terça-feira, 9 de maio de 2023

O influenciador medieval que convenceu o mundo a beber chá - e não comê-lo.

 

Em algum momento de sua adolescência, nos anos 700, Lu Yu, aspirante a escritor e palhaço profissional, provou pela primeira vez uma sopa de chá. Isso provavelmente ocorreu não muito longe da casa de infância de Lu: um mosteiro budista com vista para um lago pitoresco na China Central. Mas Lu não se impressionou; ele chamou a sopa de “água de vala”.


O que incomodou Lu não foi o chá, mas todos os outros ingredientes. A bebida ofensiva continha cebolinha, gengibre, tâmaras de jujuba, cascas de frutas cítricas, bagas de Dogwood e hortelã, todos cozinhados “debulhados” juntos para fazer uma pasta lisa. O resultado foi uma sopa grossa, ou até mesmo um molho.

Lu Yu, na verdade, adorava chá – ele se tornaria o “deus do chá” e o maior influenciador do chá do mundo. Mas o chá que ele adorava — feito apenas de folhas de chá em pó, sem qualquer outro sabor — era, na grande extensão da história humana, uma invenção recente. As pessoas na Ásia, onde as árvores do chá são nativas, comeram folhas de chá por séculos, talvez até milênios, antes mesmo de pensar em beber. E é Lu Yu quem é o principal responsável por tornar o consumo de chá a norma para a maioria das pessoas ao redor do mundo.


De acordo com George Van Driem, autor de Tale of Tea: A Comprehensive History of Tea: From Prehistoric Times to the Present Day, o antigo costume de comer chá veio das florestas que atravessam a fronteira ocidental da China com a Birmânia. Também conhecido como Himalaia Oriental, esta região tropical exuberante era a pátria de povos não-chineses e árvores de chá selvagens.

Milhares de anos atrás, os habitantes das florestas descobriram as propriedades energizantes das folhas de chá mordiscando-as cruas. Isso os estimulou a escalar as árvores altas, que crescem mais de 9 metros na natureza, e colher as folhas. Então, em algum ponto desconhecido da antiguidade, eles também descobriram como fermentar as folhas, que mastigavam como betel (noz de areca) ou adicionavam a sopas e verduras.

Os chineses adquiriram o hábito de consumir chá algum tempo depois que seus governantes anexaram partes do Himalaia Oriental. Em pouco tempo, eles estavam usando chá para melhorar sua concentração. Por exemplo, Hua Tuo, um médico lendário que viveu no final do século II dC, teria escrito: “Comer as folhas amargas é bom para aguçar a mente se tomado por longos períodos de tempo”.

Mas o chá era mais para os chineses do que uma droga; eles também o viam como um ingrediente culinário. Na verdejante costa central, chefs caseiros ferviam as folhas de chá frescas e tenras em potes com arroz e água para fazer um mingau. O mingau era especialmente popular nos meses sufocantes de verão, pois não apenas estimulava o corpo, mas também supostamente “dissipa o calor”. (Muitas culturas modernas de chá também acreditam que beber chá ajuda a esfriar o corpo.)

Os alimentos à base de chá também eram onipresentes no interior sem litoral da China. Zhang Yi, um estudioso do século III, descreveu uma sopa com cafeína como aquela que Lu Yu desprezava. Os habitantes locais misturaram folhas de chá fermentadas com pasta de arroz para fazer um bloco, que eles “assaram até dourar e trituraram em pó”. Para os toques finais, regavam com água fervente e acrescentavam cebolinha, fatias de gengibre e cascas de frutas cítricas. A oferta de ensopado e amido aparentemente atraiu críticas mistas. Pi Rixiu, um poeta do século IX, reclamou que o chá estava “enlameado com outros ingredientes”. Ele também brincou que consumi-lo era “como mastigar legumes cozidos”.

Se você está se perguntando por que não viu sopa de chá nos menus chineses contemporâneos, agradeça a Lu Yu. Quando Lu não estava atuando em uma trupe de comédia ou escrevendo tratados elegantes, ele estava ocupado vasculhando as florestas do sudoeste em busca das melhores folhas de chá e da bebida perfeita, que ele fazia para seus amigos ricos. O amante do chá medieval também teve uma mão pesada na transformação do chá de um alimento ensopado para o líquido sem calorias que conhecemos hoje.

Lu não foi o primeiro a infundir folhas de chá ou dissolver chá em pó em água quente. As pessoas preparavam chá dessa maneira há séculos, e o chá era especialmente abundante nos mosteiros budistas de seu tempo. Os monges acharam a bebida indispensável para alimentar suas maratonas de sessões de meditação, que muitas vezes faziam com o estômago vazio.

Lu provavelmente adquiriu o hábito de beber chá puro do monge budista que o criou depois de encontrar o pequeno órfão. (Lu mais tarde retribuiria a gentileza de seu pai adotivo fugindo de casa quando adolescente.) Mas na década de 760, Lu compôs o Clássico do Chá, um pequeno tratado sobre a produção e preparação da folha. Nele, ele elogiava as maravilhosas qualidades da bebida não adulterada.

James Benn, autor de Tea in China: A Cultural and Religious History, diz que a preferência de Lu pela bebida simples surgiu de sua convicção de que a folha era um "elixir". Lu pensou que as propriedades mágicas do chá seriam atenuadas se misturadas com ingredientes mais mundanos, como arroz. Por isso, ele insistiu que o chá fosse consumido apenas com água e uma pitada de sal (para melhorar o sabor da água). Lu também desaprovava mingaus de chá ou sopas.

Para convencer os leitores a abandonar os ingredientes extras, Lu explicou como garantir uma bebida que pudesse ser apreciada sozinha. Por exemplo, ele enfatizou a importância de adquirir água pura de nascente e pó de chá fino; uso de implementos de alta qualidade, como fogões a carvão; e seguindo os procedimentos estabelecidos, como bater o pó para produzir um topo de espuma. A omissão de qualquer uma dessas etapas, alertou Lu, estragaria o sabor da bebida, resultando em um sabor “fraco”. Mas quando meticulosamente preparado, o chá simples era sublime, “o rival da manteiga clarificada e da cerveja refinada de orvalho doce”, que eram então padrões-ouro de excelência culinária.

O Clássico do Chá não apenas estimulou a mania pela folha, mas também rendeu grande fama a Lu e inspirou inúmeros imitadores. Em meio século, a marca de Lu na cultura chinesa do chá era evidente. Os vendedores de chá faziam estátuas de cerâmica à sua semelhança e o adoravam como seu santo padroeiro.

O grande sucesso de O Clássico do Chá refletiu o dom de seu autor para o networking. Apesar de seu começo humilde, o talento de Lu como cômico e propensão à autopromoção lhe rendeu apoiadores poderosos. Enquanto trabalhava como palhaço, Lu, de 14 anos, teve seu primeiro golpe de sorte. Depois de ver Lu se apresentar, um governador local declarou Lu “um talento extraordinário” e adotou o menino, oferecendo a seu protegido uma educação esplêndida. Essas oportunidades deram a antiga entrada descontrolada para a sociedade de elite chinesa. Na época em que escreveu sua magnum opus na década de 760, Lu contava com oficiais poderosos, teólogos budistas e taoístas, calígrafos e poetas importantes entre seus amigos íntimos. Essas conexões deram a Lu influência sobre os influentes.



O Clássico do Chá também se beneficiou do bom momento. Benn aponta que a elaboração desta obra por Lu coincidiu com a Rebelião An Lushan, uma revolta de meados do século VIII que quase destruiu a poderosa Dinastia Tang da China (618-907). Em seu rescaldo, a classe dominante de partidos duros ficou sóbria, literal e figurativamente. Escrito em um idioma clássico, O Clássico do Chá de Lu convenceu os ricos e poderosos de que a folha oferecia uma alternativa saudável e elegante ao vinho e à cerveja.

O tratado de Lu também convenceu a classe dominante da China a rejeitar sopas e mingaus com cafeína. Por exemplo, Su Che, um famoso oficial e ensaísta, destruiu misturas de chá picante no final do século 11. “O chá que os caipiras do norte consomem”, ele zombou, “não tem qualidades redentoras, já que o sal, o iogurte, o gengibre e a pimenta chegam à boca”.

A influência de Lu se espalhou muito além da China. No Japão, por exemplo, beber uma bebida discreta é popular há séculos. Isso se deve muito aos monges japoneses, que visitaram a China frequentemente entre os séculos VIII e XIII. Impressionados com a cultura do chá chinês medieval, os clérigos budistas importaram sementes de chá e o célebre tratado de Lu.

De fato, quando os europeus encontraram o chá na China e no Japão nos séculos XVI e XVII, já era uma conclusão precipitada que o chá era algo para beber, e não para mastigar. Samuel Pepys, o diarista britânico, referiu-se à folha como uma “bebida da China” em 1660. Então, quando surgiram relatos de marinheiros holandeses engolindo folhas de chá, as notícias se tornaram uma fonte de diversão. (Provavelmente, os marinheiros comiam folhas de chá para prevenir o escorbuto, uma aflição comum em longas viagens oceânicas.)

Enquanto muitas pessoas ao redor do mundo agora conhecem o chá apenas como uma bebida, os habitantes do Himalaia Oriental continuam gostando de comer as folhas. Como seus ancestrais, os povos da tribo Palaung cozinham e embrulham chá em folhas de bananeira, depois depositam os pacotes em poços subterrâneos. Depois de vários meses, as folhas de chá em conserva estão prontas para entrar no Lahpet Thoke, ou na famosa salada de chá birmanesa. Os Jino, que vivem em Yunnan, também saboreiam seu chá em conserva e usam as folhas frescas para fazer verduras fritas e mingau.

O chá comestível também nunca desapareceu completamente do mundo de língua chinesa. Apesar do escárnio de Lu, as pessoas ainda consomem um ensopado de chá chamado leicha (擂茶). Traduzido para o inglês como “pounded tea” ou “thunder tea”, a leicha é mais conhecida como um alimento distinto dos Hakka, um grupo de chineses han que fugiram de um norte da China devastado pela guerra e se estabeleceram no sul muitos séculos atrás.

Embora cada cozinheiro Hakka dê seu próprio toque na receita, os contornos básicos são semelhantes. Comece fazendo uma pasta com o chá verde ou Oolong com ingredientes como cebolinha, gengibre, hortelã, sementes de gergelim e manjericão e adicione água quente. Depois de obter um molho verde brilhante, despeje-o sobre uma cama de arroz e sua escolha de legumes e coalhada de feijão.

Nos últimos anos, este ensopado com cafeína testemunhou um pequeno renascimento graças à popularidade da culinária Hakka. O chá batido é agora uma comida de rua amada na Malásia e um sabor de sorvete em Taiwan.

Os foodies também não descartam mais o chá batido como “água de vala”. Em The Hakka Cookbook: Chinese Soul Food from Around the World, Linda Lau Anusasananan exalta sua singularidade: “Cada elemento da cobertura contribui com um sabor e textura diferentes”, escreve ela. O molho é “suave, cremoso e herbáceo. Quando combinado com o arroz com aroma de alho, o prato satisfaz e energiza.”

Embora não esteja claro se o chá moído se tornará um alimento popular novamente na China, uma coisa é certa: da tradição do Himalaia à comida do país desprezada e ao patrimônio aclamado, comer seu chá completou um círculo.

Leicha (Chá Herbáceo da Malásia), do The Hakka Cookbook Blog, de Linda Lau Anusasananan

Faz cerca de 5 1/2 xícaras, 6 a 8 porções, de chá para servir com arroz e verduras

Ingredientes

2 xícaras de folhas frescas de manjericão tailandês ou italiano

2 xícaras de folhas de hortelã fresca

2 colheres de chá de óleo vegetal

1 colher de chá de alho picado

1/4 xícara de coentro picado

2 colheres de sopa de folhas secas de chá verde

6 grãos de pimenta preta

2/3 xícara de amendoim torrado salgado

3 colheres de sopa de gergelim torrado

1 xícara de água fria

4 xícaras de água fervente

1 colher de chá de sal kosher, ou a gosto

Preparo: pique grosseiramente o manjericão e a hortelã. Coloque uma frigideira de 10 a 12 polegadas em fogo médio-alto. Quando a panela estiver quente, adicione o óleo e gire a panela para espalhar. Adicione o alho e mexa até ficar macio, cerca de 30 segundos. Adicione o manjericão, a hortelã e o coentro; frite apenas até que as ervas fiquem verdes brilhantes, cerca de 30 segundos. Retire as ervas da panela. No liquidificador, triture finamente as folhas de chá e os grãos de pimenta. Adicione o amendoim e as sementes de gergelim; bata até ficar bem moído. Adicione a mistura de manjericão e água fria e bata até ficar homogêneo. Pouco antes de servir, adicione 1 xícara de água fervente à mistura de ervas no liquidificador e bata até ficar homogêneo, segurando a tampa do liquidificador com uma toalha. Despeje o chá em uma panela de 2 litros. Adicione as 3 xícaras restantes de água fervente e sal; bata até misturar. Mexa em fogo médio até ficar bem quente. Servir quente.

Nota do autor: Esta receita é muito semelhante à sopa que Lu Yu reclamou. De minha parte, gostei. Esta é apenas a porção de chá da receita, você deve derramá-lo sobre o arroz coberto com verduras fritas e tofu prensado.

Quando cozinhei esta receita de leicha, cozinhei 1 xícara de arroz, refoguei uma cabeça de bok choy até murchar um pouco e fritei fatias de tofu prensado na wok. Para servir, coloquei meia xícara de arroz cozido em uma tigela, adicionei o bok choy, tofu prensado, amendoim torrado e folhas de mostarda em conserva, depois reguei o molho de chá por cima. Você pode adicionar mais molho de chá se gostar da sopa e temperar com mais sal e pimenta. .

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Já provou a "Carne de Onça" curitibana?

 

Se você não vive em Curitiba (PR), Não se assuste. Pois não trata-se de uma preparação à base desse felino. Serve de aviso para os haters que podem surgir "dando uma de ativistas". Nunca nenhuma onça teve que morrer para este preparo acontecer. Mas, se é assim, qual razão para a preparação receber tal nome? Os simplistas reduzem tudo e culpam a grande quantidade de cebola crua nas mistura, que resultaria no "bafo de onça" do comensal. Porém, a história real é um tanto longa...

Na década de 1940 havia em Curitiba um time de futebol chamado Britânia, que depois, com outros times, formou o Paraná Clube. O presidente do Britânia, na época, era Cristiano Schmidt.

Schmidt, que tinha o apelido de “tatu”, era proprietário de um bar na Marechal Deodoro, esquina com a 15 de Novembro, chamado Toca do Tatu. Para comemorar as vitórias do time, ele espalhava carne bovina crua moída sobre fatias de broa comprada na panificadora de um alemão que ficava próxima da Toca do Tatu.

Por cima da carne colocava cebola branca e cebolinha verde bem picadinhas, e então temperava com sal e azeite de oliva. Servia com chope para os jogadores. Um dia o goleiro do time teria reclamado, dizendo “você só serve essa carne aí, que nem onça come”. E então surgiu a tal da “carne de onça”. Schmidt colocou o prato no cardápio e logo outros bares da cidade começaram também a servi-lo.

A receita criada por Cristiano Schmidt provavelmente teve origem na receita alemã do Hackepeter. A maior parte dos bares serve o preparo como foi originalmente concebido, sem tantos temperos, deixando a carne brilhar. Mas há quem prefira com muitos condimentos, mais ao estilo do próprio Hackepeter.


O importante é utilizar uma carne magra bem fresca (normalmente patinho), de boa procedência, sem gordura ou nervuras, e uma broa úmida e saborosa. Desde 2016 a carne de onça se tornou Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial de Curitiba, após trabalho do empresário e cozinheiro Sérgio Medeiros.

 Carne de Onça

Ingredientes

80 g de patinho moído

3 colheres de sopa de cebola branca picada

3 colheres de cebolinha verde picada

1 fatia de pão tipo broa

Sal e pimenta

Montagem

Espalhe a carne moída uniformemente sobre a broa. Faça uma camada generosa de cebola picada. Adicione a cebolinha verde, tempere com sal e pimeta a gosto.

Dica:

Deixe para temperar na hora em que for servir.

Regue com azeite de oliva a gosto

 

domingo, 30 de abril de 2023

A Quiche da Coroação de Charles III - e o que ela nos revela sobre a gastronomia Britânica.

 

Faz algum tempo que eu acompanho os Menus da Família Real Britânica em momentos especiais - e eles renderam ótimas postagens para o blog ( como essa https://confrariadobaraodegourmandise.blogspot.com/...). E agora, com a coroação de Charles, no próximo dia 06 de maio, se aproximando nada mais justo do que observar as escolhas do monarca para celebrar essa nova era.

O rei Charles III e a rainha consorte Camila anunciaram uma quiche como prato oficial da coroação. Idealizado por um chef do Palácio de Buckingham, a ideia é que as pessoas cozinhem em casa, como parte do Grande Almoço da Coroação, um banquete nacional e até internacional.

A receita apresenta uma massa quebradiça tradicional com banha adicionada, envolvendo um recheio de creme de leite, ovo de espinafre, favas (vicia faba) e queijo cheddar, temperado com estragão. Como o frango da coroação da rainha Elizabeth em 1953, ele revela muito sobre a inevitabilidade do multiculturalismo na cozinha. A mensagem de qualquer coroação britânica é indiscutivelmente se deve celebrar o caráter britânico. A questão, então, é o que um prato tipicamente francês estaria fazendo no centro da mesa britânico nesse momento especial?

Talvez, como o pudim de Natal do império de George V em 1927, ele próprio criado por um chef francês, a quiche pretenda nos dizer algo sobre quem são os britânicos. Mas as mensagens podem se perder com o tempo. O pudim de Natal pretendia mostrar a grandeza de pertencer ao império britânico, mas agora é mais provável que lembre as pessoas da violência em seu cerne.

A coroação do rei Carlos III trata-se da primeira coroação de um monarca britânico desde 1953, e ocorre em um momento de acerto de contas para a monarquia, a família real e a Commonwealth.


Momentos marcantes, como a coroação de um novo monarca, são revelados nas refeições servidas para comemorar a grande ocasião. O rei Charles III optou por uma cerimônia mais curta e simples do que sua mãe fez em 1953. Charles não é o primeiro rei a tentar impor moderação nas cerimônias reais. 

A influência da culinária francesa

De 1189 até 1830, quando William IV decidiu que era uma extravagância desnecessária, os novos monarcas da Inglaterra eram homenageados com um banquete de coroação. George IV, a quem William IV sucedeu, era bem conhecido por seu amor pelas ricas comidas francesas. Portanto, não é surpresa que ele tenha se tornado o banquete para encerrar todos os banquetes.

O Banquete de Coroação do Rei George IV, no Wesrminster Hall, 1821,

Em 19 de julho de 1821, 1.634 comensais se reuniram em torno de 47 mesas colocadas no Westminster Hall para um banquete no meio da tarde. Um livro escrito à mão nos dá um vislumbre de todas as centenas de pratos servidos, no valor de £ 250.000 (equivalente a £ 27 milhões em dinheiro de hoje).

Na mesa principal sentavam-se o novo rei e seis homens da família real. O primeiro course era composto por 20 pratos, incluindo les filets de poulards, sautés aux champignons (frango salteado com cogumelos), les cotelles d'agneau, panées, grillées, molho poivrade (costeletas de cordeiro empanadas e grelhadas em molho de pimenta) e le paté chaud de caille à l'espagnole (uma torta de codorna, servida quente).

Seguiram-se dois courses, com ainda mais pratos: 22 e 31, respectivamente. A refeição incluiu linguado cozido em champanhe, sopa de tartaruga, um jarro fiado em açúcar e recheado com merengues e um templo também de açúcar feitos pelos confeiteiros. E rematou com sorvetess, bolachas e fruta fresca – melões, toranjas, ameixas e nectarinas.

Qualquer animosidade cultural que persista entre britânicos e franceses é mantida com muito mais ambivalência na cozinha do que em qualquer outro lugar. A alta gastronomia na Grã-Bretanha há muito é influenciada pelas novas tendências do outro lado do canal. Quando George IV contratou o chef mais famoso de sua época, Antonin Carême, para cozinhar em suas casas em Londres e Brighton em 1816, Carême observou que grande parte da dieta da Grã-Bretanha era, na verdade, francesa.

Ao optar por um prato francês, Charles segue os passos de seus antepassados. O pudim de Natal inglês de George V foi criado por um chef francês. E o cardápio de Elizabeth II para seu almoço de coroação, muito parecido com o do banquete de coroação de George IV, foi escrito quase inteiramente em francês, embora contasse uma história britânica.

Menu for Queen Elizabeth II’s Coronation State Banquet, 3 June 1953

O amor do curry da Grã-Bretanha foi o sabor principal no prato de frango da coroação inventado por Rosemary Hume e Constance Spry no Le Cordon Bleu London para Elizabeth em 1953.

O almoço de Elizabeth em 1953, como o banquete de George IV, começou com uma sopa de tartaruga, que Carême declarou ser a sopa nacional da Grã-Bretanha. Ele estava certo. A sopa ocupou um lugar de destaque nas mesas de banquete ao longo dos séculos XVIII e XIX. Mas só existia por causa da exploração das colônias ultramarinas pela Grã-Bretanha. Assim, conta a violenta história colonial da nação, seja ou não essa a mensagem pretendida por aqueles que compuseram o cardápio de Elizabeth.

A sopa foi seguida de um prato de peixe que recebeu o nome de delices de soles Príncipe Charles, em homenagem ao herdeiro, sinalizando assim a continuidade e estabilidade da monarquia. Seguiu-se o cordeiro cozido à la Windsor , juntamente com vagens, aspargos e morangos posteriores, todos presumivelmente cultivados localmente.

A comida cultivada localmente também foi uma grande paixão de um monarca anterior: George III. Embora mais frequentemente retratado na cultura popular como o “rei louco George” (ele sofria de doença mental), em sua vida ele era conhecido como “Fazendeiro George”. Ele escreveu artigos sobre agricultura usando o pseudônimo de Ralph Robinson.

Ao contrário da predileção de seu filho George IV pela rica culinária francesa, George III preferia sabores tipicamente britânicos - tortas de frutas e pratos simples de ovo e espinafre. Mas mesmo aqui, a história da comida britânica tinha inflexões europeias.

Os livros em que se mantinha um registro diário dos jantares do rei entremeavam palavras em francês e inglês para descrever pratos de carne assada, guisados ​​e pudins. Como o rei britânico também era o Elector of Hannover, e sua esposa, a rainha Charlotte, uma princesa alemã, também há indícios de comida alemã nos livros reais. Quando se trata de escolhas alimentares, sabores e técnicas culinárias, a Grã-Bretanha era, e continua sendo, parte da Europa.

Charles III compartilha a paixão de George pela agricultura. Ele é conhecido por seu ambientalismo e seu compromisso com a agricultura orgânica.

As escolhas de Charles podem ter a intenção de reconhecer o multiculturalismo da Grã-Bretanha hoje. Mas também são um lembrete do difícil legado do império. As histórias que contamos sobre nós mesmos através de nossa comida tecem as coisas que queremos dizer e as coisas que não podemos deixar de revelar.

 A quiche da coroação de Charles III

 A coroação do rei Charles acontecerá em 6 de maio e a família real está se preparando para um fim de semana de comemorações.

Claro, isso inclui alguns eventos importantes (com muitos momentos icônicos da moda real), como um almoço especial com um prato exclusivo. Na verdade, o rei Charles e a rainha consorte Camilla escolheram pessoalmente a refeição real em um anúncio recente, e já está se tornando viral! A receita oficial já está disponível na página oficial da realeza britânica (veja pelo link https://www.royal.uk/the-coronation-quiche ).

O Grande Almoço da Coroação visa reunir vizinhos e comunidades para celebrar a Coroação e compartilhar amizade, comida e diversão. Sua Majestade, a Rainha Consorte, é patrona da iniciativa desde 2013 e participou de grandes almoços em todo o Reino Unido e no mundo, inclusive em Gana e Barbados.

No ano passado, o The Queen Consort organizou um grande almoço especial no campo de críquete Oval para celebrar o Jubileu de Platina da Rainha Elizabeth II.

O anúncio da quiche da coroação também foi feito no Instagram onde se gabaram de que o prato primaveril é "facilmente adaptado a diferentes gostos e preferências". Assim como em outras receitas de quiche, você pode servi-lo quente ou frio e com seus acompanhamentos de piquenique ou doces para a hora do chá favoritos.

Mas por que quiche? De acordo com o ex-chef da família real, Darren McGrady, "O rei adora qualquer coisa com ovos e queijo". E, se você tem a vontade de participar dos eventos reais em maio, mas não estará por lá, experimente fazer a receita de quiche da coroação e me conte o que você pensa do resultado me mandando comentários.

Quiche da Coroação de Charles III

Ingredientes

Massa

125g de farinha de trigo

1 pitada de sal

25g de manteiga fria, em cubos

25g de banha

2 colheres de leite

(250g de massa podre comprada pronta)

 Recheio

125ml de leite

175ml creme de leite fresco

2 ovos médios

1 colher de sopa de estragão fresco picado,

Sal e pimenta

100g de queijo cheddar ralado,

180g de espinafre cozido, levemente picado

60g de favas cozidas ou use edamame, que são feijões de soja verde)

Preparo: Para fazer a massa… Peneire a farinha e o sal para uma tigela; adicione as gorduras e amasse a mistura com as pontas dos dedos até obter uma textura arenosa e migalha de pão. Adicione o leite um pouco de cada vez e junte os ingredientes em uma massa homogêna. Cubra e deixe descansar na geladeira por 30- 45 minutos Enfarinhe levemente a superfície de trabalho e abra a massa em um círculo um pouco maior que a forma e com aproximadamente 5mm de espessura. Forre a forma com a massa, tomando cuidado para não deixar furos ou a mistura pode vazar. Cubra e deixe descansar por mais 30 minutos na geladeira. Pré-aqueça o forno a 190°C. Forre a assadeira com papel manteiga, (se tiver algum pezinho pra colocar na massa para que ela não suba, essa é a hora de usar) e leve ao forno por 15 minutos, depois, retire do forno e reduza a chama do forno para a temperatura de 160°C. Recheio: Bata o leite, o creme de leite, os ovos, as ervas e os temperos. Espalhe 1/2 do queijo ralado na base de massa que saiu do forno, coloque o espinafre picado, as favas e as ervas e cubra com a mistura líquida .Se necessário, mexa delicadamente a mistura para garantir que o recheio seja distribuído uniformemente, mas tenha cuidado para não danificar a massa. Polvilhe o queijo restante. Coloque no forno e asse por 20-25 minutos até ficar firme e levemente dourado. 

domingo, 24 de julho de 2022

As origens eróticas do Cannoli

 


Provavelmente a sobremesa mais famosa da Itália, os cannoli são orgulhosamente exibidos em quase todos os cafés e pasticceria sicilianos, homenageados até no site oficial da ilha (veja AQUI) e imortalizados pelos sicilianos em ‘O Poderoso Chefão’, com a famosa frase "Deixe a arma, pegue os cannoli" , confira o momento no vídeo abaixo: 


Mas se você já viu um cannolo e pensou: "sim, parece um...", você não está sozinho. O amado doce siciliano realmente se assemelha a um falo - e por boas razões.

Reza a lenda que na cidade siciliana de Caltanissetta durante o domínio árabe (por volta de 1000 d.C.), um harém de mulheres criou o deleite - uma concha de massa tubular frita feita de farinha, açúcar e manteiga e recheada com queijo ricota doce e cremoso - para exaltar a masculinidade de seu Emir (trata-se de um título aristocrático árabe equivalente a príncipe). Embora essa história não possa ser comprovada, já que não há registros escritos, a noção dessa pastelaria erótica remonta a séculos. Por lá era chamado de “Verga di Mosè” ("Vara" de Moisés) ou de “Scettro del Re“ (Cetro do rei). vale ressaltar, ainda, que 'Caltanissetta' deriva do árabe 'qal-at-nisa', que se traduz como a "cidade das mulheres"". o que  justifica a presença de harém com muitas mulheres.



Outra versão conta que, após a expulsão dos sarracenos pelos normandos, algumas concubinas do sultão escaparam do harém e se refugiaram em um convento onde se converteram ao cristianismo e estabeleceram um forte vínculo com as freiras. Se assim fosse, o cannolo seria fruto do feliz encontro entre a tradição clássica e a tradição árabe.

Embora existam vestígios de um “cannoli” primordial que remonta à época romana, a receita que existe hoje é de origem árabe. O testemunho mais antigo que temos é fornecido pelo orador romano Marco Túlio Cícero, que por volta de 70 a.C, quando era questor na Sicília (Magistrado da antiga Roma que tinha a seu cargo as finanças, também poderia ser o Juiz criminal entre os romanos), provou uma sobremesa muito semelhante aos cannoli que ele definiu como “tubus farinarius, dulcissimo, edulio ex lacte factus” (“cilindro preparado com farinha, recheado com um recheio de leite muito doce”).

Na Grécia Antiga, durante as festividades da Thesmophoria em homenagem às deusas Perséfone e Deméter, as pessoas consumiam mel e bolos de gergelim no formato de seios para celebrar a fertilidade e a maternidade. Essa prática, que se acredita ter se originado em rituais anteriores realizados no Antigo Egito para adorar a deusa Ísis, mais tarde se espalhou para o resto do Mediterrâneo e para a Sicília pré-romana.

Assim, os órgãos sexuais não eram considerados tabu nos mundos grego e romano antigos, eram antes reverenciados como símbolos de abundância. As formas sexuais das sobremesas sicilianas derivam desse mundo antigo. Naquela época, era importante ter muitos filhos, pois eles cultivariam a terra e sustentariam a família.

No século XI, os conquistadores normandos converteram a Sicília ao catolicismo e as tradições antigas se misturaram às tradições católicas: as observações do solstício de inverno se misturaram ao Natal, e os ritos de fertilidade se fundiram à Páscoa. As antigas sobremesas duraram e foram conservadas pelas freiras, que faziam as confecções dentro dos seus conventos para festas e feriados religiosos.

Por exemplo, a cassata (já escrevi sobre ela no blog, confira AQUI ), que se pensava ter nascido durante o domínio árabe para celebrar a renovação da primavera, tornou-se uma especialidade da Páscoa.

                                                      Cassata

E, como cannoli, uma série de outras sobremesas italianas antigas com formas eróticas foram transmitidas através dos tempos. O Minne Di Sant'Agata ou Minni di Virgini (uma meia esfera cheia de ricota coberta com glacê branco e cereja cristalizada, também já tratei sobre essa sobremesa AQUI) foi feita para parecer um peito em homenagem a Santa Agatha, uma mártir da era romana cujos seios foram cortados por recusar os avanços de um homem, enquanto o Fedde del Cancellieri (creme e geleia de damasco entre dois biscoitos de amêndoa num formato de concha) foi criado em tom de brincadeira para se assemelhar às nádegas de um chanceler.

                                            Minne Di Sant'Agata 
                                             Fedde del Cancellieri

As freiras não faziam sobremesas em formato erótico, como algumas pessoas pensam, porque eram sexualmente reprimidas e queriam se divertir, mas porque herdaram uma tradição antiga.

Desde o tempo da Grécia Antiga, a confecção e, portanto, o consumo de símbolos comestíveis estava associado ao ritual de sacrifício e pensava-se que aproximava as pessoas dos deuses. Como essa noção foi transportada para o catolicismo, as freiras foram autorizadas a desenvolver a confeitaria apesar das regras monásticas medievais que proibiam a gula, para o Carnaval, uma celebração pré-quaresma enraizada em um antigo festival em homenagem a Baco, o deus romano do vinho e do êxtase (Dionísio em grego) - as regras eram rigorosas. Mas, as regras às vezes precisam ser derrubadas para serem reafirmadas - e o carnaval permitia exatamente isso.

Era a única época do ano em que o pudor católico deixava espaço para o excesso e a auto expressão desinibida – e era a hora de comer cannoli. Os homens dariam o doce tubular às mulheres para sugerir seus desejos sexuais, cantando: "Ogni cannolu è scettru d 'ogni Re ... lu cannolu è la virga di Mosè" (Todo cannolo é o cetro de todo rei ... o cannolo é o pênis de Moisés).

Infelizmente, a maioria dos conventos que usavam as receitas tradicionais de cannoli (como a Abbazia Nova em Palermo) fechou, e apenas um punhado de freiras mais velhas ainda sabe como fazê-los. Um mito sustenta essa idea sobre a abadia de apalermo, afirmando que as “mulheres dentro do castelo” tiveram a ideia de rechear a massa frita com ricota, para receber seu amado de volta de Palermo. Aparentemente o cannoli era considerado uma sobremesa ideal que podia ser preparada rapidamente, perfeito para receber alguém em sua chegada»,

Embora os cannoli sejam agora onipresentes em toda a Itália, e pelo mundo, os melhores e mais "autênticos" podem ser encontrados apenas em alguns cafés sicilianos, como Caffè Sicilia em Noto, Euro Bar em Dattilo e alguns lugares na comuna de Piana degli Albanesi. 

Embora em todas as partes da ilha, o cannoli seja delicioso e sua receita seja sempre a mesma, coberta com açúcar em pó ou canela e sempre recheada instantaneamente para manter a sua "crocância", a diferença substancial está no seu recheio : de fato, além do recheio clássico com creme de ricota, existem versões de chocolate, creme de pistache e Nutella, 

Para seguir a tradição, o recheio utiliza-se da ricota de leite de ovelha, muito densa e encorpada, com um sabor mais forte especialmente no território de Palermo e Catania, ao contrário do Zona de Ragusa, onde se prefere a ricota de leite de vaca, mais fina e espumosa, com sabor mais delicado. Outra característica interessante desta sobremesa especial, podemos encontrá-la em sua decoração final, por exemplo, em Catania são usados ​​grãos de pistache ou avelã, enquanto em Palermo são usadas a cereja cristalizada (em dialeto siciliano "cirasa") ou os filetes de casca. laranja.

Se você desejar preparar o seus em casa, abaixo segue uma receita considerada tradicional e apresenta pelo site oficial da ilha italiana que o deixou famoso. Aproveite.

 

Cannoli siciliani

Ingredientes (para 4 – 6 cannoli)

para as conchas de massa:

 150 g de farinha de trigo

50 g de açúcar

25 g de banha (ou lardo, ou manteiga)

10g de cacau em pó

1 ovo

1 colher de sopa de vinho tipo marsala (ou vinho branco)

Azeite, banha ou óleo para fritar

para o recheio:

500 g de ricota de leite de ovelha

150 g de açúcar

extrato de baunilha

gostas de chocolate escuro

casca de laranja cristalizada picada

pistache picado

Preparo: Massa – Coloque todos os ingredientes numa tigela e misture, acrescentando um pouco de vinho, tendo em conta que, no final, a massa deve ter a mesma consistência da massa de pastel. Cubra a massa com um pano de prato e deixe descansar por cerca de 30 minutos, depois abra com um rolo para criar folhas finas. Corte formas ovais (ou circulares), se necessário use um molde de papel de manteiga como modelo ou um cortador de metal. Enrole as massas em torno de tubos de estanho especiais (os juncos já foram usados ​​para este fim, daí o nome; se não tiver isso, pedaços de madeira bem cobertos com papel alumínio resolvem), sobrepondo as bordas da massa em alguns milímetros e pincelando com clara de ovo levemente batida para segurar no lugar e evitar que os cannoli se abram durante o cozimento. Frite-os em banha quente ou azeite. Deixe secar e esfriar. Remova cuidadosamente os tubos de estanho. Uma versão envolve a adição de cacau à massa, mas isso só serve para tornar as cascas mais escuras e tem pouco efeito sobre o sabor. Preparo o recheio –Passe a ricota por uma peneira fina (não é recomendado o uso de batedeiras, pois deixarão a ricota muito fina), adicione o extrato de baunilha, os flocos de chocolate e o açúcar. Misture muito bem e recheie as massas já frias. Quando todos os cannoli estiverem cheios, decore com a casca de laranja cristalizada e pistache moído, depois polvilhe com açúcar de confeiteiro. 

sábado, 9 de julho de 2022

Bebinca: Como uma freira e muitas sobras de gema de ovo criaram a 'rainha das sobremesas de Goa

Goa é um estado no oeste da Índia com um litoral que se entende pelo Mar Arábico. Sua longa história como colônia portuguesa antes de 1961 é evidente nas igrejas preservadas do século XVII e nas plantações de especiarias tropicais. Goa também é conhecida por suas praias, que vão de Baga e Palolem, muito procuradas, às praias de vilarejos pesqueiros tranquilos, como Agonda.

Mas, se você não conhece Goa eu tenho uma maneira de te levar a sentir o gosto daquele lugar: comendo uma fatia (com certeza, mais de uma) de Bebinca, um tradicional doce que, se servido com espuma de ghee encapsula a identidade cultural e histórica única daquele lugar delirando ao longo das sete camadas de brilho reluzente que essa sobremesa possui.

Saboroso resquício do passado colonial daquele Estado, Bebinca é tão única em Goa quanto as deliciosas ilustrações do cartunista Mario Miranda que retratam a vida dos goeses.

                                Mario Miranda e algumas de suas obras retratando a vida em Goa.             









E é por isso que não é surpresa que o ministro-chefe do estado, Pramod Sawant, tenha anunciado recentemte uma Indicação Geográfica (IG) para a sobremesa, além da manga Mankurad, feni ou femim, um aguardente de coco local, berinjela Taleigao, Saat Shireacho Bhendo (quiabo) e o saree Kunbi (indicações geográficas aliás, são alvo de alguns de alguns estudos acadêmicos meus, obviamente analisando o caso Brasileiro - e você poderá lê-los pelo meu blog em "Publicações do Barão").

Mas por baixo da deliciosa fatia de várias camadas de felicidade quente, muitas vezes servida com sorvete de baunilha, encontram-se histórias interessantes das aventuras culinárias de Goa.


alguns dos sabores que aparecem nas bebincas de Goa

Também conhecida como ‘bibik’, esta sobremesa de influência portuguesa é indiscutivelmente a iguaria doce mais popular de Goa. Faz aparições especiais em todas as ocasiões, seja um casamento, Natal ou qualquer outra festa. Isso de fato rendeu a Bebinca o apelido de 'Rainha das Sobremesas Goas'.

No entanto, sua origem ainda está envolta em mistério. Algumas lendas afirmam que, assim como outras confeitarias do convento (doces conventuais em português), a Bebinca também foi inventada por freiras portuguesas no século XVII. Mas o que se destaca é sua abordagem de cozimento sem desperdício.

Ao contrário da maioria dos alimentos assados que usam clara de ovo, aqui as gemas ganham destaque. Usar claras de ovos para engomar roupas era uma prática comum dos colonizadores que ainda prevalece em partes da Velha Goa. Como resultado disso, a maioria das pessoas, assim como as freiras portuguesas do Convento de Santa Mônica em Velha Goa, acabariam com sobras de gemas de ovos. Reza a lenda que a Bebinca veio para ser uma solução para sobras de gemas.

Convento e Igreja de Santa Mônica em Velha Goa

Estas histórias e um livro de destaque da historiadora Fátima da Silva Gracias, Cozinha de Goa: História e Tradição da Comida Goanense, afirma que uma dessas freiras do Convento de Santa Mônica se chamava Bebiana. Ela inventou um pudim de sete camadas usando as gemas restantes para simbolizar as sete colinas da cidade velha de Goa e Lisboa.



Este pudim foi então enviado aos padres, possivelmente os que moravam no Convento de Santo Agostinho – a Ordem a que pertencia Santa Mônica – que, embora impressionados, apontaram que sete camadas não eram suficientes para eles. Eles aconselharam Bebiana a aumentar o tamanho da sobremesa para acomodar pelo menos uma dúzia de camadas. Hoje, este pudim é conhecido como Bebinca em sua homenagem e possui de 7 a 16 camadas.

Não há nada como cortar as camadas de Bebinca para revelar as maravilhas de sabores complexos criados com ingredientes bastante simples.

O calor trancado dentro de cada camada, derretendo o sorvete de baunilha enquanto você dá uma mordida, é bastante espetacular e é resultado de quatro ingredientes principais – ovos, farinha de trigo (maida, farinhade trigo refinada), leite de coco e açúcar. Para realçar os sabores e criar as camadas em cascata, adiciona-se muito ghee e uma pitada de noz-moscada.

Mas o único ingrediente crítico ao assar Bebinca é a paciência. Um verdadeiro trabalho de amor, é preciso mantê-lo de lado por 4 a 12 horas para seguir religiosamente a receita. Faça as duas massas separadas (uma escura e uma clara), despeje uma camada fina de cada massa, unte com ghee derretida por cima, asse e repita, alternando entre as camadas escuras e claras. Em outras palavras, no caso de uma Bebinca de 16 camadas, você precisaria cuidadosamente fazer camadas, untar e assar cada camada de massa 16 vezes!

Tizal, uma faiança local para fazer bebinca - Goa Chitra Museum

Especialistas em alimentos dizem que os melhores resultados podem ser alcançados apenas seguindo o método tradicional de assar, que envolve o uso de um forno de barro especial chamado tizals. Ao contrário de outras sobremesas assadas, a Bebinca feita nessas panelas não é assada no fogo, mas colocando algumas cascas de coco queimando sobre a tampa. Um truque para quem cozinha no forno convencional é selecionar a configuração da fonte de calor que permite que o calor seja liberado por cima e não por baixo da Bebinca. Este método permite que o calor se espalhe uniformemente e ajuda o açúcar a caramelizar lentamente e criar um sabor mais arredondado com tons esfumaçados.

A joia da coroa de Goa, Bebinca, não é apenas sensacional na Índia, mas em todo o mundo. Os portugueses o levaram por suas colônias, de Goa ao Sri Lanka, África Oriental, Malásia, Indonésia, Filipinas até o Havaí e o Pacífico. A cada viagem, influenciou uma variação - seja o bibingka sem camadas nas Filipinas ou o bibikkan no Sri Lanka - apenas para ser imortalizado como uma das muitas maravilhas gastronômicas indianas.

Bebinca

200 g de farinha de trigo refinada (peneire bem)

12 gemas

450 gramas de açúcar

750 ml de leite de coco

1 colher de chá de caradamomo (ou noz-moscada em pó)

1/4 de colher de chá de sal

200 gramas de manteiga ghee

Preparo: misture bem as gemas. Junte o leite de como, o açúcar, o sal e misture bem. Junte a farinha e mexa até dissolver- cuidado para não deixar grupos de massa. Depois da massa listinha adicione o cardamomo em pó e misture bem. Passe a mistura por uma peneira para garantir que a massa fique sem grumos. Numa assadeira untada com ghee despeje 1 xícara de massa e leve pra assar até dourar levemente. Tire do forno pincele com ghee, junte mais uma xícara de massa e volte a assar. Repita o processo até a massa acabar. Vire a bebinca de cabeça para baixo e deixe esfriar antes de servir.

DICAS: se seu forno tiver a opção de calor também em cima, ligue.

Se desejar, também pode separar a madda em duas partes e numa delas acrescentar um pouco de caramelo pra deixar a mistura mais escura e assim deixar as camadas com mais destaque de cor.

O forno deve ser pré-aquecido antes e a temperatura na mais baixa que tiver. Por isso um pouco de paciência.