domingo, 19 de outubro de 2025

ERVAS PARA OS VIVOS, OFERTAS PARA OS MORTOS: DO REFRIGERIUM AO COMER SOB O OLHAR DA MORTE


Para mim, outubro não começa com datas — ele é, antes, uma sensação: um estremecimento tênue no ar, como o suspiro de algo antigo despertando sob as folhas secas, é como se percebesse muitos olhos me observando no escuro, só que o tempo todo. É o mês onde o tempo vacila, onde o calor já não protege e o frio ainda não consola. Há algo de solene em suas manhãs, algo de delicadamente apodrecido em suas tardes. Como se o mundo todo se curvasse à lembrança de algo perdido — ou prestes a ser.

Arte Romana: Memento mori, símbolos da Vida e da Morte. Mosaico de Pompéia. 2º estilo. Dim. 47x41 cm Museo Archeologico Nazionale, Nápoles.

Nesse limiar entre estações, não há espaço para pressa. A fome que nos visita é outra: não se sacia com volume, mas com gestos antigos, sabores com memória, ervas que ainda carregam o orvalho de uma madrugada romana. O que se deseja à mesa não é apenas comida, mas comunhão com o que passou, com o que ainda nos assombra, com o que talvez nunca tenha nos deixado.

E é por isso que escolho começar com uma salada. Uma salada que, à primeira vista, pode parecer leve demais para um banquete de fantasmas. Mas olhe com mais cuidado. Toque as folhas. Sinta o vinagre levantar seus vapores como uma invocação. Esmague as ervas com as mãos e veja como liberam um perfume que não pertence inteiramente ao mundo dos vivos.

Na Roma antiga, os mortos não eram esquecidos — eram alimentados com gestos. Em datas liminares, como a Parentalia, famílias inteiras desciam aos túmulos com o mesmo cuidado que se tem ao preparar uma mesa de jantar. Levavam pão embebido em vinho, grãos tostados, figos secos, flores violáceas, pequenos queijos salgados, tâmaras — não para sustentar os mortos, mas para lembrá-los que ainda eram desejados.

Essas oferendas eram deixadas junto aos monumentos, ou despejadas por tubos diretamente ao solo onde os corpos repousavam. Às vezes, os vivos partilhavam ali mesmo um refrigerium, um banquete fúnebre — não como consolo, mas como afirmação: “ainda comemos por vocês.”

O REFRIGERIUM ROMANO: REFLEXÕES SOBRE O GESTO QUE ALIMENTA

Refrigerium — palavra que nasce do latim refrigerare, “refrescar”, “aliviar” — é mais do que um termo técnico; é o nome dado a um gesto ancestral de humanidade que atravessa séculos: o banquete dos vivos para os mortos.

Relevo em mármore mostrando um refrigerium (refeição comemorativa anual para os mortos) da vizinhança de Ancara, Turquia, século III d.C., Museu de Arte de Honolulu.

Na Roma antiga, esse ritual não se limitava a oferecer meros alimentos, mas representava um momento sagrado em que a fronteira entre a vida e a morte se diluía, quando os vivos colocavam junto às sepulturas uma mesa de lembranças, ofertas que buscavam não saciar um apetite espectral, mas apaziguar os espíritos inquietos e perpetuar a memória dos ancestrais.

O refrigerium era, assim, um ato de comunhão delicada e carregada de dor: uma tentativa de manter acesa a chama da presença no silêncio das ausências, um respiro que tentava suavizar a dureza inexorável da morte, refrescando o luto com a esperança da continuidade.

O nome refrigerium não é mero acaso, mas uma palavra que carrega em suas sílabas o desejo íntimo dos antigos de trazer alívio à inexorável dor da perda. Derivado do “refrescar”, ele evoca não apenas o ato de amenizar o calor sufocante do corpo em decomposição, mas a urgência de mitigar o fogo invisível que arde nos corações daqueles que ficaram. Em cada banquete postado ao lado dos túmulos, havia mais do que comida e bebida; havia um sopro de esperança, um gesto ancestral que buscava refrescar a alma, suavizar a travessia, e permitir que o laço entre o morto e o vivo permanecesse intacto, ainda que etéreo.

Adotar o termo refrigerium para esse rito funerário é, na verdade, reconhecer que a morte não é um corte abrupto, mas uma jornada contínua — uma pausa delicada, um alívio fugaz no caminho sombrio entre a vida e o que a sucede. Ele simboliza a ambiguidade da existência, onde o fim e o começo se entrelaçam, e onde a presença do ausente ainda ecoa nos gestos dos que o recordam.

O refrigerium é, assim, um convite silencioso para que o tempo, por algumas horas, recue; para que os mortos possam beber do mesmo néctar dos vivos, e para que os vivos encontrem consolo na partilha.

Por isso, a palavra reverbera com uma melancolia quase palpável: um eco do medo, do amor e da necessidade humana de tocar o invisível. É a tentativa de dar forma ao indizível, de encontrar um instante de frescor onde só há resquícios de frio, um instante de vida onde reina a ausência. O refrigerium é, em última instância, a delicada promessa de que, mesmo na morte, há espaço para o abraço — efêmero, talvez, mas real.

No silêncio eterno das onde as sombras se adensam e o tempo parece vacilar, o ritual do refrigerium surgia como um delicado fio de vida entre os vivos e os mortos. Como descreve Ovídio em seus Fasti, durante a Parentalia, as famílias dedicavam oferendas — pão, vinho, figos secos — aos seus ancestrais, não para nutrir corpos que já se foram, mas para alimentar a memória que persiste, a presença invisível que ainda ronda seus nomes e histórias (OVIDIO, 1931).

No silêncio profundo das necrópoles romanas, onde o ar parece sussurrar segredos antigos e os passos ecoam como preces esquecidas, o refrigerium surge — um encontro sagrado entre carne e sombra. Não é o sabor que permanece, mas o toque da lembrança — migalhas que carregam ecos de rituais antigos, o néctar que guarda o segredo das eras, frutos desidratados que guardam a doçura de vidas já vividas. Cada oferenda é um poema silencioso, uma ponte invisível onde o passado respira através do presente.

Se entendi bem o que Ovídio (1931) explica, a Parentalia é muito mais que um rito: é o elo sagrado entre o presente e o passado, onde o gesto da lembrança concede voz aos que não falam mais. Não se trata apenas de alimentar um corpo ausente, mas de honrar a persistência invisível dos nomes e das histórias que carregamos.

Nessa cerimônia silenciosa, a distância entre o mundo dos vivos e o dos mortos se dissolve numa comunhão feita de respeito e memória. O tempo, aqui, não hesita nem vacila — ele se dobra em reverência, criando uma passagem delicada, um instante suspenso onde o amor atravessa o silêncio e toca o eterno.

É na reverência silenciosa que a ausência ganha forma, e o amor transcende a mortalidade, tecendo histórias onde os nomes não morrem, apenas se transformam em eternidade.

Esse gesto, aparentemente simples, carregava em si um peso inefável: era a tentativa desesperada de resistir ao esquecimento, um ato de amor tingido por um medo profundo. O vinho que escorria pelos tubos dos túmulos, em um fluxo silencioso, era mais que uma bebida — era a ponte líquida entre o mundo visível e o oculto, entre a vida e a morte. John Pollini aponta que essa prática, ao mesmo tempo cotidiana e sagrada, revelava uma íntima consciência da fragilidade humana e da inexorável passagem do tempo (POLLINI, 2015).

No silêncio que se segue à partilha, os vivos sentiam a ausência presente. A mesa posta, o pão partido e o queijo colocado eram símbolos da comunhão — não um mero ritual, mas um banquete de sombras e memórias, onde o passado se fazia palpável. Emma-Jayne Graham observa que o refrigerium funcionava como um espaço onde a comunidade enfrentava seu medo da morte, transformando-o em um momento de união e de celebração tênue da vida que persiste (GRAHAM, 2013).

Esse entrelaçamento entre vida e morte carregava uma melancolia profunda, que Anne Rice talvez descrevesse como a elegância triste de uma dança à luz da lua, onde cada passo é a consciência da finitude. O refrigerium é a manifestação do memento mori — não apenas uma lembrança da morte, mas um convite para abraçar a efemeridade da existência com toda sua beleza e dor.

Assim, o que pode parecer uma oferenda simples — pão, vinho, tâmaras — revela-se um diálogo silencioso, um gesto carregado de emoção, onde o invisível é tocado por aqueles que ainda respiram, buscando no ritual uma forma de manter viva a chama da memória, acendendo, por um momento fugaz, a chama da presença no reino das sombras.

ENTRE SOMBRAS E DEUSES: A ESSÊNCIA DOS MANES E DI MANES NA ROMA ANTIGA

Entre as reverências que os romanos dedicavam aos seus mortos, havia duas presenças sagradas e distintas: os Manes e os Di Manes. Esses nomes ecoam na voz dos antigos, como nos escritos de Cícero, que em sua obra “De Divinatione” descreve os espíritos ancestrais como guardiões invisíveis da família, enquanto em "De Natura Deorum" (Sobre a Natureza dos Deuses), onde discute várias divindades e crenças religiosas romanas, incluindo os espíritos dos mortos.

Nas frestas úmidas das tumbas e no sopro frio das lamparinas votivas, os Manes respiravam — não como lembrança, mas como presença. Espíritos dos mortos, sim, mas jamais ausentes: sua sombra pairava entre os vãos das paredes domésticas, como uma vigília antiga que o tempo não dissolveu. Como observa Charles W. King, “the Manes were worshipped as gods” (King, 2020, p. xxvii) — “os Manes eram venerados como deuses” —, o que revela que esses mortos não eram tratados como ausências, mas como forças sagradas, com voz e lugar no cotidiano ritual.

E há mais: “literally, ‘the divine Manes’” (King, 2020, p. 12) — “literalmente, ‘os Manes divinos’” — assim nascem os Di Manes, as almas elevadas ao panteão doméstico, aquelas que, pela lembrança ritualizada, tornam-se protetores eternos da família. Os Manes eram cultuados em datas como a Parentalia, quando pão, vinho e flores selavam a ponte com os ancestrais. Já os Di Manes aparecem nas lápides e epitáfios, com a fórmula consagrada D.M. — sinal de que aquele morto vive, agora, entre os deuses. O gesto era simples, mas o sentido, sagrado: lembrar era divinizar.

Os Manes não habitam meras lembranças, mas atravessam o véu que separa o agora do sempre. São sombras familiares que caminham silenciosas nos limites do mundo visível, chamadas à vida por gestos que os vivos oferecem. Pão, vinho e flores — símbolos humildes nas mãos dos que ainda respiram — são a linguagem do respeito, o rito que sustenta o diálogo entre os que partiram e os que ficam. Essas oferendas não são um desejo do além, mas um pacto dos vivos para manter intacto o fio invisível que liga gerações, um cuidado ancestral que impede o esquecimento e a inquietação. Ao evocar os Manes, a Roma antiga não apenas honrava seus mortos, mas firmava um compromisso eterno com a própria essência da família.

Em contraste, os Di Manes representam a divindade desses mesmos espíritos — seriam os Manes elevados à condição de deuses do submundo, silenciosos protetores dos lares e guardiões do limiar entre os mundos.

Nas invocações aos Di Manes, os romanos realizavam rituais mais solenes, não com sacrifícios de carne ou vinho fermentado, mas com oferendas carregadas de simbolismo: flores — muitas vezes violetas — que perfumavam os altares com memória e respeito; pão embebido em vinho, símbolo da continuidade da vida e da nutrição espiritual; e grãos e sal, elementos humildes da dieta diária, investidos de poder purificador e sustentador. Essas dádivas, depositadas nos túmulos ou nos altares domésticos conhecidos como lares, não apenas honravam os mortos, mas firmavam o elo sagrado entre as gerações, assegurando a proteção eterna da família sob o olhar vigilante dos Di Manes.

O que fascina nos Di Manes, como revela Charles W. King, é sua natureza dúbia — não meros guardiões silenciosos, mas presenças vivas e ambivalentes, que flutuam entre a bênção e a ameaça. Eles são sombras ancestrais que sussurram sobre a fragilidade da paz no além, seres cujo olhar invisível pesa sobre os vivos, exigindo respeito e rituais tão antigos quanto o próprio sangue que corre nas veias da família. Não são apenas recordações serenas; são juízes velados, cuja aprovação se conquista em gestos delicados, em oferendas feitas com mãos tremulas, em orações sussurradas à meia-luz. A responsabilidade que impõem não é um fardo, mas um pacto pulsante — uma promessa silenciosa de que a linha entre a vida e a morte é, afinal, um fio tênue que só se sustenta pela reverência e pela memória contínua.

Os Di Manes se elevam para além do simples culto aos mortos; são a própria encruzilhada entre o efêmero e o infinito, deuses domésticos que habitam o coração da casa e o silêncio dos corações. Eles se manifestam na dança sutil do sal espalhado sobre a terra, no perfume das violetas que cobrem os altares, no murmúrio íntimo dos vivos que, dia após dia, transformam a morte em um ciclo interminável de amor e lembrança — um eterno ritual de passagem que não conclui, mas se renova.

Assim, entre os sussurros das noites romanas, sob o manto silencioso dos altares domésticos e os muros ancestrais dos templos, a invocação dos Manes e dos Di Manes desenhava um rito eterno — um cântico sem voz onde o amor se recusa a morrer, e o passado se eterniza em cada gesto de cuidado, em cada oferenda silenciosa. Ali, na tênue linha entre o visível e o invisível, nascia um elo sagrado, frágil como a pétala de uma flor caída, mas imortal como o próprio sopro da memória. É um pacto tecido com o fio invisível da saudade, onde a morte é apenas um portal, e o espírito, um viajante que nunca se perde, mas se faz eterno no abraço dos vivos.

E, como tudo na Roma antiga, esse gesto carregava camadas invisíveis — um delicado entrelaçar de amor e medo. Os mortos não eram apenas memórias estáticas; podiam visitar em sonhos, sussurrar bênçãos ou lançar sombras inquietas sobre os vivos. Aqueles que eram esquecidos, que não recebiam suas migalhas rituais, transformavam-se em lemures — sombras famintas, vagando na penumbra da noite, esperando por reconhecimento.

Na mitologia romana, os lemures — também conhecidos como larvae — são espíritos inquietos daqueles que partiram sem o devido respeito ou sem os rituais adequados para acalmá-los. Diferentemente dos Manes, que repousam serenamente como ancestrais protegidos pela memória amorosa dos vivos, os lemures são sombras errantes, carregadas de uma angústia profunda, pois buscam algo que não lhes foi concedido: o reconhecimento e a paz.

Eles vagam silenciosos na escuridão da noite, uma presença que perturba a tranquilidade dos que ainda vivem. Por isso, os romanos dedicavam ritos específicos para apaziguá-los, lançando oferendas e realizando cerimônias que tinham o poder de transformá-los — de espíritos inquietos, capazes de perturbar, em guardiões protegidos pelo respeito e pela lembrança.

Fiquei pensando: imagine, se os lemures tivessem nascido sob o céu do Brasil, certamente encontrariam sua voz nas lendas dessa Tera Brasílis, e cheriam chamados simploriamente de espíritos sombeteiros ou almas penadas — sombras que carregam a mesma inquietação ancestral, ecos profundos do silêncio que habita o limiar entre o mundo dos vivos e o dos mortos. São almas sem repouso, presas em um eterno vagar, sussurrando memórias que o tempo quase esqueceu, clamando, com uma urgência que atravessa continentes, por reconhecimento e paz.

No pulsar desse vínculo invisível, reside um rito universal e sagrado: o imperativo de lembrar, honrar e acalmar aqueles que caminham entre os dois mundos, para que o delicado fio da memória não se quebre, e para que a paz — suave e definitiva como um abraço que cura — possa enfim envolver esses espíritos errantes.

Talvez todos tenhamos nossos próprios lemures, em cada canto do mundo, nomeados de formas diversas, mas sempre guardiões silenciosos da mesma verdade profunda: que a lembrança é a ponte que mantém vivas as almas perdidas, e que, no cerne de toda cultura, repousa o desejo eterno de reconciliação entre a vida e o além.

Chamá-los de “sombras famintas” é dar forma poética à sua condição: não é a fome do corpo, mas a sede de memória e reverência. Sem esse vínculo sagrado, essas almas permanecem perdidas, angustiadas, ansiando pela atenção dos vivos — um lembrete sombrio da importância de honrar o passado para que o espírito encontre descanso.

Mas, antes de tudo, era preciso agradá-los, honrá-los, apaziguá-los — um gesto que, embora pareça raro nos dias atuais, ainda pulsa vivo em tradições como o colorido e festivo Dia de los Muertos no México, onde a morte é celebrada com alegria e reverência, e os banquetes tornam-se pontes entre os vivos e os que partiram. Alimentar os mortos jamais foi simplesmente ofertar sustento; era cuidar da ausência que teima em ser presença.

Sentar-se à mesa com eles transformava-se em um rito sagrado — cozinhar, uma oração silenciosa; um ato de fidelidade que unia mundos distantes. Banquetear-se, então, era encarar a própria finitude com uma beleza profunda e melancólica, um reconhecimento íntimo da impermanência que nos define. Um delicado encontro entre o efêmero e o eterno, onde o sabor da vida se mistura à sombra da morte, revelando a essência de nossa existência.

Não se trata de saciar a fome, mas de alimentar a lembrança — um rito silencioso onde o ato de comer se torna oração, e o simples cozinhar, um gesto de fidelidade aos que já não falam, mas que ainda vivem na memória. Banquetear-se diante da ausência é um olhar destemido para a própria impermanência, um abraço sombrio e belo, quase tocado por um sadismo delicado, que reconhece a efemeridade da vida com uma ternura amarga.

É com essa mesma reverência pelo abismo que Domiciano orquestrava seus banquetes sombrios, onde o silêncio da morte se fazia presente em cada gesto. É nesse espírito que Elagábalo, em sua extravagância, servia pratos vazios, transformando o vazio em espetáculo, um convite à reflexão sobre o que realmente alimenta a alma. E é também com essa ternura quase secreta que Columella, há dois milênios, anotava uma receita simples — ervas esmagadas, queijo fresco, óleo derramado como unção — uma oferenda modesta, mas carregada de significado.

Aqui não há artifícios, nem ilusões: a comida, como a morte, é inevitável. E poucas coisas são tão sagradas quanto partilhar o que outros já consumiram, perpetuando uma corrente invisível que nos conecta, em silêncio, aos que vieram antes — um banquete eterno, servido na mesa do tempo.

BANQUETES DE HORROR: DOMICIANO, O IMPERADOR ESPECTRAL

No palco escuro da Roma imperial, onde o poder se entrelaçava com o mistério e o terror, o imperador Domiciano não era um homem sutil. Em 89 d.C., ele encenou um banquete que ultrapassava o simples jantar, transformando-o numa coreografia de medo e controle, e que faria qualquer festa temática de Halloween parecer uma tarde no parque.

O salão foi inteiramente pintado de preto, do teto ao chão. Sob a luz trêmula das lâmpadas funerárias, cada senador romano presente encontrava à sua frente uma lápide prateada, com seu próprio nome inscrito. Meninos escravizados, pálidos como larvas, vestidos como fantasmas, deslizavam entre os leitos trazendo pratos negros — não com iguarias imperiais, mas com as oferendas simples reservadas aos mortos.

A cada mordida, o terror crescia. Não era apenas encenação — qualquer gesto em falso, qualquer riso fora de hora, e o convidado poderia tornar-se oferenda ele mesmo. Domiciano, como todos os homens obcecados por controle, não resistia à tentação de brincar com a morte — mas também não dormia em paz. Caminhava diariamente por uma galeria forrada de pedra da lua, onde o brilho do chão polido lhe permitia vigiar suas próprias costas, à espreita de facas que não vinham.

E o jantar? Ah, o jantar terminou com um presente — as lápides de prata, os pratos caros e os escravizados que os serviram, tudo entregue aos convidados. Como se a ameaça, agora recompensada, pudesse ser esquecida. Mas, como bem sabemos, a morte não se deixa comprar.

Mas o que há de verdade nesse relato? No labirinto das memórias históricas, o banquete negro de Domiciano surge como uma sombra que oscila entre o fato e a lenda. É Dión Casio, com sua pena entremeada de admiração e temor, quem nos oferece o vislumbre mais vívido desse espetáculo de poder e terror — no Livro 67 de sua História Romana, ele narra a cena em que o imperador envolve seus convidados em um cenário de sombras e ameaças veladas.

Por outro lado, Suetônio, que em Vida dos Doze Césares traça retratos densos e cruéis dos imperadores, permanece silencioso sobre esse episódio, deixando-o flutuar na penumbra da dúvida. Essa ausência não diminui o peso do relato; antes, o envolve em mistério, tornando-o um símbolo poderoso da inquietação que rondava um homem que governava como se a morte fosse seu único refúgio e cetro.

O banquete, se aconteceu, foi menos uma festa e mais um espetáculo de poder, uma advertência velada para aqueles que ousassem desafiar o imperador.

Não obstante, a ausência de provas irrefutáveis deixa o episódio suspenso entre o real e o imaginário, entre a história e o mito. O banquete negro de Domiciano tornou-se um símbolo — uma metáfora para o controle absoluto, a inquietação da alma humana diante da morte e a dança constante entre o poder e o medo.

De tal forma, mais que um evento, esse banquete horripilante surge sempre como uma lembrança do que acontece quando homens se tornam sombras de si mesmos, onde a morte se torna espetáculo e a vida, um jogo de aparências.

LARVAE CONVIVIALES E OS ESQUELETOZINHOS DANÇANTES

Nas casas dos ricos romanos, entre os vinhos doces e os risos forçados, dançavam pequenos esqueletos de bronze: imagine o eco macio de risos em um triclínium de mármore, enquanto, entre os cálices e os aromas adocicados, surge — quase por encanto — uma pequena figura articulada, os larvae convivialis.


Literalmente “fantasma do banquete”, esse esqueletinho vikido, com articulações de bronze ou prata, suspendia o momento suspenso entre vida e morte. ‘Larva’ — máscara, espectro, espírito de morto —, e ‘convivialis’ — pertencente ao banquete — juntos formavam um símbolo que os romanos entre os poderosos ofereciam aos seus convivas como brincadeira e advertência. Surgida talvez no século I a.C. ou I d.C., essa criação aludia ao memento mori, o lembrete cálido-amargo de que comer, rir, festejar, é tudo dado por empréstimo à finitude.

Conforme registros modernos sobre o tema, “os romanos traziam à mesa essas figurinas articuladas em banquetes de elite, como um memento mori silencioso” (GALLEGO, 2015).  Em banquetes privados, a presença dessas larvae enfatizava o tema “goza enquanto podes, porque a morte virá” — ao mesmo tempo divertimento e advertência.

O império tinha gosto pelo grotesco. Calígula, segundo Sêneca, convidou o pai de um homem executado para jantar no mesmo dia — e ali, entre pratos e silêncios, o pai teve de rir e brincar com o imperador, pois o luto visível poderia significar a morte do filho sobrevivente.

Nos salões de mármore refulgente do jovem imperador Elagábalo, o banquete deixava de ser simples refeição: tornavase teatro sombrio, arte e advertência. Um dia as paredes reluziam de verde, no seguinte azulirisado — pois, segundo a Vita Elagábali (Historia Augusta, 18.2), cada dia exigia sua cor nova, cada cor seu eco de capricho absoluto. E quando o festim prosseguia, levantavase um teto falso: flores — violetas, lírios, narcisos — inundavam a câmara, caindo sobre os convidados como neve de lembrança e advertência (“In a banquetingroom with a reversible ceiling he once overwhelmed his parasites with violets … so that some were actually smothered to death” Vita Elagábali, 21.5–6).

E como num outro ato de luxo e crueldade, entre os tronos e reclínios de prata, surgiam leopardos falsamente adestrados — a ferocidade domada exibida como relíquia e jogo — que se erguiam ao redor dos convivas quando as taças já estavam vazias, provocando risadas forçadas, corações suspensos e, por um momento, o vislumbre da morte dançando no canto da sala. 

Acredito, a partir da leitura de Harmon & Wyke (2016), que os banquetes de Elagábalo (também conhecido como Heliogábalo, enquanto Elagábalo também é uma variação válida, especialmente em latim Aelagabalus e para o nome do deus), não eram simples excessos gastronômicos, mas encenações meticulosas de um teatro de poder e assombro. Cada prato servido, cada aroma artificialmente exalado, parecia antecipar o clímax não da saciedade, mas do medo. O festim não saciava — ele preparava o espírito, como quem recita versos sombrios antes do golpe. E era nos gritos contidos dos convidados, nas risadas tensas que se esfarelavam no ar, que o imperador verdadeiramente se alimentava. Ali, entre travessas de mármore e vinhos que jamais fermentaram, Elagábalo não buscava aplausos — buscava tremores. Não era a comida que lhe dava prazer, mas a fragilidade de quem a engolia.

As rosas de Heliogabalus, de Lawrence Alma-Tadema (1888) nessa pintura mostras os exageros das efstas de ElagÁbalo

Com isso, Elagábalo transformou o banquetear-se em memento mori: comer deixava de ser simples nutrição e tornavase vulnerabilidade exposta.

Elagábalo não apenas oferecia banquetes — ele os esculpia como epitáfios vivos, onde o alimento era menos sustento e mais sentença. Comer, em sua corte, deixava de ser ato banal: tornava-se ritual de exposição, um espelho onde cada conviva via refletida sua própria precariedade. Sentar-se à mesa era aceitar um pacto silencioso com o abismo — porque ali, entre talheres de ouro e luzes tingidas de delírio, a fartura não confortava, disfarçava. Por trás de cada prato de cera, de cada vinho impossível, escondia-se a lembrança de que o poder absoluto é também o mais sutil dos venenos. A refeição era, assim, uma coreografia entre o prazer e o pânico — um memento mori servido em porções generosas, coberto por um véu de beleza que só tornava a morte mais íntima e inevitável.

Mas por trás do riso pintado, das flores sufocantes e dos vinhos encantados, havia sempre algo mais denso, mais nu, mais cruel: o silêncio dos corpos que não celebravam. Era a mão escravizada — pequena, invisível, infantil — que cozinhava os festins que outros provavam. Eram dedos que esmagavam as ervas, moldavam o queijo, e vertiam o óleo com a precisão de um rito, sem jamais sentar-se à mesa. Eram os que serviam os vivos como se já tivessem morrido, fantasmas anônimos em vida, condenados a encenar, dia após dia, a fartura alheia. E ali estava a ironia final: no império dos excessos, a opulência mais obscena era sustentada por aqueles que jamais provariam sequer um farelo do prazer que ajudavam a construir.

A SALADA DE COLUMELLA: UM PRATO DA VIDA À BEIRA DO TÚMULO

E é justamente depois de tudo isso — de caveiras dançantes, pratos vazios, terrores dourados e silêncios servis — que lhe ofereço, leitor, um gesto inesperado. Quase subversivo, quase delicado demais para este cenário. Uma salada.

Não ria. Não é ironia.

Porque talvez, depois de tanto peso, só nos reste mesmo a leveza. E talvez não exista forma mais honesta de invocar os mortos — ou de reconhecer nossa própria fragilidade — do que com as mãos sujas de hortelã, esmagando folhas vivas em nome dos que já se foram. Neste prato há perfume e saudade. Há memória plantada e colhida.

Não é uma salada qualquer, mas uma receita resgatada das dobras do tempo, escrita no século I d.C. por Lucius Junius Moderatus Columella, agrônomo e pensador romano, em seu tratado De Re Rustica. Um prato simples, quase silencioso, composto de ervas rústicas, queijo fresco e azeite derramado como libação — um gesto de permanência diante do efêmero.

Talvez a lição mais perene dos banquetes romanos não seja sobre extravagância, mas sobre fragilidade. Os imperadores temiam seus criados, os ricos temiam o riso errado, e os escravizados não podiam sequer temer. A mesa era teatro — um lugar onde o prazer dançava sobre um abismo.

Mas hoje, à luz bruxuleante de outubro, podemos inverter o feitiço. Podemos colocar essa salada na mesa como um memento mori, sim, mas também como um tributo aos que sobreviveram. Aos que esmagaram ervas no pilão com mãos fatigadas. Aos que prepararam a festa, mas não foram convidados.

E assim, ao servir essa Columella, você não apenas oferece um prato: oferece uma história. Uma memória. Uma ceia com os mortos — mas para alimentar os vivos.

Collumela -  Receita original (em latim)

Addito in mortarium satureiam, mentam, rutam, coriandrum, apium, porrum sectivum, aut si non erit viridem cepam, folia latucae, folia erucae, timo viride, vel nepetam, tum etiam viride puleium, et caseum recentem et salsum: ea omnia partierito conter, acetique piperati exiguum, permisceto. Hanc mixturam cum in catillo composueris, oleum superfundito.

(Columella, De Re Rustica, XII, lix) 

Tradução e método 

Deite no pilão os temperos: hortelã, arruda, coentro, salsa, alho-poró fatiado ou, se não tiver, cebola verde. Adicione folhas de alface e rúcula, tomilho verde ou nepeta. Acrescente também poejo e queijo fresco salgado. Esmague tudo com vigor. Junte um pouco de vinagre apimentado. Coloque a mistura num prato e regue generosamente com azeite.

SALADA COLLUMELA

Ingredientes adaptados

100g de hortelã fresca (e/ou poejo)

50g de coentro fresco

50g de salsa fresca

1 pequeno alho-poró

Um ramo de tomilho fresco

200g de queijo fresco salgado (como feta ou minas curado)

Vinagre de vinho

Pimenta preta moída

Azeite de oliva extravirgem

Preparo: Misture como manda Columella. Sirva com pães rústicos e tâmaras secas, e talvez, se quiser ousar como Elagábalo, com um fio de mel sobre a tâmara para evocar o contraste entre o doce da fruta e a acidez da salada. 

Variações históricas

Em outras versões, Columella recomenda adicionar nozes esmagadas, o que traz crocância e gordura ao prato. E há registros de outras plantas cruas usadas nas mesas romanas: agrião, beldroega, azedinha, chicória, cerefólio, folhas de beterraba, manjericão e até malva. 

REFERÊNCIAS

CASIO, Dión. História Romana. Livro 67, Seções 9.1–6. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cassius_Dio/67*.html  

CÍCERO, Marcus Tullius. De Divinatione. In: The Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press, 1923.

CÍCERO, Marcus Tullius. De Natura Deorum. In: H. Rackham (Ed. e Trad.). Cambridge: Harvard University Press, 1933.

COLUMELLA, Lucius Junius Moderatus. De Re Rustica. Trad. e ed. Loeb Classical Library, Harvard University Press.

GAL­LEGO, Mireia. Larvae conviviales. El recuerdo de la muerte en los banquetes romanos. Atenea Nike: Historia de Roma – Simbología romana, maio 2020. Disponível em: https://www.ateneanike.com/historia-de-roma/simbologia-romana/larvae-conviviales/ .

GRAHAM, Emma-Jayne. Feeding the Dead: Libations and Commensality in Roman Tombs. Oxford Journal of Archaeology, v. 32, n. 1, p. 37-52, 2013. 

HARMON, S.; WYKE, Maria. “The Pleasures and Punishments of Roman Error: Emperor Elagábalo at the Court of History”. UCL Discovery, 2016. Disponível em: https://discovery.ucl.ac.uk/1534518/1/Wyke.The%20pleasures.book.chapterpdf.pdf  Acesso em: 19 out. 2025.

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