domingo, 3 de agosto de 2025

O GOSTO DO DELÍRIO: ENTRE A LANÇA E A MESA QUIXOTESCA

  

Foi num gesto simples — quase irrelevante — que tudo começou: recuperei da geladeira o resto de um vinho manchego que abrira dias antes. Um Finca Antigua Crianza, rubi na cor, memória na taça. Há quem torça o nariz diante de vinhos reencarnados pela refrigeração doméstica, mas ignorei o julgamento. Segurei a taça numa mão, o celular na outra, e me joguei no sofá. Na tela, uma colega portuguesa — dessas que, assim como eu, não perdem a chance de falar de comida como quem evoca santos — publicava, num grupo sobre viagens, uma matéria sobre o roteiro gastronômico pelas terras de Dom Quixote.


Sorvi o vinho. Rubi escuro, frutado, com aquela solenidade doméstica de algo que quase se perdeu, mas ainda resiste. Como o próprio espírito da região de La Mancha: vasta, ensolarada, e teimosa em reinventar-se. Pensei na Airén, essa uva que cobre o mundo em hectares de silêncio; na Tempranillo — ou seria Cencibel, como chamam por lá? — que insiste em se fazer notar nas taças do século XXI, depois de décadas em que vinho era apenas vinho, tinto ou branco, e bastava assim.

E ali, entre um gole e outro, enquanto as palavras iam se organizando em mensagens improvisadas e salvas no celular, senti que aquele instante era mais que banalidade: era um chamado.

Afinal, não estamos falando de qualquer região. La Mancha é a maior Denominação de Origem do mundo, com vinhedos que cobrem mais de 150 mil hectares, um verdadeiro oceano de vinhas em plena Espanha central. Para quem, como eu, que também pesquisa e produz cientificamente sobre as Indicações Geográficas no Brasil, isso tem peso, história, e um certo fascínio técnico que beira o épico. Porque La Mancha não é só cenário literário — é território sensorial. Onde vinhas amadurecem entre o vento e o sol para se transformar em vinho que já foi banal e agora busca excelência.

É também a pátria do queijo manchego, o mais famoso da Espanha, que carrega na casca o selo de sua origem como um brasão de honra — como os que os cavaleiros de Cervantes jamais deixariam para trás. Não é pequeno o espanto de descobrir que essas terras que deram ao mundo um fidalgo louco também alimentam corpos com manchego curado, pão rústico e caldos que cheiram a infância.

Foi ali, entre o vinho que resistiu à pressa e a notícia partilhada como pão, que se acendeu a ideia deste texto: na urgência de compreender Dom Quixote, não apenas com os olhos de quem lê, mas com o paladar de quem prova. Porque algumas histórias não se entendem de barriga vazia — é preciso mastigá-las, deixar que dissolvam na boca da memória.

E assim nasceu esta escrita — como nasce uma ceia: entre a fome de entender e a sede de sentir.

Mas antes de servir o prato, é preciso começar pelo fogo. Começar do começo.

Imagine: eu, menino da década de 1980, morador da mais alta serra do Ceará, onde tudo era verde e substancial, encontrando um livro que contava sobre um homem meio doido, meio encantado, lá do outro lado do mar. Chamava-se Dom Quixote, e vinha de uma terra tão seca quanto muitos ainda pensam do meu Estado, mas onde os moinhos giram com o vento, feito cata-vento de feira. Dizem que era fidalgo, mas daqueles que trocam o cavalo branco por um pangaré magricela, e as honrarias por sonhos.

Mas eu digo: para quem cresceu devorando os contos europeus — Andersen, os Irmãos Grimm, Esopo —; delirando com As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley; resenhando A Morte de Arthur, de Sir Thomas Malory; decorando trechos do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, para encenar no quintal — ou onde bem entendesse —, afiando-se com a altivez de Emília, a boneca de pano falante; e gargalhando com os disparates geniais do Barão de Münchhausen, cujas façanhas mirabolantes foram eternizadas por Rudolf Erich Raspe, voando com ele até a Lua ou cavalgando balas de canhão, como se tudo isso fosse a mais natural das verdades... então esse alguém entende Dom Quixote direitinho.

Porque Emília, com seus olhos de tinta e língua afiada, era mais do que brinquedo: era pensamento solto, crítica em miniatura, filosofia de quintal. Feita de retalhos e coragem, desafiava adultos com a mesma facilidade com que inventava reinos, misturando lógica e loucura, ciência e sonho. Falava pelos cotovelos — e o que dizia, por mais absurdo que soasse, sempre trazia um fundo de verdade que fazia rir e pensar. Era, no fundo, uma pequena Quixote: teimosa, inventiva, e fiel ao próprio delírio — tão capaz de combater moinhos como de subir pela própria trança para sair de enrascadas, como o velho Barão.
Entre Quixote, Emília e Münchhausen, há um fio invisível: o da imaginação que recusa limites, da fantasia que revela, por meio do absurdo, a verdade mais sutil — aquela que nem sempre cabe nos livros de história, mas que pulsa, viva, nos livros de estória.

E se, além de tudo isso, esse alguém também cresceu ouvindo histórias de vaqueiros valentes, de beatos que falavam com Deus e de doidos que viam o que ninguém via... então, sim — entende Dom Quixote direitinho.
Entende porque já viu de perto o que é sonhar com mais força do que o mundo permite.

Porque Dom Quixote — ah, Dom Quixote — era desses que lia tanto — e só livro velho — que acabou misturando fantasia e verdade, como a gente quando acredita que a lua corre atrás da gente na estrada.
Montado em Rocinante, um cavalo mais cansado que jegue de feira, e com uma armadura feita de panelas velhas, ele saiu pelo mundo querendo consertar injustiça e proteger donzelas (mesmo sem nenhuma por perto). Via gigantes onde só havia moinhos, feiticeiros onde só tinha vento, e acreditava que tudo podia ser melhor se a gente sonhasse o suficiente.

Se você estivesse aqui no Ceará, anos 80, talvez você o visse como aquele tio que andava falando sozinho na rua, mas que todo mundo respeitava porque, no fundo, ele era bom. Ou então como um Lampião ao contrário: em vez de arma, espada; em vez de cangaço, ideal.

A verdade é que Dom Quixote era como nós quando fechamos os olhos no calor do fim de tarde e imaginamos um mundo mais bonito — um mundo em que a justiça tem gosto de cuscuz quente e o bem sempre ganha, nem que seja só no pensamento. E é por isso que ele ainda vive. Porque no sertão, quem não sonha, seca por dentro. E Dom Quixote... era um poço artesiano de sonhos.

Talvez por isso mesmo ele me pareça tão próximo — Dom Quixote, esse estrangeiro castelhano, tem algo de parente nosso. Porque ali, entre a secura da paisagem e a abundância da imaginação, entre a falta de chuva e o excesso de histórias, nasce um tipo raro de herói: aquele que transforma o pouco em muito, o real em fábula, a rotina em travessia. Como os sertanejos que escutam o rádio a pilha como se fosse missa, ele também ouvia vozes — mas eram as das páginas, que sopravam ideias mais fortes que o vento da caatinga.

E como nós, que ainda podemos misturar sonho com farinha e memória com rapadura, ele sonhava até de barriga vazia. Porque se o sertão sonha para não secar, Alonso Quijano lia para não murchar — e comia o que havia: de migalhas de pão às lembranças de banquetes que só existiam no livro.
E assim, entre uma leitura e uma garfada, a comida foi entrando nas páginas de Dom Quixote como parte do enredo — nunca só alimento, mas metáfora, pretexto, ironia ou consolo.

Não há delírio sem fome. E talvez não haja cavaleiro errante sem um apetite antigo, desses que se misturam com os ventos da planície e o farfalhar das páginas. Dom Quixote, antes de se armar com armadura enferrujada e palavras inflamadas, era Alonso Quijano, um leitor faminto. Leitor de romances de cavalaria, sim, mas também de um mundo que escapava pelas bordas da realidade, como um caldo que transborda da panela e insiste em dourar o fogão com seus excessos.

Ao ler ‘El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha’, percebi que a fome é personagem. Miguel de Cervantes abre o romance com um cardápio modesto, quase esquecido: "Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos y quebrantos los sábados, lentejas los viernes, algún palomino de añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda…”

Mais do que alimento, esses pratos são sinais — vestígios palpáveis de uma existência suspensa entre o concreto e o sonho. A “olla de algo más vaca que carnero” não é apenas uma panela cheia de sopa rústica; é a alquimia da necessidade, onde a escassez se transfigura em sustento e a simplicidade se reveste de um sabor que desperta a memória e o desejo. O “salpicón” (já tratei sobre ele no blog, em 2023; e você pode conferir AQUI), sempre presente, emerge como uma sombra sutil, fragmentos dispersos que falam da rotina e da espera, enquanto os “duelos y quebrantos” dos sábados condensam em si a ambiguidade do viver: “dores e quebras” que se transformam em alimento, assim como o delírio se alimenta da realidade para inventar o impossível. As “lentejas” (lentilhas0 das sextas-feiras, humildes e terrosas, pontuam a semana com sua modéstia, e os “palominos” (pombos jovens) ocasionais do domingo, a pequena indulgência que interrompe o ciclo da necessidade.

Nesta gastronomia de limites e improvisos, Cervantes nos revela que comer é também sonhar, e que a fome do corpo ecoa a fome da alma, essa sede incessante que move Quixote a confundir moinhos com gigantes, a transformar o cotidiano em epopeia e a nos lembrar que, no fundo, o sabor mais profundo é o do próprio desejo.

É a fome que pauta a semana. E o que hoje tomamos por fantasia era, na verdade, uma maneira de sobreviver: organizar os dias pelo que se tinha para comer. Duelos y quebrantos aos sábados, como se os ossos e as miudezas do mundo se transformassem em consolo de panela.

Mas não há consolo que dure muito quando se tem imaginação. E Quixote, em sua loucura afiada, transforma os moinhos em gigantes e o cheiro de torresmo em névoa de batalhas.

O próprio Roland Barthes, ao pensar nos mitos do cotidiano, nos convida a desconfiar das narrativas absolutas e buscar o que está escondido nos rituais banais: "A comida, como o amor, como a literatura, não se entrega toda de uma vez. Há sempre camadas, sobreposições, presságios" (Barthes, Mythologies, 1957).

É nesse sentido que Cervantes tece sua narrativa: cada viagem de Quixote é também uma travessia gustativa. Há estalagens com pão duro, vinhos diluídos, coelhos em conserva, e sobretudo há a ausência — essa fome que caminha ao lado do cavaleiro, ora física, ora simbólica. Mesmo Sancho Pança, seu escudeiro, que deveria representar o apetite terreno, frequentemente é impedido de comer pelo fluxo do enredo ou pelos devaneios do amo. Comer, nesse romance, é também sonhar. Ou ser impedido de sonhar.

Em um trecho, Sancho reclama: "Más quiero hartarme de pan mojado que de promesas sin sustancia." [CERVANTES, Dom Quixote, Parte I, Cap. XX]
E com isso, a gastronomia da obra revela sua função filosófica. O pão é a realidade. A promessa é o sonho. E a panela é o espaço em que essas duas coisas tentam, em vão, se reconciliar.

Ler Dom Quixote é sentar-se à mesa da melancolia ibérica. Jean-Claude Carrière, em seu Le cercle des menteurs, nos lembra que "mentir é uma forma de amar o mundo mais do que ele merece". E talvez Cervantes, em sua invenção do anti-herói, tenha mentido para alimentar nossos vazios.

Ao longo de suas páginas, Dom Quixote se revela um banquete de sabores, com mais de cento e cinquenta referências culinárias que permeiam a narrativa. Cada menção a um alimento ou prato é uma janela para o cotidiano do Século de Ouro espanhol, revelando que a comida em Dom Quixote não é mero detalhe, mas tecido vital da experiência, sabor que tempera o delírio e sustenta a fantasia.

Mas se há algo que consola verdadeiramente em meio às aventuras quixotescas, é a persistência dos sabores — mesmo os mais pobres.
A receita de duelos y quebrantos sobreviveu ao tempo, como se fosse possível, ainda hoje, saborear um sábado do século XVII. Trata-se de um prato tradicional da região de La Mancha, feito com ovos, chouriço e presunto ou miúdos de porco. O nome carrega um lirismo sombrio: "dores e quebras", como quem junta o que sobrou para curar o que não passa.

Duelos y quebrantos é mais do que um prato — é um retrato servido quente de um tempo em que a comida dizia tanto quanto os livros. Preparado tradicionalmente aos sábados, como quem encerra a semana com um gesto firme de sobrevivência, o prato mistura ovos bem batidos com lascas salgadas de presunto, rodelas de chouriço levemente picante e, por vezes, torresmos crocantes ou miúdos intensos.

A frigideira sussurra histórias antigas: da fazenda castigada pela perda de uma ovelha ao silêncio forçado dos conversos judeus, que, à mesa, precisavam provar com a boca o que o coração não cria. A origem do nome segue envolta em hipóteses — luto pastoral? ironia inquisitorial? — mas o sabor permanece, denso e ambíguo. É um prato que carrega culpa e consolo no mesmo garfo. Seu preparo exige pouca sofisticação e muita memória: nada é desperdiçado, tudo é incorporado. Ali, entre a gordura que crepita e o aroma que se espalha, está a alma de uma Espanha que cozinhava com o que tinha — e dizia, sem palavras, aquilo que não ousava escrever.

Há autores que sugerem que o nome remonta aos tempos da Inquisição, quando os judeus convertidos eram obrigados a provar sua fidelidade ao cristianismo comendo carne de porco. Outros dizem que o nome vem da ressaca dos soldados castelhanos, quando quebravam o jejum da guerra com gordura e ovos.

De um modo ou de outro, o prato ecoa a ambiguidade da própria obra: é pobre, mas nobre; simples, mas profundo. Como Quixote. Como nós, quando escolhemos continuar sonhando.

A Espanha retratada por Cervantes não se resume a planícies e ventos cruzados por lanças imaginárias. Ela é também uma mesa posta com o que se pode, e não com o que se quer.

Em meio às andanças de Quixote e Sancho, surgem pratos que, ainda que fugidios, carregam o gosto pungente do real. Há, por exemplo, o bacalhau — mencionado como bacallao, na forma que os portugueses o introduziram. Ele aparece não como banquete, mas como relíquia — um peixe seco que navega entre impérios e tabernas, conectando fé, comércio e fome. Na literatura espanhola, é Cervantes quem primeiro o nomeia. Não é acaso. É testemunho.

Em um daqueles dias que se abrem com mais vento do que luz, Quixote chega a uma estalagem que mal se sustenta entre paredes e promessas. Era sexta-feira — dia de magreza — e “não havia em toda a estalagem nada além de umas rações de um peixe que em Castela chamam abadejo, e na Andaluzia bacalhau, e noutras partes curadillo”. O prato, mal dessalgado, mal cozido, servido com um pão “tão negro e sujo quanto a armadura do hóspede”, não alimenta — apenas adverte. A refeição se transforma em metáfora da própria travessia do cavaleiro: dura, salobra, indigesta, como se o mundo lhe oferecesse espinhos no lugar de sustento. E, no entanto, ali, entre as farpas do peixe e o farelo do pão, persiste o gesto de comer como um ato de fé — o estômago como altar do delírio.

E o que dizer do “cavial” (caviar)? Aqueles ovos de esturjão contrabandeados por Ricote, o morisco expulso, dizem mais do que aparentam. Numa bolsa, ele leva vinho, jamón e caviar — todos proibidos pela tradição muçulmana. Mas essa heresia culinária é também confissão de identidade. Cervantes aqui não só descreve ingredientes: ele tempera a narrativa com o dilema do pertencimento, como quem oferece um banquete para provar que já não é mais quem foi. Comer, nesse trecho, é pedir acolhimento.

A comida volta a sussurrar seus enigmas em uma clareira, entre peregrinos e conversos. Ricote, o morisco exilado, partilha com Sancho Pança um lanche improvisado sobre a relva, onde “também colocaram um manjar negro chamado cabial, feito de ovas de peixe e grande despertador da sede”. O caviar, raro e provocador, não aparece como requinte, mas como contradição: alimento proibido para os muçulmanos, agora consumido por um homem que já não pertence nem à fé antiga nem à nova. É alimento que carrega exílio. A fome aqui não é só do corpo: é a do pertencimento, da identidade, da terra perdida. E o sal do peixe não tempera — arde. Porque em Dom Quixote, até o que se mastiga pode ser memória, ou fantasma.

Já na cena das bodas de Camacho, surge a extravagância da olla podrida, que em nada tem de podre, mas sim de poderosa — como a origem de seu nome insinua: poderida. Trata-se de um guisado barroco, cheio de carnes e legumes, onde cada ingrediente parece disputar protagonismo com o próximo.

“Aquel platonazo que está más adelante vahando me parece que es olla podrida, que, por la diversidad de cosas que en tales ollas podridas hay, no podré dejar de topar con alguna que me sea de gusto y de provecho”, diz Sancho, com os olhos brilhando mais de desejo que de fome. A panela fervente, exalando carnes, aves, legumes e especiarias, é uma pequena Babel gustativa: tudo se mistura, nada se perde. O nome, que o tempo corrompeu em “podrida”, carrega ainda o eco de “poderida” — não o que apodrece, mas o que tem força. A olla é, assim, um universo inteiro em suspensão, onde os sabores se empilham como as histórias, e onde cada colherada parece prometer consolo, excesso e um pressentimento de eternidade. Não é apenas um prato: é uma metáfora fumegante da própria obra, da vida e dos sonhos que, como ingredientes, se dissolvem uns nos outros até não se saber mais o que é invenção e o que é sustento.

Ela é o avesso de duelos y quebrantos: onde este reúne as sobras, aquela ostenta abundância. Mas ambas, em sua dualidade, revelam a alma da obra: um romance que caminha entre a fartura idealizada e a escassez cotidiana.

E, no entanto, são as frases triviais que mais alimentam a permanência do Quixote. “Las penas con pan son menos” — um provérbio que diz mais do que muitos tratados de filosofia. Cervantes nos dá, assim, um receituário moral e culinário, no qual o pão é bálsamo e a linguagem, fermento. “La mejor salsa del mundo es el hambre”, escreve ele. E talvez esteja aí o segredo: a fome como tempero de tudo — das ideias, dos gestos, dos sonhos.

Essas camadas de sabor, costuradas ao fio da narrativa, revelam mais do que um retrato de época — são um espelho do próprio existir. Porque comer, nesse romance, é também resistir: ao vazio, ao tédio, ao desengano. É dar forma, ainda que efêmera, ao caos dos dias. E assim seguimos, como Quixote e Sancho, oscilando entre o sonho e a escassez — entre torresmos e gigantes, entre lentilhas e cavaleiros, entre ossos e promessas. Mastigamos esperanças, engolimos desilusões e, com cada garfada, tentamos — sem sucesso — dar sentido ao mundo que nos escapa entre um prato e outro.

O delírio em El Quijote não é mera evasão, mas um fogo que arde na alma, uma fome que ultrapassa o pão e o vinho, alimentando-se da fantasia que se desdobra em cada aroma e textura. É um delírio que se entrelaça aos sabores que vão além do corpo, impregnando a carne da memória, onde o prato simples dos duelos y quebrantos se revela um encontro entre o palpável e o intangível. Cada garfada convida a perder-se junto ao cavaleiro, a misturar o gosto da terra seca da Mancha com o hálito incerto das batalhas contra gigantes invisíveis.

Assim, o delírio invade a cozinha e a narrativa, como um sopro quente que anima a panela, revelando o sabor ácido da loucura, o amargor doce da esperança e o sal da resistência, condensando no alimento a mesma poesia que sustenta o sonho e a luta de Quixote. Comer, nesse mundo, é entrelaçar-se à loucura, aceitar o convite de perder-se e reencontrar-se entre o desejo e o delírio, na tênue fronteira entre a carne e o fantasma.

E se Italo Calvino estava certo ao dizer que "um clássico é um livro que nunca termina de dizer o que tem a dizer", talvez seja porque ele nos alimenta de formas que ainda não sabemos nomear. O que resta, então, é cozinhar.

Duelos y Quebrantos

Ingredientes:

200 g de chouriço espanhol (ou linguiça curada)

100 g de presunto cru ou bacon

6 ovos

2 colheres de sopa de azeite de oliva

Sal e pimenta-do-reino a gosto

Modo de preparo: Corte o chouriço e o presunto em pedaços pequenos.
Em uma frigideira grande, aqueça o azeite e refogue o chouriço e o presunto até dourarem levemente. Em uma tigela, bata os ovos com uma pitada de sal e pimenta. Despeje os ovos batidos sobre as carnes na frigideira, mexendo suavemente com uma espátula, como se fosse um mexido. Cozinhe até atingir a textura desejada — o ideal é que os ovos fiquem úmidos, mas não líquidos. Sirva imediatamente, com pão rústico ou batatas assadas.

 Referências:

Miguel de Cervantes. El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha. Madri: Juan de la Cuesta, 1605.

Roland Barthes. Mythologies. Paris: Éditions du Seuil, 1957.

Jean-Claude Carrière. Le cercle des menteurs. Paris: Plon, 1998.

Italo Calvino. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.


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