Estava na hora de pensar no
que preparar para o almoço, esse ritual sagrado e cotidiano que, para alguns,
flui naturalmente, mas que para mim sempre soa como um desafio — e não um
pequeno. Há em mim uma inquietação quase infantil diante da repetição; enjoo
fácil da mesmice dos temperos, dos pratos reciclados do dia anterior, da
cozinha feita apenas por obrigação. Eu preciso, confesso, de um pouco de
encantamento no prato. Preciso de algo novo, algo que “alegre meu estômago” —
sim, é isso. Comer, para mim, é sempre uma conversa entre o que sinto e o que
desejo.
Foi nessa busca silenciosa
por inspiração — com a mente leve, quase vazia, e o coração pulsando de
vontades — que Rita Lee começou a sussurrar baixinho nos meus fones de ouvido. Meu
Doce Vampiro. A melodia, tão íntima, sempre me arranca um sorriso oblíquo,
desses que desarmam, como se eu não soubesse o motivo exato. Mas, no fundo, eu
sei: é a lembrança de um fascínio antigo, quase secreto, pelos vampiros —
criaturas sombrias e sedutoras que, ainda na infância, me encontraram nas
páginas originais de Drácula, de Bram Stoker, lidas em inglês, com a
pureza e o assombro de uma descoberta inaugural. Mais tarde, as crônicas
vampíricas de Anne Rice se apoderaram da minha imaginação, enredando-me em
tramas tão sedutoras que me inspiraram a escrever sobre esse universo. Textos
que, certa vez, enviei à própria autora (confira aqui AQUI e AQUI). Para minha surpresa — e deleite — ela gostou tanto que publicou um deles em sua
página no Facebook.
Anos depois, presenteou-me
com uma homenagem singela: deu meu segundo nome a um de seus personagens —
Reuben (sem o “s” final do meu segundo nome, Reubens). Não era um dos sedutores
vampiros que tanto amo, mas um lobisomem. Confesso que senti um leve
desapontamento, como quem recebe um beijo no lugar de uma mordida prometida.
Ainda assim, o gesto guardou-se em mim com carinho intacto, profundo e
constante.
E toda vez que ouço Rita Lee
cantar Meu Doce Vampiro, o sorriso retorna — discreto, como quem prova
um segredo guardado no fundo da boca. Nesse encontro entre literatura, música e
memória, cada nota se acende como uma chama viva, acalentando o fogo que
alimenta tanto a cozinha quanto o coração.
A voz de Rita Lee —
irreverente e encantada, como uma taça de vinho erguida à meia-noite —
atravessou a cozinha como um feixe de sol inesperado, dourando as paredes e os
instantes. Mas junto à luz veio também uma saudade diferente: não aquela que
oprime o peito, mas a que se derrama quente, como um caldo lento, sobre a
memória. Desde que Rita partiu deste mundo, sua música tornou-se mais do que
melodia; é presença invisível, perfume que insiste em ficar no ar. Rainha do
rock brasileiro, ela segue viva no eco de cada acorde — fogo, memória e vida
latejando — como se, ao cantar, ainda mordesse delicadamente a eternidade.
Lembrei que, ao longo da
vida, Rita Lee foi muitas: musa psicodélica, garota transgressora, depois mãe,
amante dos bichos, e, por fim, mulher que se fez vegana, cuidadosa ao pensar o
mundo e o futuro. Mas nem sempre foi assim. No início, Rita era tão humana
quanto nós — com fraquezas, vícios e prazeres (que devia incluir os da mesa).
Às vezes me pergunto se, naquela juventude elétrica, ela também se rendia a um
prato fumegante de macarrão, desses que têm o gosto simples e festivo das
cozinhas populares, e que abraçam o estômago com a mesma ternura ardente com
que uma boa canção envolve a alma.
Se ela comia macarrão com
linguiça e pimentão? Quem sabe. Mas ela fez até música sobre isso (ouça no
final da postagem). Porque Rita sabia, como poucos, que o sabor também é uma
forma de revolução. E é possível imaginar Rita na cozinha, com esse dom raro de
transformar o trivial em feitiço, como quem joga uma pitada de anarquia na
frigideira e serve afeto em forma de prato. Talvez, ela entendesse que cozinha
também é palco — onde o fogo é dramaturgo e o aroma, trilha sonora.
E se não cantou literalmente
sobre comida, cantou sobre entrega, sobre vertigem, sobre aquele momento em que
os sentidos se rendem ao prazer: "Me aqueça, me vira de
ponta-cabeça..." — e de algum modo, não é isso que a comida boa faz?
Ela nos vira do avesso e depois nos acolhe. Era isso que eu queria: abrir a
boca, fechar os olhos, e deixar que cada colherada me ensinasse a viver com
mais coragem, mais gosto, mais sal.
Pensei nos tempos em que
Rita, jovem e sem filtros, cantava ser a “ovelha negra da família” — talvez num
jantar de domingo, enquanto o resto da casa ainda acreditava em bifes bem
passados e feijão sem poesia. Mas ela já mirava além. Via jardins brotando entre
tijolos, liberdade servida no prato e no palco. Na minha cozinha, senti algo
parecido: o desejo de preparar um prato que fosse, ao mesmo tempo, protesto e
celebração — que incendiasse o tédio e acendesse os sentidos, como se cada
garfada fosse um gesto de insubmissão e afeto.
Então decidi: hoje seria o
dia do macarrão com linguiça e pimentão que Rita Lee transformou em canção. Um
prato simples, mas carregado de símbolos, onde cada ingrediente guarda algo da
Rita que me encanta. A linguiça, com sua gordura generosa e cheia de sabor,
lembra o excesso delicioso de seus refrões — sempre intensos, sempre
impossíveis de esquecer. O pimentão, vivo e audacioso, é a Rita dos anos 70:
colorida, insolente, deixando marcas em quem se aproximava. E o macarrão, que
se enlaça no molho como quem se rende a um abraço, maleável e surpreendente, é
metáfora perfeita para uma carreira que nunca se deixou prender, sempre pronta
a mudar de forma e a seduzir de novo.
Enquanto os pimentões cediam
à lâmina — em cortes largos, quase teatrais —, a música trocou de pele. E, com
ela, Rita sussurrou pela boca invisível da cozinha, como se a própria casa
confessasse sua mágoa:
"Eu não queria magoar você / Foi ciúme, sim / Fiz greve de fome /
Guerrilhas, motim, perdi a cabeça / Esqueça." "Desculpe o
Auê", ela disse, mas parecia um feitiço, não um pedido.
Às vezes, cozinhar é isso —
um ato de rebelião contida, de erotismo canalizado em vapor e azeite, de mágoas
temperadas em sal e alho. Uma alquimia onde se misturam rancor e desejo,
ternura e raiva, tudo reduzido, lentamente, até virar sabor.
Porque na cozinha, como no
amor, não há espaço para o fingimento. Cada gesto carrega algo de feroz: uma
fúria contida no estalar do alho na frigideira, um perdão implícito no dourado
perfeito de uma cebola.
Há, sim, tumulto — sempre
há. E um pouco de desordem também. Mas acima disso, há amor. Um amor quente,
imperfeito, intenso. Daquele que cozinha em fogo baixo, mas arde até o fim.
Era como se Rita sorrisse
pra mim. Um sorriso lento, cúmplice, como quem finalmente aceita: Não se nasce
para a moderação quando o sangue pede intensidade. Nem no prato. Nem na paixão.
Nem na música que insiste em doer bonito.
Enquanto a cebola dourava
lentamente na panela, seu aroma doce e terroso se espalhava pela cozinha como
uma promessa sutil — não de paz, mas de verdade. Daquelas que só se revelam no
tempo certo, depois do fogo baixo, depois da espera. Meus pensamentos, leves e
inquietos, estouravam como pipocas — pequenas alegrias impacientes que pulsam
no calor do agora, antes de caírem de volta ao fundo da panela, onde tudo —
tudo mesmo — acaba se misturando.
Era como se Rita estivesse
ali, não como um fantasma, mas como uma memória em carne viva, encostada na
moldura da porta, com os olhos semiabertos e a voz translúcida, quase rindo.
Ela não falava sobre finais — falava sobre danças. Sobre o brilho dos instantes
antes da explosão. Sobre a beleza trêmula do quase. "Se Deus quiser /
Um dia eu morro bem velha / Na hora H, quando a bomba estourar / Quero ver da
janela / E entrar no pacote de camarote" — canta ela, e há um sabor de
ironia nisso, sim, mas também uma sabedoria quase pagã, um amor pela
efervescência do agora.
A vida, no fundo, é essa
panela — quente, agitada, às vezes um pouco perigosa. E a colher que mexe,
quase sempre com força, também acalma. Mexer é um gesto de fé. Continuar ali,
entre aromas e lembranças, é um modo secreto de resistir.
Enquanto o vapor subia e se
enroscava em meus cabelos, senti que estar ali, presente — inteiro — era um ato
sagrado. Não um espetáculo, mas um rito. Porque há um poder silencioso no
simples: no escutar da música certa, no cheiro que abraça antes mesmo de tocar,
no gosto que explode depois da espera.
E é isso. É isso que eu
celebro. Não as grandes entradas, nem os finais dramáticos. Mas o miolo da
coisa. O instante que cozinha. O momento que, por ser tão comum, chega a ser
eterno.
A verdade é que, por trás de
cada gesto à beira do fogão, há resistência. Não a resistência heroica das
grandes causas, mas a cotidiana — íntima, silenciosa, e, por isso mesmo, feroz.
Há dias em que o fogo na cozinha não é apenas chama para cozer, mas um reflexo
exato do incêndio de dentro.
A cebola chia na frigideira,
entregando seu perfume como uma oferenda. A gordura da linguiça estala em
pequenos aplausos, não de plateia, mas de um palco solitário, onde cada
movimento é confissão.
Rita sussurra outra vez,
agora com a voz embriagada de desejo e provocação: "Pegar fogo nunca
foi atração de circo" — ela dizia em Jardins da Babilônia — e,
naquele instante, compreendo. O fogo não é para entreter. É para revelar.
Porque a cozinha, nesse
exato momento, torna-se espetáculo, sim — mas um espetáculo íntimo, aceso por
dentro. Não há público, não há cortinas, só o calor e eu. A colher dança como
batuta, conduzindo uma sinfonia feita de óleo, memória, desejo. Cada ingrediente
um acorde, cada estalo uma lembrança que se solta do osso da alma.
Cozinhar, afinal, é isso:
arder por dentro com uma ternura antiga. É queimar sem se destruir. É deixar
que o fogo revele, camada por camada, o que ainda pulsa. Sem medo da labareda.
Sem medo do que sobra depois que tudo — inclusive você — é reduzido ao essencial.
Foi então que me encontrei
suspenso — entre a colher e a lembrança —, imerso na luz preguiçosa da manhã
que se adensa. A cozinha se aquecia aos poucos, como um corpo que desperta. E
não era apenas o calor do fogão: era algo mais antigo, quase mítico, acendendo
sob a pele, entre os cheiros e os gestos.
A linguiça ainda chiava,
impaciente, e os pimentões — apenas vermelhos, rubros como desejo bem guardado
— liberavam seus óleos com uma docilidade que parecia querer seduzir o próprio
ar. Tudo em mim se embebia dessa mistura — desejo, lembrança, fome.
Havia, ali, um amor que não
se direcionava a ninguém em particular, mas que era vasto e terno como o calor
de uma tarde de verão. Um amor que nascia, inteiro, do simples ato de criar
algo com as mãos.
E como todo rito — e Rita
Lee, que é mais rito do que gente — merece sua oferenda, preparei a minha
bebericagem com a solenidade que se dá às coisas simples quando feitas com
desejo. Um cuba-libre, servido com esmero lânguido, sem nenhuma pressa,
como se o tempo escorresse junto ao rum dourado e a Coca‑Cola — líquido
ambíguo, quase um vício, quase um feitiço – se encontrando como amantes
noturnos. Gelo em profusão, e limão espremido com a preguiça voluptuosa dos
dias que pedem rendição ao calor. Uma ausência d’água que ninguém contesta,
porque há momentos em que o excesso é uma forma legítima de oração.
O gesto, embora simples,
parecia carregado de magia doméstica — uma alquimia cotidiana entre sombra e
prazer. Algo que, talvez, a própria Rita aprovasse com aquele sorriso enviesado
que era metade sarcasmo, metade carinho. Como quem ergue um brinde à beira do
caos — e dança, mesmo assim, entre os escombros e as melodias.
Na cozinha, o vapor da
panela se elevava como um incenso doméstico, enquanto o primeiro gole me
escapava pelos lábios — e então, como se invocada pela canção que irrompia nos
fones, ela veio: "ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu?"
— o lamento elétrico de Arrombou a Festa soando como uma pergunta que
nunca quis resposta.
E ali, com o molho se
formando na panela e a alma em suspenso, compreendi: Rita ainda era capaz de
bagunçar meus dias. Mesmo ausente, ela se insinuava entre os objetos e os
afetos, desordenando o automatismo morno de comer apenas por comer. Em vez
disso, eu cozinhava comovido, transbordando daquela emoção que só artistas de
verdade provocam — os que não se contentam em existir, mas transfiguram o
mundo.
A cozinha, por instantes,
foi palco. O almoço, um espetáculo íntimo de rock e ternura. E eu, sacerdote e
espectador, brindava à mesa não apenas uma refeição, mas um ritual de memória e
criação. Porque Rita, como toda boa bruxa, nunca se vai por completo...
A comida enfim estava pronta
— não apenas pronta, mas consagrada. Provei o molho como quem prova uma memória
antiga, dessas que se desdobram na boca com o peso de uma saudade esquecida.
Ajustei o sal com o cuidado devoto de um maestro afinando sua orquestra antes
do primeiro acorde, escutando o silêncio para melhor ouvi-lo.
Escorri o macarrão com a
solenidade de um gesto aprendido pela repetição amorosa dos dias, e o envolvi
naquele abraço quente de sabores que havia construído com as próprias mãos.
Sobre tudo, deixei cair uma chuva quase cerimonial de cheiro-verde — não apenas
um tempero, mas um último aceno, um aplauso verde e silencioso ao espetáculo
recém-nascido no prato.
Sentei-me, e o vapor ainda
subia como um espírito leve dançando no ar, traçando espirais entre a luz da porta
da cozinha e o som de Rita, que embalava meus pensamentos como uma velha amiga
que nunca foi embora de verdade.
Foi ali que compreendi:
aquele almoço era mais que refeição. Era rito. Era travessia. Um instante
suspenso entre o que já partiu e o que ainda pulsa. Um lugar onde o corpo se
nutre, sim — mas onde, sobretudo, a alma desperta, se estica, se espreguiça... e
canta.
Olho o prato finalizado e,
quase sem querer, deixo escapar: “Meu bem, você me dá água na boca” —
como cantou Rita, numa canção onde o corpo é território de desejo, mas que ali,
naquele instante, podia muito bem ser uma ode ao próprio prato. Afinal, entre
os dois — o corpo e a comida — a distância é mínima. Há sabores que não saciam
apenas a fome do estômago, mas tocam uma sede mais funda, mais secreta: a ânsia
de sentir, de estar inteiro, de viver com apetite.
O macarrão com linguiça
calabresa e pimentão tem esse dom raro. Não se limita a alimentar — ele seduz.
Sorri. Convida. Abraça. Carrega o calor de uma festa inventada no susto, a
cumplicidade preguiçosa de um domingo sem pressa, o conforto de uma lembrança
boa que voltou no vapor da panela, sem ser chamada.
E talvez por isso Rita o
teria cantado — porque entendia, como só os que vivem com fúria e doçura sabem
entender, que certos pratos são também canções. Que algumas receitas, quando
feitas com desejo, tornam a cozinha o lugar mais erótico da casa: onde o toque
é íntimo, o tempo é lento, e cada gesto carrega a promessa de prazer.
E foi ali, com o prato
diante de mim e a música ainda vibrando no ar como um perfume antigo, que
compreendi: não era só fome que me movia — era o desejo de pertencer ao
instante. De fazer parte desse milagre silencioso onde um corpo cozinha, outro
canta, e o mundo, por um segundo, se torna belo demais para ser real. Porque há
momentos — raros, quase sagrados — em que comer é uma forma de amar o que já se
perdeu e, ainda assim, continua vivo. E naquele vapor que subia do prato como
uma oferenda discreta, eu vi Rita. Não como ausência, mas como presença acesa.
Ardente. Como só os eternos sabem ser.
Macarrão com linguiça e pimentão da Rita
Lee*
1/2 xícara de azeite de oliva
200 g de linguiça calabresa
picada ao seu gosto
1 cebola picadinha
Um pouco de salsinha a gosto
4 tomates batidos no
liquidificador
2 pimentões vermelhos picados (ou
em tiras finas)
2 colheres sopa de massa de
tomate
1 tablete de caldo de carne
Macarrão tipo caracol (o nome
original dela é Chifferi)
Sal a gosto
Preparo: Aqueça o azeite e frite a linguiça picada ao seu gosto até ficar douradinha. Adicione a cebola e refogue até murchar. Acrescente o tomate batido, os pimentões e o extrato de tomate. Dissolva o tablete de caldo (não precisa ser em banho-maria como na música, tá? Mas, se seu coração quiser deixar a receita mais fiel, não discuta com a instrução da mestra) e coloque na panela. Tempere com sal e finalize com salsinha. Enquanto isso, cozinhe o macarrão em água fervente com sal até ficar al dente. Escorra e misture no molho. sirva quentinho.
* Nota deste Barão cozinheiro: a música
não revela todos os segredos do preparo, e a intuição pode ser a melhor aliada.
Para quem gosta do prato mais molhadinho, um pouco mais de molho nunca será
demais; para os amantes de sabores concentrados, deixar o molho secar um pouco
mais fará a festa também.