sábado, 16 de agosto de 2025

“Os Filhos dos Dias” o Destino de Wandinha Addams

  

Foi Roland Barthes, em A Câmara Clara (1980, p.89), quem disse que “a fotografia é esse delírio: que as coisas passaram e que, ao mesmo tempo, foram capturadas para sempre”. Enquanto o mundo girava no eixo trincado de tragédias e afundado em manchetes eu, para fugir da loucura do mundo, via amenidades no Instagram. Foi algo mais banal que me deteve.

No Instagram, entre as atualizações e os absurdos do dia, uma imagem cintilou com a força silenciosa dos encantamentos: um casal posando sob uma gigantesca letra M, emoldurado por um cenário gótico e improvável. O mundo podia ruir; eu precisava olhar aquilo de novo.

Uma imagem melancólica, quase bela demais para o caos digital — uma cena polida, envolta em roxo e sombras, capturada num desses eventos da Netflix, tão bem roteirizados quanto os próprios personagens que celebram. Era um modelo francês — de olhar oblíquo e rosto talhado com precisão —, desses que parecem ter sido inventados num espelho veneziano em vez de paridos por uma mãe real. Ele não estava só.

Fotografados sob um arco gótico rendado de ferro forjado, como os últimos convidados de um baile espectral que só começava com o cair da noite, o casal posa diante da monumental letra M — púrpura como um hematoma antigo, imensa como um segredo não dito. O modelo, de silhueta esculpida, veste o preto com a mesma autoridade de quem conhece o silêncio das catedrais. Ao seu lado, o namorado, ligeiramente desalinhado — como quem veio de outro mundo, ou apenas do fim de um expediente — apoia-se nele como quem reconhece sua própria salvação. O rio Sena corre ao fundo como um presságio, e acima deles ao M gigante, que representava a inscrição em francês — Mercredi, nome de meio da semana e da menina que inspirou a série —, iluminado com uma luz oblíqua entre o gótico e o pop. Era o tipo de imagem que eu teria emoldurado na memória, não por vaidade, mas por algum tipo de encantamento inexplicável, como se pressentisse que aquele cenário, por um breve instante, me colocasse dentro de uma canção antiga.

O grande M em púrpura — mais próximo da cor de um segredo mal curado do que de qualquer festa — pairava sobre a entrada como um presságio elegante. Mercredi, identificava. E bastou ver essa palavra, grafada em francês, para que algo dentro de mim se partisse com delicadeza: como a película fina de um crème brûlée ao toque da colher. Mercredi. Quarta-feira. Foi esse nome que me suspendeu. Não foram as manchetes que me fizeram parar — mas sim o nome da filha dos Addams, impresso em francês e aceso como uma lamparina em corredor escuro.


É engraçado como a elegância da língua francesa pode escancarar significados que estavam há muito escondidos no cotidiano. Nessas horas, percebo como saber línguas é, também, herdar as camadas invisíveis das palavras. Porque o nome da Wandinha não foi dado à toa — eu já sabia, que a filha de Morticia e Gomez Addams se chamava Wednesday (Quarta-feira) no original, e que no português ela se tornara Wandinha, talvez numa tentativa de suavizar a escuridão que ganhara como herança de uma cantiga inglesa do século XIX, que mapeava o destino das crianças de acordo com o dia em que nasceram.

Recordei então da antiga cantiga inglesa, daquelas que parecem sussurradas por avós invisíveis entre as frestas de um berço vitoriano. Li-a ainda criança, creio — ou talvez ela tenha me lido primeiro. Chamava-se Monday’s Child, uma rima tradicional que remonta ao século XIX, publicada pela primeira vez em 1838 no livro Solomon Grundy, atribuído ao antiquário James Orchard Halliwell. Tornou-se, com o tempo, uma daquelas melodias de ninar que colam na memória como açúcar mascavo nos dedos.

Em seus versos, cada dia da semana molda o destino das crianças, como se o relógio cósmico temperasse almas com o rigor de um velho cozinheiro do tempo. Ainda hoje, ao repeti-la mentalmente, sinto-a pairar no ar como o cheiro de uma receita esquecida no forno. Um oráculo disfarçado de rima, que diz assim na sua versão mais conhecida:

Monday’s child is fair of face,

Tuesday’s child is full of grace,

Wednesday’s child is full of woe,

Thursday’s child has far to go,

Friday’s child is loving and giving,

Saturday’s child works hard for a living,

And the child that is born on the Sabbath* day

Is bonny and blithe and good and gay.

Poesia de berço, mas também sentença. Sete versos para sete dias. Uma moldura para vidas inteiras.

A criança de segunda é bela de rosto — talvez um encanto fácil, um presságio de espelhos benevolentes. A de terça, cheia de graça — dançarina invisível entre as expectativas sociais. A de quarta-feira — e aqui, Wandinha ganha seu nome — está cheia de aflição, de infortúnio, de angústia. Não tristeza dramática, mas aquela névoa constante que cobre as manhãs de outono. A de quinta-feira, meu dia, “has far to go” — tem muito a percorrer, o que soa como esperança e fadiga ao mesmo tempo. Sexta é puro afeto, sendo amorosa e generosa; Sábado, trabalha duro pra viver. E o Domingo, ah, o domingo… reservado aos afortunados: bons, alegres, sorridentes como se fossem feitos de luz solar e risos em porcelana.

Ao reler esses versos, percebi como as palavras agem como sabores antigos: às vezes doces, às vezes difíceis de tragar. Há algo na ideia de que nosso nascimento num dia comum da semana nos molda, como uma colher que revolve lentamente o fundo de uma panela esquecida no fogo.

Wandinha, ou melhor, Wednesday, ou ainda Mercredi, carrega a maldição da quarta-feira — não como um castigo, mas como um traço essencial de seu tempero: aquele amargor do chocolate 90%, que poucos compreendem, mas muitos respeitam. O ‘woe’ não é mero sofrimento; é profundidade. É o talento de ver a podridão por trás da beleza, e ainda assim seguir em frente, de tranças firmes e olhos sem piscadelas.

E eu, nascido numa quinta-feira, com “far to go”, tenho me sentido às vezes como um trem em trilhos incertos, partindo de lugar algum e sem estação final clara. Há conforto nisso também — o movimento, a busca, o inacabado.

E eu, moldado pelo nascimento numa quinta-feira, com esse “far to go” que sussurra como um vento que nunca cessa, tenho vivido como quem viaja de vagão em vagão, sem mapa nem pressa. Não é errância, é fermentação — há uma leveza em estar a caminho, como massa que cresce no escuro, como caldo que apura com o tempo. Não sei de onde vim exatamente, nem para onde vou com precisão, mas sigo — ora cheio de fervor, ora em silêncio — confiando que há beleza no inacabado, que há verdade no provisório. Ser de quinta é carregar no peito uma bússola sem ponteiro, mas com apetite. É aceitar que o longe não é castigo, mas vocação — uma travessia movida mais pelo desejo do que pelo destino. E assim sigo: não perdido, mas profundamente entregue à arte de ir — com passos inseguros, mas olhos abertos.

Assim, entre memórias de poemas de infância e devaneios, que resolvi ofertar minha quinta-feira ao silêncio. Um gesto simples, mas impregnado de intenção — como quem dobra um guardanapo com delicadeza antes de partir.

Quis, com isso, render uma espécie de homenagem íntima às crianças de todos os dias, mas sobretudo às de quarta-feira. Porque são elas que cozinham com a sombra sentada à mesa, que sabem temperar com silêncios longos, e que olham para o roxo do ube (inhame roxo) ou de uma batata-doce roxa como quem lê um presságio, não apenas uma cor.

Sob aquela inscrição — Mercredi, destacado em roxo pulgente e sobre o ferro forjado — era impossível não pensar na Nightshade Society, aquela irmandade clandestina que se esconde entre paredes de pedra e manuscritos, no subsolo da fictícia Nevermore.  

Para quem não conhece o mundo da série da Wandinha, a Nightshade Society (Sociedade das Beladona, em tradução livre) é um grupo seleto e secreto de estudantes com poderes ou dons especiais, que se reúnem às escondidas nos subterrâneos da escola. Sua história remonta a fundadores da Nevermore Academy e tem laços com a luta por justiça para os "párias" — seres com dons sobrenaturais que são marginalizados pela sociedade "normie" (isto é, normal, sem poderes). Como a flor que lhe dá nome — bela, letal, e incompreendida — esse grupo secreto floresce na sombra, cultivando saberes antigos com a precisão de um feitiço bem medido. Herdeiros de dons estranhos e sensibilidades à margem, eles resistem ao esquecimento por meio de rituais que misturam magia, memória e sabor.

Repleta de mentes dotadas com dons estranhos e almas desalinhadas com o mundo, essa sociedade pulsa com o mesmo ritmo das palavras de Edgard Allan Poe: uma elegância mórbida, uma rebeldia que se oculta sob o verniz da tradição. E se a série nos oferece essa imagem como um espelho da alma de Wandinha, talvez devêssemos considerar que cozinhar, também, é um tipo de rito secreto. Há quem entre na cozinha para seguir receitas; outros, para fugir do mundo. Mas há ainda os que adentram o espaço como quem ingressa numa sociedade discreta e ancestral, onde cada ingrediente guarda um segredo, cada preparo, ativa a memória e gera um encantamento, e a chama ou o forno consagra tudo como um altar.

Então, como quem sussurra um feitiço antigo, fui murmurando minha busca — não por um doce fácil, desses que se acomodam em vitrines como sorrisos prontos, mas por algo que exigisse paciência e camadas, como um segredo bem guardado. Por isso, não foi acaso — mas quase destino — que a receita escolhida para encerrar este percurso fosse justamente a que repousa, com imponência silenciosa, na capa do The Official Wednesday Cookbook. Não é uma escolha decorativa: é um presságio medido.

A imagem que adorna a capa é, na verdade, um convite — uma armadilha elegante — para adentrar o universo de Wandinha pela boca, com o assombro sereno de quem sabe que, com essa receita, a própria Wandinha servisse, ou se deleitasse numa noite chuvosa, quando os corvos se aninham no peitoril das janelas. Um doce com nome de poema, cores de veneno e gosto de sonho: o Nightshade Society Poe Parfait (cuja receita vai estar no final do texto).

O Nightshade Society Poe Parfait — com suas camadas de roxos noturnos e negros abissais — ergue-se como páginas comestíveis de um diário gótico esperando que cada colher fosse uma escavação entre lembranças e presságios. Ali está, envolto em neblina de mistério, coroado por migalhas de biscoito que lembram terra úmida, selando um segredo em textura e cor. Sendo mais que sobremesa; é retrato.

E assim, entre sombras e colheradas, encerra-se essa divagação. Não com um ponto final, mas com reticências que se dissolvem no céu da boca — como se o doce deixasse rastros invisíveis nos corredores do paladar e nas lembranças que preferem a penumbra. Talvez, ao preparar esta receita, você também ouça o eco distante de passos nos subterrâneos de Nevermore, ou perceba, por um breve instante, que o mundo dos párias e o nosso não são tão distintos assim. Porque alguns sabores — como certos segredos — só se revelam a quem está disposto a provar a escuridão com calma.

E se comecei este percurso hipnotizada pelo roxo profundo de grande M — na cor de veneno e de violeta seca —, encerro não com respostas, mas com a doçura ambígua de um pressentimento. Porque, como o próprio nome "Mercredi" sussurra ao ser pronunciado, há uma tristeza antiga costurada na identidade daqueles que nascem entre sombras. Wandinha não escolheu o luto: ela o incorporou. Assim também é esta sobremesa — não feita para agradar multidões, mas para quem encontra beleza no que é denso, em camadas, em silêncio. Talvez certas receitas não alimentam o corpo, mas a parte secreta da alma que observa o mundo de canto, com olhos de bruxa e paladar de poeta. O Nightshade Society Poe Parfait não fecha este texto — ele o continua, como um sussurro que pede outra colher, outra noite, outro segredo.

E eu, que nasci na quinta, sigo. Porque ainda há muito por onde ir.

 Barão de Gourmandise

 *Obs.: Na Inglaterra daquele tempo, o Sabbath day, que tradicionalmente é o sábado no judaísmo, passou a ser observado como o domingo por muitos cristãos, especialmente após a Reforma Protestante e a ascensão do puritanismo. Essa mudança foi influenciada pela crença de que a ressurreição de Jesus ocorreu no domingo, o primeiro dia da semana.

 REFERÊNCIA

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Paulo Neves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.89, 1980.

 NIGHTSHADE SOCIETY POE PARFAIT

Ingredientes:

Para o Crème Pâtissière de Ube:

3 colheres de sopa de amido de milho

⅔ xícara de açúcar

¼ colher de chá de sal

4 gemas de ovo grandes

1½ xícaras de leite integral

½ xícara de creme de leite fresco

2 colheres de sopa de manteiga sem sal

½ colher de chá de extrato de ube (é uma essência de inhame roxo peculiar, se não achar, use um corante roxo e coloque a essência que desejar)

½ colher de chá de baunilha

Para o Crumble de Cacau Preto:

½ xícara de farinha de trigo

¼ xícara de açúcar mascavo claro

2 colheres de sopa de cacau preto em pó

¼ xícara de sementes de gergelim preto

¼ colher de chá de sal

1½ colher de chá de pasta de gergelim preto

4 colheres de sopa de manteiga gelada, em cubos

Para o Chantilly de Ube:

½ xícara de creme de leite fresco

2 colheres de sopa de açúcar de confeiteiro

2 a 3 gotas de extrato de ube

Sementes de gergelim preto para decorar (ou use sementes de papoula, para dar ainda mais sentido)

Modo de Preparo: Prepare o crème pâtissière: Misture todos os ingredientes exceto a manteiga, ube e baunilha. Cozinhe até engrossar, mexendo sempre. Fora do fogo, incorpore a manteiga e os extratos. Refrigere com filme em contato por pelo menos 4 horas.

Crumble: Misture os ingredientes secos e incorpore a manteiga até formar uma farofa. Asse em forno a 175 °C por 15 minutos ou até dourar levemente. Esfrie.

Chantilly: Bata o creme com açúcar e extrato de ube até formar picos firmes.

Montagem: Em taças transparentes, alterne camadas de creme, crumble e chantilly. Finalize com sementes de gergelim e sirva gelado — ou morno, se preferir o lamento quente.

Obs.: aos curiosos, antes que me inundem com perguntas sobre o gosto e o cheio do extrato de ube, já adianto que ele faz a diferença. O extrato de ube é bastante usado para dar cor e sabor em bolos, sorvetes, doces e pães nas receitas Filipinas, de onde ele é originário, trazendo aquele toque exótico e marcante. Mas, talvez não seja difícil de encontrar na internet e nas boas casas de confeitaria.

O aroma do extrato de ube é como um sussurro da terra, doce e terroso, que dança delicadamente no ar — uma lembrança suave de raízes profundas que carregam a quietude da floresta úmida. Há uma doçura natural, quase infantil, que evoca memórias de sobremesas caseiras feitas em tardes preguiçosas. Mas não é uma doçura simples; é complexa, com nuances quase de noz e uma leve cremosidade que lembra o toque de um sonho longínquo.

É o cheiro da terra depois da chuva, misturado a uma brisa leve de flores que se recusam a revelar seu nome, e a um toque sutil, quase etéreo, que lembra um beijo de amêndoas doces sem ostentação. Este aroma envolve, conforta e convida, sem jamais impor — é a promessa de um sabor que é ao mesmo tempo familiar e exótico, discreto e inesquecível. Então, se não conseguir, use as quantidades que a receita pede por um extrato de sua preferência, só não esqueça que precisará usar um corante roxo para dar a cor que a sobremesa pede. 

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