sexta-feira, 24 de outubro de 2025

ENTRE PALHAÇOS E O RISO QUE DEVORA


“O sorriso do palhaço era uma fenda esculpida, larga e cruel, e os olhos que o olhavam eram brilhantes demais, demasiadamente cruéis e inteligentes.”
Stephen King, It – a coisa.

Nasci nos primeiros anos da década de 1980 — uma era em que o mundo parecia girar mais devagar, mas queimava com uma intensidade que hoje seria insuportável. Fui criança entre os ecos elétricos dos anos 1980 e 1990,  décadas das onde as cores neon (Verde-limão, laranja fluorescente, azul elétrico, amarelo intenso) apareciam em roupas e brinquedos, as ruas cheiravam a asfalto quente e algodão-doce, as crianças ainda acreditava em mágica, e o impossível rondava os becos como um truque de prestidigitação prestes a falhar. Era o tempo em que tudo podia acontecer — e, com frequência, acontecia.

Cresci quando os circos ainda fincavam suas estacas de ferro em terrenos baldios e erguiam suas lonas imensas, como se tentassem capturar o próprio céu dentro delas. Neles, o impossível ganhava corpo: motoqueiros dançavam com a morte dentro de esferas metálicas, malabaristas desafiavam o cansaço dos deuses, e mágicos de terno gasto faziam desaparecer lenços e ilusões com a mesma falta de graça que a vida cotidiana.

Havia também atiradores de facas, sempre acompanhados de mulheres que mal cabiam em seus corpetes e homens bigodudos que exibiam sorrisos sem alma. E, entre risos forçados e aplausos automáticos, palhaços deslizavam pelo picadeiro com suas bocas grotescamente pintadas, risos que pareciam gritos disfarçados e uma lágrima desenhada debaixo do olho — uma lágrima que, por muitos anos, me perseguiu.

Meu avô materno, homem de gestos lentos e olhos do azul mais profundo e que ficaram marejados pelo tempo, jamais deixaria um circo passar pela cidade sem nos levar. Era um ritual: ele comprava os ingressos com a solenidade de quem compra bilhetes para o melhor show da vida. Íamos todos — crianças, adultos e fantasmas — empurrados por um encantamento que eu, mesmo criança, já suspeitava ser uma forma delicada de tristeza.

Lá dentro, o cheiro era sempre o mesmo: serragem, suor, algodão doce e  pipoca queimada. E, por mais que ríssemos, algo me apertava o peito quando via os animais — leões magros, elefantes de olhos tristes, macacos inquietos, cães que pulavam por argolas em troca de aplausos. Aquilo me incomodava profundamente, embora eu ainda não soubesse o nome do que sentia. Era um mal-estar sem rosto. Mais tarde, quando as leis finalmente calaram o estalo dos chicotes, senti que o mundo havia aprendido, por um breve instante, a respirar com mais humanidade.

Mas não é sobre o circo que desejo falar.

O circo é apenas o palco de uma lembrança, o pano de fundo de um medo ancestral.

O que me traz aqui são os palhaços.

Desde criança, eu os observava com a obstinação dos que buscam um segredo. Havia algo de errado neles — algo que desafiava a alegria que fingiam carregar. As bocas eram largas demais, vermelhas demais, e o branco no rosto parecia o véu de um cadáver que se esforça para sorrir. E sempre, sempre havia aquela lágrima solitária pintada sob o olho esquerdo.

Perguntei a todos o porquê.

A ninguém importava.

As respostas variavam entre risadas rápidas e silêncios constrangidos, como se o mistério fosse antigo demais para ser desenterrado por uma criança.

O tempo, porém, é um mestre cruel. Ele ensina o que ninguém ousa dizer.

Foi com ele que aprendi a ler o verdadeiro idioma dos palhaços: a lágrima pintada não é símbolo de tristeza passageira, mas o vestígio de um pacto silencioso. É o sinal de quem faz rir para não ser devorado pela própria dor.

A lágrima do palhaço é o espelho onde o riso se ajoelha.

Curiosamente, eles nunca me causaram medo.

Enquanto outros — adultos e crianças — gritavam e se escondiam, eu apenas observava. Via o suor escorrendo por baixo da pintura, rachando a máscara, revelando por instantes o humano que existia ali, preso, pedindo ar. Talvez fosse esse o verdadeiro terror: a constatação de que, sob o disfarce colorido, existia uma tristeza que também era minha.

Nas festas infantis que frequentei, presenciei verdadeiros desastres emocionais. Crianças que corriam apavoradas, meninos e meninas que choravam sem entender por quê. O palhaço se aproximava, oferecendo balões e sorrisos exagerados, e o riso se transformava em pavor. Talvez fosse a maquiagem que derretia com o calor, talvez o olhar que, apesar da tinta, parecia humano demais. Ou talvez — e é o que eu realmente acredito — havia ali algo mais profundo: o pressentimento de que o riso é apenas o outro nome do medo.

Hoje, adulto, compreendo.

Os palhaços não nasceram para entreter — nasceram para nos lembrar da fragilidade do riso. São guardiões de uma melancolia antiga, herdeiros de uma dor que precisa de aplauso para não apodrecer.

E, às vezes, penso que todos nós, um dia, nos tornamos palhaços de nós mesmos — pintamos o rosto para esconder a lágrima, contamos piadas para disfarçar o desespero, fazemos malabarismos com os dias para não olhar o abismo que nos habita.

Porque, no fundo, a lágrima sob o olho não é deles.

É nossa.

E o circo — esse imenso teatro de ilusões e gritos abafados — nunca foi desmontado. Ele apenas mudou de endereço.

Hoje, ergue-se dentro de cada um de nós.

E, todas as noites, quando o silêncio cai como uma lona escura sobre o mundo, os palhaços voltam ao picadeiro.

E rimos — desesperadamente — para não chorar.

Hoje, a apenas oito dias para as celebrações que atravessam o véu — quando o mundo se inclina para o invisível, quando lembramos das bruxas, dos mortos e de seres arteiros que dançam nas fronteiras da razão — o ar parece mais denso, carregado de significados antigos. Chamam-no Halloween, ou Dia das bruxas, mas o nome pouco importa. O que realmente pesa é a sensação de que, por algumas horas, o impossível respira junto conosco, e o medo se veste de festa. É o tempo em que sombras se tornam curiosas, em que risadas podem esconder sussurros e o inesperado espreita atrás de cada máscara.

Talvez seja por isso, nesta noite em que o riso e o terror caminham de mãos dadas, que eu me vejo compelido a escrever sobre o lado obscuro dos palhaços — essas criaturas que deveriam ser símbolos de alegria, mas que, na penumbra de suas máscaras e cores, carregam algo mais antigo e inquietante: o riso que arrepia, a comédia que assusta, a inocência que se dobra em terror.

Não falo apenas daqueles que conheci sob a lona do circo da infância — suados, cansados, tristes. Falo dos outros, dos que emergiram das sombras da ficção e da mente humana.

Falo de Pennywise, o Palhaço Dançante, surgido da mente brilhante de Stephen King, o mestre do terror, em seu romance “It”, publicado em 1986 – e que no Brasil, virou  “A Coisa”. King, com seu talento único para transformar medos cotidianos em monstros inesquecíveis, concebeu Pennywise não apenas como um palhaço, mas como a manifestação de um terror primordial que se alimenta das inseguranças e traumas da infância.

Por trás da máscara colorida e do riso sedutor, ele é, na verdade, uma entidade maligna ancestral, muito mais antiga que qualquer memória humana, capaz de manipular, enganar e aterrorizar para conseguir o que deseja. A genialidade do autor está na ambiguidade da criatura: ao mesmo tempo lúdica e ameaçadora, sedutora e cruel, um ser que habita os cantos escuros da imaginação e que transforma a infância em palco de seu poder.

Em 1986, e eu devia ter quatro anos quando o filme It – A Coisa começou a rondar as conversas dos adultos. Na Tv as divulgações vinham com aquele balão vermelho flutuando como uma promessa e uma ameaça, e algo dentro de mim se agitava. Aquele palhaço era estranho. Eu era jovem demais para compreender o porquê de um ser que vivia nos esgotos e caçava crianças. Mas o instinto — essa velha bússola do medo — já sabia o que minha mente não podia ainda nomear.

Anos depois, revendo o filme, comecei a compreender o que, de alguma forma, sempre intuí: Pennywise não era apenas um monstro. Era um espelho.

Aprendi que ele não era humano, mas uma entidade interdimensional, um ser vindo de um universo paralelo — o Macrocosmo — que havia se infiltrado em nosso mundo há milhões de anos. Um predador antigo, paciente, que hibernava por vinte e sete anos antes de despertar novamente, faminto. Seu alimento era o medo, e as crianças eram sua presa predileta — não pela carne, mas pela pureza da emoção, pela intensidade do pavor que ainda não sabe se defender.

Pennywise não matava: degustava a alma de suas vítimas aos poucos. Ele se infiltrava nos sonhos, distorcia a realidade, fazia da mente um picadeiro de horrores. Se uma criança temia aranhas, ele se tornava uma aranha gigante. Se tremia diante da morte, ele vestia o rosto da perda. Sua crueldade estava em revelar o que o medo mais esconde — nós mesmos.

E sua forma de palhaço?

A mais perversa das armadilhas.

Porque quem resiste a um sorriso? Quem desconfia de uma figura feita para divertir?

Pennywise é o riso que precede o grito. Ele é o eco do circo que nunca termina, o reflexo distorcido de tudo o que um dia nos fez felizes. O impacto dessa criatura — nas telas e na imaginação — foi devastador.

Ele se infiltrou no inconsciente coletivo, plantando ali a semente da coulrofobia, o medo dos palhaços. E, de repente, algo que pertencia à inocência infantil passou a habitar os domínios do pesadelo.

E, de certo modo, eu compreendo.

Porque a figura do palhaço sempre foi ambígua: um rosto pintado para disfarçar o humano, um sorriso grande demais para ser verdadeiro. A maquiagem exagerada confunde o cérebro — não sabemos se ele ri, se chora, ou se planeja algo terrível. O corpo se move em gestos bruscos, desengonçados, rápidos demais — quase não humanos. É como observar uma marionete viva, algo que finge ser gente, mas não é.

É o chamado “vale da estranheza” — quando algo é quase humano, mas falha por um detalhe, e o erro nos fere como um espinho invisível.

E então, o que era apenas ficção atravessou a tela e contaminou o real. Primeiro vieram os livros e filmes, com suas histórias improváveis e monstros inventados — mas logo o pesadelo ganhou corpo, e o que antes se via no cinema passou a caminhar entre nós.

Palhaços começaram a surgir nas ruas do mundo, imóveis sob a luz pálida dos postes, observando crianças e adultos à distância, como se esperassem um sinal invisível para agir. O riso perdeu o sabor, tornando-se algo suspeito, quase indecente.

Nos Estados Unidos, o terror assumiu a forma de risadas distorcidas em dois episódios que marcaram a memória coletiva.

John Wayne Gacy - O palhaço assassino.

John Wayne Gacy – O Palhaço Assassino: Entre 1972 e 1978, Chicago tornou-se palco de uma das histórias mais macabras da criminalidade americana. John Wayne Gacy, cidadão aparentemente comum, escondia sob seu sorriso simpático a face de um predador implacável. Ele se disfarçava de palhaço para animar festas infantis e, durante anos, sequestrou, torturou e assassinou pelo menos 33 jovens, muitos deles garotos que desapareciam sem deixar rastros. Para a sociedade, Gacy era um vizinho, um empresário, alguém confiável; para os inocentes, ele era "Pogo o Palhaço", personagem que animava eventos comunitários e festas infantis. Essa duplicidade — a transformação de um palhaço de alegria em instrumento de horror — ficou marcada na história. Sua prisão, em 1978, chocou o país; condenado à morte, foi executado em 1994, deixando atrás de si um rastro de perguntas sobre a natureza do mal e o véu fino que separa riso e terror.

Sheila Keen-Warren e o Assassinato da Florista

Mais tarde, apareceu Sheila Keen-Warren e o Assassinato da Florista: Em 1990, na ensolarada Flórida, Marlene Warren foi morta dentro de sua própria casa por uma figura vestida de palhaço, que chegou oferecendo flores e balões antes de disparar contra a vítima. A autora do crime, Sheila Keen-Warren, funcionária do marido da vítima, manteve o mundo ao redor em suspense por anos. Apenas com avanços recentes em testes de DNA foi possível identificar sua culpabilidade. Condenada em 2023, Sheila cumpriu parte da pena e foi libertada em 2024. Este caso evidencia como o símbolo do palhaço, tradicionalmente associado à inocência e à alegria, pode se transformar em agente de medo e pavor, quando encarnado pela intenção humana de causar dor.

Em 2014, a França foi palco de uma onda de pânico provocada por indivíduos disfarçados de palhaços, armados com facas, bastões e até pistolas. O fenômeno, que se espalhou rapidamente pelas redes sociais, gerou terror em diversas cidades, especialmente no norte do país.

Na cidade de Douai, localizada no norte da França, na região de Hauts-de-France, no departamento de Nord, um jovem de 19 anos, cuja identidade não foi amplamente divulgada, foi condenado a seis meses de prisão com suspensão condicional por ameaçar transeuntes enquanto vestia um traje de palhaço e brandia um bastão que imitava uma faca. A sentença incluiu também 105 horas de serviço comunitário e uma proibição de portar armas por cinco anos. O incidente ocorreu após o jovem perseguir um grupo de adolescentes, que buscaram refúgio em uma barraca de batatas fritas. Este caso foi um dos primeiros a ser registrado na região do Pas-de-Calais, desencadeando uma série de denúncias e uma crescente sensação de insegurança entre a população.

Ainda na França, mais ao sul, na pequena cidade de Vendargues, próxima a Montpellier, a situação tomou proporções alarmantes. Após uma série de ataques envolvendo pessoas disfarçadas de palhaços armados com facas e bastões, o prefeito Pierre Dudieuzère decretou uma proibição total do uso de fantasias de palhaço para indivíduos com 13 anos ou mais, especialmente durante o período de Halloween.

O decreto traçava limites claros na dança do medo: a proibição vigoraria de 30 de outubro de 2014 até o crepúsculo de 30 de novembro de 2014, embora sua sombra pudesse se estender caso o terror insistisse em permanecer. Seu propósito era tão sombrio quanto necessário: impedir que almas mal-intencionadas, ocultas sob risos pintados e sorrisos falsos, percorressem as ruas, semeando pânico e transformando a festividade em palco de crimes e assombros. A medida visava proteger os cidadãos e evitar distúrbios públicos, refletindo a gravidade da situação que afetava diversas localidades francesas.

As autoridades francesas emitiram alertas sobre o "fenômeno dos palhaços maléficos", destacando que, apesar de alguns incidentes reais, muitos relatos eram baseados em boatos amplificados pelas redes sociais. No entanto, a disseminação de vídeos e desafios online contribuiu para o aumento da histeria coletiva. Em resposta, as forças de segurança intensificaram patrulhas e campanhas educativas para combater a propagação do medo infundado, enquanto vigilantes autodenominados "caçadores de palhaços" também surgiram, complicando ainda mais a situação.

O Brasil, terra de cores e ritmos, não permaneceu à margem dessa onda de palhaços sombrios. Em 2016, uma onda de palhaços macabros deslizou pelas ruas, assustando transeuntes e perturbando a serenidade das cidades. Eram figuras disformes, máscaras pintadas com tinta de pesadelo, passos que ecoavam nos becos, rindo sem alegria. Esse fenômeno, que muitos chamaram de “Palhaços Assustadores”, espalhou o pânico pelas comunidades, provocando prisões, condenações e um profundo debate sobre segurança e fragilidade psicológica diante do terror inesperado.

Entre esses contornos sombrios, surgiu Régis de Azevedo – o “Palhaço Sinistro”. Em novembro de 2016, o homem de 33 anos foi detido no Terminal Rodoviário Procópio Ferreira, no Rio de Janeiro, acusado de assassinar sua própria avó. Vestia-se de palhaço no momento da prisão, e o motivo dessa escolha grotesca permaneceu envolto em mistério, deixando à população uma imagem que mesclava violência e absurdo, horror e teatralidade.

Em Rio Verde, Goiás, outra aparição perturbadora ocorreu em outubro do mesmo ano. Uma fotografia de um homem fantasiado de palhaço, segurando uma faca, percorreu os grupos de WhatsApp e espalhou medo como uma brisa gelada. A Polícia Civil iniciou investigações para capturar a sombra que rondava a cidade. Nenhuma morte aconteceu, mas a imagem do palhaço, tão infantil e ao mesmo tempo tão sinistra, já havia cumprido seu papel de instilar terror.

E em Belo Horizonte, outro retrato da ansiedade urbana: em outubro de 2016, um vídeo registrou um homem vestido de palhaço correndo atrás de um carro, espalhando uma tensão que se propagava pelas redes sociais. Sem violência física, sem vítimas, mas com o suficiente para que a polícia reforçasse a segurança, e que os corações se enchessem de apreensão, lembrando que o medo pode ser tão real quanto qualquer ameaça tangível.

E nas encruzilhadas da memória coletiva de Fortaleza - CE, onde lendas urbanas se entrelaçam com o medo silencioso das noites, surgem relatos que desafiam a razão e se vestem de sombra. Entre conversas em fóruns, comentários em redes sociais e cochichos entre vizinhos, alguns usuários lembram de histórias que circulavam como espectros.

No Ceará, os relatos geralmente tratavam de lembranças da Van dos Palhaços… naquela época, diziam que uma van preta, retangular, percorria silenciosa as ruas da cidade, transportando dentro de si figuras mascaradas, pintadas de cores vivas e grotescas. Palhaços. Não para entreter, mas para semear o medo. Contavam que observavam as crianças pelas janelas, que alguns desapareceram por minutos que pareciam eternidades… e então a van sumia, deixando apenas rumores e o eco de risadas deformadas nas vielas.

O relato, por mais incerto que seja, ecoa a mesma essência do terror que atravessava o Brasil naquele ano: a figura do palhaço como algo invertido, grotesco, portador de uma ameaça que se aproxima sorrateira, mas que ninguém podia tocar. Nessas histórias, a cidade se transforma em palco de uma inquietação coletiva, onde o real e o imaginário se confundem, e o medo adquire corpo nas sombras da rua e no silêncio das casas.

O Brasil, assim, conheceu seus palhaços do mal, criaturas do riso retorcido e da noite urbana, símbolos de um terror que se esconde sob máscaras de cores vivas, lembrando que até na alegria mais aparente pode residir a sombra da inquietação.

Por conta disso, as festas infantis se tornaram mais contidas, os balões murcharam antes da hora, e as fotografias com palhaços desapareceram dos álbuns de família, como se a própria memória tivesse medo de recordar. O que antes simbolizava a inocência e a alegria passou a carregar um presságio — um lembrete de que até o riso pode ter dentes afiados.

E é curioso — porque, ao contrário do medo gratuito, a coulrofobia não nasce do nada. Ela floresce no terreno onde a confiança foi traída.

A maquiagem que antes prometia diversão agora revela falsidade.

O rosto pintado, outrora um convite à alegria, tornou-se um selo de desconfiança.

Talvez o mundo tenha se cansado de rir do que é triste.

Talvez tenhamos, como Pennywise, nos alimentado tanto do medo que agora ele nos pertence.

Hoje, quando penso no circo da minha infância, percebo que ele já continha o germe dessa metamorfose.

O palhaço que fazia a plateia rir também era o homem que chorava nos bastidores.

Aquela lágrima pintada sob o olho era uma profecia — o presságio de que, um dia, o riso se voltaria contra nós.

E assim aconteceu.

O riso, o mais humano dos dons, tornou-se uma máscara.

O palhaço, o símbolo da leveza, tornou-se o arauto do terror.

E, de algum modo, Pennywise é apenas a forma final de um medo que já existia dentro de nós — o medo do que o riso esconde.

Agora, à medida que nos aproximamos dessa noite crucial — o chamado Dia das Bruxas, quando os portões entre os mundos se entreabrem e o vento parece carregar murmúrios de eras esquecidas — uma pergunta se insinua em minha mente: e se Pennywise não for apenas uma história?

E se ele for o nome que damos ao lado obscuro da alegria, àquela presença silenciosa que se esconde por trás do riso, esperando o instante em que o brilho dos olhos vacila?

Talvez ele seja apenas o reflexo daquilo que todos carregamos — a máscara que disfarça o colapso, o sorriso que se estende enquanto, por dentro, o coração desaba em silêncio.

Talvez seja isso que o torna eterno.

Não é o monstro que mora nos esgotos de Derry, mas o que habita dentro de cada riso humano — aquele que sabe que o prazer é breve e que, sob o rosto pintado, o choro ainda pulsa, inapagável.

Porque o palhaço, no fundo, é o mais humano dos monstros.

E o que o torna tão perigoso não é o sangue que ele derrama — é o espelho que ele nos devolve.

Vocês se lembram, certamente, daquele palhaço de pernas longas e sorriso congelado que habitava os comerciais de televisão, Ronald McDonald.

Ah, sim — o palhaço das batatas fritas e dos brindes coloridos.

O amigo de infância de milhões de crianças que cresceram acreditando que felicidade era algo que vinha dentro de uma caixinha vermelha.

Ronald nasceu nos anos 1960, filho direto do capitalismo e da inocência publicitária, uma versão bem-comportada do palhaço Bozo, moldada para seduzir o público infantil. Era o rosto da promessa: um mundo onde a alegria podia ser comprada, mastigada e esquecida em segundos.

Nos anos 1980 e 1990 — a minha época, a era dos circos e das matinês — ele reinava absoluto, ladeado por amigos imaginários em um reino colorido chamado McDonaldland.

As telas piscavam, e ele dizia: “Venham. Comam. Sorriam.”

E nós fomos.

Fomos em legiões.

Acreditamos no riso estampado de vermelho.

Mas, como todo mito, Ronald também começou a desbotar.

No início dos anos 2000, com a campanha I’m Lovin’ It, a McDonald’s mudou o foco — o público infantil já não era o alvo principal. O mundo começava a suspeitar do que se escondia por trás da fantasia.

                        Passaram a debochar da campanha...

Falava-se de obesidade infantil, de publicidade enganosa, de culpa.

E, mais sutilmente, começou a nascer uma desconfiança mais antiga, mais sombria: a do palhaço em si.

O símbolo de alegria passou a incomodar.

O sorriso congelado, antes tão familiar, começou a parecer… forçado.

Foi o corpo do mundo que primeiro o rejeitou — cansado daquela alegria disfarçada, do riso pintado sobre um rosto de gordura e culpa. Ronald não foi banido por decreto, mas sufocado pela própria consciência coletiva que um dia o adorou.

As mães, antes cúmplices do brilho dourado do lanche feliz, começaram a escutar outra melodia — a voz grave da consciência e dos órgãos de saúde, murmurando sobre o perigo do açúcar, da gordura e de promessas baratas.

A ternura deu lugar à cautela; o encanto, à culpa. Os filhos, agora crescidos, viram com olhos lúcidos o que antes era festa: o palhaço que lhes sorria também lhes vendia esquecimento, embrulhado em papel engordurado e cheiro de infância vencida.

E quando o medo moderno tomou forma — hordas de palhaços noturnos rondando os subúrbios, o riso degenerado em susto —, o mundo já não podia suportar o reflexo do seu próprio excesso. Assim, o mascote tornou-se interdito: símbolo de um prazer que adoeceu e de uma inocência que se corrompeu. O silêncio que se seguiu não foi esquecimento, mas penitência — um modo discreto de esconder o rosto manchado de ketchup e arrependimento.

E o que é o riso quando percebemos que ele não vem da alma, mas de um contrato publicitário?

Ronald foi afastado. Primeiro, discretamente. Depois, por completo.

Em 2024, a McDonald’s decretou uma espécie de férias compulsórias ao seu eterno porta-voz — uma retirada estratégica, disfarçada de prudência.

Motivo? Um novo surto de pessoas vestidas de palhaços aterrorizando cidades — Carolina do Sul, Califórnia, Geórgia, Wisconsin. Relatos de figuras mascaradas atraindo crianças, perseguindo estranhos, portando facas.

As manchetes se multiplicaram, e o medo saiu das telas para as ruas.

Em alguns lugares, como na Austrália, houve até ataques reais.

O que antes era ícone de marketing se tornara um presságio de perigo.

 Ronald, o palhaço global da felicidade artificial, foi silenciado. E o mundo, sem perceber, enterrou o último resquício do riso inocente.

Mas os monstros não desaparecem quando os escondemos.

Eles apenas mudam de nome.

A cultura se transformou num espelho estilhaçado, refletindo a podridão sob o verniz do entretenimento. E, nas sombras dessa transformação, outros palhaços emergiram — não mais nos picadeiros, mas nas páginas policiais.

O medo se tornara viral, replicável, contagioso.

Não era mais apenas Pennywise.

Não era apenas Ronald.

O palhaço havia deixado de ser personagem e se tornado entidade.

E talvez seja isso que mais me assusta.

Porque, ao observar essa linha do tempo — do circo da infância aos crimes modernos, do marketing ao assassinato —, percebo que o palhaço é uma metáfora perfeita daquilo que o ser humano se tornou: um ser que precisa pintar o rosto para suportar o que é.

Talvez a coulrofobia, esse medo crescente, não seja medo do outro, mas do reflexo.

Tememos o palhaço porque ele representa tudo o que escondemos: o desejo de rir enquanto o mundo arde, a compulsão de disfarçar a dor com cores berrantes, a necessidade de fingir felicidade para sobreviver.

O palhaço é o riso doente da sociedade moderna — um riso que não redime, mas devora.

E quando penso nisso, lembro-me novamente do meu avô, comprando ingressos para o circo como quem compra perdão. Lembro-me da criança que eu era, olhando para a lágrima pintada sob o olho de um homem cansado. Lembro-me de Ronald, de Pennywise, de Gacy — e entendo, enfim, que todos são faces da mesma máscara.

A humanidade inteira se pinta de palhaço todos os dias:

— o executivo com seu terno brilhante;

— o influenciador com seu sorriso digital;

— o político com seu discurso ensaiado;

— e eu, escrevendo estas palavras para tentar rir do que me apavora.

No fundo, todos nós habitamos o mesmo picadeiro — um circo planetário, iluminado por telas e ilusões. E, no centro dele, dançando entre aplausos e gritos, o palhaço primordial sorri, paciente, esperando o momento de revelar o rosto verdadeiro do riso.

Porque quando o último balão estourar, quando o último aplauso cessar, e a maquiagem derreter sob o calor dos refletores, restará apenas isso: o silêncio.E um riso distante, vindo de dentro do escuro. Um riso que não é de alegria. Um riso que devora.

E é claro — como tudo que o homem transforma em ritual — a cozinha também não poderia escapar desse redemoinho simbólico.

Afinal, o alimento é a forma mais antiga de comunhão e de poder; é onde o prazer e o horror dividem o mesmo prato.

Recentemente, encontrei duas publicações curiosas, quase clandestinas, que unem a figura de Pennywise à arte da cozinha: Pennywise Cookbook: The Home Cook 20 Recipes To Know – Easy To Learn The Basics e Pennywise Cookbook: 20 Recipes Recreated From Your Favorite Pennywise, ambos assinados por Sawachika Joben, publicados em 2021.


Entre os desvarios da cultura contemporânea, essas obras me chamaram a atenção — não apenas pelo inusitado, mas pelo que revelam sobre o tempo em que vivemos. À primeira vista, parecem volumes triviais de culinária pop, destinados a curiosos que buscam temperar o medo com humor. Mas há neles algo de mais profundo, quase ritualístico: o ato de transformar o terror em receita, o monstro em refeição.

Joben parece compreender que o medo, como a fome, é uma força primitiva — e, ao colocar Pennywise na cozinha, ela converte o horror em digestão simbólica. Cozinhar o inimigo é, afinal, a forma mais antiga de tentar dominá-lo.

Cada prato inspirado no palhaço — seja uma sopa de cor carmesim ou um bolo com camadas que lembram o riso — torna-se um gesto de exorcismo estético: comer o medo para não ser devorado por ele. Assim, as páginas desses livros são menos receitas e mais espelhos, refletindo o apetite humano por tudo aquilo que nos assombra.

Livros que, à primeira vista, parecem apenas um delírio de marketing ou fetiche literário, mas que, ao mesmo tempo, escancaram o absurdo da nossa era: transformam até o medo em produto de consumo.

Pennywise, o devorador de crianças, reencarnado como um chef de cozinha. Um monstro que convida à mesa.

Eu não cheguei a ler as receitas — talvez por medo do que encontraria nelas. Mas a simples ideia me fez lembrar de um gesto ancestral, tão comum no universo dos palhaços quanto a lágrima pintada no rosto: a torta na cara.

Sim, aquele ato aparentemente inofensivo — a pancada branca, o creme estourando no rosto, o riso coletivo que explode como catarse.

Mas o que há por trás desse gesto? O que realmente celebramos quando rimos de alguém coberto de creme e humilhação?

A origem é antiga.

Os palhaços nascem da mesma linhagem dos bobos da corte, das máscaras da commedia dell’arte, dos artistas que ousavam zombar dos poderosos sob o disfarce do riso. Eram os únicos que podiam dizer a verdade — mas sempre com um sorriso nos lábios.

A torta na cara é a herdeira moderna dessa tradição: o golpe que não fere, mas expõe; a humilhação que diverte porque nos permite, por um instante, rir do que somos — frágeis, vaidosos, ridículos.

A comédia slapstick, nascida do batacchio italiano, fez da comida uma arma simbólica. Cada pancada era uma música; cada tombo, um acorde; cada torta, uma confissão.

Quando Chaplin, Keaton ou Laurel & Hardy levavam tortas na cara, não era apenas humor físico — era purificação.

O riso lavava o constrangimento, transformava a dor em espetáculo.

E assim, nas arenas e nos circos, a torta se tornou o sacramento do riso.

Nos filmes mudos, nas matinês, nas festas infantis e nos programas de auditório, ela era o símbolo máximo da leveza — um instante em que a dignidade humana, tão inflada e frágil, podia ser estilhaçada em risadas.

Mas o tempo, esse alquimista cruel, corrompe tudo o que toca.

E o mesmo gesto que um dia foi sinônimo de alegria, hoje carrega outro sabor.

A torta que antes fazia rir agora lembra sangue; o creme branco tornou-se o contraste do vermelho.

E então pensei:

— E se o riso fosse, desde o início, apenas um disfarce do sacrifício?

Porque, veja: até a torta tem seu simbolismo ritual.

Branca como a maquiagem do palhaço, redonda como o picadeiro, e feita de açúcar e humilhação. Ela é o espelho comestível do rosto do palhaço — doce por fora, trágico por dentro.

E assim, para fechar este círculo de memórias e medos, deixo uma receita.

Não de alegria, nem de perdão, mas de revelação. 

Uma torta simples, mas de cor indecente — um vermelho que lembra carne viva. Façam-na com framboesas, ou qualquer fruta vermelha, o importante é que sangre ao ser cortada. Ela pode ser muitas, se antes da geleia, você espalhar uma camada de creme de confeiteiro — suave, amarelo, quase luxurioso. Ou, se preferir, um creme de amêndoas, denso e perfumado. Cubra tudo com chantili — ou, para os mais ousados, um merengue tostado ao maçarico, para que o branco lembre a maquiagem dos palhaços de outrora.

E quando a faca penetrar a superfície branca e o vermelho jorrar, lembre-se: o riso e o medo sempre tiveram o mesmo sabor.

Hoje entendo que a cozinha é apenas o novo picadeiro do mundo.

O prato é o palco.

O cozinheiro, o mágico.

E o comensal, o público — faminto, crédulo, pronto a aplaudir enquanto mastiga a própria culpa.

Talvez, no fim, sejamos todos Pennywise com avental — alimentando e sendo alimentados por nossos próprios terrores. Porque o medo, assim como o prazer, sempre pede repetição.

E, quando o banquete termina e as luzes se apagam, o último a rir é sempre o mesmo: o palhaço.

Aquele que nunca tira a maquiagem, aquele que conhece o gosto do riso e do sangue, aquele que, mesmo coberto de torta, continua sorrindo.

E se você escutar bem — no fundo da noite, no eco metálico da geladeira, no ruído do garfo contra o prato — talvez ouça um sussurro rouco, doce e terrível: “Você quer uma fatia?”

E então o ciclo se fecha.

O circo está armado.

O forno ainda quente.

E o riso, mais uma vez, começa a ferver.

Uma Torta Vermelha para o Riso e o Abismo

Massa Pâte Sablée

250 g de farinha de trigo

100 g de açúcar de confeiteiro

125 g de manteiga sem sal, fria e cortada em cubos

1 ovo inteiro

1 pitada de sal

1 colher de chá de essência de baunilha (opcional)

Recheio

300 g de framboesas frescas ou congeladas (ou use a fruta vermelha de sua preferência)

100 g de açúcar

Suco de meio limão

1 colher de sopa de amido de milho (opcional, para engrossar)

Finalização

Açúcar de confeiteiro para polvilhar (opcional)

Chantilly ou merengue maçaricado, para os que apreciam o drama da chama sobre o branco

Preparo:  A massa – o silêncio antes do espetáculo. Peneire a farinha, o açúcar e o sal como quem filtra memórias. Junte a manteiga fria, e com a ponta dos dedos — e apenas eles — desfaça os cubos até que se tornem areia doce. No centro dessa praia, quebre um ovo e deixe que a baunilha, se desejar, perfume o ar. Misture com delicadeza: a pâte sablée não aceita pressa nem força. Forme uma esfera de calma e envolva-a em filme plástico, deixando-a repousar na geladeira por uma hora — o tempo exato para o desejo amadurecer.

O forno – a prova do fogo. Aqueça o forno a 180 °C. Abra a massa sobre uma superfície enfarinhada, fina como o papel de uma carta que nunca foi enviada. Forre a forma, fure o fundo com um garfo e cubra-a com papel manteiga e feijões — guardiões do espaço e do ar. Asse por 15 minutos; retire o peso da consciência e deixe dourar por mais 10, até que um perfume de manteiga e infância tome a cozinha. Deixe esfriar: toda doçura precisa de pausa. 

O recheio – o coração que pulsa. Em uma panela, junte as framboesas, o açúcar, o suco de limão e, se desejar, o amido. Deixe que o calor revele o rubor oculto das frutas — um vermelho espesso, quase carnal, lembrando o sangue do riso e o batom dos palhaços tristes. Mexa devagar, até que o líquido se torne memória viscosa. Espere esfriar antes de despejar sobre a massa: o ardor do medo também precisa de descanso. 

A montagem – o clímax. Preencha a casca dourada com o recheio, espalhando-o como quem cobre uma ferida com carinho. Decore com framboesas frescas — pequenas joias do abismo. Polvilhe açúcar, se quiser fingir inocência. Sirva com chantilly, ou, se a noite pedir um toque de perigo, cubra com merengue maçaricado, dourado como o sorriso falso de um palhaço sob o holofote. 

DICAS: E para os que buscam mais camadas — como toda boa história —, entre o creme e a geleia pode se esconder um véu de creme de confeiteiro ou de amêndoas, um segredo doce entre duas verdades. 

Esta torta é, enfim, um espetáculo em si mesma — o último número do picadeiro.

E quando o silêncio descer sobre a mesa, e só restar o perfume de manteiga e framboesas, o leitor, como o espectador de um circo antigo, talvez entenda: até o horror pode ser belo quando o olhamos com fome. 

Reubens

Barão de Gourmandise

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