Hoje, confesso, isso me pesa.
Arrependo-me desse silêncio que deixei existir. Gostaria de ter encontrado
essas pessoas, de ter ouvido suas vozes gastas pelo tempo, de recolher fragmentos
de uma Brigitte que não aparece nos filmes nem nas fotografias — aquela que
existiu apenas ali, naquele intervalo raro da vida em que ela não era
espetáculo, mas vizinhança. Ter mais visão dela. Ter mais humanidade emprestada
por quem a viu sem moldura.
Hoje, entretanto, ela já não
está mais entre nós. E o que fica são imagens. Imagens conhecidas, repetidas,
algumas cristalizadas demais. Ficam os gestos eternizados, os enquadramentos,
os olhares capturados quando ainda não sabiam que seriam eternos. Fica aquilo
que o mundo conseguiu guardar.
Eu conheço o suficiente — e
digo isso com respeito e consciência dos limites. Vi alguns de seus filmes,
desses que atravessam décadas sem envelhecer por completo. Vez por outra, ouço
algumas das músicas que ela gravou, e nelas há sempre algo de leve e de
melancólico, como se a voz carregasse a fadiga doce de quem foi vista demais.
Conheço também suas escolhas fora das telas, suas recusas, seu afastamento, sua
decisão de existir longe do brilho constante.
E, curiosamente, partilho
gostos com ela. Particularmente, também gosto de alguns dos pratos que eram os
seus preferidos — mas isso ficará para o final deste ensaio, como se deve
deixar o sabor repousar até o momento certo. Antes, porém, é preciso falar um
pouco sobre ela, para aqueles que não a conheceram, para os que nasceram depois
que sua imagem já era mito, para quem só ouviu o nome sem nunca ter parado para
senti-lo.
Porque Brigitte Bardot não
foi apenas vista.
Ela foi percebida.
E essa diferença muda tudo.
ELA FOI CORPO E ALMA DE
SUA PRÓPRIA LENDA
Quando Brigitte Bardot
nasceu em Paris, em setembro de 1934, ela nasceu já envolta em seda e etiqueta
— numa grande cidade que é ao mesmo tempo luz e sombra, no lar de uma família
burguesa tradicional, com apartamentos elegantes e rotinas marcadas por rigor e
expectativas altas. Seu pai era industrial, dono de fábricas e habituado ao
poder sereno das grandes máquinas; sua mãe, filha de um diretor de seguros,
vivia a elegância da moda e da dança, interessada mais nas formas do que nas
fugas do coração. Bardot cresceu entre salões bem arrumados, festas cuidadas e
um futuro que, para muitos, já parecia escrito.
Brigitte Bardot (à esquerda) rodeada pela família na escadaria da casa dos avós em Louveciennes, França, maio de 1952. O pai, Louis, a mãe, Anne-Marie, o avô, "Boum-papa", a irmã de 13 anos, Mijanou, e o cachorro. Foto de Walter Crone
Mas havia algo nela que
ardia além dos tecidos caros e das salas amplas — uma inquietação, um desejo de
respirar o mundo sem a moldura previsível que sua educação tentava impor. No
lar onde o rigor católico controlava os passos e onde os amigos eram escolhidos
com a mesma precisão de um terno bem cortado, ela sentia vontade de desaparecer
daquele desenho perfeito e buscar algo que ninguém ali poderia nomear.
A própria infância de Bardot
ficou marcada por estas tensões: em casa, os padrões de comportamento eram
estritos, as amizades limitadas e a disciplina — implacável. Numa ocasião que
ela mesma recordaria depois, um vaso favorito dos pais foi quebrado durante uma
brincadeira — e, em resposta, seus pais reagiram com severidade, exigindo
distância emocional e formalidade até na forma de tratamento dentro de casa,
como se cada gesto fosse uma chance de desordem a ser evitada.
Mas o corpo dela não nasceu
para ser contido. Enquanto aprendia balé e desenhava passos no estúdio, um
impulso mais profundo crescia em seu peito: o desejo de sentir a vida em
movimento, de ser mais do que um rosto bonito em retratos engessados. Aos quinze
anos, quando posou para a capa da revista Elle e foi vista pela primeira vez
fora do círculo restrito de sua família, algo dentro dela despertou de vez —
era como se uma janela se abrisse para um céu que antes parecia sempre
distante.
E então Roger Vadim entrou
em cena — não apenas como cineasta ou futuro marido, mas como o agente que
desafiou todas as bordas daquela existência burguesa. Ele viu nela não apenas
um rosto, mas um espírito que precisava se lançar para fora das paredes controladas
da casa parisiense. A partir daquele encontro e daquela primeira câmera que não
tirava uma pose educada, Brigitte começou a aprender algo que sua educação
jamais ensinara: que a vida verdadeira às vezes acontece fora das grades do
esperado, fora das curvas suaves do que é seguro.
Ela não apenas deixou a
riqueza para trás — ela começou a rejeitar a própria ideia de um destino pronto
e arrumado. Entrou no cinema como quem atravessa um campo vasto pela primeira
vez: com respiração contida e coração solto, sabendo que nada jamais seria como
antes. Essa decisão foi um salto para fora da colcha confortável da riqueza,
rumo ao desconhecido do palco, da tela, da fama e de um mundo que, por vezes, a
quis como objeto antes de percebê-la como alma.
Assim, a transformação de
Brigitte Bardot — da menina criada entre cortinas pesadas e ordens repetidas —
para a mulher que violou convenções, desafiou normas e reinventou sua própria
vida não é apenas uma história biográfica: é um gesto de coragem, de amor
próprio e de busca pela autenticidade que poucos conseguem viver.
Foi então que Roger Vadim,
jovem cineasta e seu primeiro marido, escreveu um papel que não era apenas
retrato, mas uma revolução: And God Created Woman (E Deus Criou a Mulher,
1956). Nesse filme, Brigitte, aos 22 anos, não apenas atuou — ela incendiou a tela
com uma energia que parecia descender de outra lógica, uma que recusava
personagens dóceis e molduras contidas. A sensualidade que emanava dela era
tempestade e brisa ao mesmo tempo, uma música sem nome que atravessava corpos e
atravessou décadas.
A fama foi um sol que
brilhou forte demais. Não era incomum que fãs atravessassem portões, entrassem
em sua casa, rondassem jardins de Saint-Tropez, na esperança de apenas um
lampejo de sua presença, uma relíquia qualquer que pudesse tocar e guardar. Os paparazzi,
como aves noturnas sedentas, perseguiram cada movimento seu, transformando até
os dias quietos em sequência de flashes. Alguns atravessaram o limite do
humano: bolas de neve jogadas em seu rosto, uma enfermeira que, em um ataque de
loucura, a atacou com um garfo — e que deixou cicatrizes que Brigitte carregou
consigo como mapas de batalhas íntimas.
A imagem que o público
consome — aquela moldurada, iluminada, pronta para consumo — era apenas a
superfície de um corpo que sangrava sob o peso do olhar permanente. Nada disso
é exagero poético, mas a verdade crua de uma mulher que foi vista demais, que foi
reduzida a cenário e a objeto, sem que quase ninguém perguntasse o que ardia em
seus olhos.
Aos 40 anos, esgotada pelo
assédio e pelos espinhos invisíveis da fama, Brigitte decidiu virar o rosto
para a câmera e escutar o que seu próprio coração gritava em silêncio. Ela
tentou tirar sua própria vida em mais de uma ocasião — não como rendição, mas
como sinal de que o mundo que a queria inteira e sempre disponível não lhe
pertencia.
Foi assim que ela se afastou
dos holofotes e descobriu um amor que exigia silêncio, respeito e verdade: o
amor pelos animais. Fundou, em 1986, a Fundação Brigitte Bardot, dedicada à
proteção e ao bem-estar dos que não têm voz. Não foi um gesto fácil ou decorativo.
Para financiar sua causa, ela leiloou joias e objetos pessoais, convertendo
lembranças de um passado de glamour em recursos para resgatar vidas indefesas.
Do outro lado da lente,
Brigitte viu nos olhos dos animais aquilo que aprendeu a reconhecer em si
mesma: a vulnerabilidade, o medo, a vontade de viver sem dor — algo que jamais
encontrou no olhar insaciável da fama. Ela viajou, protestou, exigiu mudanças e
confrontou tradições que aceitavam sofrimento como normalidade. Seu nome passou
a soar nas campanhas contra a caça de focas, contra a crueldade nas fazendas
industriais, contra práticas que o mundo justificava com o argumento da
necessidade.
E mesmo ali, nessa nova
encarnação de si mesma, seu coração continuou a arder em contradições: seu
ativismo apaixonado muitas vezes colidiu com palavras duras e posições que a
tornaram figura controversa e alvo de condenações por incitação ao ódio em sua
França natal — lembrando que as complexidades humanas não são facilmente
apaziguadas por intenções nobres.
E assim foi sua vida:
corpo que foi desejo,
alma que foi lente,
espírito que foi voz dos
silenciados.
Ela se tornou mito — não
porque alguém o decretou, mas porque sua história é feita de luz e de feridas,
de brilho e de noites sem estrelas, de amor e de dor.
O GOSTO DO SILÊNCIO:
QUANDO A VIDA SE SERVE À MESA
Existe um território da vida
que raramente aparece nas biografias oficiais: a cozinha. É ali que a fama se
dissolve, que o corpo descansa da pose, que a alma escolhe o que pode ou não
ingerir do mundo. Brigitte Bardot, mesmo depois de ter sido imagem excessiva,
foi alguém que soube preservar esse território íntimo do sabor.
Quanto à comida, ela
continuou cozinhando para si mesma já em idade avançada, com prazer evidente,
como quem transforma o ato de comer em gesto de cuidado e permanência. Comer,
para Bardot, nunca foi espetáculo — foi refúgio.
Em Saint-Tropez, onde tantos
a perseguiram com olhos famintos, havia também um lugar onde ela se sentava
como qualquer outra pessoa: o restaurante La Ponche, discreto, antigo,
impregnado de Mediterrâneo. Ali, entre paredes que ouviram confidências e passos
lentos, o cardápio oferecia muito mais do que a culinária provençal clássica.
Havia ecos do mundo: Índia, Tailândia, Líbano, Japão, Marrocos. Uma diversidade
que parecia dialogar com a própria trajetória de Bardot — mulher francesa, mas
jamais confinada a uma única identidade.
Curiosamente, ninguém sabia
dizer qual era, de fato, sua comida favorita. Como se esse detalhe tivesse sido
guardado longe do olhar público, protegido da curiosidade que tantas vezes lhe
invadiu a vida. Foi apenas mais tarde, num gesto quase fortuito, no posto de
turismo de Saint-Tropez, que a resposta surgiu — escondida numa edição local de
revista, daquelas que só quem caminha sem pressa encontra. A edição de setembro
celebrava as figuras que haviam atravessado as ruas da cidade. Entre elas,
Brigitte. E ali, finalmente, estava revelado o prato que lhe era caro: a salada
de tabule.
A história vinha contada por
Frédéric van Coppernolle, chef belga, cuja vida se entrelaçou à dela de maneira
silenciosa e profunda. Em 1980, aos quinze anos, ele foi morar com a avó na
propriedade de Bardot, enquanto seus pais atravessavam um divórcio difícil. A
avó cuidava da casa — e cozinhava. Bardot, já então uma defensora obstinada dos
direitos dos animais, era vegetariana há muitos anos, e a cozinha da casa
girava em torno desse princípio: nada de crueldade, nada de excesso, apenas o
essencial.
O jovem Frédéric tornou-se
ajudante da avó. Preparavam tortas de cebola, ratatouille perfumado de azeite,
pizzas simples, quiches de legumes e queijo. Cozinhavam também para os muitos
habitantes não humanos da casa: treze cães e cerca de quarenta gatos, alimentados
com refeições feitas especialmente para eles — como se a ética de Bardot se
estendesse, naturalmente, da mesa ao quintal.
Entre todos os pratos, havia
um que se repetia com carinho: o tabule da avó. Tecnicamente, não era tabule,
mas cuscuz — e eles sabiam disso. Nunca a corrigiam. Bardot era conhecida por
certa teimosia doce, e a paz valia mais do que a precisão culinária. Chamavam
de tabule, e assim ficava. Afinal, os ingredientes falavam por si: ervas
frescas, limão abundante, azeite generoso. O nome era apenas um detalhe.
Na juventude, durante as
filmagens em Saint-Tropez, esse prato acompanhava outro prazer simples: a Tarte
Tropézienne. Um brioche macio, aberto ao meio, recheado com creme de
confeiteiro misturado a creme de manteiga, coberto por açúcar cristal. A
sobremesa ganhou fama mundial e foi batizada pela própria Bardot, em 1956,
durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher. Mesmo o doce carregava sua
marca: sensual sem ser excessivo, simples sem ser banal.
Com o passar dos anos, sua
relação com a comida tornou-se ainda mais ética. Desde o final da década de
1970, Brigitte Bardot militou ativamente por opções vegetarianas em
restaurantes, denunciou a crueldade da indústria alimentar e defendeu uma
alimentação que não exigisse sofrimento como condição. Comer, para ela,
tornou-se também um ato político — silencioso, firme, irrevogável.
E assim, quando pensamos em
Bardot à mesa, não a vemos como mito, mas como alguém que escolhia folhas,
cortava limões, sentia o perfume da hortelã. Alguém que, depois de ter sido
devorada pelos olhares do mundo, aprendeu a escolher cuidadosamente o que deixaria
entrar em si.
Se o tabule foi o abraço
fresco de uma vida vegetariana, há outro sabor que pertence à memória de
Brigitte Bardot como um sopro dourado de verão. Enquanto a salada era leve,
cheia de ervas e limão, havia um doce que sussurrava o nome da Riviera Francesa
entre cada camada de creme e massa — a Tarte Tropézienne.
A Tarte Tropézienne não é
apenas um ‘bolo’. É um pedacinho de Saint Tropez transformado em sobremesa: uma
massa de brioche levemente amanteigada, macia como nuvem, dividida ao meio e
recheada com um creme tão delicado que parece feito de memórias — mistura de
crème pâtissière e creme de manteiga, às vezes aromatizado com água de flor de
laranjeira ou um toque de rum. Por cima, pequenos cristais de açúcar brilham
como manhã de sol na Côte d’Azur.
Essa sobremesa nasceu nos
anos 1950, criada por Alexandre Micka, um confeiteiro polonês que se instalou
em Saint Tropez após a Segunda Guerra Mundial e trouxe consigo a receita
esquecida de sua avó, adaptada ao clima ensolarado daquele recanto do Mediterrâneo.
Foi ali, enquanto Brigitte
Bardot filmava “E Deus Criou a Mulher” nas ruas ensolaradas e nos becos de
pedra da vila, que ela encontrou esse presente de textura e sabor. Dizem que
ela se apaixonou pela sobremesa e sugeriu ao confeiteiro que desse um nome ao
doce que ela tanto pedia — primeiro chamando o de la tarte de Saint Tropez, e,
mais tarde, consolidando o nome que conhecemos hoje: Tarte Tropézienne.
A partir desse momento, a
Tarte Tropézienne deixou de ser apenas um bolo local e tornou se um ícone, uma
poesia em forma de açúcar e creme. Ela ganhou fama junto com Bardot, assumindo
seu lugar entre os símbolos da Riviera — tão leve quanto o vento que percorre o
mar, tão radiante quanto o sorriso de uma noite de verão.
E então, ao contrário de
muitas sobremesas que se perdem com o tempo, ela permaneceu. Permeou cafés
escondidos entre ruazinhas, foi servida em mesas com vista para o porto, tornou
se objeto de desejo de viajantes e locais. A receita original ainda é guardada
com cuidado como um segredo de família, transmitida por gerações de padeiros
que mantêm viva essa tradição culinária de Saint Tropez.
Provar uma Tarte Tropézienne
é sentir na boca a história de uma mulher que, na juventude, foi desejo e
estrela, e que, depois, soube escolher seus prazeres com a mesma honestidade
que escolheu sua trajetória de vida — sem concessões, mas com poesia.
A brioche acaricia os
lábios, o creme desliza como saudade, e os cristais de açúcar explodem como
risos de infância. É uma sobremesa que não se come apenas com a língua — se
come com lembranças, com paisagens, com tempo suspenso.
DESPEDIDA À DIVA PELO SABOR E PELA VIDA
E então chegamos ao momento
em que a textura encontra o símbolo, em que o sabor se torna voz e a sobremesa
se ergue como epitáfio.
Ao fechar os olhos, o nome
Brigitte Bardot ressoa como um sussurro de elegância e mistério, carregado do
perfume distante do cinema francês. Seu caminhar pelas praias de Búzios, há
décadas, transformou aquele recanto em destino mundial, como se cada passo
tivesse imprimido magia na areia e nos corações que o mundo ainda descobriria.
Não era apenas uma atriz ou um ícone: Brigitte se tornou presença viva, elo
entre fantasia e realidade, entre o sonho que a tela projetava e o mundo que
podia ser tocado com a imaginação e o encanto. Hoje, sua memória retorna como
um sopro suave, lembrando que, embora tenha partido, permanece em cada
história, em cada paisagem, em cada passo leve que deixou gravado no tempo.
E se sua vida se revela em
imagens e lembranças, há também um sabor que nos aproxima de sua intimidade: a
salada de tabule. Cada grão de bulgur, cada folha de hortelã, cada toque de
limão nos fala de uma Brigitte que escolheu a simplicidade com elegância, que
apreciou o gesto de cozinhar e comer com prazer e consciência. Naquele prato,
encontramos não apenas temperos, mas a essência de quem viveu com intensidade,
ética e delicadeza, uma mulher que transformou cada escolha, por menor que
fosse, em expressão de sua liberdade e de sua alma.
Brigitte Bardot, cuja vida
foi um caleidoscópio de beleza, decisão e contradição, encontrou na Tarte
Tropézienne — essa poesia açucarada entre duas nuvens de brioche — não apenas
um deleite, mas um espelho da própria existência: rica, leve, intensa e definitivamente
inesquecível.
Naquele encontro entre atriz
e doce, não foi somente uma sobremesa que ganhou um nome. Foi um pedaço de
história que se confunde com a crença de um mundo mais livre, mais sensível,
mais profundo. A receita, criada por Alexandre Micka a partir de uma herança
familiar e consolidada durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher, encontrou
em Bardot um coração que a reconheceu e a nomeou — como quem dá nome ao que
ama.
Ela, que por tanto tempo
viveu sob o peso dos olhares, achou na mesa um lugar de calma e de verdade.
Entre ervas frescas e limões vivos do tabule, e o creme generoso da
Tropézienne, estava toda a ambiguidade de uma vida que foi cobiçada e serena ao
mesmo tempo. A comida que ela escolhia não era apenas alimento: era gesto, era
pausa, era afirmação de uma escolha ética — de amar os que não podem falar e de
escutar o que o silêncio ensina.
Agora, ao fim, não se trata
apenas de lembrar Brigitte Bardot como estrela de cinema ou musa dos anos 1950
e 1960.
Trata se de recordar que,
por trás da câmera, havia uma mulher que olhou para a vida com intensidade e
lutou por aquilo que acreditava ser justo.
Trata se de contemplar uma
forma de existir que não se deu por vencida diante do espetáculo dos outros,
mas buscou significado no simples e no essencial.
E, por isso, ao trazer esta
sobremesa — a Tarte Tropézienne, com sua massa dourada, seu coração cremoso e
seu açúcar cintilante — construo um momento de despedida que é ao mesmo tempo
celebração: um convite para sentir cada camada da memória com a mesma
delicadeza com que Brigitte viveu, amou e escolheu seus caminhos.
Ao fechar este ensaio, deixo
a última imagem não como um fim, mas como um brinde — um pedaço de Saint Tropez
servido na língua do tempo, onde cada mordida é lembrança, cada aroma é emoção,
e cada memória é um sopro que não se apaga.
Adeus, Brigitte Bardot. Que
a eternidade seja tão leve quanto a espuma de um creme e tão luminosa quanto o
sol que banha aqueles campos de limão e mar.
SALADA DE TABOULE AO ESTILO DE BRIGITTE BARDOT
Nesta versão atribuída a Brigitte Bardot, a “salada de tabule” é feita com couscous marroquino instantâneo — por isso, tecnicamente, não é o tabule tradicional como se conhece no Oriente Médio, que leva bulgur (trigo para quibe). Mas o resultado é igualmente refrescante, aromático e delicioso, com sabores que evocam as viagens, os jardins e o Mediterrâneo que a diva tanto amou.
Ingredientes
½ xícara de suco de tomate (bata tomates
bem maduros no liquidificador e coe)
1 ½ xícaras de couscous marroquino
instantâneo
1 colher de sopa de azeite de oliva
(pode ir até ¼ de xícara, conforme gosto)
1 xícara de grão‑de‑bico
enlatado (bem escorrido)
1 ½ xícaras de tomates picados
1 xícara de pepino, descascado, sem
sementes e em cubinhos
1 colher de chá de alho, bem picado
3 colheres de sopa de échalotes ou
cebola bem picadinha
Raspas de ½ limão
Suco de 3 colheres de sopa de limão
(cerca do suco de 1 limão)
1 ½ a 2 xícaras de folhas de hortelã
picadas (conforme preferência)
2 colheres de chá de sal
Pimenta‑do‑reino
a gosto
Pimenta‑caiena ou molho picante (opcional, para
finalizar)
MODO DE PREPARO: Aqueça líquidos: num pequeno tacho, leve
1 xícara de água e o suco de tomate para começar a ferver. Hidrate o couscous:
coloque o couscous marroquino instantâneo numa tigela resistente ao calor e
despeje sobre ele a água com suco de tomate ferventes. Tempere: adicione o
azeite e misture delicadamente. Cubra com um pano ou com plástico e deixe o
couscous repousar, absorvendo o líquido, por alguns minutos até que os grãos
estejam macios. Misture os ingredientes frescos: em outra tigela, combine o
grão‑de‑bico, tomates, pepino, alho, échalotes,
raspas e suco de limão. Solte o couscous: com um garfo, solte os grãos agora
macios e junte‑os aos
vegetais. Incorpore as ervas: acrescente a hortelã picada, o sal e a pimenta‑do‑reino;
mexa bem para integrar sabores. Ajuste e refrigere: finalize com pimenta‑caiena ou um toque de molho picante se
desejar, cubra e leve à geladeira por pelo menos 3 horas — o descanso ajuda os
sabores a se fundirem e aprofundarem. Sirva frio, como entrada refrescante ou
acompanhamento.
TARTE TROPÉZIENNE
Ingredientes para a massa (brioche):
600 g de farinha de trigo
2 colheres de chá de fermento biológico
seco
100 g de açúcar
6 ovos
1 colher de chá de sal
300 g de manteiga sem sal, amolecida
Raspas de 2 limões (opcional, para
perfume)
Açúcar em pérola para polvilhar
Creme (Crème Diplomate — combinação de crème pâtissière e creme
batido):
500 ml de leite
6 gemas de ovo
80 g de açúcar
60 g de farinha de trigo
60 g de amido de milho
1 fava de baunilha ou essência de
baunilha
200 ml de creme de leite fresco batido
Água de flor de laranjeira (opcional)
Modo de preparo – Prepare a brioche: misture farinha,
açúcar, fermento, sal e ovos. Sove até ficar elástica. Acrescente a manteiga
aos poucos e continue sovando até a massa ficar lisa e macia. Deixe crescer em
local morno até dobrar de volume. Modele em forma redonda e asse até dourar
levemente. Polvilhe açúcar em pérola por cima antes de ir ao forno. Faça o
crème pâtissière: aqueça o leite com baunilha. Bata gemas com açúcar, adicione
farinha e amido. Incorpore ao leite quente até engrossar e esfriar. Junte o
creme batido: depois de frio, misture delicadamente o creme de leite batido ao
crème pâtissière para obter leveza. Monte a torta: corte a brioche ao meio
horizontalmente, recheie generosamente com o creme, coloque a “tampa” por cima
e leve à geladeira antes de servir.






















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