quinta-feira, 6 de setembro de 2018

PROJETO SABORES DA TRADIÇÃO: À Mesa com as Rainhas Portuguesas – Entrevista com a investigadora de História da Alimentação GUIDA CÂNDIDO (Portugal).


Caros Confrades e Consórores, estimados amigos e amigas leitores, venho agradecer mais uma vez sua participação e interação com este blog que hoje, exatamente, completa oito anos de existência. Foram muitos aprendizados, muitas informações absorvidas e compartilhadas, muitas receitas testadas (umas que deram certo, outras nem tanto), algumas poucas reclamações, mas sempre tentando resgatar histórias, receitas e novidades do mundo gastronômico que nos alimenta corpo e alma. Muito obrigado.
Por ser um dia especial hoje retomo, mais uma vez o Projeto Sabores da Tradição que desenvolvo nesta Confraria com entrevistas com personalidades variadas para discutir temas tão diversificados quanto a cultura gastronômica. Assim, hoje a entrevistada da Confraria Gastronômica do Barão de Gourmandise vem tratando de um assunto instigante e muito querido por mim (pessoalmente): à mesa com as rainhas – entrevista com a historiadora da alimentação portuguesa Guida Cândido.


A alimentação nos palácios sempre foi motivo de especulação desde os tempos remotos: era demonstração de luxo, poder, ostentação, exotismo, influência, mas principalmente dos costumes de épocas que não voltam mais. As monarquias que sobrevivem aos tempos atuais ainda causam frisson quando anunciam casamentos reais onde o menu de banquetes e o bolo do casamento despertam bastante curiosidade e são copiados pelos modismos.
Eu, particularmente, tenho uma preferência por algumas mulheres monarcas em alguns países, e sempre me pego investigando seus hábitos alimentares para descobrir algo interessante e dividir com vocês. E hoje, não seria diferente. Espero que apreciem a entrevista. E, mais uma vez, obrigado por acompanhar o blog.

Barão de Gourmandise (B.G.) - Para aqueles que não lhe conhecem, poderia apresentar-se e dizer quem é você e a que se dedica?

Guida Cândido (G.C.): O meu nome é Guida Cândido, trabalho no município da Figueira da Foz, na Divisão de Cultura onde desenvolvo trabalho relacionado com a História Local, o Património Cultural e os fundos locais, nomeadamente a fotografia antiga. Paralelamente, sou investigadora de História da Alimentação, associada ao Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (CECH) da Faculdade de Letras (FLUC) da Universidade de Coimbra (UC), fazendo parte da equipa multidisciplinar do projeto DIAITA - Patrimónios Alimentares da Lusofonia.
Sou autora do Grupo Leya, concretamente da chancela editorial D. Quixote, com quem editei desde 2016 três livros desta área de investigação: "Cinco Séculos à Mesa - 50 receitas com história"; "Five Centuries of Portuguese Cuisine" e, este ano, "Comer como uma rainha - receituário real do século XVI ao século XX”, todos disponíveis (AQUI). Desenvolvo trabalho de consultoria na área da História da alimentação, foodstyling e fotografia. E Alimento o hiperespaço em www.panelasemdepressao.com




B.G. – Antes de chegarmos às mesas das rainhas, gostaria de iniciar pela ‘aventura’ da escrita de “Cinco séculos à mesa”. Sei bem como é árdua (e deliciosa) a tarefa de dedicar-se a pesquisas nos tempos atuais: seja pelas fontes escassa e de difícil acesso, recursos limitados, ter que verificar e reverificar fontes, revisar datas, analisar discursos, comparar falas, etc., etc.... assim, conte-me um pouco de como surgiu a ideia para o livro. Qual foi o estopim para ele, houve uma história em particular que lhe fez aguçar o sentido investigativo e dar início ao texto, ou foi algo já pré-estabelecido?

G. C.: O "Cinco Séculos à Mesa" surgiu na sequência da minha tentativa de editar a dissertação do meu mestrado em “Alimentação: Fontes, Cultura e Sociedade” da FLUC, “Comer como uma rainha - estudo de um livro de despesas da Casa de D. Catarina de Áustria de 1571”. A editora gostou do texto e do tema mas considerou um trabalho demasiado académico para publicar para um público mais amplo. Sugeri, então, fazer um périplo pela História da Alimentação nos últimos cinco séculos, com um breve ensaio histórico que inclui ainda um capítulo dedicado à Antiguidade Clássica e recriar 50 receitas dos cinco principais livros de receitas desses séculos. E a proposta foi aceite com entusiasmo e em menos de um ano, estava nas bancas.

B. G. - O que mais lhe surpreendeu enquanto percorria essa aventura gastronômica pelo receituário gastronômico português entre os séculos XV e XX?

G. C.: Não sendo propriamente uma surpresa, é sempre interessante perceber o que perdurou e o que se perdeu ao longo dos séculos. Fico sempre fascinada com a descoberta de receitas que julgamos que são invenções recentes e que se revelam muito antigas, ou que estão associadas a períodos recuados. Por exemplo, muitas pessoas consideram recente esta tendência de aromatizar manteiga, e, na realidade, Paul Plantier já apresenta, no século XIX, pelo menos uma receita irresistível de manteiga com anchovas.

B. G. – Acredito que a cerimônia e o protocolo à mesa em Portugal não diferem nos séculos XVI e XVIII de outras realezas europeias. No entanto, quando se trata de requinte e exotismos destaques curiosos sempre aparecem para nos surpreender. O que poderia nos contar sobre a fineses, o exotismo e o requinte nestes cinco séculos à mesa que investigou?

G. C.: Os livros de registo de despesas de cozinha das casas reais possibilitam observar quais as iguarias que os monarcas e seus serviçais privilegiam no seu quotidiano; o que os grupos desfavorecidos não alcançam; os alimentos que se revestem de importância simbólica e carácter raro, exótico e distinto. Tão especiais como os que D. Catarina apresenta no banquete que oferece à sua sobrinha, a Infanta D. Maria, por ocasião do casamento da Infanta, com Alexandre Farnese. No Paço da Ribeira, no desenrolar do banquete, presenteia os convidados com abundância de carnes vindas de vários e distantes pontos do império, tal como a água servida que se diz proveniente de muitas partes do mundo: Indo, Ganges, nascentes e lagos de África e Ásia e rio Tibre, numa tentativa de ostentar os domínios imperiais do reino português. Os monarcas comem em abundância e com qualidade.
Do Oriente e do Brasil, com a expansão portuguesa, provêm alimentos como tomate, chocolate, batata, ananás, peru e tantas outros alimentos que implicam, necessariamente, mudanças na alimentação da Europa e potenciam de forma marcada sinais de poder e ostentação na corte, firmando o luxo e refinamento da mesa ocidental. De resto, o banquete, nos séculos XV e XVI, promove a mesa para ser observada na sua abundância, na qualidade dos seus pratos, na forma de apresentação dos mesmos, numa certa encenação e teatralidade que a torna cada vez mais, não um lugar de coesão social, mas sim de separação, evidenciando todas as particularidades que distinguem os privilegiados dos restantes grupos da sociedade.
Os inventários dos bens das rainhas da Época Moderna permitem conhecer o grau de exotismo e de sofisticação das suas mesas, sobretudo a partir de D. Catarina de Áustria, quando os portugueses acedem ao Japão e à China. A bateria de cozinha e as peças da mesa são sumptuosas, com materiais nobres como prataria, madrepérola, laca, porcelanas, madeiras e têxteis nobres. Embora a sala de jantar enquanto espaço físico e específico de refeições apenas seja efetivo no século XVIII, os palácios da Época Moderna apresentam salas multifuncionais onde se desenrolam refeições armando-se as mesas e toda a logística necessária. O mesmo pode acontecer nas câmaras e antecâmaras, ricamente decoradas, muitas vezes com recurso a decorações efémeras como dosséis e panos de armar. Na mesa retangular, a tolha é habitualmente branca e rasa o chão, completando a cena diversas cadeiras, almofadas e iluminação com castiçais e candelabros de prata. A riqueza da baixela não é ostentada na mesa mas sim na copa, onde ocupa um lugar de destaque.
Nos séculos XVI, XVII e XVIII presume-se que a alimentação na corte portuguesa não difira muito das restantes cortes europeias. As refeições quotidianas e os banquetes são momentos revestidos de um rigoroso protocolo. Em torno das figuras reais orbitam inúmeras personagens.

B. G. – Pesquisando sobre menus históricos encontrei, algumas vezes, referências que apontam para a existência de duas cozinhas reais: a do rei e a da rainha. Mas poucos se dão conta disso. Há quem faça relatos de que rei e rainha apenas se juntavam em banquetes festivos, celebrações ou alguma comilança que envolvia relações públicas com a corte e personas destacáveis. O que me diz a esse respeito? Se deparou com algo do tipo nas suas pesquisas?

G. C.: No protocolo real português a tendência era de duas cozinhas, uma para o rei outra para a rainha. Não por acaso, existe a designação Casa da Rainha. E as refeições eram normalmente privadas. As refeições públicas decorrem de situações particulares, de cerimónias e festas e nessas ocasiões, é mais comum ambos monarcas partilhares a mesa.
No século XVII, com as refeições públicas, as refeições do rei são uma atividade de representação com presença da corte e sacralização da pessoa do monarca, havendo uma forte hierarquia nos bastidores, onde as refeições são preparadas. A documentação revela a ascensão de algumas figuras até chefe de cozinha. Verifica-se, ainda, a existência de cozinheiros com caráter extraordinário, requisitados quando decorrem banquetes.
A etiqueta, as cerimónias e as práticas rituais na Casa das Rainhas, entre a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XVIII, são marcadas pelo modelo dito borgonhês.
A partir do século XIX, concretamente nos reinados de D. Maria I e de D.Luís , as refeições do quotidiano já apresentam os monarcas juntos, com outras individualidades da corte, sobretudo no reinado de D. Luís e de D. Maria Pia, onde também se conhece com mais precisão o que vai à mesa, uma vez que estão em voga os menus.


Maria Pia de Saboia GCNSC • GCSI (Turim, 16 de outubro de 1847 — Nichelino, 5 de julho de 1911) foi uma princesa de Saboia e rainha de Portugal e Algarves como consorte do rei D. Luís I de Portugal.

B. G.  – Partindo então para "Comer como uma rainha": o que lhe levou a dedicar-se ao estudo das mesas das rainhas? E por que das rainhas escolhidas?

G.C.: Foi inevitável pegar neste tema depois da minha dissertação que tinha apenas a rainha D. Catarina de Áustria como protagonista. A escolha das rainhas prendeu-se com a vontade de fazer mais uma vez uma cronologia até ao século XX e focou-se nas rainhas a que consegui associar mais documentação e livros de cozinha editados durante a sua permanência no trono.

Catarina de Áustria, Catarina de Habsburgo ou, mais raramente, Catarina de Espanha (em castelhano: Catalina de Austria; Torquemada, 14 de janeiro de 1507 - Lisboa, 6 de fevereiro de 1578) foi arquiduquesa da Áustria, infanta de Espanha e rainha de Portugal como esposa de D. João III.

B.G.  – Poderia explicar brevemente a relação dessas rainhas apresentadas na obra com a alimentação. Havia a preocupação delas relativas a alimentação, ou simplesmente tratavam a comida como algo necessário para sustentar o corpo e como elemento de status?

G. C.: O Homem é o que come. E o que come é também aquilo que gostaria de ser. Ontem e hoje, a alimentação da humanidade poderá dividir-se em dois campos essenciais que se traduzem na necessidade e no prazer, refletindo hierarquias sociais e culturais, bem como as relações de poder. A juntar à escolha dos alimentos, aos básicos e aos supérfluos, surgem ainda as técnicas de preparação e confecção. Estes princípios constituem um elemento diferenciador ou unificador a que se juntam ainda as questões da mesa e da etiqueta; os rituais e as normas; as interdições e uma gramática de saberes tão extensa quanto complexa.
Comia-se por forma a estabelecer e definir hierarquias. À época, a alimentação era mais do que alimento, era uma manifestação de poder, distinção e exotismo.
Da mesa medieval chegam os ritos e interditos, sob diversos olhares – antropológico, sociológico, económico, religioso e cultural, identificando os alimentos que chegam à mesa, a sua confecção na cozinha, de acordo com as práticas e os gostos culinários da época, as preferências ou os interditos alimentares de ordem religiosa, social ou dietética.
Em conclusão, as rainhas em causa alimentavam-se de acordo com as normas da sua época, atendendo às matrizes estipuladas para a comida de corte.

B. G.– Algumas das rainhas se dedicava a cozinha? Alguma com dons gastronômicos indiscutíveis ou apenas todas eram amantes da boa mesa?

G. C.: Desconheço, na investigação que fiz, qualquer intervenção das rainhas na cozinha, embora os seus gostos sejam relevantes na hora da escolha das refeições. Por exemplo, em D. Catarina de Áustria, percebe-se o gosto direcionado por determinados alimentos. O estudo do livro de despesas da sua casa, de 1571, refere diversas vezes a indicação concreta de galinha para a rainha, bem como cerejas e saladas para a monarca. Ou a compra de queijos em Belém para D. Catarina. Algumas terão sido mais frugais.

B. G. – Das rainhas investigadas qual te chamou maior atenção, e por que?

G. C.: Eu tenho uma “relação” muito particular com o universo alimentar de D. Catarina de Áustria. Embora o objetivo da minha dissertação tenha sido o estudo das questões alimentares desta rainha, fica-se inevitavelmente apaixonado pela figura carismática de Catarina de Áustria, uma mulher que perde todos os filhos e que deposita as últimas esperanças nos netos que também têm finais trágicos. Ainda assim, a sua energia e o gosto pelo belo, pelo exótico e pelo colecionismo fazem dela uma rainha incontornável.

B. G. – De fato, podemos dizer que os casamentos entre as casas reais permitiram que receitas e ingredientes diferentes de seus países de origem percorressem o mundo, pelo capricho dos monarcas ou pelo prazer afetivo que eles têm ao remeter diretamente à pátria. Poderia nos contar um pouco sobre essa interação gastronômica em Portugal a partir das rainhas que vieram de outras nações europeias? Sei, por exemplo, que as massas foram introduzidas em Portugal por volta do século XVIII – o que me pareceu até demorado, considerando que Marco Polo levou o macarrão da China para a Itália no século XIII...

G. C.: Naturalmente que existem os “produtos da saudade” que são levados de uns territórios para outros. Tanto é assim que o primeiro livro de cozinha português conhecido, o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, encontra-se fora de portas, na Biblioteca Nacional de Nápoles. A neta de D. Manuel, aquando do seu casamento com Alexandre Farnese leva-o para Parma, juntamente com outras peças de enxoval e o seu séquito.
E existem muitas evidências de rainhas que se fazem acompanhar entre outros serviçais, dos seus cozinheiros, é o caso de D. Maria Ana de Áustria que trouxe consigo, aquando do seu consórcio com D. João V, de uma cozinheira. É um caso extremamente interessante porque essa função era normalmente atribuída aos homens. Em todo o caso, esta rainha traz uma cozinheira que mantém ao seu serviço na corte portuguesa e, naturalmente, com a herança de sabores mais nórdicos, associados à sua origem.


B. G.  - Um dos meus maiores problemas, ultimamente, nas minhas pesquisas, além do pouco tempo, são os testes das receitas...  Vez por outro posto a receita e só vou testá-la um tempo depois. Assim, gostaria de saber como se deu o processo de escolha dos pratos apresentados em seus livros? Você testou todas as receitas?

G. C.: Em todo os meus livros as receitas foram testadas e fotografadas. Em alguns casos, mais do que uma vez, para garantir a sua possibilidade de execução pelos leitores. O critério que usei na escolha de todas elas teve como princípio a correspondência o mais fiel ao original, mas também a possibilidade de ir ao encontro dos palatos da atualidade, sem causar demasiada estranheza, mas, ainda assim, conseguir alguma surpresa na descoberta de alguns sabores de que nos desabituámos.

B. G. – Certa vez, li no jornal inglês "The Independent" uma reportagem de um antigo chefe da Casa Real britânica que e compilou o essencial de um dia à mesa de Isabel II. De acordo com o texto, tudo iniciava com uma xícara de chá Earl Grey - sem leite nem açúcar - e biscoitos. Depois viria fruta e cereais - que devem ser servidos em uma caixa Tupperware, porque, para Isabel II, é a melhor forma de os manter crocantes. Quando deseja variar, escolhe torradas com compota ou uns ovos mexidos com salmão fumado e trufas. Antes do almoço não pode faltar um gin e um Dubonnet, um aperitivo doce à base de vinho, com uma rodela de limão e bastante gelo. Depois, à refeição, algo muito simples, como peixe ou frango grelhados e legumes. Se almoçar sozinha, nada de arroz, batatas ou massas. À tarde, um chá acompanhado por mini sanduiches de pepino, salmão defumado, ovo e maionese, fiambre e mostarda, e "jam pennies", que são sandes com compota de framboesa cortadas em pequenos círculos, do tamanho da moeda inglesa. Biscoitos, scones e bolos também entram no menu vespertino. Entre os bolos preferidos da rainha está um de biscoito de chocolate que foi servido no casamento de William e Kate (inclusive já tratei dele aqui no blog). Para o jantar são servidos, habitualmente, um filete de salmão ou bifes, cortados finamente, de vaca, faisão ou veado, vindos das quintas de Sandringham e Balmoral. A rainha também aprecia um bom assado de domingo. Quanto a sobremesas, morangos e pêssegos cultivados nas suas quintas, e - não pode faltar - chocolate. Seja de um tablete mais exclusivo ou de uma marca de supermercado, o importante é comer um pouco de chocolate. Por fim, Isabel II gosta de rematar o dia com um copo de Champanhe. Deste modo, poderia nos descrever como era o menu de uma dessas mesas reais?

G. C.: Como já referi, com a chegada dos menus, torna-se mais concreto o conhecimento dos pratos que vão à mesa real. Nessa medida, a minha escolha recai na rainha D. Maria Pia. D. Luís e D. Maria Pia viajam com regularidade pelas cortes europeias e, naturalmente, adotam o que a moda dita.
Um alimento que se destaca nos menus reais é a pasta. A grande variedade de massas alimentícias e a profusão de receitas com este ingrediente, revelam os gostos culinários neste período e, por arrasto, as da mesa real. O facto da rainha ser italiana, facilita a divulgação deste alimento, mas também de outros pratos italianos que surgem nas ementas, como risottos e uma panóplia de receitas à moda de com uma abrangência que excede a generalidade do à italiana e especifica com regionalismos: à piemontesa, à milanesa, à Veneza entre outros.
Esta catalogação ultrapassa a fronteira do território italiano e, nos diferentes menus da coleção do Palácio da Ajuda, é possível encontrar diversas referências de pratos atribuídos a outros contextos. Logicamente muitos pratos à portuguesa, mas também à inglesa, à holandesa, à francesa…
Os menus permitem conhecer os hábitos alimentares da família real, exibindo não só os pratos, mas também a sua ordem de chegada à mesa e, até, a constância e preferência por algumas receitas ou ingredientes. Assim, a estrutura de um menu, na época, compõe-se de: sopa; hors d’oeuvre; prato de relevo; entrada quente e entrada fria; assado; legumes; entremeios e doces.
As refeições no paço revestem-se de muito requinte, com marcadores e ementas de fino gosto e diferentes mesas consoante a categoria das pessoas. A principal é a mesa de estado onde se sentam o rei, a rainha, a camarista da rainha, o mordomo-mor, o vedor, o médico e oficiais de guarda do palácio.

B. G. – Conseguiste achar em suas pesquisas algum prato que esteve sempre presente deste a época da primeira rainha analisada até a última? Qual seria?

G. C.: Uma receita em particular não diria. No entanto, julgo que em todas estas mesas, a galinha teve sempre um lugar privilegiado e de destaque nas refeições apresentadas.

B. G. – Imagino que desde o lançamento de seus livros já tenha ouvido muitas perguntas do tipo: o que come uma rainha? Ou, o que compõe a mesa de uma rainha?  Mas, e o que elas não comiam? Haviam restrições nas mesas das monarcas? Bebiam de tudo?

G. C.: As restrições prendem-se com os preceitos religiosos. Legumes e vegetais destinam-se, essencialmente, aos dias de jejum de carne, tal como acontece com o peixe que está na mesa em cumprimento das prescrições religiosas de abstinências e jejuns.
Quanto às bebidas, sobretudo até ao final do período medieval, beber significava essencialmente beber vinho, uma vez que a água oferecia algumas limitações em termos de salubridade. Portanto, as nossas rainhas, ao que se conhece, bebiam vinho, como a generalidade das pessoas.

B. G – Alguns historiadores da alimentação tendenciam afirmações que apontam para o gosto feminino por doces? Você corrobora com essa ideia? Algum doce em especial com referência histórica a alguma das rainhas?

G. C.: Julgo que o doce não era uma predileção feminina, era um gosto geral. Só tardiamente se começa a fazer a distinção do doce e do salgado, permanecendo a sobreposição de açúcar em muitos pratos de carne como se pode ver no receituário do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. A tendência do doce é manifesta na grande quantidade de marmeladas, doces e compotas, bem como em toda a doçaria que se disseminou em Portugal até à atualidade.

B. G.  – Onde se pode comer como uma rainha em Portugal, nos dias atuais?

G. C.: Essa pergunta é curiosa e vem ao encontro de um projeto que iniciei recentemente, com o objetivo de responder a essa necessidade. Criei um ciclo de jantares de rainhas que têm como base o meu livro, com uma rainha em cada jantar e o menu associado. Este primeiro ciclo irá decorrer numa Pousada charmosa em Condeixa, bem perto da cidade universitária de Coimbra. (VER AQUI)
No próximo dia 15 de setembro, realiza-se o primeiro de vários jantares dinamizados numa articulação e colaboração comigo e o Chefe de Cozinha João d'Eça Lima sob o lema: comer como uma rainha, inspirado na obra publicada que retrata a vertente histórica e gastronómica relacionada com os gostos e identidade cultural à mesa no período que vai do século XVI ao século XX.
O primeiro jantar, dedicado a Catarina de Áustria terá o espírito e encenação de um banquete onde serão servidos pratos com base no receituário registado: canja de perdiz, queijos artesanais, pão artesanal, galinha albardada, desfeito de galinha, coelho em tigela, boldroegas, picado de carne de vaca em seco, pastéis de leite, almojávenas de Dona Isabel de Vilhena e pessegada. Serão servidos vinhos brancos e ainda apresentadas mais algumas iguarias da época.
O jantar, com início pelas 20 horas, é de reserva obrigatória e limitado no número de participantes e conta com a presença, introdução e enquadramento por mim.
O objetivo é estender este projeto a outros restaurantes ou hotéis que tenham interesse em oferecer um serviço diferenciado, com um projeto inédito em Portugal.

B. G. – Considerando que a mesa é um lugar onde se deve partilhar as delicias gastronômicas com as pessoas que se gosta, poderia nos dizer qual das rainhas das casas reais ainda existentes no mundo você gostaria de sentar à mesa, e quem mais convidaria para descobrir mais sobre ela (elas)?

G. C.: Na impossibilidade de escolher a princesa de Marrocos, uma vez que os monarcas se divorciaram, gostaria de partilhar uma refeição com Rania da Jordânia. Tenho imensa curiosidade pela cozinha do Médio Oriente e julgo que existe um receituário com uma matriz comum ao nosso no uso das especiarias que, no nosso caso, se suavizou.

Meu Sabor da Tradição
G. C.  A minha avó materna deixou-nos há dois anos com 98 anos de idade. Era muito comunicadora e, quando me sentava à sua beira, ficava tempo infinito a ouvi-la desfiar histórias de outros tempos. A minha avó, ao contrário de muitas avós, não é uma referência culinária para mim. De poucas comidas que fazia guardo memórias, sobretudo porque deixou de cozinhar quase há duas décadas e julgo que no caso dela, era mais por necessidade do que prazer. Porém, existem quatro alimentos que lhe estão inteiramente ligados e que serão sempre os da minha avó.
A broa! O ritual de fazer broa de milho era quase religioso. Entre fermentos e cruzes traçadas sobre a massa, o dia de cozer a broa era vivido com entusiasmo.
Alguns dias, no regresso da escola, passava em casa dela para comer um pão regado com azeite e polvilhado de açúcar amarelo. Não sei exatamente de onde veio esta ideia, se mais alguém o fazia, mas era o pão da minha avó, que eu adorava e que agora me parece inusitado.
Também as batatas fritas dela eram únicas. Essas sim, apetecem-me agora e sempre. No borralho, sobre a trempe, uma grande sertã com azeite do seu olival. Rodelas grossas de batata eram ali mergulhadas e depois servidas com um ovo estrelado.
De doçaria nada me lembro para além do arroz doce. Mas há um bolo que fazia questão de me dar. Às sextas feiras ia à feira na vila fazer as compras que completavam o que tirava da terra. E nesses dias trazia sempre um bolo para as netas. Um pastel de nata para mim, uma bola de berlim para a minha irmã. Talvez por isso, ainda hoje na pastelaria portuguesa, é este o meu bolo preferido. Por isso, o meu sabor de tradição.

Pastéis de Nata (16 unidades, no original 12)
Cozinha Tradicional Portuguesa – Maria de Lurdes Modesto

500 g de massa folhada preparada
creme:
500 ml de natas
200 g de açúcar
8 gemas
2 colheres de sopa de farinha sem fermento
1 casca de limão grande

Preparo: Comecei por preparar o creme, misturando bem todos os ingredientes e levei ao lume (fogo) mexendo sempre até levantar fervura e engrossar. Deixei arrefecer até ficar morno. Cobri com película aderente para não ficar uma crosta. Estendemos a massa folhada e cortámos círculos ligeiramente maiores do que as formas de queques. Untámos ligeiramente as formas com manteiga e colocámos a massa. Recheei os pastéis de nata com o creme e levei ao forno pré-aquecido a 250º, durante cerca de 15 minutos até ficarem bem tostados. Tirei do forno, deixei-os arrefecer ligeiramente, desenformei e servi polvilhados com canela.

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