sábado, 6 de fevereiro de 2021

Minnuzze di Sant'Agata ou cassatelle di Sant'Agata: uma sobremesa siciliana entre o sagrado e o profano, cheia de simbolismo.

 

O Minnuzze di Sant'Agata, ou cassatelle di Sant'Agata, é singular: redondo, branco, no formato indistinguível de um seio, com sabor forte e cheio de sentimentos que se combinam com a devoção e a tradição, é uma sobremesa típica da capital do Etna, na Sicília, famosa por doces suntuosos e incríveis. Geralmente é devorado especialmente por ocasião da festa dedicada à padroeira da cidade de Catânia. Em sua simplicidade visual, essas sobremesas escondem, além das camadas de habilidade particular de quem prepara, histórias antigas sobre sofrimento, fé e devoção.

Estão sempre à venda nas pastelarias da Catânia, ou nos banquetes improvisados que enchem todos os recantos da Itália por ocasião das celebrações que se realizam todos os anos de 3 a 5 de fevereiro, e depois novamente a 12 de fevereiro, datas em que teria ocorrido o martírio da santa. Mas as homenagens também continuam no dia 17 de agosto, dia em que se lembra o momento em que os restos mortais foram levados de volta para a bela cidade siciliana da Catânia, após terem sido roubados em Constantinopla.

O doce na realidade é uma pequena cassata (já tratei sobre ela AQUI), que em italiano se chama cassatina, em forma de cúpula recheada com pasta de amêndoa verde (pistache ou marzipã), ricota de leite de ovelha com gotas de chocolate amargo e uma fina camada de Pan di spagna (pão-de-ló), tudo coberto com uma pitada de glacê real e uma cereja cristalizada no centro para completar.

Todo catanês que se preze, e um número cada vez maior de turistas que visitam a cidade, não pode deixar de provar a sobremesa que relembra a história da santa cataniana. Seria uma homenagem de luz e doçura para relembrar um momento angustiante e infernal de escuridão.

A pequena cassatina lembra os seios de uma mulher. Esta forma particular está diretamente ligada a memória do martírio de Santa Águeda de Catânia, Águeda de Palermo ou Águeda da Sicília, também conhecida como Ágata: nascida em uma respeitável família cristã, a pequena Ágata, com apenas 15 anos, decidiu dedicar sua vida a Deus e assim se tornou uma das virgens consagradas pelo bispo.

Martírio de Santa Ágata, óleo sobre tela de Sebastiano del Piombo de 1520. Atualmente no Palácio Pitti, em Florença.

Era o final do ano 250. O procônsul Quinziano chegou à Sicília para aplicar o edito do imperador Décio, que previa a abjuração pública da fé para todos os cristãos. Aqueles que não respeitaram a vontade de Roma tiveram que sofrer severas perseguições. Segundo a tradição, quando o procônsul viu a jovem Ágata, apaixonou-se perdidamente por ela.

Tendo sabido de sua nobre origem familiar, ele pediu que ela adorasse os deuses pagãos e repudiasse o Cristianismo. Ágata recusou vigorosamente, encontrando um triste destino.

Em seguida, foi entregue à Afrodísia, uma mulher perversa que administrava, com suas seis filhas, uma casa dita de má-fama. Nesse lugar, Ágata sofreu investidas contra sua honra mais terríveis que tortura ou morte, mas permaneceu firme, alegando:

"Minha coragem e minha mente estão tão firmemente fundadas sob a pedra firme de Jesus Cristo, que por dor alguma podem ser mudadas; suas palavras [não] são mais que vento, suas promessas [não] são mais que chuva, e suas ameaças [não] são mais que ameaças como rios que passam, e mesmo que todas estas coisas choquem a base da minha coragem, ainda por isso ela não se move. (Tiago de Voragine. «Santa Ágata». Legenda Áurea. Gênova, Itália, 1288)”

Depois de um mês, Afrodísia contactou Quinciano e lhe disse que, apesar de enormes esforços, fracassou em convencê-la a abjurar sua fé cristã. Ao ouvir isso, Quinciano convocou Ágata para ser julgada e tentou convencê-la a sacrificar aos ídolos mediante ameaças, mas ela retrucou que eles não eram deuses e sim demônios dourados feitos de mármore e madeira.

Após um longo diálogo no qual Quinciano ameaçou-a inúmeras vezes, ela foi espancada e jogada na prisão. No dia seguinte tentou convencê-la novamente, mas ela se recusou, o que fez o oficial ordenar que fosse esticada numa cremalheira, um aparelho de tortura cheio de barras e ganchos de ferro nas laterais onde a vítima era queimada com tochas.

Ele ordenou que os seios dela fossem esmagados e cortados. Em reprimenda, Ágata teria dito: "Demasiado criminoso e tirano cruel, não tens vergonha de cortar aquilo em uma mulher que tu sugou em tua mãe, e da qual tu foste alimentado? Mas eu tenho meus seios inteiros em minha alma, da qual eu nutro todos os meus juízos, [e] da qual ordenei servir nosso senhor Jesus Cristo, desde o começo de minha juventude." Quinciano então enviou-a para a prisão, onde permaneceu sem comida e auxílio médico. Ali, a virgem recebeu uma visão de São Pedro que a reconfortou com uma luz divina e a curou de seus ferimentos.

São Pedro curando Ágata, óleo sobre tela de Giovanni Lanfranco de 1614

Quatro dias depois, Quinciano obrigou-a a se enrolar nua em brasas misturadas com cacos de tigelas quebradas, porém esta tortura foi interrompida em decorrência dum grande tremor que destruiu vários edifícios e matou Silvano e Fastião, respectivamente o conselheiro e amigo Quinciano.

Temeroso que a população poderia voltar-se contra ele após o incidente, o oficial ordenou que Ágata fosse novamente colocada em sua cela. Ao retornar à cela, ela teria orado: "Senhor, meu Criador, tu sempre me protegeste desde o berço; tu me tiraste do amor do mundo e me deste paciência para sofrer. Recebe agora minha alma." Depois disso, teria deixado de viver.

Após a morte de Ágata, seu corpo foi recolhido e sepultado pelos cristãos. Enquanto eles preparavam-o com pomadas para o embalsamamento, alegadamente teria surgido um jovem vestido em seda acompanhado por uma multidão ricamente vestida que nunca foi vista na cidade. O jovem acompanhou a procissão que carregava Ágata e prostrou-se próximo aonde o corpo seria depositado. Quando a falecida foi depositada no túmulo, ele colocou, na cabeça do corpo, uma pequena tábua de mármore na qual estava escrito em latim Mentem sanctam, spontaneam, honorem deo dedit et patriæ liberationem fecit ("Você tem mente santa que Deus lhe deu a honra e salvou a pátria"). O corpo de Ágata foi sepultado na Catedral de Catânia. No século XI, se descobriria que seu corpo estava "incorrupto".

Nota de Ágata, a mensagem deixada em sua cabeça.

Segundo a Legenda Áurea, algum tempo depois Quinciano faleceria de uma morte terrível, embora não seja mencionada a causa do óbito. Um ano após estes eventos, no começo de fevereiro, um grande incêndio irrompeu das montanhas em direção a Catânia queimando tudo em seu caminho. Desesperados, os catanenses foram ao sepulcro de Santa Ágata e recolheram o véu que estava em sua tumba e seguraram-o em direção das chamas, que alegadamente se extinguiram em 5 de fevereiro, dia de sua celebração. Com o fim do perigo, o véu foi devolvido ao túmulo e passou a ser adorado como uma das relíquias da santa.

Imediatamente, o povo de Catânia começou a venerar a jovem virgem, que escolheu o martírio em vez da abjuração da fé. No ato político, ou seja, a defesa contra os opressores estrangeiros, também era intrínseco o ato religioso, a defesa do cristianismo, que consagrou Ágata a Santa para católicos e ortodoxos. Precisamente por causa de sua forma em siciliano, eles também são chamados de "minne (ou seja, seios) de Sant'Agata".

Relicário de Santa Águeda de Notre Dame, Paris.

Ágata é celebrada como santa pela Igreja Católica e Ortodoxa e sua festa litúrgica ocorre dia 5 de fevereiro. Há evidências que seu culto surgiu desde a Antiguidade. Ela está listada numa cópia do Martirológio de Jerônimo do século VI em associação com Jerônimo e no Calendário de Cartago (Sinaxário) de ca. 530.

Também aparece num hino de autor anônimo preservado na obra do papa Dâmaso I (r. 366–384), em um dos carmes de Venâncio Fortunato do século VI, bem como é descrita numa procissão de santas na Basílica de Santo Apolinário Novo em Ravena, na Itália. Existe panegíricos dedicados a ela da autoria de Isidoro de Sevilha (século VI), São Adelmo (século VII) e do patriarca do século IX Metódio I (r. 843–847).

Duas igrejas do fim da Antiguidade Tardia em Roma lhe foram dedicadas, uma edificada pelo papa Símaco (r. 498–514) na Via Ápia ca. 500 e que atualmente encontra-se em ruínas, e outra, chamada Santa Ágata dos Godos, que foi adornada e entregue aos godos arianos ca. 460/470 pelo oficial romano Ricímero.

 Papa Gelásio I (r. 492–496) numa carta endereçada a certo bispo Vitor faz menção a uma "Basílica de Santa Ágata" e durante o pontificado do papa Gregório I (r. 590–604) vários santuários foram edificados para abrigar algumas das relíquias de Ágata, que ali permaneceram até serem transladadas para o Mosteiro de São Estêvão em Capri. Ainda há outra igreja, Santa Ágata em Trastevere que, segundo o Livro dos Pontífices, teria sido fundada na casa do papa Gregório II (r. 715–731).

Ágata está entre as sete mulheres que, junto com Virgem Maria, são celebradas pelo nome no Cânone da Missa. Como um atributo artístico seus seios são frequentemente mostrados cortados sobre uma bandeja; na Idade Média foram comumente confundidos com pães e aparentemente isso esteve na origem da cerimônia na qual pães são levados ao altar numa bandeja.

 No sul da Alemanha e na Áustria, pães são cozidos na forma de seios pequenos e são abençoados no dia 5 ou na véspera para que sejam eficazes contra doenças nas mamas, febre e queimaduras; as mães e o gado comem-os para garantir o fluxo do leite e suas migalhas são espalhadas pelas residências para prevenir incêndios.

Pão de Santa Ágata

Sant’Agata, padroeira da cidade de Catânia, aparece como uma mulher de fé inabalável que sofreu violências sem precedentes e por isso se tornou um símbolo. Seus seios foram erradicados e ela foi submetida ao massacre das brasas, por isso ainda hoje sua memória fala da força e da coragem das mulheres.

Mas, retrocedendo ainda mais na história, a festa de Santa Ágata teria origem em muitas de suas partes dos cultos da deusa Isis – ou de suas representações em outras culturas. Por isso, o doce também pode ser chamado de minnuzza di Virgini – neste caso, representaria o seio da deusa Ísis em seu papel de deusa-mãe.

A deusa Ísis - sua imagem foi, muitas vezes modelo para as imagens criadas para a Virgem Maria.

Elementos semelhantes também são encontrados nos cultos dos mistérios de Elêusis, na Grécia, onde por ocasião dos ritos direcionados para a deusa Deméter, era costume consumir bolos doces cuja aparência repropunha o peito da Deméter, protetora da colheita e deusa mãe.

Deusa Deméter, ou Ceres.

A festa religiosa de Sant'Agata origina-se destes dois cultos pagãos que foram reabsorvidos pela cultura cristã que os reformulou, ligando-os ao culto da Santa martirizada que se celebra de 3 a 5 de fevereiro, em Catânia.

A referência à história concentrada em uma sobremesa é tão boa quanto desavergonhada. prova disso, é uma fala do Príncipe Salina que aparece em uma famosa passagem do “Gattopardo”, de Tomasi di Lampedusa, na qual ele faz um questionamento interessante: Por que essa sobremesa deliciosa e explícita não atraiu a atenção do Santo Ofício, ministério eclesiástico muito estrito, sempre desconfiado de seus subordinados? A história não deu uma resposta, basta participar na festa de Santuzza, saboreando um misto de reverência e tradição.

Mas vamos passar para a receita de Minnuzze di Sant’agata, que, como disse antes, é preparada com pão de ló, ricota de ovelha, chocolate, maçapão e cobertura real. Já vi receitas com massa quebradiça em vez de bolo de esponja que absolutamente não devem ser feitas, a menos que você queira preparar outra sobremesa, mas por favor, não a chame de minnuzza di San’Agata.

Minnuzze de Sant'Agata

Para o Pan di Spagna (pão de ló)

2 ovos médios

60 g de açúcar granulado

42 g de farinha

18 g de amido

1 pitada de sal

a casca de meio limão

Para o minnuzze

Uma receita de Pan di Spagna

300 g de ricota de ovelha

50 g de gotas de chocolate amargo

120 g de pasta de amêndoa verde ou marzipã

100 g de açúcar granulado

Para a glacê real

135 g de açúcar de confeiteiro

30 g de clara de ovo

2 colheres de chá de suco de limão

Para a decoração final

cerejas cristalizadas

Equipamento:

moldes em forma de semiesfera em silicone ou aço

açúcar de confeiteiro para polvilhar as formas

tigela de massa redonda

Preparo: Na noite anterior, coloque a ricota de leite de ovelha para escorrer em uma peneira e coloque na geladeira durante a noite para escorrer, com uma tigela por baixo, até que perca o soro. Sempre na noite anterior, prepare o pão de ló. Na batedeira, os ovos com o açúcar até obter uma mistura clara, fofa e espessa.  e com a ajuda de uma espátula misture aos poucos a farinha e a fécula de batata previamente peneirada com o sal à mistura com movimentos lentos de baixo para cima. Por fim, adicione a casca ralada do lodo ou limão. Despeje a mistura em uma forma retangular forrada com papel manteiga e leve ao forno a 180 °, em forno pré-aquecido, por 10-15 minutos, até dourar. Após o tempo de cozimento, desenforme o pão de ló e deixe esfriar sobre uma gradinha. Prepare o minnuzze: No dia do preparo do minnuzze, peneire a ricota e misture em uma tigela com o açúcar granulado, acrescente as gotas de chocolate preto, misture e reserve. Polvilhe todo o molde com açúcar de confeiteiro. Corte o pão de ló em 4 discos tão largos quanto a circunferência do molde. Estenda a pasta de amêndoa (ou marzipã) até uma espessura de cerca de 4 mm e corte-a em círculos com o dobro da circunferência do diâmetro de seus moldes. Cubra-os com pasta de amêndoa, remova o excesso de pasta de amêndoa das bordas dos hemisférios. Em seguida, preencha com o recheio de ricota e chocolate. Feche colocando um disco de pão de ló sobre o creme de ricota. Coloque o minnuzze nas formas na geladeira para descansar cerca de uma hora. Prepare o glacê real: Em uma tigela, coloque a clara de ovo e o suco de limão e comece a bater com o batedor, ou faça na batedeira, quando a clara estiver firme, acrescente o açúcar de confeiteiro aos poucos. Continue batendo até que o açúcar esteja completamente misturado com a clara do ovo, obtendo-se uma cobertura homogênea e sem grumos. Decoração final - Retire com cuidado cada cassatina de seu molde, despeje a cobertura por cima, por igual atenção, pois em pouco tempo tende a solidificar. Finalmente decore colocando uma cereja cristalizada no centro de cada minnuzza. Mantenha o minnuzze di sant'agata na geladeira. Eles duram no máximo alguns dias.

Um comentário:

  1. Oi
    Estou lendo Asfalto Selvagem, do Nelson Rodrigues e cheguei no seu blog pois é falado sobre a mãe-benta.

    Abraços

    Adriana Gomes

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