Caros
Confrades e Consórores, estimados amigos e amigas leitores, venho agradecer
mais uma vez sua participação e interação com este blog que hoje, exatamente,
completa oito anos de existência. Foram muitos aprendizados, muitas informações
absorvidas e compartilhadas, muitas receitas testadas (umas que deram certo,
outras nem tanto), algumas poucas reclamações, mas sempre tentando resgatar
histórias, receitas e novidades do mundo gastronômico que nos alimenta corpo e
alma. Muito obrigado.
Por
ser um dia especial hoje retomo, mais uma vez o Projeto Sabores da Tradição que
desenvolvo nesta Confraria com entrevistas com personalidades variadas para
discutir temas tão diversificados quanto a cultura gastronômica. Assim, hoje a entrevistada da Confraria
Gastronômica do Barão de Gourmandise vem tratando de um assunto instigante e
muito querido por mim (pessoalmente): à mesa com as rainhas – entrevista com a
historiadora da alimentação portuguesa Guida Cândido.
A
alimentação nos palácios sempre foi motivo de especulação desde os tempos
remotos: era demonstração de luxo, poder, ostentação, exotismo, influência, mas
principalmente dos costumes de épocas que não voltam mais. As monarquias que sobrevivem aos tempos atuais ainda causam frisson quando anunciam
casamentos reais onde o menu de banquetes e o bolo do casamento despertam
bastante curiosidade e são copiados pelos modismos.
Eu,
particularmente, tenho uma preferência por algumas mulheres monarcas em alguns
países, e sempre me pego investigando seus hábitos alimentares para descobrir
algo interessante e dividir com vocês. E hoje, não seria diferente. Espero que
apreciem a entrevista. E, mais uma vez, obrigado por acompanhar o blog.
Barão de Gourmandise (B.G.) - Para aqueles
que não lhe conhecem, poderia apresentar-se e dizer quem é você e a que se
dedica?
Guida Cândido (G.C.): O meu
nome é Guida Cândido, trabalho no município da Figueira da Foz, na Divisão de
Cultura onde desenvolvo trabalho relacionado com a História Local, o Património
Cultural e os fundos locais, nomeadamente a fotografia antiga. Paralelamente,
sou investigadora de História da Alimentação, associada ao Centro de Estudos
Clássicos e Humanísticos (CECH) da Faculdade de Letras (FLUC) da Universidade
de Coimbra (UC), fazendo parte da equipa multidisciplinar do projeto DIAITA -
Patrimónios Alimentares da Lusofonia.
Sou
autora do Grupo Leya, concretamente da chancela editorial D. Quixote, com quem
editei desde 2016 três livros desta área de investigação: "Cinco Séculos à
Mesa - 50 receitas com história"; "Five Centuries of Portuguese
Cuisine" e, este ano, "Comer como uma rainha - receituário real do
século XVI ao século XX”, todos disponíveis (AQUI). Desenvolvo trabalho de
consultoria na área da História da alimentação, foodstyling e fotografia. E
Alimento o hiperespaço em www.panelasemdepressao.com
B.G. – Antes de chegarmos às mesas das
rainhas, gostaria de iniciar pela ‘aventura’ da escrita de “Cinco séculos à
mesa”. Sei bem como é árdua (e deliciosa) a tarefa de dedicar-se a pesquisas
nos tempos atuais: seja pelas fontes escassa e de difícil acesso, recursos
limitados, ter que verificar e reverificar fontes, revisar datas, analisar
discursos, comparar falas, etc., etc.... assim, conte-me um pouco de como
surgiu a ideia para o livro. Qual foi o estopim para ele, houve uma história em
particular que lhe fez aguçar o sentido investigativo e dar início ao texto, ou
foi algo já pré-estabelecido?
G. C.: O "Cinco Séculos
à Mesa" surgiu na sequência da minha tentativa de editar a dissertação do
meu mestrado em “Alimentação: Fontes, Cultura e Sociedade” da FLUC, “Comer como
uma rainha - estudo de um livro de despesas da Casa de D. Catarina de Áustria
de 1571”. A editora gostou do texto e do tema mas considerou um trabalho
demasiado académico para publicar para um público mais amplo. Sugeri, então,
fazer um périplo pela História da Alimentação nos últimos cinco séculos, com um
breve ensaio histórico que inclui ainda um capítulo dedicado à Antiguidade
Clássica e recriar 50 receitas dos cinco principais livros de receitas desses
séculos. E a proposta foi aceite com entusiasmo e em menos de um ano, estava
nas bancas.
B. G. - O que mais lhe surpreendeu
enquanto percorria essa aventura gastronômica pelo receituário gastronômico
português entre os séculos XV e XX?
G. C.: Não sendo propriamente
uma surpresa, é sempre interessante perceber o que perdurou e o que se perdeu
ao longo dos séculos. Fico sempre fascinada com a descoberta de receitas que
julgamos que são invenções recentes e que se revelam muito antigas, ou que
estão associadas a períodos recuados. Por exemplo, muitas pessoas consideram
recente esta tendência de aromatizar manteiga, e, na realidade, Paul Plantier
já apresenta, no século XIX, pelo menos uma receita irresistível de manteiga
com anchovas.
B. G. – Acredito que a cerimônia e o
protocolo à mesa em Portugal não diferem nos séculos XVI e XVIII de outras
realezas europeias. No entanto, quando se trata de requinte e exotismos
destaques curiosos sempre aparecem para nos surpreender. O que poderia nos
contar sobre a fineses, o exotismo e o requinte nestes cinco séculos à mesa que
investigou?
G. C.: Os livros de registo
de despesas de cozinha das casas reais possibilitam observar quais as iguarias
que os monarcas e seus serviçais privilegiam no seu quotidiano; o que os grupos
desfavorecidos não alcançam; os alimentos que se revestem de importância
simbólica e carácter raro, exótico e distinto. Tão especiais como os que D.
Catarina apresenta no banquete que oferece à sua sobrinha, a Infanta D. Maria,
por ocasião do casamento da Infanta, com Alexandre Farnese. No Paço da Ribeira,
no desenrolar do banquete, presenteia os convidados com abundância de carnes
vindas de vários e distantes pontos do império, tal como a água servida que se
diz proveniente de muitas partes do mundo: Indo, Ganges, nascentes e lagos de
África e Ásia e rio Tibre, numa tentativa de ostentar os domínios imperiais do
reino português. Os monarcas comem em abundância e com qualidade.
Do
Oriente e do Brasil, com a expansão portuguesa, provêm alimentos como tomate,
chocolate, batata, ananás, peru e tantas outros alimentos que implicam,
necessariamente, mudanças na alimentação da Europa e potenciam de forma marcada
sinais de poder e ostentação na corte, firmando o luxo e refinamento da mesa
ocidental. De resto, o banquete, nos séculos XV e XVI, promove a mesa para ser
observada na sua abundância, na qualidade dos seus pratos, na forma de
apresentação dos mesmos, numa certa encenação e teatralidade que a torna cada
vez mais, não um lugar de coesão social, mas sim de separação, evidenciando
todas as particularidades que distinguem os privilegiados dos restantes grupos
da sociedade.
Os
inventários dos bens das rainhas da Época Moderna permitem conhecer o grau de
exotismo e de sofisticação das suas mesas, sobretudo a partir de D. Catarina de
Áustria, quando os portugueses acedem ao Japão e à China. A bateria de cozinha
e as peças da mesa são sumptuosas, com materiais nobres como prataria,
madrepérola, laca, porcelanas, madeiras e têxteis nobres. Embora a sala de
jantar enquanto espaço físico e específico de refeições apenas seja efetivo no
século XVIII, os palácios da Época Moderna apresentam salas multifuncionais
onde se desenrolam refeições armando-se as mesas e toda a logística necessária.
O mesmo pode acontecer nas câmaras e antecâmaras, ricamente decoradas, muitas
vezes com recurso a decorações efémeras como dosséis e panos de armar. Na mesa
retangular, a tolha é habitualmente branca e rasa o chão, completando a cena
diversas cadeiras, almofadas e iluminação com castiçais e candelabros de prata.
A riqueza da baixela não é ostentada na mesa mas sim na copa, onde ocupa um
lugar de destaque.
Nos
séculos XVI, XVII e XVIII presume-se que a alimentação na corte portuguesa não
difira muito das restantes cortes europeias. As refeições quotidianas e os
banquetes são momentos revestidos de um rigoroso protocolo. Em torno das
figuras reais orbitam inúmeras personagens.
B. G. – Pesquisando sobre menus históricos
encontrei, algumas vezes, referências que apontam para a existência de duas
cozinhas reais: a do rei e a da rainha. Mas poucos se dão conta disso. Há quem
faça relatos de que rei e rainha apenas se juntavam em banquetes festivos,
celebrações ou alguma comilança que envolvia relações públicas com a corte e
personas destacáveis. O que me diz a esse respeito? Se deparou com algo do tipo
nas suas pesquisas?
G. C.: No protocolo real
português a tendência era de duas cozinhas, uma para o rei outra para a rainha.
Não por acaso, existe a designação Casa da Rainha. E as refeições eram
normalmente privadas. As refeições públicas decorrem de situações particulares,
de cerimónias e festas e nessas ocasiões, é mais comum ambos monarcas
partilhares a mesa.
No
século XVII, com as refeições públicas, as refeições do rei são uma atividade
de representação com presença da corte e sacralização da pessoa do monarca,
havendo uma forte hierarquia nos bastidores, onde as refeições são preparadas.
A documentação revela a ascensão de algumas figuras até chefe de cozinha. Verifica-se,
ainda, a existência de cozinheiros com caráter extraordinário, requisitados
quando decorrem banquetes.
A
etiqueta, as cerimónias e as práticas rituais na Casa das Rainhas, entre a
segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XVIII, são marcadas
pelo modelo dito borgonhês.
A
partir do século XIX, concretamente nos reinados de D. Maria I e de D.Luís , as
refeições do quotidiano já apresentam os monarcas juntos, com outras
individualidades da corte, sobretudo no reinado de D. Luís e de D. Maria Pia,
onde também se conhece com mais precisão o que vai à mesa, uma vez que estão em
voga os menus.
Maria Pia de Saboia GCNSC • GCSI (Turim, 16 de outubro de 1847 — Nichelino, 5 de julho de 1911) foi uma princesa de Saboia e rainha de Portugal e Algarves como consorte do rei D. Luís I de Portugal. |
B. G.
– Partindo então para "Comer como uma rainha": o que lhe levou
a dedicar-se ao estudo das mesas das rainhas? E por que das rainhas escolhidas?
G.C.: Foi inevitável pegar
neste tema depois da minha dissertação que tinha apenas a rainha D. Catarina de
Áustria como protagonista. A escolha das rainhas prendeu-se com a vontade de
fazer mais uma vez uma cronologia até ao século XX e focou-se nas rainhas a que
consegui associar mais documentação e livros de cozinha editados durante a sua
permanência no trono.
B.G.
– Poderia explicar brevemente a relação dessas rainhas apresentadas na
obra com a alimentação. Havia a preocupação delas relativas a alimentação, ou
simplesmente tratavam a comida como algo necessário para sustentar o corpo e
como elemento de status?
G. C.: O Homem é o que come.
E o que come é também aquilo que gostaria de ser. Ontem e hoje, a alimentação
da humanidade poderá dividir-se em dois campos essenciais que se traduzem na
necessidade e no prazer, refletindo hierarquias sociais e culturais, bem como
as relações de poder. A juntar à escolha dos alimentos, aos básicos e aos
supérfluos, surgem ainda as técnicas de preparação e confecção. Estes
princípios constituem um elemento diferenciador ou unificador a que se juntam
ainda as questões da mesa e da etiqueta; os rituais e as normas; as interdições
e uma gramática de saberes tão extensa quanto complexa.
Comia-se
por forma a estabelecer e definir hierarquias. À época, a alimentação era mais
do que alimento, era uma manifestação de poder, distinção e exotismo.
Da
mesa medieval chegam os ritos e interditos, sob diversos olhares –
antropológico, sociológico, económico, religioso e cultural, identificando os
alimentos que chegam à mesa, a sua confecção na cozinha, de acordo com as
práticas e os gostos culinários da época, as preferências ou os interditos
alimentares de ordem religiosa, social ou dietética.
Em
conclusão, as rainhas em causa alimentavam-se de acordo com as normas da sua
época, atendendo às matrizes estipuladas para a comida de corte.
B. G.– Algumas das rainhas se dedicava a
cozinha? Alguma com dons gastronômicos indiscutíveis ou apenas todas eram
amantes da boa mesa?
G. C.: Desconheço, na
investigação que fiz, qualquer intervenção das rainhas na cozinha, embora os
seus gostos sejam relevantes na hora da escolha das refeições. Por exemplo, em
D. Catarina de Áustria, percebe-se o gosto direcionado por determinados
alimentos. O estudo do livro de despesas da sua casa, de 1571, refere diversas
vezes a indicação concreta de galinha para a rainha, bem como cerejas e saladas
para a monarca. Ou a compra de queijos em Belém para D. Catarina. Algumas terão
sido mais frugais.
B. G. – Das rainhas investigadas qual te
chamou maior atenção, e por que?
G. C.: Eu tenho uma “relação”
muito particular com o universo alimentar de D. Catarina de Áustria. Embora o
objetivo da minha dissertação tenha sido o estudo das questões alimentares
desta rainha, fica-se inevitavelmente apaixonado pela figura carismática de
Catarina de Áustria, uma mulher que perde todos os filhos e que deposita as
últimas esperanças nos netos que também têm finais trágicos. Ainda assim, a sua
energia e o gosto pelo belo, pelo exótico e pelo colecionismo fazem dela uma
rainha incontornável.
B. G. – De fato, podemos dizer que os
casamentos entre as casas reais permitiram que receitas e ingredientes
diferentes de seus países de origem percorressem o mundo, pelo capricho dos
monarcas ou pelo prazer afetivo que eles têm ao remeter diretamente à pátria.
Poderia nos contar um pouco sobre essa interação gastronômica em Portugal a
partir das rainhas que vieram de outras nações europeias? Sei, por exemplo, que
as massas foram introduzidas em Portugal por volta do século XVIII – o que me
pareceu até demorado, considerando que Marco Polo levou o macarrão da China
para a Itália no século XIII...
G. C.: Naturalmente que
existem os “produtos da saudade” que são levados de uns territórios para
outros. Tanto é assim que o primeiro livro de cozinha português conhecido, o
Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, encontra-se fora de portas, na Biblioteca
Nacional de Nápoles. A neta de D. Manuel, aquando do seu casamento com
Alexandre Farnese leva-o para Parma, juntamente com outras peças de enxoval e o
seu séquito.
E
existem muitas evidências de rainhas que se fazem acompanhar entre outros
serviçais, dos seus cozinheiros, é o caso de D. Maria Ana de Áustria que trouxe
consigo, aquando do seu consórcio com D. João V, de uma cozinheira. É um caso
extremamente interessante porque essa função era normalmente atribuída aos
homens. Em todo o caso, esta rainha traz uma cozinheira que mantém ao seu
serviço na corte portuguesa e, naturalmente, com a herança de sabores mais
nórdicos, associados à sua origem.
B. G.
- Um dos meus maiores problemas, ultimamente, nas minhas pesquisas, além
do pouco tempo, são os testes das receitas...
Vez por outro posto a receita e só vou testá-la um tempo depois. Assim,
gostaria de saber como se deu o processo de escolha dos pratos apresentados em
seus livros? Você testou todas as receitas?
G. C.: Em todo os meus livros
as receitas foram testadas e fotografadas. Em alguns casos, mais do que uma
vez, para garantir a sua possibilidade de execução pelos leitores. O critério
que usei na escolha de todas elas teve como princípio a correspondência o mais
fiel ao original, mas também a possibilidade de ir ao encontro dos palatos da
atualidade, sem causar demasiada estranheza, mas, ainda assim, conseguir alguma
surpresa na descoberta de alguns sabores de que nos desabituámos.
B. G. – Certa vez, li no jornal inglês
"The Independent" uma reportagem de um antigo chefe da Casa Real
britânica que e compilou o essencial de um dia à mesa de Isabel II. De acordo
com o texto, tudo iniciava com uma xícara de chá Earl Grey - sem leite nem
açúcar - e biscoitos. Depois viria fruta e cereais - que devem ser servidos em
uma caixa Tupperware, porque, para Isabel II, é a melhor forma de os manter
crocantes. Quando deseja variar, escolhe torradas com compota ou uns ovos
mexidos com salmão fumado e trufas. Antes do almoço não pode faltar um gin e um
Dubonnet, um aperitivo doce à base de vinho, com uma rodela de limão e bastante
gelo. Depois, à refeição, algo muito simples, como peixe ou frango grelhados e
legumes. Se almoçar sozinha, nada de arroz, batatas ou massas. À tarde, um chá
acompanhado por mini sanduiches de pepino, salmão defumado, ovo e maionese,
fiambre e mostarda, e "jam pennies", que são sandes com compota de
framboesa cortadas em pequenos círculos, do tamanho da moeda inglesa.
Biscoitos, scones e bolos também entram no menu vespertino. Entre os bolos
preferidos da rainha está um de biscoito de chocolate que foi servido no
casamento de William e Kate (inclusive já tratei dele aqui no blog). Para o
jantar são servidos, habitualmente, um filete de salmão ou bifes, cortados
finamente, de vaca, faisão ou veado, vindos das quintas de Sandringham e
Balmoral. A rainha também aprecia um bom assado de domingo. Quanto a
sobremesas, morangos e pêssegos cultivados nas suas quintas, e - não pode
faltar - chocolate. Seja de um tablete mais exclusivo ou de uma marca de
supermercado, o importante é comer um pouco de chocolate. Por fim, Isabel II
gosta de rematar o dia com um copo de Champanhe. Deste modo, poderia nos
descrever como era o menu de uma dessas mesas reais?
G. C.: Como já referi, com a
chegada dos menus, torna-se mais concreto o conhecimento dos pratos que vão à
mesa real. Nessa medida, a minha escolha recai na rainha D. Maria Pia. D. Luís
e D. Maria Pia viajam com regularidade pelas cortes europeias e, naturalmente,
adotam o que a moda dita.
Um
alimento que se destaca nos menus reais é a pasta. A grande variedade de massas
alimentícias e a profusão de receitas com este ingrediente, revelam os gostos
culinários neste período e, por arrasto, as da mesa real. O facto da rainha ser
italiana, facilita a divulgação deste alimento, mas também de outros pratos
italianos que surgem nas ementas, como risottos e uma panóplia de receitas à
moda de com uma abrangência que excede a generalidade do à italiana e
especifica com regionalismos: à piemontesa, à milanesa, à Veneza entre outros.
Esta
catalogação ultrapassa a fronteira do território italiano e, nos diferentes
menus da coleção do Palácio da Ajuda, é possível encontrar diversas referências
de pratos atribuídos a outros contextos. Logicamente muitos pratos à
portuguesa, mas também à inglesa, à holandesa, à francesa…
Os
menus permitem conhecer os hábitos alimentares da família real, exibindo não só
os pratos, mas também a sua ordem de chegada à mesa e, até, a constância e
preferência por algumas receitas ou ingredientes. Assim, a estrutura de um
menu, na época, compõe-se de: sopa; hors d’oeuvre; prato de relevo; entrada
quente e entrada fria; assado; legumes; entremeios e doces.
As
refeições no paço revestem-se de muito requinte, com marcadores e ementas de
fino gosto e diferentes mesas consoante a categoria das pessoas. A principal é
a mesa de estado onde se sentam o rei, a rainha, a camarista da rainha, o
mordomo-mor, o vedor, o médico e oficiais de guarda do palácio.
B. G. – Conseguiste achar em suas
pesquisas algum prato que esteve sempre presente deste a época da primeira
rainha analisada até a última? Qual seria?
G. C.: Uma receita em
particular não diria. No entanto, julgo que em todas estas mesas, a galinha
teve sempre um lugar privilegiado e de destaque nas refeições apresentadas.
B. G. – Imagino que desde o lançamento de
seus livros já tenha ouvido muitas perguntas do tipo: o que come uma rainha?
Ou, o que compõe a mesa de uma rainha?
Mas, e o que elas não comiam? Haviam restrições nas mesas das monarcas?
Bebiam de tudo?
G. C.: As restrições
prendem-se com os preceitos religiosos. Legumes e vegetais destinam-se,
essencialmente, aos dias de jejum de carne, tal como acontece com o peixe que
está na mesa em cumprimento das prescrições religiosas de abstinências e
jejuns.
Quanto
às bebidas, sobretudo até ao final do período medieval, beber significava
essencialmente beber vinho, uma vez que a água oferecia algumas limitações em
termos de salubridade. Portanto, as nossas rainhas, ao que se conhece, bebiam
vinho, como a generalidade das pessoas.
B. G – Alguns historiadores da alimentação
tendenciam afirmações que apontam para o gosto feminino por doces? Você
corrobora com essa ideia? Algum doce em especial com referência histórica a
alguma das rainhas?
G. C.: Julgo que o doce não
era uma predileção feminina, era um gosto geral. Só tardiamente se começa a
fazer a distinção do doce e do salgado, permanecendo a sobreposição de açúcar
em muitos pratos de carne como se pode ver no receituário do Livro de Cozinha
da Infanta D. Maria. A tendência do doce é manifesta na grande quantidade de
marmeladas, doces e compotas, bem como em toda a doçaria que se disseminou em
Portugal até à atualidade.
B. G.
– Onde se pode comer como uma rainha em Portugal, nos dias atuais?
G. C.: Essa pergunta é
curiosa e vem ao encontro de um projeto que iniciei recentemente, com o
objetivo de responder a essa necessidade. Criei um ciclo de jantares de rainhas
que têm como base o meu livro, com uma rainha em cada jantar e o menu
associado. Este primeiro ciclo irá decorrer numa Pousada charmosa em Condeixa,
bem perto da cidade universitária de Coimbra. (VER AQUI)
No
próximo dia 15 de setembro, realiza-se o primeiro de vários jantares
dinamizados numa articulação e colaboração comigo e o Chefe de Cozinha João
d'Eça Lima sob o lema: comer como uma rainha, inspirado na obra publicada que
retrata a vertente histórica e gastronómica relacionada com os gostos e
identidade cultural à mesa no período que vai do século XVI ao século XX.
O
primeiro jantar, dedicado a Catarina de Áustria terá o espírito e encenação de
um banquete onde serão servidos pratos com base no receituário registado: canja
de perdiz, queijos artesanais, pão artesanal, galinha albardada, desfeito de
galinha, coelho em tigela, boldroegas, picado de carne de vaca em seco, pastéis
de leite, almojávenas de Dona Isabel de Vilhena e pessegada. Serão servidos
vinhos brancos e ainda apresentadas mais algumas iguarias da época.
O
jantar, com início pelas 20 horas, é de reserva obrigatória e limitado no
número de participantes e conta com a presença, introdução e enquadramento por
mim.
O
objetivo é estender este projeto a outros restaurantes ou hotéis que tenham
interesse em oferecer um serviço diferenciado, com um projeto inédito em
Portugal.
B. G. – Considerando que a mesa é um lugar
onde se deve partilhar as delicias gastronômicas com as pessoas que se gosta,
poderia nos dizer qual das rainhas das casas reais ainda existentes no mundo
você gostaria de sentar à mesa, e quem mais convidaria para descobrir mais
sobre ela (elas)?
G. C.: Na impossibilidade de
escolher a princesa de Marrocos, uma vez que os monarcas se divorciaram,
gostaria de partilhar uma refeição com Rania da Jordânia. Tenho imensa
curiosidade pela cozinha do Médio Oriente e julgo que existe um receituário com
uma matriz comum ao nosso no uso das especiarias que, no nosso caso, se
suavizou.
Meu Sabor da Tradição
G. C. A minha avó materna deixou-nos há dois anos com 98 anos de idade. Era muito comunicadora e, quando me sentava à sua beira, ficava tempo infinito a ouvi-la desfiar histórias de outros tempos. A minha avó, ao contrário de muitas avós, não é uma referência culinária para mim. De poucas comidas que fazia guardo memórias, sobretudo porque deixou de cozinhar quase há duas décadas e julgo que no caso dela, era mais por necessidade do que prazer. Porém, existem quatro alimentos que lhe estão inteiramente ligados e que serão sempre os da minha avó.
G. C. A minha avó materna deixou-nos há dois anos com 98 anos de idade. Era muito comunicadora e, quando me sentava à sua beira, ficava tempo infinito a ouvi-la desfiar histórias de outros tempos. A minha avó, ao contrário de muitas avós, não é uma referência culinária para mim. De poucas comidas que fazia guardo memórias, sobretudo porque deixou de cozinhar quase há duas décadas e julgo que no caso dela, era mais por necessidade do que prazer. Porém, existem quatro alimentos que lhe estão inteiramente ligados e que serão sempre os da minha avó.
A
broa! O ritual de fazer broa de milho era quase religioso. Entre fermentos e
cruzes traçadas sobre a massa, o dia de cozer a broa era vivido com entusiasmo.
Alguns
dias, no regresso da escola, passava em casa dela para comer um pão regado com
azeite e polvilhado de açúcar amarelo. Não sei exatamente de onde veio esta
ideia, se mais alguém o fazia, mas era o pão da minha avó, que eu adorava e que
agora me parece inusitado.
Também
as batatas fritas dela eram únicas. Essas sim, apetecem-me agora e sempre. No
borralho, sobre a trempe, uma grande sertã com azeite do seu olival. Rodelas
grossas de batata eram ali mergulhadas e depois servidas com um ovo estrelado.
De
doçaria nada me lembro para além do arroz doce. Mas há um bolo que fazia
questão de me dar. Às sextas feiras ia à feira na vila fazer as compras que
completavam o que tirava da terra. E nesses dias trazia sempre um bolo para as
netas. Um pastel de nata para mim, uma bola de berlim para a minha irmã. Talvez
por isso, ainda hoje na pastelaria portuguesa, é este o meu bolo preferido. Por
isso, o meu sabor de tradição.
Pastéis de Nata (16 unidades, no original
12)
500 g
de massa folhada preparada
creme:
500 ml
de natas
200 g
de açúcar
8
gemas
2
colheres de sopa de farinha sem fermento
1
casca de limão grande
Preparo: Comecei por preparar o
creme, misturando bem todos os ingredientes e levei ao lume (fogo) mexendo
sempre até levantar fervura e engrossar. Deixei arrefecer até ficar morno.
Cobri com película aderente para não ficar uma crosta. Estendemos a massa folhada
e cortámos círculos ligeiramente maiores do que as formas de queques. Untámos
ligeiramente as formas com manteiga e colocámos a massa. Recheei os pastéis de
nata com o creme e levei ao forno pré-aquecido a 250º, durante cerca de 15
minutos até ficarem bem tostados. Tirei do forno, deixei-os arrefecer
ligeiramente, desenformei e servi polvilhados com canela.
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