Foi Roland Barthes, em A
Câmara Clara (1980, p.89), quem disse que “a fotografia é esse delírio: que
as coisas passaram e que, ao mesmo tempo, foram capturadas para sempre”.
Enquanto o mundo girava no eixo trincado de tragédias e afundado em manchetes eu,
para fugir da loucura do mundo, via amenidades no Instagram. Foi algo mais
banal que me deteve.
No Instagram, entre as
atualizações e os absurdos do dia, uma imagem cintilou com a força silenciosa
dos encantamentos: um casal posando sob uma gigantesca letra M, emoldurado por
um cenário gótico e improvável. O mundo podia ruir; eu precisava olhar aquilo
de novo.
Uma imagem melancólica,
quase bela demais para o caos digital — uma cena polida, envolta em roxo e
sombras, capturada num desses eventos da Netflix, tão bem roteirizados quanto
os próprios personagens que celebram. Era um modelo francês — de olhar oblíquo
e rosto talhado com precisão —, desses que parecem ter sido inventados num
espelho veneziano em vez de paridos por uma mãe real. Ele não estava só.
Fotografados sob um arco
gótico rendado de ferro forjado, como os últimos convidados de um baile
espectral que só começava com o cair da noite, o casal posa diante da
monumental letra M — púrpura como um hematoma antigo, imensa como um segredo
não dito. O modelo, de silhueta esculpida, veste o preto com a mesma autoridade
de quem conhece o silêncio das catedrais. Ao seu lado, o namorado, ligeiramente
desalinhado — como quem veio de outro mundo, ou apenas do fim de um expediente
— apoia-se nele como quem reconhece sua própria salvação. O rio Sena corre ao
fundo como um presságio, e acima deles ao M gigante, que representava a
inscrição em francês — Mercredi, nome de meio da semana e da menina que
inspirou a série —, iluminado com uma luz oblíqua entre o gótico e o pop. Era o
tipo de imagem que eu teria emoldurado na memória, não por vaidade, mas por
algum tipo de encantamento inexplicável, como se pressentisse que aquele
cenário, por um breve instante, me colocasse dentro de uma canção antiga.
O grande M em púrpura
— mais próximo da cor de um segredo mal curado do que de qualquer festa —
pairava sobre a entrada como um presságio elegante. Mercredi, identificava.
E bastou ver essa palavra, grafada em francês, para que algo dentro de mim se
partisse com delicadeza: como a película fina de um crème brûlée ao toque da
colher. Mercredi. Quarta-feira. Foi esse nome que me suspendeu. Não foram as
manchetes que me fizeram parar — mas sim o nome da filha dos Addams,
impresso em francês e aceso como uma lamparina em corredor escuro.
É engraçado como a elegância
da língua francesa pode escancarar significados que estavam há muito escondidos
no cotidiano. Nessas horas, percebo como saber línguas é, também, herdar as
camadas invisíveis das palavras. Porque o nome da Wandinha não foi dado
à toa — eu já sabia, que a filha de Morticia e Gomez Addams se chamava Wednesday
(Quarta-feira) no original, e que no português ela se tornara Wandinha,
talvez numa tentativa de suavizar a escuridão que ganhara como herança de uma
cantiga inglesa do século XIX, que mapeava o destino das crianças de acordo com
o dia em que nasceram.
Recordei então da antiga
cantiga inglesa, daquelas que parecem sussurradas por avós invisíveis entre as
frestas de um berço vitoriano. Li-a ainda criança, creio — ou talvez ela tenha
me lido primeiro. Chamava-se Monday’s Child, uma rima tradicional que
remonta ao século XIX, publicada pela primeira vez em 1838 no livro Solomon
Grundy, atribuído ao antiquário James Orchard Halliwell. Tornou-se, com o
tempo, uma daquelas melodias de ninar que colam na memória como açúcar mascavo
nos dedos.
Em seus versos, cada dia da
semana molda o destino das crianças, como se o relógio cósmico temperasse almas
com o rigor de um velho cozinheiro do tempo. Ainda hoje, ao repeti-la
mentalmente, sinto-a pairar no ar como o cheiro de uma receita esquecida no forno.
Um oráculo disfarçado de rima, que diz assim na sua versão mais conhecida:
Monday’s child is fair of
face,
Tuesday’s child is full of
grace,
Wednesday’s child is full of
woe,
Thursday’s child has far to
go,
Friday’s child is loving and
giving,
Saturday’s child works hard
for a living,
And the child that is born
on the Sabbath* day
Is bonny and blithe and good
and gay.
Poesia de berço, mas também
sentença. Sete versos para sete dias. Uma moldura para vidas inteiras.
A criança de segunda é bela
de rosto — talvez um encanto fácil, um presságio de espelhos benevolentes. A de
terça, cheia de graça — dançarina invisível entre as expectativas sociais. A de
quarta-feira — e aqui, Wandinha ganha seu nome — está cheia de aflição, de
infortúnio, de angústia. Não tristeza dramática, mas aquela névoa constante que
cobre as manhãs de outono. A de quinta-feira, meu dia, “has far to go” — tem
muito a percorrer, o que soa como esperança e fadiga ao mesmo tempo. Sexta é
puro afeto, sendo amorosa e generosa; Sábado, trabalha duro pra viver. E o Domingo,
ah, o domingo… reservado aos afortunados: bons, alegres, sorridentes como se
fossem feitos de luz solar e risos em porcelana.
Ao reler esses versos,
percebi como as palavras agem como sabores antigos: às vezes doces, às vezes
difíceis de tragar. Há algo na ideia de que nosso nascimento num dia comum da
semana nos molda, como uma colher que revolve lentamente o fundo de uma panela
esquecida no fogo.
Wandinha, ou melhor,
Wednesday, ou ainda Mercredi, carrega a maldição da quarta-feira — não
como um castigo, mas como um traço essencial de seu tempero: aquele amargor do
chocolate 90%, que poucos compreendem, mas muitos respeitam. O ‘woe’ não é mero
sofrimento; é profundidade. É o talento de ver a podridão por trás da beleza, e
ainda assim seguir em frente, de tranças firmes e olhos sem piscadelas.
E eu, nascido numa
quinta-feira, com “far to go”, tenho me sentido às vezes como um trem em
trilhos incertos, partindo de lugar algum e sem estação final clara. Há
conforto nisso também — o movimento, a busca, o inacabado.
E eu, moldado pelo
nascimento numa quinta-feira, com esse “far to go” que sussurra como um vento
que nunca cessa, tenho vivido como quem viaja de vagão em vagão, sem mapa nem
pressa. Não é errância, é fermentação — há uma leveza em estar a caminho, como
massa que cresce no escuro, como caldo que apura com o tempo. Não sei de onde
vim exatamente, nem para onde vou com precisão, mas sigo — ora cheio de fervor,
ora em silêncio — confiando que há beleza no inacabado, que há verdade no
provisório. Ser de quinta é carregar no peito uma bússola sem ponteiro, mas com
apetite. É aceitar que o longe não é castigo, mas vocação — uma travessia
movida mais pelo desejo do que pelo destino. E assim sigo: não perdido, mas
profundamente entregue à arte de ir — com passos inseguros, mas olhos abertos.
Assim, entre memórias de
poemas de infância e devaneios, que resolvi ofertar minha quinta-feira ao
silêncio. Um gesto simples, mas impregnado de intenção — como quem dobra um
guardanapo com delicadeza antes de partir.
Quis, com isso, render uma
espécie de homenagem íntima às crianças de todos os dias, mas sobretudo às de
quarta-feira. Porque são elas que cozinham com a sombra sentada à mesa, que
sabem temperar com silêncios longos, e que olham para o roxo do ube (inhame
roxo) ou de uma batata-doce roxa como quem lê um presságio, não apenas uma cor.
Sob aquela inscrição — Mercredi,
destacado em roxo pulgente e sobre o ferro forjado — era impossível não pensar
na Nightshade Society, aquela irmandade clandestina que se esconde entre
paredes de pedra e manuscritos, no subsolo da fictícia Nevermore.
Para quem não conhece o
mundo da série da Wandinha, a Nightshade Society (Sociedade das Beladona, em
tradução livre) é um grupo seleto e secreto de estudantes com poderes ou dons
especiais, que se reúnem às escondidas nos subterrâneos da escola. Sua história
remonta a fundadores da Nevermore Academy e tem laços com a luta por justiça
para os "párias" — seres com dons sobrenaturais que são
marginalizados pela sociedade "normie" (isto é, normal, sem poderes).
Como a flor que lhe dá nome — bela, letal, e incompreendida — esse grupo
secreto floresce na sombra, cultivando saberes antigos com a precisão de um
feitiço bem medido. Herdeiros de dons estranhos e sensibilidades à margem, eles
resistem ao esquecimento por meio de rituais que misturam magia, memória e sabor.
Repleta de mentes dotadas com
dons estranhos e almas desalinhadas com o mundo, essa sociedade pulsa com o
mesmo ritmo das palavras de Edgard Allan Poe: uma elegância mórbida, uma
rebeldia que se oculta sob o verniz da tradição. E se a série nos oferece essa
imagem como um espelho da alma de Wandinha, talvez devêssemos considerar que
cozinhar, também, é um tipo de rito secreto. Há quem entre na cozinha para
seguir receitas; outros, para fugir do mundo. Mas há ainda os que adentram o
espaço como quem ingressa numa sociedade discreta e ancestral, onde cada
ingrediente guarda um segredo, cada preparo, ativa a memória e gera um
encantamento, e a chama ou o forno consagra tudo como um altar.
Então, como quem sussurra um
feitiço antigo, fui murmurando minha busca — não por um doce fácil, desses que
se acomodam em vitrines como sorrisos prontos, mas por algo que exigisse
paciência e camadas, como um segredo bem guardado. Por isso, não foi acaso —
mas quase destino — que a receita escolhida para encerrar este percurso fosse
justamente a que repousa, com imponência silenciosa, na capa do The Official
Wednesday Cookbook. Não é uma escolha decorativa: é um presságio medido.
A imagem que adorna a capa
é, na verdade, um convite — uma armadilha elegante — para adentrar o universo
de Wandinha pela boca, com o assombro sereno de quem sabe que, com essa
receita, a própria Wandinha servisse, ou se deleitasse numa noite chuvosa,
quando os corvos se aninham no peitoril das janelas. Um doce com nome de poema,
cores de veneno e gosto de sonho: o Nightshade Society Poe Parfait (cuja
receita vai estar no final do texto).
O Nightshade Society Poe
Parfait — com suas camadas de roxos noturnos e negros abissais — ergue-se
como páginas comestíveis de um diário gótico esperando que cada colher fosse
uma escavação entre lembranças e presságios. Ali está, envolto em neblina de
mistério, coroado por migalhas de biscoito que lembram terra úmida, selando um
segredo em textura e cor. Sendo mais que sobremesa; é retrato.
E assim, entre sombras e
colheradas, encerra-se essa divagação. Não com um ponto final, mas com
reticências que se dissolvem no céu da boca — como se o doce deixasse rastros
invisíveis nos corredores do paladar e nas lembranças que preferem a penumbra.
Talvez, ao preparar esta receita, você também ouça o eco distante de passos nos
subterrâneos de Nevermore, ou perceba, por um breve instante, que o mundo dos
párias e o nosso não são tão distintos assim. Porque alguns sabores — como
certos segredos — só se revelam a quem está disposto a provar a escuridão com
calma.
E se comecei este percurso
hipnotizada pelo roxo profundo de grande M — na cor de veneno e de violeta seca
—, encerro não com respostas, mas com a doçura ambígua de um pressentimento.
Porque, como o próprio nome "Mercredi" sussurra ao ser pronunciado,
há uma tristeza antiga costurada na identidade daqueles que nascem entre
sombras. Wandinha não escolheu o luto: ela o incorporou. Assim também é esta
sobremesa — não feita para agradar multidões, mas para quem encontra beleza no
que é denso, em camadas, em silêncio. Talvez certas receitas não alimentam o
corpo, mas a parte secreta da alma que observa o mundo de canto, com olhos de
bruxa e paladar de poeta. O Nightshade Society Poe Parfait não fecha
este texto — ele o continua, como um sussurro que pede outra colher, outra
noite, outro segredo.
E eu, que nasci na quinta,
sigo. Porque ainda há muito por onde ir.
BARTHES, Roland. A câmara
clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Paulo Neves. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, p.89, 1980.
Ingredientes:
Para o Crème Pâtissière de Ube:
3 colheres de sopa de amido de milho
⅔ xícara de açúcar
¼ colher de chá de sal
4 gemas de ovo grandes
1½ xícaras de leite integral
½ xícara de creme de leite fresco
2 colheres de sopa de manteiga sem sal
½ colher de chá de extrato de ube (é uma
essência de inhame roxo peculiar, se não achar, use um corante roxo e coloque a
essência que desejar)
½ colher de chá de baunilha
Para o Crumble de Cacau Preto:
½ xícara de farinha de trigo
¼ xícara de açúcar mascavo claro
2 colheres de sopa de cacau preto em pó
¼ xícara de sementes de gergelim preto
¼ colher de chá de sal
1½ colher de chá de pasta de gergelim
preto
4 colheres de sopa de manteiga gelada,
em cubos
Para o Chantilly de Ube:
½ xícara de creme de leite fresco
2 colheres de sopa de açúcar de
confeiteiro
2 a 3 gotas de extrato de ube
Sementes de gergelim preto para decorar
(ou use sementes de papoula, para dar ainda mais sentido)
Modo de Preparo: Prepare o crème pâtissière: Misture todos os ingredientes exceto a manteiga, ube e baunilha. Cozinhe até engrossar, mexendo sempre. Fora do fogo, incorpore a manteiga e os extratos. Refrigere com filme em contato por pelo menos 4 horas.
Crumble: Misture os ingredientes secos e
incorpore a manteiga até formar uma farofa. Asse em forno a 175 °C por 15
minutos ou até dourar levemente. Esfrie.
Chantilly: Bata o creme com açúcar e
extrato de ube até formar picos firmes.
Montagem: Em taças transparentes,
alterne camadas de creme, crumble e chantilly. Finalize com sementes de
gergelim e sirva gelado — ou morno, se preferir o lamento quente.
Obs.: aos curiosos, antes que me inundem com perguntas sobre o gosto e o cheio do extrato de ube, já adianto que ele faz a diferença. O extrato de ube é bastante usado para dar cor e sabor em bolos, sorvetes, doces e pães nas receitas Filipinas, de onde ele é originário, trazendo aquele toque exótico e marcante. Mas, talvez não seja difícil de encontrar na internet e nas boas casas de confeitaria.
O aroma do extrato de ube é como um
sussurro da terra, doce e terroso, que dança delicadamente no ar — uma
lembrança suave de raízes profundas que carregam a quietude da floresta úmida.
Há uma doçura natural, quase infantil, que evoca memórias de sobremesas
caseiras feitas em tardes preguiçosas. Mas não é uma doçura simples; é
complexa, com nuances quase de noz e uma leve cremosidade que lembra o toque de
um sonho longínquo.
É o cheiro da terra depois da chuva, misturado a uma brisa leve de flores que se recusam a revelar seu nome, e a um toque sutil, quase etéreo, que lembra um beijo de amêndoas doces sem ostentação. Este aroma envolve, conforta e convida, sem jamais impor — é a promessa de um sabor que é ao mesmo tempo familiar e exótico, discreto e inesquecível. Então, se não conseguir, use as quantidades que a receita pede por um extrato de sua preferência, só não esqueça que precisará usar um corante roxo para dar a cor que a sobremesa pede.
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