Para mim, outubro não começa
com datas — ele é, antes, uma sensação: um estremecimento tênue no ar, como o
suspiro de algo antigo despertando sob as folhas secas, é como se percebesse
muitos olhos me observando no escuro, só que o tempo todo. É o mês onde o tempo
vacila, onde o calor já não protege e o frio ainda não consola. Há algo de
solene em suas manhãs, algo de delicadamente apodrecido em suas tardes. Como se
o mundo todo se curvasse à lembrança de algo perdido — ou prestes a ser.
Nesse limiar entre estações,
não há espaço para pressa. A fome que nos visita é outra: não se sacia com
volume, mas com gestos antigos, sabores com memória, ervas que ainda carregam o
orvalho de uma madrugada romana. O que se deseja à mesa não é apenas comida,
mas comunhão com o que passou, com o que ainda nos assombra, com o que talvez
nunca tenha nos deixado.
E é por isso que escolho
começar com uma salada. Uma salada que, à primeira vista, pode parecer leve
demais para um banquete de fantasmas. Mas olhe com mais cuidado. Toque as
folhas. Sinta o vinagre levantar seus vapores como uma invocação. Esmague as ervas
com as mãos e veja como liberam um perfume que não pertence inteiramente ao
mundo dos vivos.
Na Roma antiga, os mortos
não eram esquecidos — eram alimentados com gestos. Em datas liminares, como a
Parentalia, famílias inteiras desciam aos túmulos com o mesmo cuidado que se
tem ao preparar uma mesa de jantar. Levavam pão embebido em vinho, grãos tostados,
figos secos, flores violáceas, pequenos queijos salgados, tâmaras — não para
sustentar os mortos, mas para lembrá-los que ainda eram desejados.
Essas oferendas eram
deixadas junto aos monumentos, ou despejadas por tubos diretamente ao solo onde
os corpos repousavam. Às vezes, os vivos partilhavam ali mesmo um refrigerium,
um banquete fúnebre — não como consolo, mas como afirmação: “ainda comemos por
vocês.”
O REFRIGERIUM ROMANO: REFLEXÕES SOBRE O
GESTO QUE ALIMENTA
Refrigerium — palavra que
nasce do latim refrigerare, “refrescar”, “aliviar” — é mais do que um termo
técnico; é o nome dado a um gesto ancestral de humanidade que atravessa
séculos: o banquete dos vivos para os mortos.
Na Roma antiga, esse ritual
não se limitava a oferecer meros alimentos, mas representava um momento sagrado
em que a fronteira entre a vida e a morte se diluía, quando os vivos colocavam
junto às sepulturas uma mesa de lembranças, ofertas que buscavam não saciar um
apetite espectral, mas apaziguar os espíritos inquietos e perpetuar a memória
dos ancestrais.
O refrigerium era, assim, um
ato de comunhão delicada e carregada de dor: uma tentativa de manter acesa a
chama da presença no silêncio das ausências, um respiro que tentava suavizar a
dureza inexorável da morte, refrescando o luto com a esperança da continuidade.
O nome refrigerium não é
mero acaso, mas uma palavra que carrega em suas sílabas o desejo íntimo dos
antigos de trazer alívio à inexorável dor da perda. Derivado do “refrescar”,
ele evoca não apenas o ato de amenizar o calor sufocante do corpo em decomposição,
mas a urgência de mitigar o fogo invisível que arde nos corações daqueles que
ficaram. Em cada banquete postado ao lado dos túmulos, havia mais do que comida
e bebida; havia um sopro de esperança, um gesto ancestral que buscava refrescar
a alma, suavizar a travessia, e permitir que o laço entre o morto e o vivo
permanecesse intacto, ainda que etéreo.
Adotar o termo refrigerium
para esse rito funerário é, na verdade, reconhecer que a morte não é um corte
abrupto, mas uma jornada contínua — uma pausa delicada, um alívio fugaz no
caminho sombrio entre a vida e o que a sucede. Ele simboliza a ambiguidade da
existência, onde o fim e o começo se entrelaçam, e onde a presença do ausente
ainda ecoa nos gestos dos que o recordam.
O refrigerium é, assim, um
convite silencioso para que o tempo, por algumas horas, recue; para que os
mortos possam beber do mesmo néctar dos vivos, e para que os vivos encontrem
consolo na partilha.
Por isso, a palavra
reverbera com uma melancolia quase palpável: um eco do medo, do amor e da
necessidade humana de tocar o invisível. É a tentativa de dar forma ao
indizível, de encontrar um instante de frescor onde só há resquícios de frio,
um instante de vida onde reina a ausência. O refrigerium é, em última
instância, a delicada promessa de que, mesmo na morte, há espaço para o abraço
— efêmero, talvez, mas real.
No silêncio eterno das onde
as sombras se adensam e o tempo parece vacilar, o ritual do refrigerium surgia
como um delicado fio de vida entre os vivos e os mortos. Como descreve Ovídio
em seus Fasti, durante a Parentalia, as famílias dedicavam oferendas — pão,
vinho, figos secos — aos seus ancestrais, não para nutrir corpos que já se
foram, mas para alimentar a memória que persiste, a presença invisível que
ainda ronda seus nomes e histórias (OVIDIO, 1931).
No silêncio profundo das
necrópoles romanas, onde o ar parece sussurrar segredos antigos e os passos
ecoam como preces esquecidas, o refrigerium surge — um encontro sagrado entre
carne e sombra. Não é o sabor que permanece, mas o toque da lembrança — migalhas
que carregam ecos de rituais antigos, o néctar que guarda o segredo das eras,
frutos desidratados que guardam a doçura de vidas já vividas. Cada oferenda é
um poema silencioso, uma ponte invisível onde o passado respira através do
presente.
Se entendi bem o que Ovídio
(1931) explica, a Parentalia é muito mais que um rito: é o elo sagrado entre o
presente e o passado, onde o gesto da lembrança concede voz aos que não falam
mais. Não se trata apenas de alimentar um corpo ausente, mas de honrar a
persistência invisível dos nomes e das histórias que carregamos.
Nessa cerimônia silenciosa,
a distância entre o mundo dos vivos e o dos mortos se dissolve numa comunhão
feita de respeito e memória. O tempo, aqui, não hesita nem vacila — ele se
dobra em reverência, criando uma passagem delicada, um instante suspenso onde o
amor atravessa o silêncio e toca o eterno.
É na reverência silenciosa
que a ausência ganha forma, e o amor transcende a mortalidade, tecendo
histórias onde os nomes não morrem, apenas se transformam em eternidade.
Esse gesto, aparentemente
simples, carregava em si um peso inefável: era a tentativa desesperada de
resistir ao esquecimento, um ato de amor tingido por um medo profundo. O vinho
que escorria pelos tubos dos túmulos, em um fluxo silencioso, era mais que uma
bebida — era a ponte líquida entre o mundo visível e o oculto, entre a vida e a
morte. John Pollini aponta que essa prática, ao mesmo tempo cotidiana e
sagrada, revelava uma íntima consciência da fragilidade humana e da inexorável
passagem do tempo (POLLINI, 2015).
No silêncio que se segue à
partilha, os vivos sentiam a ausência presente. A mesa posta, o pão partido e o
queijo colocado eram símbolos da comunhão — não um mero ritual, mas um banquete
de sombras e memórias, onde o passado se fazia palpável. Emma-Jayne Graham
observa que o refrigerium funcionava como um espaço onde a comunidade
enfrentava seu medo da morte, transformando-o em um momento de união e de
celebração tênue da vida que persiste (GRAHAM, 2013).
Esse entrelaçamento entre
vida e morte carregava uma melancolia profunda, que Anne Rice talvez
descrevesse como a elegância triste de uma dança à luz da lua, onde cada passo
é a consciência da finitude. O refrigerium é a manifestação do memento mori —
não apenas uma lembrança da morte, mas um convite para abraçar a efemeridade da
existência com toda sua beleza e dor.
Assim, o que pode parecer
uma oferenda simples — pão, vinho, tâmaras — revela-se um diálogo silencioso,
um gesto carregado de emoção, onde o invisível é tocado por aqueles que ainda
respiram, buscando no ritual uma forma de manter viva a chama da memória,
acendendo, por um momento fugaz, a chama da presença no reino das sombras.
ENTRE SOMBRAS E DEUSES: A ESSÊNCIA DOS
MANES E DI MANES NA ROMA ANTIGA
Entre as reverências que os
romanos dedicavam aos seus mortos, havia duas presenças sagradas e distintas:
os Manes e os Di Manes. Esses nomes ecoam na voz dos antigos, como nos escritos
de Cícero, que em sua obra “De Divinatione” descreve os espíritos ancestrais
como guardiões invisíveis da família, enquanto em "De Natura Deorum"
(Sobre a Natureza dos Deuses), onde discute várias divindades e crenças
religiosas romanas, incluindo os espíritos dos mortos.
Nas frestas úmidas das
tumbas e no sopro frio das lamparinas votivas, os Manes respiravam — não como
lembrança, mas como presença. Espíritos dos mortos, sim, mas jamais ausentes:
sua sombra pairava entre os vãos das paredes domésticas, como uma vigília antiga
que o tempo não dissolveu. Como observa Charles W. King, “the Manes were
worshipped as gods” (King, 2020, p. xxvii) — “os Manes eram venerados como
deuses” —, o que revela que esses mortos não eram tratados como ausências, mas
como forças sagradas, com voz e lugar no cotidiano ritual.
E há mais: “literally, ‘the
divine Manes’” (King, 2020, p. 12) — “literalmente, ‘os Manes divinos’” — assim
nascem os Di Manes, as almas elevadas ao panteão doméstico, aquelas que, pela
lembrança ritualizada, tornam-se protetores eternos da família. Os Manes eram
cultuados em datas como a Parentalia, quando pão, vinho e flores selavam a
ponte com os ancestrais. Já os Di Manes aparecem nas lápides e epitáfios, com a
fórmula consagrada D.M. — sinal de que aquele morto vive, agora, entre os
deuses. O gesto era simples, mas o sentido, sagrado: lembrar era divinizar.
Os Manes não habitam meras
lembranças, mas atravessam o véu que separa o agora do sempre. São sombras
familiares que caminham silenciosas nos limites do mundo visível, chamadas à
vida por gestos que os vivos oferecem. Pão, vinho e flores — símbolos humildes
nas mãos dos que ainda respiram — são a linguagem do respeito, o rito que
sustenta o diálogo entre os que partiram e os que ficam. Essas oferendas não
são um desejo do além, mas um pacto dos vivos para manter intacto o fio
invisível que liga gerações, um cuidado ancestral que impede o esquecimento e a
inquietação. Ao evocar os Manes, a Roma antiga não apenas honrava seus mortos,
mas firmava um compromisso eterno com a própria essência da família.
Em contraste, os Di Manes
representam a divindade desses mesmos espíritos — seriam os Manes elevados à
condição de deuses do submundo, silenciosos protetores dos lares e guardiões do
limiar entre os mundos.
Nas invocações aos Di Manes,
os romanos realizavam rituais mais solenes, não com sacrifícios de carne ou
vinho fermentado, mas com oferendas carregadas de simbolismo: flores — muitas
vezes violetas — que perfumavam os altares com memória e respeito; pão embebido
em vinho, símbolo da continuidade da vida e da nutrição espiritual; e grãos e
sal, elementos humildes da dieta diária, investidos de poder purificador e
sustentador. Essas dádivas, depositadas nos túmulos ou nos altares domésticos
conhecidos como lares, não apenas honravam os mortos, mas firmavam o elo
sagrado entre as gerações, assegurando a proteção eterna da família sob o olhar
vigilante dos Di Manes.
O que fascina nos Di Manes,
como revela Charles W. King, é sua natureza dúbia — não meros guardiões
silenciosos, mas presenças vivas e ambivalentes, que flutuam entre a bênção e a
ameaça. Eles são sombras ancestrais que sussurram sobre a fragilidade da paz no
além, seres cujo olhar invisível pesa sobre os vivos, exigindo respeito e
rituais tão antigos quanto o próprio sangue que corre nas veias da família. Não
são apenas recordações serenas; são juízes velados, cuja aprovação se conquista
em gestos delicados, em oferendas feitas com mãos tremulas, em orações
sussurradas à meia-luz. A responsabilidade que impõem não é um fardo, mas um
pacto pulsante — uma promessa silenciosa de que a linha entre a vida e a morte
é, afinal, um fio tênue que só se sustenta pela reverência e pela memória
contínua.
Os Di Manes se elevam para
além do simples culto aos mortos; são a própria encruzilhada entre o efêmero e
o infinito, deuses domésticos que habitam o coração da casa e o silêncio dos
corações. Eles se manifestam na dança sutil do sal espalhado sobre a terra, no
perfume das violetas que cobrem os altares, no murmúrio íntimo dos vivos que,
dia após dia, transformam a morte em um ciclo interminável de amor e lembrança
— um eterno ritual de passagem que não conclui, mas se renova.
Assim, entre os sussurros
das noites romanas, sob o manto silencioso dos altares domésticos e os muros
ancestrais dos templos, a invocação dos Manes e dos Di Manes desenhava um rito
eterno — um cântico sem voz onde o amor se recusa a morrer, e o passado se
eterniza em cada gesto de cuidado, em cada oferenda silenciosa. Ali, na tênue
linha entre o visível e o invisível, nascia um elo sagrado, frágil como a
pétala de uma flor caída, mas imortal como o próprio sopro da memória. É um
pacto tecido com o fio invisível da saudade, onde a morte é apenas um portal, e
o espírito, um viajante que nunca se perde, mas se faz eterno no abraço dos
vivos.
E, como tudo na Roma antiga,
esse gesto carregava camadas invisíveis — um delicado entrelaçar de amor e
medo. Os mortos não eram apenas memórias estáticas; podiam visitar em sonhos,
sussurrar bênçãos ou lançar sombras inquietas sobre os vivos. Aqueles que eram
esquecidos, que não recebiam suas migalhas rituais, transformavam-se em lemures
— sombras famintas, vagando na penumbra da noite, esperando por reconhecimento.
Na mitologia romana, os
lemures — também conhecidos como larvae — são espíritos inquietos daqueles que
partiram sem o devido respeito ou sem os rituais adequados para acalmá-los.
Diferentemente dos Manes, que repousam serenamente como ancestrais protegidos
pela memória amorosa dos vivos, os lemures são sombras errantes, carregadas de
uma angústia profunda, pois buscam algo que não lhes foi concedido: o
reconhecimento e a paz.
Eles vagam silenciosos na
escuridão da noite, uma presença que perturba a tranquilidade dos que ainda
vivem. Por isso, os romanos dedicavam ritos específicos para apaziguá-los,
lançando oferendas e realizando cerimônias que tinham o poder de transformá-los
— de espíritos inquietos, capazes de perturbar, em guardiões protegidos pelo
respeito e pela lembrança.
Fiquei pensando: imagine, se
os lemures tivessem nascido sob o céu do Brasil, certamente encontrariam sua
voz nas lendas dessa Tera Brasílis, e cheriam chamados simploriamente de
espíritos sombeteiros ou almas penadas — sombras que carregam a mesma inquietação
ancestral, ecos profundos do silêncio que habita o limiar entre o mundo dos
vivos e o dos mortos. São almas sem repouso, presas em um eterno vagar,
sussurrando memórias que o tempo quase esqueceu, clamando, com uma urgência que
atravessa continentes, por reconhecimento e paz.
No pulsar desse vínculo
invisível, reside um rito universal e sagrado: o imperativo de lembrar, honrar
e acalmar aqueles que caminham entre os dois mundos, para que o delicado fio da
memória não se quebre, e para que a paz — suave e definitiva como um abraço que
cura — possa enfim envolver esses espíritos errantes.
Talvez todos tenhamos nossos
próprios lemures, em cada canto do mundo, nomeados de formas diversas, mas
sempre guardiões silenciosos da mesma verdade profunda: que a lembrança é a
ponte que mantém vivas as almas perdidas, e que, no cerne de toda cultura,
repousa o desejo eterno de reconciliação entre a vida e o além.
Chamá-los de “sombras
famintas” é dar forma poética à sua condição: não é a fome do corpo, mas a sede
de memória e reverência. Sem esse vínculo sagrado, essas almas permanecem
perdidas, angustiadas, ansiando pela atenção dos vivos — um lembrete sombrio da
importância de honrar o passado para que o espírito encontre descanso.
Mas, antes de tudo, era
preciso agradá-los, honrá-los, apaziguá-los — um gesto que, embora pareça raro
nos dias atuais, ainda pulsa vivo em tradições como o colorido e festivo Dia de
los Muertos no México, onde a morte é celebrada com alegria e reverência, e os
banquetes tornam-se pontes entre os vivos e os que partiram. Alimentar os
mortos jamais foi simplesmente ofertar sustento; era cuidar da ausência que
teima em ser presença.
Sentar-se à mesa com eles
transformava-se em um rito sagrado — cozinhar, uma oração silenciosa; um ato de
fidelidade que unia mundos distantes. Banquetear-se, então, era encarar a
própria finitude com uma beleza profunda e melancólica, um reconhecimento íntimo
da impermanência que nos define. Um delicado encontro entre o efêmero e o
eterno, onde o sabor da vida se mistura à sombra da morte, revelando a essência
de nossa existência.
Não se trata de saciar a
fome, mas de alimentar a lembrança — um rito silencioso onde o ato de comer se
torna oração, e o simples cozinhar, um gesto de fidelidade aos que já não
falam, mas que ainda vivem na memória. Banquetear-se diante da ausência é um
olhar destemido para a própria impermanência, um abraço sombrio e belo, quase
tocado por um sadismo delicado, que reconhece a efemeridade da vida com uma
ternura amarga.
É com essa mesma reverência
pelo abismo que Domiciano orquestrava seus banquetes sombrios, onde o silêncio
da morte se fazia presente em cada gesto. É nesse espírito que Elagábalo, em
sua extravagância, servia pratos vazios, transformando o vazio em espetáculo,
um convite à reflexão sobre o que realmente alimenta a alma. E é também com
essa ternura quase secreta que Columella, há dois milênios, anotava uma receita
simples — ervas esmagadas, queijo fresco, óleo derramado como unção — uma
oferenda modesta, mas carregada de significado.
Aqui não há artifícios, nem
ilusões: a comida, como a morte, é inevitável. E poucas coisas são tão sagradas
quanto partilhar o que outros já consumiram, perpetuando uma corrente invisível
que nos conecta, em silêncio, aos que vieram antes — um banquete eterno,
servido na mesa do tempo.
BANQUETES DE HORROR: DOMICIANO, O IMPERADOR
ESPECTRAL
No palco escuro da Roma
imperial, onde o poder se entrelaçava com o mistério e o terror, o imperador
Domiciano não era um homem sutil. Em 89 d.C., ele encenou um banquete que
ultrapassava o simples jantar, transformando-o numa coreografia de medo e controle,
e que faria qualquer festa temática de Halloween parecer uma tarde no parque.
O salão foi inteiramente
pintado de preto, do teto ao chão. Sob a luz trêmula das lâmpadas funerárias,
cada senador romano presente encontrava à sua frente uma lápide prateada, com
seu próprio nome inscrito. Meninos escravizados, pálidos como larvas, vestidos
como fantasmas, deslizavam entre os leitos trazendo pratos negros — não com
iguarias imperiais, mas com as oferendas simples reservadas aos mortos.
A cada mordida, o terror
crescia. Não era apenas encenação — qualquer gesto em falso, qualquer riso fora
de hora, e o convidado poderia tornar-se oferenda ele mesmo. Domiciano, como
todos os homens obcecados por controle, não resistia à tentação de brincar com
a morte — mas também não dormia em paz. Caminhava diariamente por uma galeria
forrada de pedra da lua, onde o brilho do chão polido lhe permitia vigiar suas
próprias costas, à espreita de facas que não vinham.
E o jantar? Ah, o jantar
terminou com um presente — as lápides de prata, os pratos caros e os
escravizados que os serviram, tudo entregue aos convidados. Como se a ameaça,
agora recompensada, pudesse ser esquecida. Mas, como bem sabemos, a morte não
se deixa comprar.
Mas o que há de verdade
nesse relato? No labirinto das memórias históricas, o banquete negro de
Domiciano surge como uma sombra que oscila entre o fato e a lenda. É Dión
Casio, com sua pena entremeada de admiração e temor, quem nos oferece o
vislumbre mais vívido desse espetáculo de poder e terror — no Livro 67 de sua
História Romana, ele narra a cena em que o imperador envolve seus convidados em
um cenário de sombras e ameaças veladas.
Por outro lado, Suetônio,
que em Vida dos Doze Césares traça retratos densos e cruéis dos imperadores,
permanece silencioso sobre esse episódio, deixando-o flutuar na penumbra da
dúvida. Essa ausência não diminui o peso do relato; antes, o envolve em mistério,
tornando-o um símbolo poderoso da inquietação que rondava um homem que
governava como se a morte fosse seu único refúgio e cetro.
O banquete, se aconteceu,
foi menos uma festa e mais um espetáculo de poder, uma advertência velada para
aqueles que ousassem desafiar o imperador.
Não obstante, a ausência de
provas irrefutáveis deixa o episódio suspenso entre o real e o imaginário,
entre a história e o mito. O banquete negro de Domiciano tornou-se um símbolo —
uma metáfora para o controle absoluto, a inquietação da alma humana diante da
morte e a dança constante entre o poder e o medo.
De tal forma, mais que um
evento, esse banquete horripilante surge sempre como uma lembrança do que
acontece quando homens se tornam sombras de si mesmos, onde a morte se torna
espetáculo e a vida, um jogo de aparências.
LARVAE CONVIVIALES E OS ESQUELETOZINHOS
DANÇANTES
Nas casas dos ricos romanos,
entre os vinhos doces e os risos forçados, dançavam pequenos esqueletos de
bronze: imagine o eco macio de risos em um triclínium de mármore, enquanto,
entre os cálices e os aromas adocicados, surge — quase por encanto — uma pequena
figura articulada, os larvae convivialis.
Literalmente “fantasma do
banquete”, esse esqueletinho vikido, com articulações de bronze ou prata,
suspendia o momento suspenso entre vida e morte. ‘Larva’ — máscara, espectro,
espírito de morto —, e ‘convivialis’ — pertencente ao banquete — juntos formavam
um símbolo que os romanos entre os poderosos ofereciam aos seus convivas como
brincadeira e advertência. Surgida talvez no século I a.C. ou I d.C., essa
criação aludia ao memento mori, o lembrete cálido-amargo de que comer, rir,
festejar, é tudo dado por empréstimo à finitude.
Conforme registros modernos
sobre o tema, “os romanos traziam à mesa essas figurinas articuladas em
banquetes de elite, como um memento mori silencioso” (GALLEGO, 2015). Em banquetes privados, a presença dessas larvae enfatizava o tema “goza enquanto podes, porque a morte virá” — ao mesmo tempo
divertimento e advertência.
O império tinha gosto pelo
grotesco. Calígula, segundo Sêneca, convidou o pai de um homem executado para
jantar no mesmo dia — e ali, entre pratos e silêncios, o pai teve de rir e
brincar com o imperador, pois o luto visível poderia significar a morte do
filho sobrevivente.
Nos salões de mármore
refulgente do jovem imperador Elagábalo, o banquete deixava de ser simples
refeição: tornava‑se
teatro sombrio, arte e advertência. Um dia as paredes reluziam de verde, no
seguinte azul‑irisado —
pois, segundo a Vita Elagábali (Historia Augusta, 18.2), cada dia exigia sua
cor nova, cada cor seu eco de capricho absoluto. E quando o festim prosseguia,
levantava‑se um teto
falso: flores — violetas, lírios, narcisos — inundavam a câmara, caindo sobre
os convidados como neve de lembrança e advertência (“In a banqueting‑room with a reversible ceiling he once
overwhelmed his parasites with violets … so that some were actually smothered
to death” Vita Elagábali, 21.5–6).
E como num outro ato de luxo
e crueldade, entre os tronos e reclínios de prata, surgiam leopardos falsamente
adestrados — a ferocidade domada exibida como relíquia e jogo — que se erguiam
ao redor dos convivas quando as taças já estavam vazias, provocando risadas
forçadas, corações suspensos e, por um momento, o vislumbre da morte dançando
no canto da sala.
Acredito, a partir da leitura de Harmon & Wyke (2016), que os banquetes de Elagábalo (também conhecido como Heliogábalo, enquanto Elagábalo também é uma variação válida, especialmente em latim Aelagabalus e para o nome do deus), não eram simples excessos gastronômicos, mas encenações meticulosas de um teatro de poder e assombro. Cada prato servido, cada aroma artificialmente exalado, parecia antecipar o clímax não da saciedade, mas do medo. O festim não saciava — ele preparava o espírito, como quem recita versos sombrios antes do golpe. E era nos gritos contidos dos convidados, nas risadas tensas que se esfarelavam no ar, que o imperador verdadeiramente se alimentava. Ali, entre travessas de mármore e vinhos que jamais fermentaram, Elagábalo não buscava aplausos — buscava tremores. Não era a comida que lhe dava prazer, mas a fragilidade de quem a engolia.
As rosas de Heliogabalus, de Lawrence Alma-Tadema (1888) nessa pintura mostras os exageros das efstas de ElagÁbaloCom isso, Elagábalo
transformou o banquetear-se em memento mori: comer deixava de ser simples
nutrição e tornava‑se
vulnerabilidade exposta.
Elagábalo não apenas
oferecia banquetes — ele os esculpia como epitáfios vivos, onde o alimento era
menos sustento e mais sentença. Comer, em sua corte, deixava de ser ato banal:
tornava-se ritual de exposição, um espelho onde cada conviva via refletida sua
própria precariedade. Sentar-se à mesa era aceitar um pacto silencioso com o
abismo — porque ali, entre talheres de ouro e luzes tingidas de delírio, a
fartura não confortava, disfarçava. Por trás de cada prato de cera, de cada
vinho impossível, escondia-se a lembrança de que o poder absoluto é também o
mais sutil dos venenos. A refeição era, assim, uma coreografia entre o prazer e
o pânico — um memento mori servido em porções generosas, coberto por um véu de
beleza que só tornava a morte mais íntima e inevitável.
Mas por trás do riso
pintado, das flores sufocantes e dos vinhos encantados, havia sempre algo mais
denso, mais nu, mais cruel: o silêncio dos corpos que não celebravam. Era a mão
escravizada — pequena, invisível, infantil — que cozinhava os festins que outros
provavam. Eram dedos que esmagavam as ervas, moldavam o queijo, e vertiam o
óleo com a precisão de um rito, sem jamais sentar-se à mesa. Eram os que
serviam os vivos como se já tivessem morrido, fantasmas anônimos em vida,
condenados a encenar, dia após dia, a fartura alheia. E ali estava a ironia
final: no império dos excessos, a opulência mais obscena era sustentada por
aqueles que jamais provariam sequer um farelo do prazer que ajudavam a
construir.
A SALADA DE COLUMELLA: UM PRATO DA VIDA
À BEIRA DO TÚMULO
E é justamente depois de
tudo isso — de caveiras dançantes, pratos vazios, terrores dourados e silêncios
servis — que lhe ofereço, leitor, um gesto inesperado. Quase subversivo, quase
delicado demais para este cenário. Uma salada.
Não ria. Não é ironia.
Porque talvez, depois de
tanto peso, só nos reste mesmo a leveza. E talvez não exista forma mais honesta
de invocar os mortos — ou de reconhecer nossa própria fragilidade — do que com
as mãos sujas de hortelã, esmagando folhas vivas em nome dos que já se foram.
Neste prato há perfume e saudade. Há memória plantada e colhida.
Não é uma salada qualquer,
mas uma receita resgatada das dobras do tempo, escrita no século I d.C. por
Lucius Junius Moderatus Columella, agrônomo e pensador romano, em seu tratado
De Re Rustica. Um prato simples, quase silencioso, composto de ervas rústicas,
queijo fresco e azeite derramado como libação — um gesto de permanência diante
do efêmero.
Talvez a lição mais perene
dos banquetes romanos não seja sobre extravagância, mas sobre fragilidade. Os
imperadores temiam seus criados, os ricos temiam o riso errado, e os
escravizados não podiam sequer temer. A mesa era teatro — um lugar onde o
prazer dançava sobre um abismo.
Mas hoje, à luz bruxuleante
de outubro, podemos inverter o feitiço. Podemos colocar essa salada na mesa
como um memento mori, sim, mas também como um tributo aos que sobreviveram. Aos
que esmagaram ervas no pilão com mãos fatigadas. Aos que prepararam a festa,
mas não foram convidados.
E assim, ao servir essa
Columella, você não apenas oferece um prato: oferece uma história. Uma memória.
Uma ceia com os mortos — mas para alimentar os vivos.
Collumela - Receita original (em latim)
Addito in mortarium
satureiam, mentam, rutam, coriandrum, apium, porrum sectivum, aut si non erit
viridem cepam, folia latucae, folia erucae, timo viride, vel nepetam, tum etiam
viride puleium, et caseum recentem et salsum: ea omnia partierito conter,
acetique piperati exiguum, permisceto. Hanc mixturam cum in catillo
composueris, oleum superfundito.
(Columella, De Re Rustica, XII, lix)
Tradução e método
Deite no pilão os temperos:
hortelã, arruda, coentro, salsa, alho-poró fatiado ou, se não tiver, cebola
verde. Adicione folhas de alface e rúcula, tomilho verde ou nepeta. Acrescente
também poejo e queijo fresco salgado. Esmague tudo com vigor. Junte um pouco de
vinagre apimentado. Coloque a mistura num prato e regue generosamente com
azeite.
SALADA COLLUMELA
Ingredientes adaptados
100g de hortelã fresca (e/ou poejo)
50g de coentro fresco
50g de salsa fresca
1 pequeno alho-poró
Um ramo de tomilho fresco
200g de queijo fresco salgado (como feta
ou minas curado)
Vinagre de vinho
Pimenta preta moída
Azeite de oliva extravirgem
Preparo: Misture como manda Columella. Sirva com pães rústicos e tâmaras secas, e talvez, se quiser ousar como Elagábalo, com um fio de mel sobre a tâmara para evocar o contraste entre o doce da fruta e a acidez da salada.
Variações históricas
Em outras versões, Columella recomenda adicionar nozes esmagadas, o que traz crocância e gordura ao prato. E há registros de outras plantas cruas usadas nas mesas romanas: agrião, beldroega, azedinha, chicória, cerefólio, folhas de beterraba, manjericão e até malva.
REFERÊNCIAS
CASIO, Dión. História Romana. Livro 67,
Seções 9.1–6. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cassius_Dio/67*.html
CÍCERO, Marcus Tullius. De Divinatione.
In: The Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press, 1923.
CÍCERO, Marcus Tullius. De Natura
Deorum. In: H. Rackham (Ed. e Trad.). Cambridge: Harvard University Press,
1933.
COLUMELLA, Lucius Junius Moderatus. De
Re Rustica. Trad. e ed. Loeb Classical Library, Harvard University Press.
GALLEGO, Mireia. Larvae conviviales. El
recuerdo de la muerte en los banquetes romanos. Atenea Nike: Historia de Roma –
Simbología romana, maio 2020. Disponível em: https://www.ateneanike.com/historia-de-roma/simbologia-romana/larvae-conviviales/ .
GRAHAM, Emma-Jayne. Feeding the Dead: Libations and Commensality in Roman Tombs. Oxford Journal of Archaeology, v. 32, n. 1, p. 37-52, 2013.
HARMON, S.; WYKE, Maria. “The Pleasures
and Punishments of Roman Error: Emperor Elagábalo at the Court of History”. UCL
Discovery, 2016. Disponível em: https://discovery.ucl.ac.uk/1534518/1/Wyke.The%20pleasures.book.chapterpdf.pdf Acesso em: 19 out. 2025.
HISTORIA AUGUSTA. Vita Elagábali. In:
Historia Augusta: The Lives of the Later Caesars. Translated by David Magie.
Vol. II. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1924.
KING, Charles W. The Ancient Roman
Afterlife : Di Manes, Belief, and the Cult of the Dead. Austin: University of
Texas Press, 2020.
OVIDIO. Fasti. Tradução e comentários.
Cambridge: Harvard University Press, 1931.
POLLINI, John. The Art of Rome: Sources
and Documents. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
SUETÔNIO, Cássio. A Vida dos Doze
Césares (De Vita Caesarum). Tradução de Alexander Thomson (edição revisada de
T. Forester). London: George Bell & Sons, 1914.






.jpg)

Nenhum comentário:
Postar um comentário