domingo, 28 de dezembro de 2025

BRIGITTE BARDOT: O SABOR DE UMA VIDA

  

Quando a notícia da morte de Brigitte Bardot atravessou meu dia de hoje, algo antigo se moveu dentro de mim, como uma maré que retorna sem avisar. A lembrança veio de muito longe, de um tempo em que eu era criança e o mundo ainda se organizava em sons, impressões e espantos.

A primeira vez que ouvi o nome Brigitte Bardot, não foi acompanhado de imagem alguma — foi apenas o nome, pronunciado por alguém que falava de beleza como se falasse de um acontecimento raro.

A infância, essa arquiteta caprichosa da memória, guarda algumas cenas com precisão quase cruel, como fotografias intocadas, e dissolve outras em lampejos rápidos, que surgem e desaparecem. Não me recordo quem puxou o assunto, nem em que sala, nem em que tarde. Mas lembro perfeitamente do impacto do nome.

Brigitte Bardot.

Ele me empolgou de imediato. Soava chique, inteiro, estrangeiro. Um nome que parecia caminhar de salto alto mesmo quando dito em voz baixa. Logo alguém explicou que era francês — e isso bastou. Ali se fechou o círculo do meu encantamento infantil: o que era francês, para mim, era sinônimo de elegância, de mundo vasto, de algo que existia além do alcance das mãos.

O tempo passou — não com pressa, mas com aquela paciência própria de quem sabe onde quer chegar. Anos muitos, muitos anos depois, o nome ressurgiu. Já não era apenas música: vinha carregado de história. Era o início dos anos 2000, eu cursava Turismo na faculdade, aprendendo a ler os lugares não apenas como espaços, mas como destinos moldados por encontros improváveis. Eu tinha aulas com professores que fizeram parte da primeira turma de Turismo no Brasil, pessoas que traziam nos olhos a memória de quando tudo ainda estava sendo inventado.

Num desses dias, enquanto ajustávamos uma viagem técnica para a Região dos Lagos, mais precisamente para Búzios, no Rio de Janeiro, o professor mencionou Brigitte Bardot. Disse, quase como quem conta um segredo antigo, que fora ela a responsável por colocar Búzios na rota do turismo mundial ainda na década de 1960. Achei curioso, quase poético: o primeiro curso de Turismo no Brasil só surgiria na década de 1970, mas Bardot já havia feito, sozinha, o trabalho que os livros ainda tentariam explicar depois.


Ela esteve em Búzios duas vezes, em 1964. A primeira, em janeiro, quando permaneceu ali por quatro meses, hospedada em Manguinhos, ao lado do então namorado Bob Zagury. A segunda, em dezembro, já sob uma luz mais intensa, quando sua presença deixava de ser apenas curiosidade e passava a ser acontecimento. O que a seduziu foi o aspecto bucólico, a necessidade de isolamento, o silêncio como abrigo. Brigitte aportou na Armação de Búzios para descansar do mundo — e, sem saber, transformou aquele lugar para sempre.

Para os moradores locais, gente simples e hospitaleira, ela não era mito nem estrela. Era descrita como “uma criança bonita, parecida com uma boneca de olhos verdes”, conforme registrou o Jornal do Brasil da época. Essa imagem me toca profundamente: a mulher que o mundo venerava vista ali como algo frágil, quase doméstico, pertencente ao cotidiano da vila.

Depois da visita da jovem Brigitte Bardot, o balneário foi revelado ao mundo. A antiga vila de pescadores começou a mudar, a crescer, a ganhar projeção nacional e internacional. Durante sua estadia, ela viveu de forma simples, caminhando pela cidade, frequentando praias como Manguinhos, convivendo com os moradores — como se estivesse tentando, por alguns meses, ser apenas mais um corpo entre o mar e a areia.

Mas o mundo não esquece facilmente aquilo que toca. Após suas visitas, Búzios passou por mudanças aceleradas, ganhou fama, desejo, nome. E desde então, nunca mais saiu de moda.

Em 1999, a cidade inaugurou a Orla Bardot, onde uma estátua foi instalada em sua homenagem — um gesto de gratidão silenciosa, quase marítima. Brigitte Bardot nunca mais retornou ao município, mas deixou algo mais duradouro que presença: um legado. Algo que permanece no desenho da cidade, no fluxo dos visitantes, na memória coletiva.

Neste domingo, logo após a notícia de sua partida, a Prefeitura de Búzios publicou uma homenagem. O texto destacava a relação rara que ela construiu com o lugar, mesmo sendo chamada de musa. Um trecho dizia: “Você fez diferente: caminhou junto, escolheu o silêncio, preferiu o essencial. Tornou-se parte da alma de Búzios, como se sempre tivesse estado aqui.”



Ao ler essas palavras, senti que aquele nome que me encantara na infância finalmente fechava um ciclo dentro de mim — não como despedida, mas como permanência.

Como turismólogo de formação, eu reconheço com clareza quase técnica — mas nunca fria — que Brigitte Bardot foi um elemento fundamental na construção e na manutenção de Búzios como destino turístico. Há dados, há datas, há análises possíveis. O impacto é mensurável: antes dela, uma vila; depois dela, um nome pronunciável em muitas línguas. Mas essa leitura, embora correta, é insuficiente.

Porque imagino — e essa imaginação me acompanha como uma pergunta que não se cala — que para aqueles que conviveram com ela naquela época, ali, entre o sal do mar e a poeira das ruas de terra, Bardot tenha sido mais do que um fator de transformação econômica ou simbólica. Talvez tenha sido apenas uma presença: alguém que caminhava devagar, que olhava nos olhos, que ria com facilidade. Talvez tenha sido silêncio partilhado, sombra dividida, manhãs sem urgência.

Quando estive em Búzios, não cheguei a entrevistar nenhum antigo morador. Hoje, confesso, isso me pesa. Arrependo-me desse silêncio que deixei existir. Gostaria de ter encontrado essas pessoas, de ter ouvido suas vozes gastas pelo tempo, de recolher fragmentos de uma Brigitte que não aparece nos filmes nem nas fotografias — aquela que existiu apenas ali, naquele intervalo raro da vida em que ela não era espetáculo, mas vizinhança. Ter mais visão dela. Ter mais humanidade emprestada por quem a viu sem moldura.

Hoje, entretanto, ela já não está mais entre nós. E o que fica são imagens. Imagens conhecidas, repetidas, algumas cristalizadas demais. Ficam os gestos eternizados, os enquadramentos, os olhares capturados quando ainda não sabiam que seriam eternos. Fica aquilo que o mundo conseguiu guardar.

Eu conheço o suficiente — e digo isso com respeito e consciência dos limites. Vi alguns de seus filmes, desses que atravessam décadas sem envelhecer por completo. Vez por outra, ouço algumas das músicas que ela gravou, e nelas há sempre algo de leve e de melancólico, como se a voz carregasse a fadiga doce de quem foi vista demais. Conheço também suas escolhas fora das telas, suas recusas, seu afastamento, sua decisão de existir longe do brilho constante.

E, curiosamente, partilho gostos com ela. Particularmente, também gosto de alguns dos pratos que eram os seus preferidos — mas isso ficará para o final deste ensaio, como se deve deixar o sabor repousar até o momento certo. Antes, porém, é preciso falar um pouco sobre ela, para aqueles que não a conheceram, para os que nasceram depois que sua imagem já era mito, para quem só ouviu o nome sem nunca ter parado para senti-lo.

Porque Brigitte Bardot não foi apenas vista.

Ela foi percebida.

E essa diferença muda tudo. 

ELA FOI CORPO E ALMA DE SUA PRÓPRIA LENDA

Quando Brigitte Bardot nasceu em Paris, em setembro de 1934, ela nasceu já envolta em seda e etiqueta — numa grande cidade que é ao mesmo tempo luz e sombra, no lar de uma família burguesa tradicional, com apartamentos elegantes e rotinas marcadas por rigor e expectativas altas. Seu pai era industrial, dono de fábricas e habituado ao poder sereno das grandes máquinas; sua mãe, filha de um diretor de seguros, vivia a elegância da moda e da dança, interessada mais nas formas do que nas fugas do coração. Bardot cresceu entre salões bem arrumados, festas cuidadas e um futuro que, para muitos, já parecia escrito.

Brigitte Bardot (à esquerda) rodeada pela família na escadaria da casa dos avós em Louveciennes, França, maio de 1952. O pai, Louis, a mãe, Anne-Marie, o avô, "Boum-papa", a irmã de 13 anos, Mijanou, e o cachorro. Foto de Walter Crone

Mas havia algo nela que ardia além dos tecidos caros e das salas amplas — uma inquietação, um desejo de respirar o mundo sem a moldura previsível que sua educação tentava impor. No lar onde o rigor católico controlava os passos e onde os amigos eram escolhidos com a mesma precisão de um terno bem cortado, ela sentia vontade de desaparecer daquele desenho perfeito e buscar algo que ninguém ali poderia nomear.

A própria infância de Bardot ficou marcada por estas tensões: em casa, os padrões de comportamento eram estritos, as amizades limitadas e a disciplina — implacável. Numa ocasião que ela mesma recordaria depois, um vaso favorito dos pais foi quebrado durante uma brincadeira — e, em resposta, seus pais reagiram com severidade, exigindo distância emocional e formalidade até na forma de tratamento dentro de casa, como se cada gesto fosse uma chance de desordem a ser evitada.

Mas o corpo dela não nasceu para ser contido. Enquanto aprendia balé e desenhava passos no estúdio, um impulso mais profundo crescia em seu peito: o desejo de sentir a vida em movimento, de ser mais do que um rosto bonito em retratos engessados. Aos quinze anos, quando posou para a capa da revista Elle e foi vista pela primeira vez fora do círculo restrito de sua família, algo dentro dela despertou de vez — era como se uma janela se abrisse para um céu que antes parecia sempre distante.

E então Roger Vadim entrou em cena — não apenas como cineasta ou futuro marido, mas como o agente que desafiou todas as bordas daquela existência burguesa. Ele viu nela não apenas um rosto, mas um espírito que precisava se lançar para fora das paredes controladas da casa parisiense. A partir daquele encontro e daquela primeira câmera que não tirava uma pose educada, Brigitte começou a aprender algo que sua educação jamais ensinara: que a vida verdadeira às vezes acontece fora das grades do esperado, fora das curvas suaves do que é seguro.

               Brigitte Bardot e Roger Vadim tomando café da manhã na cama, década de 1950.

Ela não apenas deixou a riqueza para trás — ela começou a rejeitar a própria ideia de um destino pronto e arrumado. Entrou no cinema como quem atravessa um campo vasto pela primeira vez: com respiração contida e coração solto, sabendo que nada jamais seria como antes. Essa decisão foi um salto para fora da colcha confortável da riqueza, rumo ao desconhecido do palco, da tela, da fama e de um mundo que, por vezes, a quis como objeto antes de percebê-la como alma.

Assim, a transformação de Brigitte Bardot — da menina criada entre cortinas pesadas e ordens repetidas — para a mulher que violou convenções, desafiou normas e reinventou sua própria vida não é apenas uma história biográfica: é um gesto de coragem, de amor próprio e de busca pela autenticidade que poucos conseguem viver.

Foi então que Roger Vadim, jovem cineasta e seu primeiro marido, escreveu um papel que não era apenas retrato, mas uma revolução: And God Created Woman (E Deus Criou a Mulher, 1956). Nesse filme, Brigitte, aos 22 anos, não apenas atuou — ela incendiou a tela com uma energia que parecia descender de outra lógica, uma que recusava personagens dóceis e molduras contidas. A sensualidade que emanava dela era tempestade e brisa ao mesmo tempo, uma música sem nome que atravessava corpos e atravessou décadas.



A fama foi um sol que brilhou forte demais. Não era incomum que fãs atravessassem portões, entrassem em sua casa, rondassem jardins de Saint-Tropez, na esperança de apenas um lampejo de sua presença, uma relíquia qualquer que pudesse tocar e guardar. Os paparazzi, como aves noturnas sedentas, perseguiram cada movimento seu, transformando até os dias quietos em sequência de flashes. Alguns atravessaram o limite do humano: bolas de neve jogadas em seu rosto, uma enfermeira que, em um ataque de loucura, a atacou com um garfo — e que deixou cicatrizes que Brigitte carregou consigo como mapas de batalhas íntimas.

A imagem que o público consome — aquela moldurada, iluminada, pronta para consumo — era apenas a superfície de um corpo que sangrava sob o peso do olhar permanente. Nada disso é exagero poético, mas a verdade crua de uma mulher que foi vista demais, que foi reduzida a cenário e a objeto, sem que quase ninguém perguntasse o que ardia em seus olhos.

Aos 40 anos, esgotada pelo assédio e pelos espinhos invisíveis da fama, Brigitte decidiu virar o rosto para a câmera e escutar o que seu próprio coração gritava em silêncio. Ela tentou tirar sua própria vida em mais de uma ocasião — não como rendição, mas como sinal de que o mundo que a queria inteira e sempre disponível não lhe pertencia.

Foi assim que ela se afastou dos holofotes e descobriu um amor que exigia silêncio, respeito e verdade: o amor pelos animais. Fundou, em 1986, a Fundação Brigitte Bardot, dedicada à proteção e ao bem-estar dos que não têm voz. Não foi um gesto fácil ou decorativo. Para financiar sua causa, ela leiloou joias e objetos pessoais, convertendo lembranças de um passado de glamour em recursos para resgatar vidas indefesas.

Do outro lado da lente, Brigitte viu nos olhos dos animais aquilo que aprendeu a reconhecer em si mesma: a vulnerabilidade, o medo, a vontade de viver sem dor — algo que jamais encontrou no olhar insaciável da fama. Ela viajou, protestou, exigiu mudanças e confrontou tradições que aceitavam sofrimento como normalidade. Seu nome passou a soar nas campanhas contra a caça de focas, contra a crueldade nas fazendas industriais, contra práticas que o mundo justificava com o argumento da necessidade.

E mesmo ali, nessa nova encarnação de si mesma, seu coração continuou a arder em contradições: seu ativismo apaixonado muitas vezes colidiu com palavras duras e posições que a tornaram figura controversa e alvo de condenações por incitação ao ódio em sua França natal — lembrando que as complexidades humanas não são facilmente apaziguadas por intenções nobres.

E assim foi sua vida:

corpo que foi desejo,

alma que foi lente,

espírito que foi voz dos silenciados.

Ela se tornou mito — não porque alguém o decretou, mas porque sua história é feita de luz e de feridas, de brilho e de noites sem estrelas, de amor e de dor.

O GOSTO DO SILÊNCIO: QUANDO A VIDA SE SERVE À MESA

Existe um território da vida que raramente aparece nas biografias oficiais: a cozinha. É ali que a fama se dissolve, que o corpo descansa da pose, que a alma escolhe o que pode ou não ingerir do mundo. Brigitte Bardot, mesmo depois de ter sido imagem excessiva, foi alguém que soube preservar esse território íntimo do sabor.

Quanto à comida, ela continuou cozinhando para si mesma já em idade avançada, com prazer evidente, como quem transforma o ato de comer em gesto de cuidado e permanência. Comer, para Bardot, nunca foi espetáculo — foi refúgio.


Em Saint-Tropez, onde tantos a perseguiram com olhos famintos, havia também um lugar onde ela se sentava como qualquer outra pessoa: o restaurante La Ponche, discreto, antigo, impregnado de Mediterrâneo. Ali, entre paredes que ouviram confidências e passos lentos, o cardápio oferecia muito mais do que a culinária provençal clássica. Havia ecos do mundo: Índia, Tailândia, Líbano, Japão, Marrocos. Uma diversidade que parecia dialogar com a própria trajetória de Bardot — mulher francesa, mas jamais confinada a uma única identidade.

Curiosamente, ninguém sabia dizer qual era, de fato, sua comida favorita. Como se esse detalhe tivesse sido guardado longe do olhar público, protegido da curiosidade que tantas vezes lhe invadiu a vida. Foi apenas mais tarde, num gesto quase fortuito, no posto de turismo de Saint-Tropez, que a resposta surgiu — escondida numa edição local de revista, daquelas que só quem caminha sem pressa encontra. A edição de setembro celebrava as figuras que haviam atravessado as ruas da cidade. Entre elas, Brigitte. E ali, finalmente, estava revelado o prato que lhe era caro: a salada de tabule.

A história vinha contada por Frédéric van Coppernolle, chef belga, cuja vida se entrelaçou à dela de maneira silenciosa e profunda. Em 1980, aos quinze anos, ele foi morar com a avó na propriedade de Bardot, enquanto seus pais atravessavam um divórcio difícil. A avó cuidava da casa — e cozinhava. Bardot, já então uma defensora obstinada dos direitos dos animais, era vegetariana há muitos anos, e a cozinha da casa girava em torno desse princípio: nada de crueldade, nada de excesso, apenas o essencial.

O jovem Frédéric tornou-se ajudante da avó. Preparavam tortas de cebola, ratatouille perfumado de azeite, pizzas simples, quiches de legumes e queijo. Cozinhavam também para os muitos habitantes não humanos da casa: treze cães e cerca de quarenta gatos, alimentados com refeições feitas especialmente para eles — como se a ética de Bardot se estendesse, naturalmente, da mesa ao quintal.

Entre todos os pratos, havia um que se repetia com carinho: o tabule da avó. Tecnicamente, não era tabule, mas cuscuz — e eles sabiam disso. Nunca a corrigiam. Bardot era conhecida por certa teimosia doce, e a paz valia mais do que a precisão culinária. Chamavam de tabule, e assim ficava. Afinal, os ingredientes falavam por si: ervas frescas, limão abundante, azeite generoso. O nome era apenas um detalhe.

Na juventude, durante as filmagens em Saint-Tropez, esse prato acompanhava outro prazer simples: a Tarte Tropézienne. Um brioche macio, aberto ao meio, recheado com creme de confeiteiro misturado a creme de manteiga, coberto por açúcar cristal. A sobremesa ganhou fama mundial e foi batizada pela própria Bardot, em 1956, durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher. Mesmo o doce carregava sua marca: sensual sem ser excessivo, simples sem ser banal.

Com o passar dos anos, sua relação com a comida tornou-se ainda mais ética. Desde o final da década de 1970, Brigitte Bardot militou ativamente por opções vegetarianas em restaurantes, denunciou a crueldade da indústria alimentar e defendeu uma alimentação que não exigisse sofrimento como condição. Comer, para ela, tornou-se também um ato político — silencioso, firme, irrevogável.

E assim, quando pensamos em Bardot à mesa, não a vemos como mito, mas como alguém que escolhia folhas, cortava limões, sentia o perfume da hortelã. Alguém que, depois de ter sido devorada pelos olhares do mundo, aprendeu a escolher cuidadosamente o que deixaria entrar em si.

Se o tabule foi o abraço fresco de uma vida vegetariana, há outro sabor que pertence à memória de Brigitte Bardot como um sopro dourado de verão. Enquanto a salada era leve, cheia de ervas e limão, havia um doce que sussurrava o nome da Riviera Francesa entre cada camada de creme e massa — a Tarte Tropézienne.

A Tarte Tropézienne não é apenas um ‘bolo’. É um pedacinho de Saint Tropez transformado em sobremesa: uma massa de brioche levemente amanteigada, macia como nuvem, dividida ao meio e recheada com um creme tão delicado que parece feito de memórias — mistura de crème pâtissière e creme de manteiga, às vezes aromatizado com água de flor de laranjeira ou um toque de rum. Por cima, pequenos cristais de açúcar brilham como manhã de sol na Côte d’Azur.

Essa sobremesa nasceu nos anos 1950, criada por Alexandre Micka, um confeiteiro polonês que se instalou em Saint Tropez após a Segunda Guerra Mundial e trouxe consigo a receita esquecida de sua avó, adaptada ao clima ensolarado daquele recanto do Mediterrâneo.

Foi ali, enquanto Brigitte Bardot filmava “E Deus Criou a Mulher” nas ruas ensolaradas e nos becos de pedra da vila, que ela encontrou esse presente de textura e sabor. Dizem que ela se apaixonou pela sobremesa e sugeriu ao confeiteiro que desse um nome ao doce que ela tanto pedia — primeiro chamando o de la tarte de Saint Tropez, e, mais tarde, consolidando o nome que conhecemos hoje: Tarte Tropézienne.


A partir desse momento, a Tarte Tropézienne deixou de ser apenas um bolo local e tornou se um ícone, uma poesia em forma de açúcar e creme. Ela ganhou fama junto com Bardot, assumindo seu lugar entre os símbolos da Riviera — tão leve quanto o vento que percorre o mar, tão radiante quanto o sorriso de uma noite de verão.

E então, ao contrário de muitas sobremesas que se perdem com o tempo, ela permaneceu. Permeou cafés escondidos entre ruazinhas, foi servida em mesas com vista para o porto, tornou se objeto de desejo de viajantes e locais. A receita original ainda é guardada com cuidado como um segredo de família, transmitida por gerações de padeiros que mantêm viva essa tradição culinária de Saint Tropez.

Provar uma Tarte Tropézienne é sentir na boca a história de uma mulher que, na juventude, foi desejo e estrela, e que, depois, soube escolher seus prazeres com a mesma honestidade que escolheu sua trajetória de vida — sem concessões, mas com poesia.

A brioche acaricia os lábios, o creme desliza como saudade, e os cristais de açúcar explodem como risos de infância. É uma sobremesa que não se come apenas com a língua — se come com lembranças, com paisagens, com tempo suspenso.

DESPEDIDA À DIVA PELO SABOR E PELA VIDA

E então chegamos ao momento em que a textura encontra o símbolo, em que o sabor se torna voz e a sobremesa se ergue como epitáfio.

Ao fechar os olhos, o nome Brigitte Bardot ressoa como um sussurro de elegância e mistério, carregado do perfume distante do cinema francês. Seu caminhar pelas praias de Búzios, há décadas, transformou aquele recanto em destino mundial, como se cada passo tivesse imprimido magia na areia e nos corações que o mundo ainda descobriria. Não era apenas uma atriz ou um ícone: Brigitte se tornou presença viva, elo entre fantasia e realidade, entre o sonho que a tela projetava e o mundo que podia ser tocado com a imaginação e o encanto. Hoje, sua memória retorna como um sopro suave, lembrando que, embora tenha partido, permanece em cada história, em cada paisagem, em cada passo leve que deixou gravado no tempo.

E se sua vida se revela em imagens e lembranças, há também um sabor que nos aproxima de sua intimidade: a salada de tabule. Cada grão de bulgur, cada folha de hortelã, cada toque de limão nos fala de uma Brigitte que escolheu a simplicidade com elegância, que apreciou o gesto de cozinhar e comer com prazer e consciência. Naquele prato, encontramos não apenas temperos, mas a essência de quem viveu com intensidade, ética e delicadeza, uma mulher que transformou cada escolha, por menor que fosse, em expressão de sua liberdade e de sua alma.

Brigitte Bardot, cuja vida foi um caleidoscópio de beleza, decisão e contradição, encontrou na Tarte Tropézienne — essa poesia açucarada entre duas nuvens de brioche — não apenas um deleite, mas um espelho da própria existência: rica, leve, intensa e definitivamente inesquecível.

Naquele encontro entre atriz e doce, não foi somente uma sobremesa que ganhou um nome. Foi um pedaço de história que se confunde com a crença de um mundo mais livre, mais sensível, mais profundo. A receita, criada por Alexandre Micka a partir de uma herança familiar e consolidada durante as filmagens de E Deus Criou a Mulher, encontrou em Bardot um coração que a reconheceu e a nomeou — como quem dá nome ao que ama.

Ela, que por tanto tempo viveu sob o peso dos olhares, achou na mesa um lugar de calma e de verdade. Entre ervas frescas e limões vivos do tabule, e o creme generoso da Tropézienne, estava toda a ambiguidade de uma vida que foi cobiçada e serena ao mesmo tempo. A comida que ela escolhia não era apenas alimento: era gesto, era pausa, era afirmação de uma escolha ética — de amar os que não podem falar e de escutar o que o silêncio ensina.

Agora, ao fim, não se trata apenas de lembrar Brigitte Bardot como estrela de cinema ou musa dos anos 1950 e 1960.

Trata se de recordar que, por trás da câmera, havia uma mulher que olhou para a vida com intensidade e lutou por aquilo que acreditava ser justo.

Trata se de contemplar uma forma de existir que não se deu por vencida diante do espetáculo dos outros, mas buscou significado no simples e no essencial.

E, por isso, ao trazer esta sobremesa — a Tarte Tropézienne, com sua massa dourada, seu coração cremoso e seu açúcar cintilante — construo um momento de despedida que é ao mesmo tempo celebração: um convite para sentir cada camada da memória com a mesma delicadeza com que Brigitte viveu, amou e escolheu seus caminhos.

Ao fechar este ensaio, deixo a última imagem não como um fim, mas como um brinde — um pedaço de Saint Tropez servido na língua do tempo, onde cada mordida é lembrança, cada aroma é emoção, e cada memória é um sopro que não se apaga.

Adeus, Brigitte Bardot. Que a eternidade seja tão leve quanto a espuma de um creme e tão luminosa quanto o sol que banha aqueles campos de limão e mar.

SALADA DE TABOULE AO ESTILO DE BRIGITTE BARDOT

Nesta versão atribuída a Brigitte Bardot, a “salada de tabule” é feita com couscous marroquino instantâneo — por isso, tecnicamente, não é o tabule tradicional como se conhece no Oriente Médio, que leva bulgur (trigo para quibe). Mas o resultado é igualmente refrescante, aromático e delicioso, com sabores que evocam as viagens, os jardins e o Mediterrâneo que a diva tanto amou.

 Ingredientes

½ xícara de suco de tomate (bata tomates bem maduros no liquidificador e coe)

1 ½ xícaras de couscous marroquino instantâneo

1 colher de sopa de azeite de oliva (pode ir até ¼ de xícara, conforme gosto)

1 xícara de grãodebico enlatado (bem escorrido)

1 ½ xícaras de tomates picados

1 xícara de pepino, descascado, sem sementes e em cubinhos

1 colher de chá de alho, bem picado

3 colheres de sopa de échalotes ou cebola bem picadinha

Raspas de ½ limão

Suco de 3 colheres de sopa de limão (cerca do suco de 1 limão)

1 ½ a 2 xícaras de folhas de hortelã picadas (conforme preferência)

2 colheres de chá de sal

Pimentadoreino a gosto

Pimentacaiena ou molho picante (opcional, para finalizar)

MODO DE PREPARO: Aqueça líquidos: num pequeno tacho, leve 1 xícara de água e o suco de tomate para começar a ferver. Hidrate o couscous: coloque o couscous marroquino instantâneo numa tigela resistente ao calor e despeje sobre ele a água com suco de tomate ferventes. Tempere: adicione o azeite e misture delicadamente. Cubra com um pano ou com plástico e deixe o couscous repousar, absorvendo o líquido, por alguns minutos até que os grãos estejam macios. Misture os ingredientes frescos: em outra tigela, combine o grãodebico, tomates, pepino, alho, échalotes, raspas e suco de limão. Solte o couscous: com um garfo, solte os grãos agora macios e junteos aos vegetais. Incorpore as ervas: acrescente a hortelã picada, o sal e a pimentadoreino; mexa bem para integrar sabores. Ajuste e refrigere: finalize com pimentacaiena ou um toque de molho picante se desejar, cubra e leve à geladeira por pelo menos 3 horas — o descanso ajuda os sabores a se fundirem e aprofundarem. Sirva frio, como entrada refrescante ou acompanhamento. 

TARTE TROPÉZIENNE

Ingredientes para a massa (brioche):

600 g de farinha de trigo

2 colheres de chá de fermento biológico seco

100 g de açúcar

6 ovos

1 colher de chá de sal

300 g de manteiga sem sal, amolecida

Raspas de 2 limões (opcional, para perfume)

Açúcar em pérola para polvilhar

Creme (Crème Diplomate — combinação de crème pâtissière e creme batido):

500 ml de leite

6 gemas de ovo

80 g de açúcar

60 g de farinha de trigo

60 g de amido de milho

1 fava de baunilha ou essência de baunilha

200 ml de creme de leite fresco batido

Água de flor de laranjeira (opcional)

Modo de preparo – Prepare a brioche: misture farinha, açúcar, fermento, sal e ovos. Sove até ficar elástica. Acrescente a manteiga aos poucos e continue sovando até a massa ficar lisa e macia. Deixe crescer em local morno até dobrar de volume. Modele em forma redonda e asse até dourar levemente. Polvilhe açúcar em pérola por cima antes de ir ao forno. Faça o crème pâtissière: aqueça o leite com baunilha. Bata gemas com açúcar, adicione farinha e amido. Incorpore ao leite quente até engrossar e esfriar. Junte o creme batido: depois de frio, misture delicadamente o creme de leite batido ao crème pâtissière para obter leveza. Monte a torta: corte a brioche ao meio horizontalmente, recheie generosamente com o creme, coloque a “tampa” por cima e leve à geladeira antes de servir.

 

 

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