Foi num gesto simples —
quase irrelevante — que tudo começou: recuperei da geladeira o resto de um
vinho manchego que abrira dias antes. Um Finca Antigua Crianza, rubi na cor,
memória na taça. Há quem torça o nariz diante de vinhos reencarnados pela refrigeração
doméstica, mas ignorei o julgamento. Segurei a taça numa mão, o celular na
outra, e me joguei no sofá. Na tela, uma colega portuguesa — dessas que, assim
como eu, não perdem a chance de falar de comida como quem evoca santos —
publicava, num grupo sobre viagens, uma matéria sobre o roteiro gastronômico
pelas terras de Dom Quixote.
Sorvi o vinho. Rubi escuro,
frutado, com aquela solenidade doméstica de algo que quase se perdeu, mas ainda
resiste. Como o próprio espírito da região de La Mancha: vasta, ensolarada, e
teimosa em reinventar-se. Pensei na Airén, essa uva que cobre o mundo em
hectares de silêncio; na Tempranillo — ou seria Cencibel, como chamam por lá? —
que insiste em se fazer notar nas taças do século XXI, depois de décadas em que
vinho era apenas vinho, tinto ou branco, e bastava assim.
E ali, entre um gole e
outro, enquanto as palavras iam se organizando em mensagens improvisadas e
salvas no celular, senti que aquele instante era mais que banalidade: era um
chamado.
Afinal, não estamos falando
de qualquer região. La Mancha é a maior Denominação de Origem do mundo, com
vinhedos que cobrem mais de 150 mil hectares, um verdadeiro oceano de vinhas em
plena Espanha central. Para quem, como eu, que também pesquisa e produz
cientificamente sobre as Indicações Geográficas no Brasil, isso tem peso,
história, e um certo fascínio técnico que beira o épico. Porque La Mancha não é
só cenário literário — é território sensorial. Onde vinhas amadurecem entre o
vento e o sol para se transformar em vinho que já foi banal e agora busca
excelência.
É também a pátria do queijo
manchego, o mais famoso da Espanha, que carrega na casca o selo de sua origem
como um brasão de honra — como os que os cavaleiros de Cervantes jamais
deixariam para trás. Não é pequeno o espanto de descobrir que essas terras que
deram ao mundo um fidalgo louco também alimentam corpos com manchego curado,
pão rústico e caldos que cheiram a infância.
Foi ali, entre o vinho que
resistiu à pressa e a notícia partilhada como pão, que se acendeu a ideia deste
texto: na urgência de compreender Dom Quixote, não apenas com os olhos de quem
lê, mas com o paladar de quem prova. Porque algumas histórias não se entendem
de barriga vazia — é preciso mastigá-las, deixar que dissolvam na boca da
memória.
E assim nasceu esta escrita
— como nasce uma ceia: entre a fome de entender e a sede de sentir.
Mas antes de servir o prato,
é preciso começar pelo fogo. Começar do começo.
Imagine: eu, menino da
década de 1980, morador da mais alta serra do Ceará, onde tudo era verde e
substancial, encontrando um livro que contava sobre um homem meio doido, meio
encantado, lá do outro lado do mar. Chamava-se Dom Quixote, e vinha de uma terra
tão seca quanto muitos ainda pensam do meu Estado, mas onde os moinhos giram
com o vento, feito cata-vento de feira. Dizem que era fidalgo, mas daqueles que
trocam o cavalo branco por um pangaré magricela, e as honrarias por sonhos.
Mas eu digo: para quem
cresceu devorando os contos europeus — Andersen, os Irmãos Grimm, Esopo —;
delirando com As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley; resenhando A Morte
de Arthur, de Sir Thomas Malory; decorando trechos do Sítio do Picapau Amarelo,
de Monteiro Lobato, para encenar no quintal — ou onde bem entendesse —,
afiando-se com a altivez de Emília, a boneca de pano falante; e gargalhando com
os disparates geniais do Barão de Münchhausen, cujas façanhas mirabolantes
foram eternizadas por Rudolf Erich Raspe, voando com ele até a Lua ou
cavalgando balas de canhão, como se tudo isso fosse a mais natural das
verdades... então esse alguém entende Dom Quixote direitinho.
Porque Emília, com seus
olhos de tinta e língua afiada, era mais do que brinquedo: era pensamento
solto, crítica em miniatura, filosofia de quintal. Feita de retalhos e coragem,
desafiava adultos com a mesma facilidade com que inventava reinos, misturando
lógica e loucura, ciência e sonho. Falava pelos cotovelos — e o que dizia, por
mais absurdo que soasse, sempre trazia um fundo de verdade que fazia rir e
pensar. Era, no fundo, uma pequena Quixote: teimosa, inventiva, e fiel ao
próprio delírio — tão capaz de combater moinhos como de subir pela própria
trança para sair de enrascadas, como o velho Barão.
Entre Quixote, Emília e Münchhausen, há um fio invisível: o da imaginação que
recusa limites, da fantasia que revela, por meio do absurdo, a verdade mais
sutil — aquela que nem sempre cabe nos livros de história, mas que pulsa, viva,
nos livros de estória.
E se, além de tudo isso,
esse alguém também cresceu ouvindo histórias de vaqueiros valentes, de beatos
que falavam com Deus e de doidos que viam o que ninguém via... então, sim —
entende Dom Quixote direitinho.
Entende porque já viu de perto o que é sonhar com mais força do que o mundo
permite.
Porque Dom Quixote — ah, Dom
Quixote — era desses que lia tanto — e só livro velho — que acabou misturando
fantasia e verdade, como a gente quando acredita que a lua corre atrás da gente
na estrada.
Montado em Rocinante, um cavalo mais cansado que jegue de feira, e com uma
armadura feita de panelas velhas, ele saiu pelo mundo querendo consertar
injustiça e proteger donzelas (mesmo sem nenhuma por perto). Via gigantes onde
só havia moinhos, feiticeiros onde só tinha vento, e acreditava que tudo podia
ser melhor se a gente sonhasse o suficiente.
Se você estivesse aqui no
Ceará, anos 80, talvez você o visse como aquele tio que andava falando sozinho
na rua, mas que todo mundo respeitava porque, no fundo, ele era bom. Ou então
como um Lampião ao contrário: em vez de arma, espada; em vez de cangaço, ideal.
A verdade é que Dom Quixote
era como nós quando fechamos os olhos no calor do fim de tarde e imaginamos um
mundo mais bonito — um mundo em que a justiça tem gosto de cuscuz quente e o
bem sempre ganha, nem que seja só no pensamento. E é por isso que ele ainda
vive. Porque no sertão, quem não sonha, seca por dentro. E Dom Quixote... era
um poço artesiano de sonhos.
Talvez por isso mesmo ele me
pareça tão próximo — Dom Quixote, esse estrangeiro castelhano, tem algo de
parente nosso. Porque ali, entre a secura da paisagem e a abundância da
imaginação, entre a falta de chuva e o excesso de histórias, nasce um tipo raro
de herói: aquele que transforma o pouco em muito, o real em fábula, a rotina em
travessia. Como os sertanejos que escutam o rádio a pilha como se fosse missa,
ele também ouvia vozes — mas eram as das páginas, que sopravam ideias mais
fortes que o vento da caatinga.
E como nós, que ainda
podemos misturar sonho com farinha e memória com rapadura, ele sonhava até de
barriga vazia. Porque se o sertão sonha para não secar, Alonso Quijano lia para
não murchar — e comia o que havia: de migalhas de pão às lembranças de banquetes
que só existiam no livro.
E assim, entre uma leitura e uma garfada, a comida foi entrando nas páginas de Dom
Quixote como parte do enredo — nunca só alimento, mas metáfora, pretexto,
ironia ou consolo.
Não há delírio sem fome. E
talvez não haja cavaleiro errante sem um apetite antigo, desses que se misturam
com os ventos da planície e o farfalhar das páginas. Dom Quixote, antes de se
armar com armadura enferrujada e palavras inflamadas, era Alonso Quijano, um
leitor faminto. Leitor de romances de cavalaria, sim, mas também de um mundo
que escapava pelas bordas da realidade, como um caldo que transborda da panela
e insiste em dourar o fogão com seus excessos.
Ao ler ‘El ingenioso hidalgo
don Quijote de la Mancha’, percebi que a fome é personagem. Miguel de Cervantes
abre o romance com um cardápio modesto, quase esquecido: "Una olla de algo
más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos y quebrantos los sábados,
lentejas los viernes, algún palomino de añadidura los domingos, consumían las
tres partes de su hacienda…”
Mais do que alimento, esses
pratos são sinais — vestígios palpáveis de uma existência suspensa entre o
concreto e o sonho. A “olla de algo más vaca que carnero” não é apenas uma
panela cheia de sopa rústica; é a alquimia da necessidade, onde a escassez se
transfigura em sustento e a simplicidade se reveste de um sabor que desperta a
memória e o desejo. O “salpicón” (já tratei sobre ele no blog, em 2023; e você
pode conferir AQUI),
sempre presente, emerge como uma sombra sutil, fragmentos dispersos que falam
da rotina e da espera, enquanto os “duelos y quebrantos” dos sábados condensam
em si a ambiguidade do viver: “dores e quebras” que se transformam em alimento,
assim como o delírio se alimenta da realidade para inventar o impossível. As
“lentejas” (lentilhas0 das sextas-feiras, humildes e terrosas, pontuam a semana
com sua modéstia, e os “palominos” (pombos jovens) ocasionais do domingo, a
pequena indulgência que interrompe o ciclo da necessidade.
Nesta gastronomia de limites
e improvisos, Cervantes nos revela que comer é também sonhar, e que a fome do
corpo ecoa a fome da alma, essa sede incessante que move Quixote a confundir
moinhos com gigantes, a transformar o cotidiano em epopeia e a nos lembrar que,
no fundo, o sabor mais profundo é o do próprio desejo.
É a fome que pauta a semana.
E o que hoje tomamos por fantasia era, na verdade, uma maneira de sobreviver:
organizar os dias pelo que se tinha para comer. Duelos y quebrantos aos
sábados, como se os ossos e as miudezas do mundo se transformassem em consolo
de panela.
Mas não há consolo que dure
muito quando se tem imaginação. E Quixote, em sua loucura afiada, transforma os
moinhos em gigantes e o cheiro de torresmo em névoa de batalhas.
O próprio Roland Barthes, ao
pensar nos mitos do cotidiano, nos convida a desconfiar das narrativas
absolutas e buscar o que está escondido nos rituais banais: "A comida,
como o amor, como a literatura, não se entrega toda de uma vez. Há sempre camadas,
sobreposições, presságios" (Barthes, Mythologies, 1957).
É nesse sentido que
Cervantes tece sua narrativa: cada viagem de Quixote é também uma travessia
gustativa. Há estalagens com pão duro, vinhos diluídos, coelhos em conserva, e
sobretudo há a ausência — essa fome que caminha ao lado do cavaleiro, ora física,
ora simbólica. Mesmo Sancho Pança, seu escudeiro, que deveria representar o
apetite terreno, frequentemente é impedido de comer pelo fluxo do enredo ou
pelos devaneios do amo. Comer, nesse romance, é também sonhar. Ou ser impedido
de sonhar.
Em um trecho, Sancho
reclama: "Más quiero hartarme de pan mojado que de promesas sin
sustancia." [CERVANTES, Dom Quixote, Parte I, Cap. XX]
E com isso, a gastronomia da obra revela sua função filosófica. O pão é a
realidade. A promessa é o sonho. E a panela é o espaço em que essas duas coisas
tentam, em vão, se reconciliar.
Ler Dom Quixote é sentar-se
à mesa da melancolia ibérica. Jean-Claude Carrière, em seu Le cercle des
menteurs, nos lembra que "mentir é uma forma de amar o mundo mais do que
ele merece". E talvez Cervantes, em sua invenção do anti-herói, tenha mentido
para alimentar nossos vazios.
Ao longo de suas páginas,
Dom Quixote se revela um banquete de sabores, com mais de cento e cinquenta
referências culinárias que permeiam a narrativa. Cada menção a um alimento ou
prato é uma janela para o cotidiano do Século de Ouro espanhol, revelando que a
comida em Dom Quixote não é mero detalhe, mas tecido vital da experiência,
sabor que tempera o delírio e sustenta a fantasia.
Mas se há algo que consola
verdadeiramente em meio às aventuras quixotescas, é a persistência dos sabores
— mesmo os mais pobres.
A receita de duelos y quebrantos sobreviveu ao tempo, como se fosse possível,
ainda hoje, saborear um sábado do século XVII. Trata-se de um prato tradicional
da região de La Mancha, feito com ovos, chouriço e presunto ou miúdos de porco.
O nome carrega um lirismo sombrio: "dores e quebras", como quem junta
o que sobrou para curar o que não passa.
Duelos y quebrantos é mais
do que um prato — é um retrato servido quente de um tempo em que a comida dizia
tanto quanto os livros. Preparado tradicionalmente aos sábados, como quem
encerra a semana com um gesto firme de sobrevivência, o prato mistura ovos bem
batidos com lascas salgadas de presunto, rodelas de chouriço levemente picante
e, por vezes, torresmos crocantes ou miúdos intensos.
A frigideira sussurra
histórias antigas: da fazenda castigada pela perda de uma ovelha ao silêncio
forçado dos conversos judeus, que, à mesa, precisavam provar com a boca o que o
coração não cria. A origem do nome segue envolta em hipóteses — luto pastoral?
ironia inquisitorial? — mas o sabor permanece, denso e ambíguo. É um prato que
carrega culpa e consolo no mesmo garfo. Seu preparo exige pouca sofisticação e
muita memória: nada é desperdiçado, tudo é incorporado. Ali, entre a gordura
que crepita e o aroma que se espalha, está a alma de uma Espanha que cozinhava
com o que tinha — e dizia, sem palavras, aquilo que não ousava escrever.
Há autores que sugerem que o
nome remonta aos tempos da Inquisição, quando os judeus convertidos eram
obrigados a provar sua fidelidade ao cristianismo comendo carne de porco.
Outros dizem que o nome vem da ressaca dos soldados castelhanos, quando quebravam
o jejum da guerra com gordura e ovos.
De um modo ou de outro, o
prato ecoa a ambiguidade da própria obra: é pobre, mas nobre; simples, mas
profundo. Como Quixote. Como nós, quando escolhemos continuar sonhando.
A Espanha retratada por
Cervantes não se resume a planícies e ventos cruzados por lanças imaginárias.
Ela é também uma mesa posta com o que se pode, e não com o que se quer.
Em meio às andanças de
Quixote e Sancho, surgem pratos que, ainda que fugidios, carregam o gosto
pungente do real. Há, por exemplo, o bacalhau — mencionado como bacallao, na
forma que os portugueses o introduziram. Ele aparece não como banquete, mas
como relíquia — um peixe seco que navega entre impérios e tabernas, conectando
fé, comércio e fome. Na literatura espanhola, é Cervantes quem primeiro o
nomeia. Não é acaso. É testemunho.
Em um daqueles dias que se
abrem com mais vento do que luz, Quixote chega a uma estalagem que mal se
sustenta entre paredes e promessas. Era sexta-feira — dia de magreza — e “não
havia em toda a estalagem nada além de umas rações de um peixe que em Castela
chamam abadejo, e na Andaluzia bacalhau, e noutras partes curadillo”. O prato,
mal dessalgado, mal cozido, servido com um pão “tão negro e sujo quanto a
armadura do hóspede”, não alimenta — apenas adverte. A refeição se transforma
em metáfora da própria travessia do cavaleiro: dura, salobra, indigesta, como
se o mundo lhe oferecesse espinhos no lugar de sustento. E, no entanto, ali,
entre as farpas do peixe e o farelo do pão, persiste o gesto de comer como um
ato de fé — o estômago como altar do delírio.
E o que dizer do “cavial”
(caviar)? Aqueles ovos de esturjão contrabandeados por Ricote, o morisco
expulso, dizem mais do que aparentam. Numa bolsa, ele leva vinho, jamón e
caviar — todos proibidos pela tradição muçulmana. Mas essa heresia culinária é
também confissão de identidade. Cervantes aqui não só descreve ingredientes:
ele tempera a narrativa com o dilema do pertencimento, como quem oferece um
banquete para provar que já não é mais quem foi. Comer, nesse trecho, é pedir
acolhimento.
A comida volta a sussurrar
seus enigmas em uma clareira, entre peregrinos e conversos. Ricote, o morisco
exilado, partilha com Sancho Pança um lanche improvisado sobre a relva, onde
“também colocaram um manjar negro chamado cabial, feito de ovas de peixe e
grande despertador da sede”. O caviar, raro e provocador, não aparece como
requinte, mas como contradição: alimento proibido para os muçulmanos, agora
consumido por um homem que já não pertence nem à fé antiga nem à nova. É
alimento que carrega exílio. A fome aqui não é só do corpo: é a do
pertencimento, da identidade, da terra perdida. E o sal do peixe não tempera —
arde. Porque em Dom Quixote, até o que se mastiga pode ser memória, ou
fantasma.
Já na cena das bodas de
Camacho, surge a extravagância da olla podrida, que em nada tem de podre, mas
sim de poderosa — como a origem de seu nome insinua: poderida. Trata-se de um
guisado barroco, cheio de carnes e legumes, onde cada ingrediente parece disputar
protagonismo com o próximo.
“Aquel platonazo que está
más adelante vahando me parece que es olla podrida, que, por la diversidad de
cosas que en tales ollas podridas hay, no podré dejar de topar con alguna que
me sea de gusto y de provecho”, diz Sancho, com os olhos brilhando mais de
desejo que de fome. A panela fervente, exalando carnes, aves, legumes e
especiarias, é uma pequena Babel gustativa: tudo se mistura, nada se perde. O
nome, que o tempo corrompeu em “podrida”, carrega ainda o eco de “poderida” —
não o que apodrece, mas o que tem força. A olla é, assim, um universo inteiro
em suspensão, onde os sabores se empilham como as histórias, e onde cada
colherada parece prometer consolo, excesso e um pressentimento de eternidade.
Não é apenas um prato: é uma metáfora fumegante da própria obra, da vida e dos
sonhos que, como ingredientes, se dissolvem uns nos outros até não se saber
mais o que é invenção e o que é sustento.
Ela é o avesso de duelos y
quebrantos: onde este reúne as sobras, aquela ostenta abundância. Mas ambas, em
sua dualidade, revelam a alma da obra: um romance que caminha entre a fartura
idealizada e a escassez cotidiana.
E, no entanto, são as frases
triviais que mais alimentam a permanência do Quixote. “Las penas con pan son
menos” — um provérbio que diz mais do que muitos tratados de filosofia.
Cervantes nos dá, assim, um receituário moral e culinário, no qual o pão é bálsamo
e a linguagem, fermento. “La mejor salsa del mundo es el hambre”, escreve ele.
E talvez esteja aí o segredo: a fome como tempero de tudo — das ideias, dos
gestos, dos sonhos.
Essas camadas de sabor,
costuradas ao fio da narrativa, revelam mais do que um retrato de época — são
um espelho do próprio existir. Porque comer, nesse romance, é também resistir:
ao vazio, ao tédio, ao desengano. É dar forma, ainda que efêmera, ao caos dos
dias. E assim seguimos, como Quixote e Sancho, oscilando entre o sonho e a
escassez — entre torresmos e gigantes, entre lentilhas e cavaleiros, entre
ossos e promessas. Mastigamos esperanças, engolimos desilusões e, com cada
garfada, tentamos — sem sucesso — dar sentido ao mundo que nos escapa entre um
prato e outro.
O delírio em El Quijote não
é mera evasão, mas um fogo que arde na alma, uma fome que ultrapassa o pão e o
vinho, alimentando-se da fantasia que se desdobra em cada aroma e textura. É um
delírio que se entrelaça aos sabores que vão além do corpo, impregnando a carne
da memória, onde o prato simples dos duelos y quebrantos se revela um encontro
entre o palpável e o intangível. Cada garfada convida a perder-se junto ao
cavaleiro, a misturar o gosto da terra seca da Mancha com o hálito incerto das
batalhas contra gigantes invisíveis.
Assim, o delírio invade a
cozinha e a narrativa, como um sopro quente que anima a panela, revelando o
sabor ácido da loucura, o amargor doce da esperança e o sal da resistência,
condensando no alimento a mesma poesia que sustenta o sonho e a luta de Quixote.
Comer, nesse mundo, é entrelaçar-se à loucura, aceitar o convite de perder-se e
reencontrar-se entre o desejo e o delírio, na tênue fronteira entre a carne e o
fantasma.
E se Italo Calvino estava
certo ao dizer que "um clássico é um livro que nunca termina de dizer o
que tem a dizer", talvez seja porque ele nos alimenta de formas que ainda
não sabemos nomear. O que resta, então, é cozinhar.
Duelos y Quebrantos
Ingredientes:
200 g de chouriço espanhol (ou linguiça
curada)
100 g de presunto cru ou bacon
6 ovos
2 colheres de sopa de azeite de oliva
Sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de preparo: Corte o chouriço e o
presunto em pedaços pequenos.
Em uma frigideira grande, aqueça o azeite e refogue o chouriço e o presunto até
dourarem levemente. Em uma tigela, bata os ovos com uma pitada de sal e
pimenta. Despeje os ovos batidos sobre as carnes na frigideira, mexendo suavemente
com uma espátula, como se fosse um mexido. Cozinhe até atingir a textura
desejada — o ideal é que os ovos fiquem úmidos, mas não líquidos. Sirva
imediatamente, com pão rústico ou batatas assadas.
Miguel de Cervantes. El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha. Madri: Juan
de la Cuesta, 1605.
Roland Barthes. Mythologies. Paris:
Éditions du Seuil, 1957.
Jean-Claude Carrière. Le cercle des
menteurs. Paris: Plon, 1998.
Italo Calvino. Por que ler os clássicos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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