“O sorriso do palhaço era uma fenda esculpida, larga e cruel, e os
olhos que o olhavam eram brilhantes demais, demasiadamente cruéis e
inteligentes.”
— Stephen King, It – a coisa.
Nasci nos primeiros anos da década de 1980 — uma era em que o mundo
parecia girar mais devagar, mas queimava com uma intensidade que hoje seria
insuportável. Fui criança entre os ecos elétricos dos anos 1980 e 1990, décadas das onde as cores neon (Verde-limão,
laranja fluorescente, azul elétrico, amarelo intenso) apareciam em roupas e
brinquedos, as ruas cheiravam a asfalto quente e algodão-doce, as crianças
ainda acreditava em mágica, e o impossível rondava os becos como um truque de
prestidigitação prestes a falhar. Era o tempo em que tudo podia acontecer — e,
com frequência, acontecia.
Cresci quando os circos ainda fincavam suas estacas de ferro em
terrenos baldios e erguiam suas lonas imensas, como se tentassem capturar o
próprio céu dentro delas. Neles, o impossível ganhava corpo: motoqueiros
dançavam com a morte dentro de esferas metálicas, malabaristas desafiavam o
cansaço dos deuses, e mágicos de terno gasto faziam desaparecer lenços e
ilusões com a mesma falta de graça que a vida cotidiana.
Havia também atiradores de facas, sempre acompanhados de mulheres que
mal cabiam em seus corpetes e homens bigodudos que exibiam sorrisos sem alma.
E, entre risos forçados e aplausos automáticos, palhaços deslizavam pelo
picadeiro com suas bocas grotescamente pintadas, risos que pareciam gritos
disfarçados e uma lágrima desenhada debaixo do olho — uma lágrima que, por
muitos anos, me perseguiu.
Meu avô materno, homem de gestos lentos e olhos do azul mais profundo
e que ficaram marejados pelo tempo, jamais deixaria um circo passar pela cidade
sem nos levar. Era um ritual: ele comprava os ingressos com a solenidade de
quem compra bilhetes para o melhor show da vida. Íamos todos — crianças,
adultos e fantasmas — empurrados por um encantamento que eu, mesmo criança, já
suspeitava ser uma forma delicada de tristeza.
Lá dentro, o cheiro era sempre o mesmo: serragem, suor, algodão doce e
pipoca queimada. E, por mais que
ríssemos, algo me apertava o peito quando via os animais — leões magros,
elefantes de olhos tristes, macacos inquietos, cães que pulavam por argolas em
troca de aplausos. Aquilo me incomodava profundamente, embora eu ainda não
soubesse o nome do que sentia. Era um mal-estar sem rosto. Mais tarde, quando
as leis finalmente calaram o estalo dos chicotes, senti que o mundo havia
aprendido, por um breve instante, a respirar com mais humanidade.
Mas não é sobre o circo que desejo falar.
O circo é apenas o palco de uma lembrança, o pano de fundo de um medo
ancestral.
O que me traz aqui são os palhaços.
Desde criança, eu os observava com a obstinação dos que buscam um
segredo. Havia algo de errado neles — algo que desafiava a alegria que fingiam
carregar. As bocas eram largas demais, vermelhas demais, e o branco no rosto
parecia o véu de um cadáver que se esforça para sorrir. E sempre, sempre havia
aquela lágrima solitária pintada sob o olho esquerdo.
Perguntei a todos o porquê.
A ninguém importava.
As respostas variavam entre risadas rápidas e silêncios constrangidos,
como se o mistério fosse antigo demais para ser desenterrado por uma criança.
O tempo, porém, é um mestre cruel. Ele ensina o que ninguém ousa
dizer.
Foi com ele que aprendi a ler o verdadeiro idioma dos palhaços: a
lágrima pintada não é símbolo de tristeza passageira, mas o vestígio de um
pacto silencioso. É o sinal de quem faz rir para não ser devorado pela própria
dor.
A lágrima do palhaço é o espelho onde o riso se ajoelha.
Curiosamente, eles nunca me causaram medo.
Enquanto outros — adultos e crianças — gritavam e se escondiam, eu
apenas observava. Via o suor escorrendo por baixo da pintura, rachando a
máscara, revelando por instantes o humano que existia ali, preso, pedindo ar.
Talvez fosse esse o verdadeiro terror: a constatação de que, sob o disfarce
colorido, existia uma tristeza que também era minha.
Nas festas infantis que frequentei, presenciei verdadeiros desastres
emocionais. Crianças que corriam apavoradas, meninos e meninas que choravam sem
entender por quê. O palhaço se aproximava, oferecendo balões e sorrisos
exagerados, e o riso se transformava em pavor. Talvez fosse a maquiagem que
derretia com o calor, talvez o olhar que, apesar da tinta, parecia humano
demais. Ou talvez — e é o que eu realmente acredito — havia ali algo mais
profundo: o pressentimento de que o riso é apenas o outro nome do medo.
Hoje, adulto, compreendo.
Os palhaços não nasceram para entreter — nasceram para nos lembrar da
fragilidade do riso. São guardiões de uma melancolia antiga, herdeiros de uma
dor que precisa de aplauso para não apodrecer.
E, às vezes, penso que todos nós, um dia, nos tornamos palhaços de nós
mesmos — pintamos o rosto para esconder a lágrima, contamos piadas para
disfarçar o desespero, fazemos malabarismos com os dias para não olhar o abismo
que nos habita.
Porque, no fundo, a lágrima sob o olho não é deles.
É nossa.
E o circo — esse imenso teatro de ilusões e gritos abafados — nunca
foi desmontado. Ele apenas mudou de endereço.
Hoje, ergue-se dentro de cada um de nós.
E, todas as noites, quando o silêncio cai como uma lona escura sobre o
mundo, os palhaços voltam ao picadeiro.
E rimos — desesperadamente — para não chorar.
Hoje, a apenas oito dias para as celebrações que atravessam o véu —
quando o mundo se inclina para o invisível, quando lembramos das bruxas, dos
mortos e de seres arteiros que dançam nas fronteiras da razão — o ar parece
mais denso, carregado de significados antigos. Chamam-no Halloween, ou Dia das
bruxas, mas o nome pouco importa. O que realmente pesa é a sensação de que, por
algumas horas, o impossível respira junto conosco, e o medo se veste de festa.
É o tempo em que sombras se tornam curiosas, em que risadas podem esconder
sussurros e o inesperado espreita atrás de cada máscara.
Talvez seja por isso, nesta noite em que o riso e o terror caminham de
mãos dadas, que eu me vejo compelido a escrever sobre o lado obscuro dos
palhaços — essas criaturas que deveriam ser símbolos de alegria, mas que, na
penumbra de suas máscaras e cores, carregam algo mais antigo e inquietante: o
riso que arrepia, a comédia que assusta, a inocência que se dobra em terror.
Não falo apenas daqueles que conheci sob a lona do circo da infância —
suados, cansados, tristes. Falo dos outros, dos que emergiram das sombras da
ficção e da mente humana.
Falo de Pennywise, o Palhaço Dançante, surgido da mente brilhante de
Stephen King, o mestre do terror, em seu romance “It”, publicado em 1986 – e
que no Brasil, virou “A Coisa”. King,
com seu talento único para transformar medos cotidianos em monstros
inesquecíveis, concebeu Pennywise não apenas como um palhaço, mas como a
manifestação de um terror primordial que se alimenta das inseguranças e traumas
da infância.
Por trás da máscara colorida e do riso sedutor, ele é, na verdade, uma
entidade maligna ancestral, muito mais antiga que qualquer memória humana,
capaz de manipular, enganar e aterrorizar para conseguir o que deseja. A
genialidade do autor está na ambiguidade da criatura: ao mesmo tempo lúdica e
ameaçadora, sedutora e cruel, um ser que habita os cantos escuros da imaginação
e que transforma a infância em palco de seu poder.
Em 1986, e eu devia ter quatro anos quando o filme It – A Coisa
começou a rondar as conversas dos adultos. Na Tv as divulgações vinham com
aquele balão vermelho flutuando como uma promessa e uma ameaça, e algo dentro
de mim se agitava. Aquele palhaço era estranho. Eu era jovem demais para
compreender o porquê de um ser que vivia nos esgotos e caçava crianças. Mas o
instinto — essa velha bússola do medo — já sabia o que minha mente não podia
ainda nomear.
Anos depois, revendo o filme, comecei a compreender o que, de alguma
forma, sempre intuí: Pennywise não era apenas um monstro. Era um espelho.
Aprendi que ele não era humano, mas uma entidade interdimensional, um
ser vindo de um universo paralelo — o Macrocosmo — que havia se infiltrado em
nosso mundo há milhões de anos. Um predador antigo, paciente, que hibernava por
vinte e sete anos antes de despertar novamente, faminto. Seu alimento era o
medo, e as crianças eram sua presa predileta — não pela carne, mas pela pureza
da emoção, pela intensidade do pavor que ainda não sabe se defender.
Pennywise não matava: degustava a alma de suas vítimas aos poucos. Ele
se infiltrava nos sonhos, distorcia a realidade, fazia da mente um picadeiro de
horrores. Se uma criança temia aranhas, ele se tornava uma aranha gigante. Se
tremia diante da morte, ele vestia o rosto da perda. Sua crueldade estava em
revelar o que o medo mais esconde — nós mesmos.
E sua forma de palhaço?
A mais perversa das armadilhas.
Porque quem resiste a um sorriso? Quem desconfia de uma figura feita
para divertir?
Pennywise é o riso que precede o grito. Ele é o eco do circo que nunca
termina, o reflexo distorcido de tudo o que um dia nos fez felizes. O impacto
dessa criatura — nas telas e na imaginação — foi devastador.
Ele se infiltrou no inconsciente coletivo, plantando ali a semente da
coulrofobia, o medo dos palhaços. E, de repente, algo que pertencia à inocência
infantil passou a habitar os domínios do pesadelo.
E, de certo modo, eu compreendo.
Porque a figura do palhaço sempre foi ambígua: um rosto pintado para
disfarçar o humano, um sorriso grande demais para ser verdadeiro. A maquiagem
exagerada confunde o cérebro — não sabemos se ele ri, se chora, ou se planeja
algo terrível. O corpo se move em gestos bruscos, desengonçados, rápidos demais
— quase não humanos. É como observar uma marionete viva, algo que finge ser
gente, mas não é.
É o chamado “vale da estranheza” — quando algo é quase humano, mas
falha por um detalhe, e o erro nos fere como um espinho invisível.
E então, o que era apenas ficção atravessou a tela e contaminou o
real. Primeiro vieram os livros e filmes, com suas histórias improváveis e
monstros inventados — mas logo o pesadelo ganhou corpo, e o que antes se via no
cinema passou a caminhar entre nós.
Palhaços começaram a surgir nas ruas do mundo, imóveis sob a luz
pálida dos postes, observando crianças e adultos à distância, como se
esperassem um sinal invisível para agir. O riso perdeu o sabor, tornando-se
algo suspeito, quase indecente.
Nos Estados Unidos, o terror assumiu a forma de risadas distorcidas em dois episódios que marcaram a memória coletiva.
John Wayne Gacy - O palhaço assassino.
John Wayne Gacy – O Palhaço Assassino: Entre 1972 e 1978, Chicago tornou-se palco de uma das histórias mais macabras da criminalidade americana. John Wayne Gacy, cidadão aparentemente comum, escondia sob seu sorriso simpático a face de um predador implacável. Ele se disfarçava de palhaço para animar festas infantis e, durante anos, sequestrou, torturou e assassinou pelo menos 33 jovens, muitos deles garotos que desapareciam sem deixar rastros. Para a sociedade, Gacy era um vizinho, um empresário, alguém confiável; para os inocentes, ele era "Pogo o Palhaço", personagem que animava eventos comunitários e festas infantis. Essa duplicidade — a transformação de um palhaço de alegria em instrumento de horror — ficou marcada na história. Sua prisão, em 1978, chocou o país; condenado à morte, foi executado em 1994, deixando atrás de si um rastro de perguntas sobre a natureza do mal e o véu fino que separa riso e terror.
Sheila Keen-Warren e o Assassinato da Florista
Mais tarde, apareceu Sheila Keen-Warren e o Assassinato da Florista: Em
1990, na ensolarada Flórida, Marlene Warren foi morta dentro de sua própria
casa por uma figura vestida de palhaço, que chegou oferecendo flores e balões
antes de disparar contra a vítima. A autora do crime, Sheila Keen-Warren,
funcionária do marido da vítima, manteve o mundo ao redor em suspense por anos.
Apenas com avanços recentes em testes de DNA foi possível identificar sua
culpabilidade. Condenada em 2023, Sheila cumpriu parte da pena e foi libertada
em 2024. Este caso evidencia como o símbolo do palhaço, tradicionalmente
associado à inocência e à alegria, pode se transformar em agente de medo e
pavor, quando encarnado pela intenção humana de causar dor.
Em 2014, a França foi palco de uma onda de pânico provocada por
indivíduos disfarçados de palhaços, armados com facas, bastões e até pistolas.
O fenômeno, que se espalhou rapidamente pelas redes sociais, gerou terror em
diversas cidades, especialmente no norte do país.
Na cidade de Douai, localizada no norte da França, na região de
Hauts-de-France, no departamento de Nord, um jovem de 19 anos, cuja identidade
não foi amplamente divulgada, foi condenado a seis meses de prisão com
suspensão condicional por ameaçar transeuntes enquanto vestia um traje de
palhaço e brandia um bastão que imitava uma faca. A sentença incluiu também 105
horas de serviço comunitário e uma proibição de portar armas por cinco anos. O
incidente ocorreu após o jovem perseguir um grupo de adolescentes, que buscaram
refúgio em uma barraca de batatas fritas. Este caso foi um dos primeiros a ser
registrado na região do Pas-de-Calais, desencadeando uma série de denúncias e
uma crescente sensação de insegurança entre a população.
Ainda na França, mais ao sul, na pequena cidade de Vendargues, próxima
a Montpellier, a situação tomou proporções alarmantes. Após uma série de
ataques envolvendo pessoas disfarçadas de palhaços armados com facas e bastões,
o prefeito Pierre Dudieuzère decretou uma proibição total do uso de fantasias
de palhaço para indivíduos com 13 anos ou mais, especialmente durante o período
de Halloween.
O decreto traçava limites claros na dança do medo: a proibição
vigoraria de 30 de outubro de 2014 até o crepúsculo de 30 de novembro de 2014,
embora sua sombra pudesse se estender caso o terror insistisse em permanecer.
Seu propósito era tão sombrio quanto necessário: impedir que almas
mal-intencionadas, ocultas sob risos pintados e sorrisos falsos, percorressem
as ruas, semeando pânico e transformando a festividade em palco de crimes e
assombros. A medida visava proteger os cidadãos e evitar distúrbios públicos,
refletindo a gravidade da situação que afetava diversas localidades francesas.
As autoridades francesas emitiram alertas sobre o "fenômeno dos
palhaços maléficos", destacando que, apesar de alguns incidentes reais,
muitos relatos eram baseados em boatos amplificados pelas redes sociais. No
entanto, a disseminação de vídeos e desafios online contribuiu para o aumento
da histeria coletiva. Em resposta, as forças de segurança intensificaram
patrulhas e campanhas educativas para combater a propagação do medo infundado,
enquanto vigilantes autodenominados "caçadores de palhaços" também
surgiram, complicando ainda mais a situação.
O Brasil, terra de cores e ritmos, não permaneceu à margem dessa onda
de palhaços sombrios. Em 2016, uma onda de palhaços macabros deslizou pelas
ruas, assustando transeuntes e perturbando a serenidade das cidades. Eram
figuras disformes, máscaras pintadas com tinta de pesadelo, passos que ecoavam
nos becos, rindo sem alegria. Esse fenômeno, que muitos chamaram de “Palhaços
Assustadores”, espalhou o pânico pelas comunidades, provocando prisões,
condenações e um profundo debate sobre segurança e fragilidade psicológica
diante do terror inesperado.
Entre esses contornos sombrios, surgiu Régis de Azevedo – o “Palhaço
Sinistro”. Em novembro de 2016, o homem de 33 anos foi detido no Terminal
Rodoviário Procópio Ferreira, no Rio de Janeiro, acusado de assassinar sua
própria avó. Vestia-se de palhaço no momento da prisão, e o motivo dessa
escolha grotesca permaneceu envolto em mistério, deixando à população uma
imagem que mesclava violência e absurdo, horror e teatralidade.
Em Rio Verde, Goiás, outra aparição perturbadora ocorreu em outubro do
mesmo ano. Uma fotografia de um homem fantasiado de palhaço, segurando uma
faca, percorreu os grupos de WhatsApp e espalhou medo como uma brisa gelada. A
Polícia Civil iniciou investigações para capturar a sombra que rondava a
cidade. Nenhuma morte aconteceu, mas a imagem do palhaço, tão infantil e ao
mesmo tempo tão sinistra, já havia cumprido seu papel de instilar terror.
E em Belo Horizonte, outro retrato da ansiedade urbana: em outubro de
2016, um vídeo registrou um homem vestido de palhaço correndo atrás de um
carro, espalhando uma tensão que se propagava pelas redes sociais. Sem
violência física, sem vítimas, mas com o suficiente para que a polícia
reforçasse a segurança, e que os corações se enchessem de apreensão, lembrando
que o medo pode ser tão real quanto qualquer ameaça tangível.
E nas encruzilhadas da memória coletiva de Fortaleza - CE, onde lendas
urbanas se entrelaçam com o medo silencioso das noites, surgem relatos que
desafiam a razão e se vestem de sombra. Entre conversas em fóruns, comentários
em redes sociais e cochichos entre vizinhos, alguns usuários lembram de
histórias que circulavam como espectros.
No Ceará, os relatos geralmente tratavam de lembranças da Van dos
Palhaços… naquela época, diziam que uma van preta, retangular, percorria
silenciosa as ruas da cidade, transportando dentro de si figuras mascaradas,
pintadas de cores vivas e grotescas. Palhaços. Não para entreter, mas para
semear o medo. Contavam que observavam as crianças pelas janelas, que alguns desapareceram
por minutos que pareciam eternidades… e então a van sumia, deixando apenas
rumores e o eco de risadas deformadas nas vielas.
O relato, por mais incerto que seja, ecoa a mesma essência do terror
que atravessava o Brasil naquele ano: a figura do palhaço como algo invertido,
grotesco, portador de uma ameaça que se aproxima sorrateira, mas que ninguém
podia tocar. Nessas histórias, a cidade se transforma em palco de uma
inquietação coletiva, onde o real e o imaginário se confundem, e o medo adquire
corpo nas sombras da rua e no silêncio das casas.
O Brasil, assim, conheceu seus palhaços do mal, criaturas do riso
retorcido e da noite urbana, símbolos de um terror que se esconde sob máscaras
de cores vivas, lembrando que até na alegria mais aparente pode residir a
sombra da inquietação.
Por conta disso, as festas infantis se tornaram mais contidas, os
balões murcharam antes da hora, e as fotografias com palhaços desapareceram dos
álbuns de família, como se a própria memória tivesse medo de recordar. O que
antes simbolizava a inocência e a alegria passou a carregar um presságio — um
lembrete de que até o riso pode ter dentes afiados.
E é curioso — porque, ao contrário do medo gratuito, a coulrofobia não
nasce do nada. Ela floresce no terreno onde a confiança foi traída.
A maquiagem que antes prometia diversão agora revela falsidade.
O rosto pintado, outrora um convite à alegria, tornou-se um selo de
desconfiança.
Talvez o mundo tenha se cansado de rir do que é triste.
Talvez tenhamos, como Pennywise, nos alimentado tanto do medo que
agora ele nos pertence.
Hoje, quando penso no circo da minha infância, percebo que ele já
continha o germe dessa metamorfose.
O palhaço que fazia a plateia rir também era o homem que chorava nos
bastidores.
Aquela lágrima pintada sob o olho era uma profecia — o presságio de
que, um dia, o riso se voltaria contra nós.
E assim aconteceu.
O riso, o mais humano dos dons, tornou-se uma máscara.
O palhaço, o símbolo da leveza, tornou-se o arauto do terror.
E, de algum modo, Pennywise é apenas a forma final de um medo que já
existia dentro de nós — o medo do que o riso esconde.
Agora, à medida que nos aproximamos dessa noite crucial — o chamado
Dia das Bruxas, quando os portões entre os mundos se entreabrem e o vento
parece carregar murmúrios de eras esquecidas — uma pergunta se insinua em minha
mente: e se Pennywise não for apenas uma história?
E se ele for o nome que damos ao lado obscuro da alegria, àquela
presença silenciosa que se esconde por trás do riso, esperando o instante em
que o brilho dos olhos vacila?
Talvez ele seja apenas o reflexo daquilo que todos carregamos — a
máscara que disfarça o colapso, o sorriso que se estende enquanto, por dentro,
o coração desaba em silêncio.
Talvez seja isso que o torna eterno.
Não é o monstro que mora nos esgotos de Derry, mas o que habita dentro
de cada riso humano — aquele que sabe que o prazer é breve e que, sob o rosto
pintado, o choro ainda pulsa, inapagável.
Porque o palhaço, no fundo, é o mais humano dos monstros.
E o que o torna tão perigoso não é o sangue que ele derrama — é o
espelho que ele nos devolve.
Vocês se lembram, certamente, daquele palhaço de pernas longas e
sorriso congelado que habitava os comerciais de televisão, Ronald McDonald.
Ah, sim — o palhaço das batatas fritas e dos brindes coloridos.
O amigo de infância de milhões de crianças que cresceram acreditando
que felicidade era algo que vinha dentro de uma caixinha vermelha.
Ronald nasceu nos anos 1960, filho direto do capitalismo e da
inocência publicitária, uma versão bem-comportada do palhaço Bozo, moldada para
seduzir o público infantil. Era o rosto da promessa: um mundo onde a alegria
podia ser comprada, mastigada e esquecida em segundos.
Nos anos 1980 e 1990 — a minha época, a era dos circos e das matinês —
ele reinava absoluto, ladeado por amigos imaginários em um reino colorido
chamado McDonaldland.
As telas piscavam, e ele dizia: “Venham. Comam. Sorriam.”
E nós fomos.
Fomos em legiões.
Acreditamos no riso estampado de vermelho.
Mas, como todo mito, Ronald também começou a desbotar.
No início dos anos 2000, com a campanha I’m Lovin’ It, a McDonald’s
mudou o foco — o público infantil já não era o alvo principal. O mundo começava
a suspeitar do que se escondia por trás da fantasia.
Passaram a debochar da campanha...
Falava-se de obesidade infantil, de publicidade enganosa, de culpa.
E, mais sutilmente, começou a nascer uma desconfiança mais antiga,
mais sombria: a do palhaço em si.
O símbolo de alegria passou a incomodar.
O sorriso congelado, antes tão familiar, começou a parecer… forçado.
Foi o corpo do mundo que primeiro o rejeitou — cansado daquela alegria
disfarçada, do riso pintado sobre um rosto de gordura e culpa. Ronald não foi
banido por decreto, mas sufocado pela própria consciência coletiva que um dia o
adorou.
As mães, antes cúmplices do brilho dourado do lanche feliz, começaram
a escutar outra melodia — a voz grave da consciência e dos órgãos de saúde,
murmurando sobre o perigo do açúcar, da gordura e de promessas baratas.
A ternura deu lugar à cautela; o encanto, à culpa. Os filhos, agora
crescidos, viram com olhos lúcidos o que antes era festa: o palhaço que lhes
sorria também lhes vendia esquecimento, embrulhado em papel engordurado e
cheiro de infância vencida.
E quando o medo moderno tomou forma — hordas de palhaços noturnos
rondando os subúrbios, o riso degenerado em susto —, o mundo já não podia
suportar o reflexo do seu próprio excesso. Assim, o mascote tornou-se
interdito: símbolo de um prazer que adoeceu e de uma inocência que se
corrompeu. O silêncio que se seguiu não foi esquecimento, mas penitência — um
modo discreto de esconder o rosto manchado de ketchup e arrependimento.
E o que é o riso quando percebemos que ele não vem da alma, mas de um
contrato publicitário?
Ronald foi afastado. Primeiro, discretamente. Depois, por completo.
Em 2024, a McDonald’s decretou uma espécie de férias compulsórias ao
seu eterno porta-voz — uma retirada estratégica, disfarçada de prudência.
Motivo? Um novo surto de pessoas vestidas de palhaços aterrorizando
cidades — Carolina do Sul, Califórnia, Geórgia, Wisconsin. Relatos de figuras
mascaradas atraindo crianças, perseguindo estranhos, portando facas.
As manchetes se multiplicaram, e o medo saiu das telas para as ruas.
Em alguns lugares, como na Austrália, houve até ataques reais.
O que antes era ícone de marketing se tornara um presságio de perigo.
Ronald, o palhaço global da felicidade
artificial, foi silenciado. E o mundo, sem perceber, enterrou o último
resquício do riso inocente.
Mas os monstros não desaparecem quando os escondemos.
Eles apenas mudam de nome.
A cultura se transformou num espelho estilhaçado, refletindo a
podridão sob o verniz do entretenimento. E, nas sombras dessa transformação,
outros palhaços emergiram — não mais nos picadeiros, mas nas páginas policiais.
O medo se tornara viral, replicável, contagioso.
Não era mais apenas Pennywise.
Não era apenas Ronald.
O palhaço havia deixado de ser personagem e se tornado entidade.
E talvez seja isso que mais me assusta.
Porque, ao observar essa linha do tempo — do circo da infância aos
crimes modernos, do marketing ao assassinato —, percebo que o palhaço é uma
metáfora perfeita daquilo que o ser humano se tornou: um ser que precisa pintar
o rosto para suportar o que é.
Talvez a coulrofobia, esse medo crescente, não seja medo do outro, mas
do reflexo.
Tememos o palhaço porque ele representa tudo o que escondemos: o
desejo de rir enquanto o mundo arde, a compulsão de disfarçar a dor com cores
berrantes, a necessidade de fingir felicidade para sobreviver.
O palhaço é o riso doente da sociedade moderna — um riso que não
redime, mas devora.
E quando penso nisso, lembro-me novamente do meu avô, comprando
ingressos para o circo como quem compra perdão. Lembro-me da criança que eu
era, olhando para a lágrima pintada sob o olho de um homem cansado. Lembro-me
de Ronald, de Pennywise, de Gacy — e entendo, enfim, que todos são faces da
mesma máscara.
A humanidade inteira se pinta de palhaço todos os dias:
— o executivo com seu terno brilhante;
— o influenciador com seu sorriso digital;
— o político com seu discurso ensaiado;
— e eu, escrevendo estas palavras para tentar rir do que me apavora.
No fundo, todos nós habitamos o mesmo picadeiro — um circo planetário,
iluminado por telas e ilusões. E, no centro dele, dançando entre aplausos e
gritos, o palhaço primordial sorri, paciente, esperando o momento de revelar o
rosto verdadeiro do riso.
Porque quando o último balão estourar, quando o último aplauso cessar,
e a maquiagem derreter sob o calor dos refletores, restará apenas isso: o
silêncio.E um riso distante, vindo de dentro do escuro. Um riso que não é de
alegria. Um riso que devora.
E é claro — como tudo que o homem transforma em ritual — a cozinha
também não poderia escapar desse redemoinho simbólico.
Afinal, o alimento é a forma mais antiga de comunhão e de poder; é
onde o prazer e o horror dividem o mesmo prato.
Recentemente, encontrei duas publicações curiosas, quase clandestinas,
que unem a figura de Pennywise à arte da cozinha: Pennywise Cookbook: The Home
Cook 20 Recipes To Know – Easy To Learn The Basics e Pennywise Cookbook: 20
Recipes Recreated From Your Favorite Pennywise, ambos assinados por Sawachika
Joben, publicados em 2021.
Entre os desvarios da cultura contemporânea, essas obras me chamaram a
atenção — não apenas pelo inusitado, mas pelo que revelam sobre o tempo em que
vivemos. À primeira vista, parecem volumes triviais de culinária pop,
destinados a curiosos que buscam temperar o medo com humor. Mas há neles algo
de mais profundo, quase ritualístico: o ato de transformar o terror em receita,
o monstro em refeição.
Joben parece compreender que o medo, como a fome, é uma força
primitiva — e, ao colocar Pennywise na cozinha, ela converte o horror em
digestão simbólica. Cozinhar o inimigo é, afinal, a forma mais antiga de tentar
dominá-lo.
Cada prato inspirado no palhaço — seja uma sopa de cor carmesim ou um
bolo com camadas que lembram o riso — torna-se um gesto de exorcismo estético:
comer o medo para não ser devorado por ele. Assim, as páginas desses livros são
menos receitas e mais espelhos, refletindo o apetite humano por tudo aquilo que
nos assombra.
Livros que, à primeira vista, parecem apenas um delírio de marketing
ou fetiche literário, mas que, ao mesmo tempo, escancaram o absurdo da nossa
era: transformam até o medo em produto de consumo.
Pennywise, o devorador de crianças, reencarnado como um chef de
cozinha. Um monstro que convida à mesa.
Eu não cheguei a ler as receitas — talvez por medo do que encontraria
nelas. Mas a simples ideia me fez lembrar de um gesto ancestral, tão comum no
universo dos palhaços quanto a lágrima pintada no rosto: a torta na cara.
Sim, aquele ato aparentemente inofensivo — a pancada branca, o creme
estourando no rosto, o riso coletivo que explode como catarse.
Mas o que há por trás desse gesto? O que realmente celebramos quando
rimos de alguém coberto de creme e humilhação?
A origem é antiga.
Os palhaços nascem da mesma linhagem dos bobos da corte, das máscaras
da commedia dell’arte, dos artistas que ousavam zombar dos poderosos sob o
disfarce do riso. Eram os únicos que podiam dizer a verdade — mas sempre com um
sorriso nos lábios.
A torta na cara é a herdeira moderna dessa tradição: o golpe que não
fere, mas expõe; a humilhação que diverte porque nos permite, por um instante,
rir do que somos — frágeis, vaidosos, ridículos.
A comédia slapstick, nascida do batacchio italiano, fez da comida uma
arma simbólica. Cada pancada era uma música; cada tombo, um acorde; cada torta,
uma confissão.
Quando Chaplin, Keaton ou Laurel & Hardy levavam tortas na cara,
não era apenas humor físico — era purificação.
O riso lavava o constrangimento, transformava a dor em espetáculo.
E assim, nas arenas e nos circos, a torta se tornou o sacramento do
riso.
Nos filmes mudos, nas matinês, nas festas infantis e nos programas de auditório,
ela era o símbolo máximo da leveza — um instante em que a dignidade humana, tão
inflada e frágil, podia ser estilhaçada em risadas.
Mas o tempo, esse alquimista cruel, corrompe tudo o que toca.
E o mesmo gesto que um dia foi sinônimo de alegria, hoje carrega outro
sabor.
A torta que antes fazia rir agora lembra sangue; o creme branco
tornou-se o contraste do vermelho.
E então pensei:
— E se o riso fosse, desde o início, apenas um disfarce do sacrifício?
Porque, veja: até a torta tem seu simbolismo ritual.
Branca como a maquiagem do palhaço, redonda como o picadeiro, e feita
de açúcar e humilhação. Ela é o espelho comestível do rosto do palhaço — doce
por fora, trágico por dentro.
E assim, para fechar este círculo de memórias e medos, deixo uma
receita.
Não de alegria, nem de perdão, mas de revelação.
Uma torta simples, mas de cor indecente — um vermelho que lembra carne
viva. Façam-na com framboesas, ou qualquer fruta vermelha, o importante é que
sangre ao ser cortada. Ela pode ser muitas, se antes da geleia, você espalhar uma
camada de creme de confeiteiro — suave, amarelo, quase luxurioso. Ou, se
preferir, um creme de amêndoas, denso e perfumado. Cubra tudo com chantili —
ou, para os mais ousados, um merengue tostado ao maçarico, para que o branco
lembre a maquiagem dos palhaços de outrora.
E quando a faca penetrar a superfície branca e o vermelho jorrar,
lembre-se: o riso e o medo sempre tiveram o mesmo sabor.
Hoje entendo que a cozinha é apenas o novo picadeiro do mundo.
O prato é o palco.
O cozinheiro, o mágico.
E o comensal, o público — faminto, crédulo, pronto a aplaudir enquanto
mastiga a própria culpa.
Talvez, no fim, sejamos todos Pennywise com avental — alimentando e
sendo alimentados por nossos próprios terrores. Porque o medo, assim como o
prazer, sempre pede repetição.
E, quando o banquete termina e as luzes se apagam, o último a rir é
sempre o mesmo: o palhaço.
Aquele que nunca tira a maquiagem, aquele que conhece o gosto do riso
e do sangue, aquele que, mesmo coberto de torta, continua sorrindo.
E se você escutar bem — no fundo da noite, no eco metálico da
geladeira, no ruído do garfo contra o prato — talvez ouça um sussurro rouco,
doce e terrível: “Você quer uma fatia?”
E então o ciclo se fecha.
O circo está armado.
O forno ainda quente.
E o riso, mais uma vez, começa a ferver.
Uma Torta
Vermelha para o Riso e o Abismo
Massa Pâte Sablée
250 g de
farinha de trigo
100 g de
açúcar de confeiteiro
125 g de
manteiga sem sal, fria e cortada em cubos
1 ovo inteiro
1 pitada de
sal
1 colher de
chá de essência de baunilha (opcional)
Recheio
300 g de
framboesas frescas ou congeladas (ou use a fruta vermelha de sua preferência)
100 g de
açúcar
Suco de meio
limão
1 colher de
sopa de amido de milho (opcional, para engrossar)
Finalização
Açúcar de
confeiteiro para polvilhar (opcional)
Chantilly ou
merengue maçaricado, para os que apreciam o drama da chama sobre o branco
Preparo:
A massa – o silêncio antes do espetáculo.
Peneire a farinha, o açúcar e o sal como quem filtra memórias. Junte a manteiga
fria, e com a ponta dos dedos — e apenas eles — desfaça os cubos até que se
tornem areia doce. No centro dessa praia, quebre um ovo e deixe que a baunilha,
se desejar, perfume o ar. Misture com delicadeza: a pâte sablée não aceita
pressa nem força. Forme uma esfera de calma e envolva-a em filme plástico,
deixando-a repousar na geladeira por uma hora — o tempo exato para o desejo
amadurecer.
O forno – a prova do fogo. Aqueça o forno a 180 °C. Abra a massa sobre uma superfície enfarinhada, fina como o papel de uma carta que nunca foi enviada. Forre a forma, fure o fundo com um garfo e cubra-a com papel manteiga e feijões — guardiões do espaço e do ar. Asse por 15 minutos; retire o peso da consciência e deixe dourar por mais 10, até que um perfume de manteiga e infância tome a cozinha. Deixe esfriar: toda doçura precisa de pausa.
O recheio – o coração que pulsa. Em uma panela, junte as framboesas, o açúcar, o suco de limão e, se desejar, o amido. Deixe que o calor revele o rubor oculto das frutas — um vermelho espesso, quase carnal, lembrando o sangue do riso e o batom dos palhaços tristes. Mexa devagar, até que o líquido se torne memória viscosa. Espere esfriar antes de despejar sobre a massa: o ardor do medo também precisa de descanso.
A montagem – o clímax. Preencha a casca dourada com o recheio, espalhando-o como quem cobre uma ferida com carinho. Decore com framboesas frescas — pequenas joias do abismo. Polvilhe açúcar, se quiser fingir inocência. Sirva com chantilly, ou, se a noite pedir um toque de perigo, cubra com merengue maçaricado, dourado como o sorriso falso de um palhaço sob o holofote.
DICAS: E para os que buscam mais camadas — como toda boa história —, entre o creme e a geleia pode se esconder um véu de creme de confeiteiro ou de amêndoas, um segredo doce entre duas verdades.
Esta torta é,
enfim, um espetáculo em si mesma — o último número do picadeiro.
E quando o silêncio descer sobre a mesa, e só restar o perfume de manteiga e framboesas, o leitor, como o espectador de um circo antigo, talvez entenda: até o horror pode ser belo quando o olhamos com fome.
Reubens
Barão de
Gourmandise










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