Chega o fim de outubro — e, mesmo sob o calor persistente do Ceará, há um
rumor de sombras no ar. O vento seco levanta poeiras antigas, como se
procurasse histórias esquecidas nos quintais; as noites, um pouco mais longas,
parecem convidar à leitura e à espera. Não há chaminés acesas, mas o cheiro da
terra quente e das frutas maduras se mistura a algo invisível — talvez o
prenúncio do Dia das Bruxas, essa data estrangeira que, ainda assim, desperta
em nós a velha fome pelo mistério. É tempo de abrir livros como quem abre a
carne de um fruto escuro, de provar nas páginas o sal e o sangue da criação.
PARTE I — OUTUBRO, A MESA E O MONSTRO
Este ensaio — urdido de literatura, memória e alimento — convida o leitor
a revisitar um dos grandes clássicos da modernidade: Frankenstein, de
Mary Shelley. Não é o medo gótico que aqui nos guiará, mas a mesa silenciosa
onde se revelam escolhas, carências e morais.
Mais que um romance de terror, Mary Shelley nos legou um espelho da
humanidade em suas contradições: um criador que esquece de nutrir e uma
criatura que, na simplicidade dos frutos e raízes, encontra a primeira ética.
Este texto busca apresentar o romance sob um olhar inusitado, mas profundamente
humano: o da comida, essa companheira invisível que atravessa épocas, corpos e
histórias. A cada parte, a cozinha se tornará palco de reflexão, e, ao final,
será também reconciliação — entre homem e monstro — na partilha simbólica de
uma sopa.
Sirvo aqui o primeiro prato de um banquete narrativo: um ensaio onde o
romance se desdobra lentamente, e a comida revela mais do que sabores — revela
almas. É o início de uma degustação crítica em que o alimento não apenas nutre,
mas denuncia, absolve, corrompe. Mais adiante, voltarei àquela cozinha
literária, às receitas possíveis — ontem e hoje — e ao gesto último, quase
ritual, em que uma simples sopa sela a delicada fusão entre o homem e o
monstro.
FRANKENSTEIN – PARA QUEM NÃO LEU
Frankenstein; or, The Modern Prometheus, de Mary Shelley,
publicado em 1818, escreve-se como um relato em camadas — cartas, narrativas
dentro da narrativa, confissões ao estertor da razão.
No limiar da história, como um suspiro que ainda não desvela seu segredo,
quatro cartas — cartas ao mesmo tempo íntimas e universais — são endereçadas a
Margaret Saville, irmã distante e porto seguro da alma inquieta do marinheiro
Robert Walton.
Nelas, o leitor é convidado a um prelúdio de silêncio e esperança, onde o
gelo do Ártico se torna um palco vasto e impassível para as ambições e
solitudes do explorador. Victor Frankenstein, figura de tormento e gênio,
permanece uma sombra etérea até os últimos movimentos desse delicado balé
epistolar, surgindo enfim na terceira e quarta carta — não como um personagem
já revelado, mas como um enigma flutuante, um homem resgatado da imensidão
branca, portador de uma história que se abrirá como uma profusão de sabores
complexos, amargos e doces, na narrativa que se desdobra após o silêncio inicial.
Carta III – Trecho onde Walton menciona o encontro com Victor (ainda sem
saber seu nome)
Para: Sra. Saville, Inglaterra
Data: 7 de agosto de 17—
"(...) We perceived a low carriage, fixed on a sledge and drawn by
dogs, pass on towards the north, at the distance of half a mile. A being which
had the shape of a man, but apparently of gigantic stature, sat in the sledge
and guided the dogs."
"Avistamos uma carroça baixa, fixada num trenó e puxada por cães, passando rumo ao norte, a cerca de meia milha de distância. Um ser com forma humana — mas aparentemente de estatura gigantesca — estava sentado no trenó, guiando os cães."
Esse foi o primeiro vislumbre da Criatura — antes mesmo de Victor aparecer.
Carta IV – Quando Victor já está a bordo do navio e Walton escreve sobre ele
Para: Sra. Saville, Inglaterra
Data: 19 de agosto de 17—
"(...) What can I say that will enable you to understand the depth
of my sorrow when I reflect that the man whom I now regard as a brother, whose
mind and heart are alike cultivated and capacious, whose eyes have been wet
with tears of sympathy for my sufferings, and whose voice has often been the
sweetest music to my ears—has now, for many days, been lost to hope and
life!"
"O que posso dizer para que você compreenda a profundidade da minha tristeza ao refletir que o homem que agora considero um irmão — cuja mente e coração são igualmente refinados e vastos, cujos olhos se encheram de lágrimas de compaixão pelas minhas dores, e cuja voz tantas vezes foi a mais doce música aos meus ouvidos — está, há muitos dias, perdido para a esperança e para a vida!"
Aqui, Walton já desenvolveu uma ligação emocional com Victor, reconhecendo nele uma figura nobre e profundamente sofrida.
Esse lento despertar do protagonista através da correspondência não é
mero capricho; é um convite à degustação profunda, uma dança entre o oculto e o
revelado, onde a voz de Walton ecoa como o primeiro aroma, e a de Frankenstein,
o prato principal que sacia e inquieta ao mesmo tempo.
Para que fique claro: a narrativa se desdobra inicialmente em quatro
cartas delicadamente entrelaçadas, endereçadas por Robert Walton à sua irmã
distante, Margaret Saville — um fio terno de confidências entre o gelo imenso e
o silêncio das almas. É na vastidão congelada do Ártico que Walton, navegando
entre blocos que parecem suspensos no tempo, vislumbra uma figura colossal
deslizando em um trenó puxado por cães — é a criatura, uma presença monstruosa
que encarna a própria materialização do medo e do desconhecido.
Mas é ao encontrar, não longe dali um homem exangue e solitário, vagando
perdido entre a neve, que Walton reconhece a verdadeira humanidade da tragédia:
Victor Frankenstein, aquele que ousou desafiar os limites da vida e da morte,
um criador atormentado, perseguido pelas consequências de sua hybris.
Este encontro abre a passagem para que Victor, recuperado e ainda marcado
pelas dores físicas e morais, entregue a Walton seu relato — a história de um
jovem ambicioso, moldado pela razão e pela curiosidade, que em seu laboratório
obsessivo buscou dar vida a uma forma feita de partes dispersas, um ato que
mudou para sempre o significado do humano.
Assim, a correspondência epistolar não é apenas uma estrutura narrativa,
mas um delicado convite a saborear, em camadas, o amargor e a doçura da criação
e da destruição, do monstruoso e do humano, que permeiam todo o romance.
É nesse encontro entre o narrador e o resgatado que a história ganha sua
pulsação viva: as cartas de Walton deixam de ser apenas confidências geladas
para se tornarem o portal por onde adentramos o coração dilacerado de Victor
Frankenstein. Ele não é mais apenas um homem perdido no gelo, mas a voz que
carregará a revelação da ambição desmedida e da dor inexorável.
A correspondência, então, se expande — abrindo espaço para o relato
íntimo de uma criação que se torna fardo, de um sonho que se transforma em
sombra. É a transição delicada entre o mundo contido nas cartas e o vasto
território da tragédia pessoal, onde o prodígio da vida renascida se corrompe
em horror.
A criatura desperta, uma centelha de vida que surge do silêncio gélido do
nada, mas o prodígio que nasceu nas mãos de Victor logo se torna um espelho
distorcido do horror. O criador, grotescamente confrontado com a materialização
de sua ambição, volta-lhe as costas com um gesto irrevogável, abandonando
aquele ser que clamava por reconhecimento e ternura.
Sozinho, como um espectro deslocado, o monstro percorre um mundo estranho
e implacável. Nas trilhas agrestes dos Alpes, ele caminha entre picos que tocam
o céu, onde o silêncio é tão vasto quanto sua própria solidão; atravessa
aldeias onde portas se fecham ao seu passo, e olhares se desviam, carregados de
medo e repulsa, fazendo do seu corpo uma marca de exclusão.
Isolado em seu refúgio improvisado, a criatura encontra abrigo em uma
cabana modesta, próxima à humilde morada dos De Lacey, cuja existência observa
com olhos ávidos de compreensão e pertencimento. Nesse recanto silencioso,
longe do olhar hostil do mundo, depara-se com um pequeno acervo de livros —
relíquias preciosas, deixadas como ecos distantes de uma civilização que para
ele ainda é um mistério.
Esses volumes, longe de serem uma biblioteca grandiosa, tornam-se para
ele santuários do saber e da emoção. Entre as páginas gastas, a criatura
descobre não apenas palavras, mas um verdadeiro mapa para decifrar a complexa
tapeçaria da existência humana. Aprende a linguagem que transcende a simples
comunicação; descobre os meandros do sentimento, das histórias que carregam
alegrias e dores, dos sonhos que lhe são negados.
É nesse espaço íntimo, silencioso e solitário, que ela constrói,
lentamente, sua consciência e sua alma, atravessando a distância entre o
monstruoso e o humano com cada página que absorve.
Perdido na vastidão de sua própria solidão, ele encontrou nos livros um
refúgio e um espelho onde tenta compreender o mundo que a rejeitou. Não trata-se
de uma busca casual, mas uma peregrinação do espírito — páginas gastas que se
tornam janelas para a linguagem da humanidade, portas para as emoções mais
profundas e para as tragédias universais.
Lendo “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, a criatura bebe a
melancolia e a paixão desesperada de um jovem consumido pelo amor e pelo
desespero, reconhecendo ali ecos de sua própria exclusão. A Bíblia Sagrada lhe
oferece imagens de redenção e juízo, esperança e condenação, um código moral
que, apesar de distante, ressoa em seu coração atormentado. Nas narrativas de
Plutarco, descobre heróis e vilões, virtudes e vícios, e a complexa tapeçaria
da natureza humana. Cada livro é um passo na construção de sua consciência — um
aprendizado doloroso de que, apesar de sua origem monstruosa, seu desejo por
beleza, amor e aceitação é tão genuíno quanto o de qualquer homem. Contudo, ao
desvelar essas verdades, o peso do abandono e da rejeição torna-se mais cruel,
e a fome de afeto, mais desesperada.
Assim, entre as páginas
silenciosas daquele pequeno acervo, sente crescer a angústia da fome que vai
além do corpo: a fome social, o vazio da ausência do afeto, da aceitação
negada. Reconhecendo sua condição de ser criado sem guia, sem amor, sem espelho
para refletir sua humanidade, ele dirige a Victor um pedido carregado de uma
complexidade profunda — a súplica por uma companheira que não é apenas desejo,
mas também um sinal de esperança e ameaça, uma promessa que carrega em si o
peso da vingança e a frágil esperança de redenção.
O pedido da criatura não é apenas uma súplica, mas um grito de
sobrevivência — um apelo para que seu sofrimento encontre eco, e para que a
solidão que corrói sua essência seja mitigada por uma presença que reflita sua
própria dor.
Porém, Victor, imerso em um turbilhão de responsabilidade e medo,
inicialmente cede ao apelo desesperado da criatura — aceita conceber uma
companheira, um reflexo que poderia aliviar a solidão de seu tormento. Mas o
receio das consequências incertas e a sombra do desastre futuro o dominam: no
momento decisivo, ele destrói aquela promessa de alívio e redenção antes mesmo
que ela tome forma, desencadeando a fúria inexorável do monstro.
A traição desse gesto torna-se a centelha que acende uma fúria
inexorável: o monstro, movido pela vingança e pelo abandono, lança-se numa
perseguição implacável, ceifando aqueles que Victor ama: primeiro, o irmão mais
jovem de Victor, o frágil William, é arrancado da vida — sua inocência ceifada
como uma flor delicada em terreno árido. Justine Moritz, cuja pureza e bondade
nada sabiam da monstruosidade que se gestava, é injustamente acusada, condenada
e sacrificada, seu destino selado pelo silêncio dos que preferem a certeza
amarga à verdade dolorosa.
Por fim, Elizabeth Lavenza, a noiva de Victor, uma promessa de amor e
redenção para Victor, torna-se a vítima última, seu destino marcado pelo pacto
sombrio entre criador e criatura: na madrugada silenciosa que se seguiu à
cerimônia, quando as luzes da festa já se apagavam e o véu do sono começava a
envolver a jovem esposa, Elizabeth repousava no quarto nupcial — um espaço que
deveria ser santuário de ternura e promessas cumpridas. Mas a sombra do destino
cruel se insinuava, silenciosa e inexorável. Enquanto o mundo lá fora ainda
celebrava o enlace, a criatura, atormentada por sua dor e fúria, irrompeu
naquela alcova sagrada, tornando-se espectro implacável da vingança. No
silêncio profundo da noite, o grito contido do amor desfeito ecoou nas paredes
frias do aposento, enquanto a vida de Elizabeth se esvaía, tragada pela
escuridão que ela jamais poderia compreender.
A vida de Elizabeth foi silenciada pelas mãos que carregavam o peso do
abandono e da ira. Um estrangulamento que trouxe o abraço da morte, um aperto
cruel que apagou a luz que brilhava nos olhos dela. Aquilo foi mais do que um
assassinato — era o último ato de um drama entre criador e criatura, onde o
desejo de redenção se mesclava à dor do abandono, e a esperança se quebrava sob
o peso da fatalidade.
Cada morte golpeou não apenas a carne, mas perfurou a alma de Victor,
abrindo um abismo profundo onde a culpa e o desespero se entrelaçam. Nesse
vórtice sombrio, a vingança se torna um laço invisível que prende criador e
criatura, enredando-os numa dança sombria e interminável, onde o sofrimento
ecoa como uma melodia trágica que não encontra descanso.
Finalmente, do calor abafado dos laboratórios e dos recantos sombrios da
Europa, a narrativa se desloca, quase sem fôlego, para as amplas e cruéis
extensões do Ártico — um mundo de gelo infinito e silêncio cortante. É ali,
entre montanhas de gelo cintilante e mares congelados, que Victor Frankenstein,
fugido da tragédia e da culpa, persegue incansavelmente a criatura que ele
mesmo lançou ao mundo.
O caminho é tortuoso, marcado por geleiras traiçoeiras e tempestades
impiedosas que castigam a carne e o espírito. Cada passo nessa imensidão
congelada é um desafio à vida; cada respiração, um ato de resistência contra o
frio que penetra os ossos. Victor avança, exaurido, guiado por uma mistura
cruel de ódio, responsabilidade e uma sombra tênue de esperança.
Atrás dele, o monstro o persegue com igual intensidade, carregando no
coração a dor lancinante da rejeição e o peso de uma existência vazia. Entre os
ventos cortantes e o brilho implacável da neve, a caçada se torna um confronto
final — não apenas de corpos, mas de almas marcadas pela criação, pelo abandono
e pela vingança.
No silêncio gélido desse vasto deserto branco, onde o tempo parece
suspenso, a vida de Victor se apaga, enquanto a criatura contempla o corpo do
criador com um misto de remorso e resignação, preparando-se para desaparecer
nas profundezas implacáveis do Ártico, encerrando assim um ciclo trágico de
criação e destruição.
O PRIMEIRO ENGANO: CASTELOS E A FÁBULA DO GÓTICO
Entre os equívocos que cercam o imaginário popular sobre Frankenstein,
talvez o mais persistente seja este: o de que a criatura — esse ser condenado à
margem — teria ganhado vida em um castelo sombrio, cercado por torres, raios, trovões
e janelas góticas. A imagem é poderosa, cinematográfica, gravada no
inconsciente coletivo por adaptações que preferiram o espetáculo ao silêncio.
No entanto, a verdade que Mary Shelley escreveu é de outra ordem — mais
discreta, mais trágica, mais humana.
Victor Frankenstein, ao deixar as margens plácidas da sua cidade natal,
Genebra, e a segurança dos Alpes suíços, parte ainda jovem rumo à Universidade
de Ingolstadt, na Baviera, sul da Alemanha — uma cidade mergulhada em nevoeiros
bávaros e prenúncios de excesso. Ali, entre corredores úmidos e tratados
encardidos pelo tempo, ele se lança, com uma fome quase sagrada, ao estudo das
ciências naturais: anatomia, química, filosofia da vida. Mas não é apenas o
saber que o move — é a ânsia de desafiar os próprios limites da criação.
O nascimento da criatura não se dá, portanto, num cenário teatral de
trovões e torres, mas num quarto adaptado, acinzentado, onde frascos fervem em
silêncio e a solidão pesa mais do que o próprio mistério da vida.
O laboratório improvisado, feito de bancadas manchadas, lâmpadas a óleo e
caixas com fragmentos do que um dia foi humano, carrega mais horror do que
qualquer castelo: porque é real. É um espaço mundano, quase banal em sua
pobreza, e é justamente por isso que o ato se torna tão brutal.
O SEGUNDO
ENGANDO: NÃO FORAM OS RAIOS QUE TROUXERAM VIDA PARA O MONTRO – NA AUSÊNCIA DO
RAIO, O PECADO
Entre os tantos enganos que o tempo sedimentou sobre essa obra, talvez
nenhum seja tão insistente quanto o da tempestade que teria dado vida à
criatura. Imaginamos relâmpagos rasgando os céus, torres metálicas conduzindo
raios furiosos, faíscas dançando sobre o corpo costurado, e Victor — ofegante,
enlouquecido — gritando: “Está vivo!” Mas nada disso está no romance de
Mary Shelley. A autora, ao narrar o instante da criação, retira dele qualquer
espetáculo:
“Foi numa noite sombria de novembro [...] que reuni os instrumentos da
vida ao meu redor, para que eu pudesse infundir uma centelha de ser na coisa
sem vida que jazia a meus pés.”
Essa “centelha de ser”, embora evocativa, não revela método.
Shelley, deliberadamente, opta pelo mistério. Não há menção a raios, nem a
faíscas, nem mesmo à eletricidade visível — apenas um silêncio cheio de tensão
e um gesto que se dá à sombra, no isolamento. Ainda assim, a imagem do raio
tornou-se indissociável da criatura.
Isso porque, mais de um século depois, o cinema buscaria no céu o que a
literatura velou: a versão de 1931, com Boris Karloff, trocou o sussurro pelo
trovão. Criou-se, então, o mito da torre, da tempestade, do grito — uma
iconografia poderosa, mas infiel.
Mary Shelley, influenciada pelos debates do galvanismo e pelos temores do
progresso científico de seu tempo, sabia exatamente o que omitir. Ao recusar-se
a revelar o mecanismo da criação, ela desloca o foco do “como” para o “por quê”
— e, sobretudo, para o “e depois?”. Porque o verdadeiro horror não está na
centelha que anima, mas no abandono que sucede o despertar.
O monstro, afinal, não nasce de um raio — nasce de um estudante. Não vem
do alto de uma torre, mas do porão da vaidade humana. E talvez o verdadeiro
gótico esteja nisso: não no cenário, mas no gesto. Não na arquitetura, mas na
ausência de responsabilidade. A criatura é filha da obsessão, e sua primeira
casa foi o quarto de um jovem que quis brincar de Deus, sozinho, sob a luz
trêmula de uma lâmpada esquecida.
O
TERCEIRO, E MAIOR DOS ENGANOS: O NOME QUE NÃO SE DÁ – IDENTIDADE, AUSÊNCIA E O
ERRO COMUM
Deixando para trás as margens plácidas do lago de Genebra e a segurança
doméstica dos Alpes suíços, Victor Frankenstein parte ainda jovem rumo à
Universidade de Ingolstadt — uma cidade envolta em neblinas bávaras e
presságios. Ali, entre corredores úmidos e tratados empoeirados, ele se entrega
com febre à alquimia moderna: química, anatomia, filosofia natural. Mas não é
apenas o saber que o consome — é a sede de ultrapassar os limites do humano.
Em um quarto escurecido pelo isolamento e pelo ardor da ambição, ele
improvisa um laboratório, não com relâmpagos e torres góticas, como o
imaginário popular insiste, mas com mesas manchadas, vidrarias tremendo à
chama, restos de corpos ocultos em caixas.
É nesse espaço mundano — quase banal em sua pobreza — que a transgressão
ocorre. O monstro não nasce de um castelo, mas de uma obsessão cultivada no
silêncio de um estudante que ousa brincar de Deus sob a luz mortiça de uma
lâmpada a óleo.
Há um equívoco, persistente como o maior eco antigo, que atravessa
gerações de leitores: a crença de que Frankenstein é o nome do ser
criado — da criatura que vaga, trêmula e desamparada, por entre os nevoeiros da
imaginação gótica. Mas não. Frankenstein é, na verdade, o nome do homem
que ousou jogar dados com os deuses — Victor, o jovem cientista cuja ambição
inflamou a centelha da vida artificial. É dele o nome que intitula a obra, e é
ele quem carrega o peso da criação.
À sua criação, porém, ele não concede um nome. E essa ausência não é
casual, nem inocente. Victor Frankenstein recorre a palavras que não nomeiam,
mas condenam: “criatura”, “demônio”, “monstro”, “ogro”, “aberração”, “coisa”.
Em seu vocabulário, o ser que forjou não tem identidade própria — é um erro,
uma ruptura na ordem natural, uma afronta à linguagem tanto quanto à biologia.
Sobre esse embate entre criador e criação — feito de silêncio, recusa e
dor — há dois trechos que me feriram com especial delicadeza, como quem toca
uma ferida que ainda pulsa.
O primeiro vem de Victor, ao reconhecer a aproximação daquele ser que
tentou apagar da memória, mas que retorna, imenso e inevitável, como uma sombra
sobre a própria consciência: “Percebi, conforme se aproximava (visão
tremenda e abominável!), que era o desgraçado que eu tinha criado.”
Aqui, Victor não vê um filho, nem uma obra de gênio, mas um erro — uma
falha viva. O adjetivo "desgraçado" carrega o peso do abandono e da
culpa. É como se cada passo da criatura ecoasse a pergunta que Victor jamais
ousa responder: "Por que me deixaste?"
O segundo momento é ainda mais pungente, pois é a própria criatura que
fala — e o faz com uma dignidade trágica, tocando as cordas do coração com uma
força inesperada. Ela não clama por vingança, ao menos não de imediato, mas por
reconhecimento: “Lembra que sou tua criatura; deveria ser teu Adão, mas sou
apenas o anjo caído de quem afastaste a alegria não por delito… Eu era virtuoso
e bom; a miséria me tornou um demônio…”
É uma súplica que ressoa como prece e acusação. Ao invocar a figura de
Adão, a criatura clama por humanidade, por lugar, por nome. Mas é tratada como
Lúcifer — não por rebelião, mas por abandono. E nessa inversão amarga, vemos o
verdadeiro horror da história: não o monstro que mata, mas o homem que recusa
amar aquilo que fez nascer.
E, no entanto, o ser criado — esse corpo costurado com os restos dos que
já não falam — deseja nome. Ele anseia por pertencimento, por batismo, por uma
palavra que o inscreva no mundo dos homens. Em um gesto tocante de angústia e
teologia, ele sugere que deveria se chamar Adão, evocando o primeiro
homem moldado do barro pelas mãos de um criador. Mas nem isso lhe é concedido
oficialmente. Ele permanece sem nome — um ser nascido da linguagem e,
paradoxalmente, banido dela.
Há, aqui, uma ferida aberta. Pois nomear é reconhecer. E ao recusar esse
gesto, Victor não apenas nega à criatura um lugar no mundo — ele também recusa
sua própria responsabilidade. Ao apagar o nome, tenta apagar a culpa.
Assim, a confusão moderna — de chamar “Frankenstein” aquilo que é, na verdade, sua criação — não deixa de ser, ironicamente, um acerto intuitivo. Porque talvez, no fundo, os dois estejam fundidos num só destino. Criador e criatura são espelhos partidos, ecos um do outro. Talvez o verdadeiro monstro nunca tenha sido o ser sem nome, mas o homem que ousou criar sem amar, gerar sem nomear.
PARTE II –
O QUE SE COME DIZ QUEM SE É: COMO A COMIDA REFLETE A MORALIDADE E AS ESCOLHAS
DOS PERSONAGENS
Se nos dispusermos a analisar com cautela, a cozinha pode ser mais do que
o santuário do corpo. Se permitirmos que a cozinha funcione como sala de
interrogatório da alma — ela se torna um tribunal secreto, onde a alma dos
personagens é convocada a depor sem subterfúgios.
Assim, é possível ver nas refeições contidas na obra de Shelley pistas
incontornáveis sobre ética e caráter: cada prato é uma confissão murmurada em
aroma, textura e escolha. Não há garfada ou bocado que não revele um traço de
caráter, uma culpa abafada, um desejo reprimido. A comida, ali, não se
apresenta como simples cenário, mas como gramática visceral — um idioma
silencioso, em que o pão partilhado, a água recusada e o vinho servido à sombra
da culpa conjugam, com precisão trágica, os verbos do bem e do mal.
A comida, nesse romance, não é mero pano de fundo: é linguagem material,
um espelho. Tomemos duas mesas imaginárias:
A MESA DO
DR. VICTOR FRANKENSTEIN: COMIDA UTILITÁRIA, MENTE UTILITÁRIA
Victor Frankenstein alimenta-se como quem mal tolera o corpo que habita —
um espírito inquieto preso à carne apenas pelo dever de mantê-la funcionando.
Durante seus anos em Ingolstadt (Baviera, sul da Alemanha) entregando-se à
febre da descoberta, suas refeições não passam de gestos automáticos: caldo
morno resfriado sobre a mesa, pedaços de pão envelhecido arrancados à pressa,
quando o estômago protesta. A carne, raramente presente, dependia da oferta da
cidade ou da estação — e o inverno bávaro, com seus ventos cortantes e mercados
vazios, fazia dela um luxo intermitente. Victor não cozinhava; sobrevivia.
Na ânsia de gerar vida, negligencia a sua própria. Cada alimento é mero
combustível — algo que se engole, não que se saboreia. Não há rito, não há
prazer, não há mesa posta. O gesto de comer é suprimido pelo desejo de
transcender o humano, e essa abstenção afetiva revela mais do que ascetismo:
revela frieza, distanciamento, uma moral instrumental. Ele cria uma criatura,
mas não lhe oferece calor. Da mesma forma, não oferece calor a si mesmo. E
nesse afastamento do corpo — do seu e do outro — começa a se delinear o traço
mais terrível de seu caráter: o desprezo por aquilo que vive, sente, precisa.
O gesto de comer — apressado, desatento, sem passada pelo rito do afeto —
revela uma alma que instrumentaliza: o corpo serve ao intelecto; o humano serve
ao projeto. A negligência pela alimentação própria ecoa, numa escala moral, a
negligência pela criatura. Victor cria vida mas não a acolhe; assim como
despreza a mesa onde outro poderia esperar calor, despreza a responsabilidade
que a criação lhe impõe.
Há ainda um simbolismo de classe nessa mesa: a comida preparada, servida,
fala de civilidade, de convenção social. Victor pertence a um mundo onde o
alimento é mediado — cardápios, redes, protocolos — e, por isso, é possível que
sua visão da vida também esteja polida por distanciamento. Sua dieta é a dieta
do poder: suficiente, controlada, fria nas intenções.
A MESA DO
MONSTRO: ALIMENTAÇÃO DO MUNDO, ÉTICA DA COLETA
Contrastando com isso, imagine a tigela do monstro: frutos silvestres,
raízes escavadas, bagas lavadas em rios glaciais. Não há luxo, há honestidade.
Ele não caça por esporte; colhe o necessário. Quando o livro menciona os
hábitos alimentares da criatura — o pão que encontra, as maçãs que rouba por
fome, a água límpida de córregos — é a narrativa a sublinhar sua inocência
inicial. A dieta do monstro é ética porque obedece a uma regra simples: não
aniquilar para se alimentar quando é possível coexistir. É a cozinha da
sobrevivência que não se transforma em opressão.
A trajetória da criatura — marcada pela exclusão, pela errância e pela
ausência de nome — é também narrada por sua fome. Antes mesmo de desejar amor,
ele deseja sustento. O alimento é seu primeiro vínculo com o mundo natural e
com a crueza da existência. Em um de seus primeiros relatos, diz:
“A comida, no entanto, tornou-se escassa; e muitas vezes passei o dia
inteiro procurando em vão por algumas bolotas para aplacar a fome.”
Neste trecho, a criatura se refere às bolotas — os frutos do
carvalho, também conhecidas como landres ou glandes. Embora hoje sejam
associadas mais à alimentação de porcos ou à simbologia de florestas antigas,
as bolotas já foram parte da dieta humana em períodos de escassez,
especialmente quando secas, moídas e transformadas em uma espécie de farinha.
Não se tratava de alimento nobre, tampouco agradável ao paladar: seu sabor é
amargo, sua textura, áspera. Na região da Baviera, onde a história se desenrola
entre florestas densas e terrenos selvagens, os carvalhos são abundantes, e as
bolotas compõem o cenário natural com que a criatura, sem nome, tenta se
alimentar e sobreviver.
Ainda assim, na solidão do exílio e na fome não escolhida, até esses
frutos rústicos tornaram-se valiosos para aquele que, sem nome, buscava na
terra um consolo para a ausência de acolhimento. Que o primeiro sustento da
criatura venha das raízes e dos carvalhos — e não do sangue — é um detalhe que
diz mais sobre sua essência do que muitos estão dispostos a reconhecer
Essa frase ecoa como ladainha de um corpo que se reconhece na ausência —
e que, ao contrário de Victor, não negligencia o que consome, mas experimenta
cada raiz e cada baga como um pacto com a sobrevivência. Longe de mesas
civilizadas, ele se resigna à floresta e ao instinto:
“… e me satisfiz com frutas vermelhas, nozes e raízes, que colhi de
uma floresta vizinha.”
Há algo de Adâmico nesse gesto — o primeiro homem também estendeu a mão
ao fruto e dele tomou a consciência. A criatura, por sua vez, descobre no ato
de colher não apenas o que comer, mas o que é ser no mundo. E então, quase como
um rito de iniciação, vem o fogo. Não como tecnologia dominada, mas como
revelação ancestral:
“Descobri que algumas das vísceras que os viajantes haviam deixado
estavam assadas e tinham um sabor muito mais saboroso do que as frutas
vermelhas que colhi das árvores. Tentei, portanto, temperar minha comida da
mesma maneira, colocando-a sobre as brasas vivas.”
Nesse momento, ele descobre — com espanto e prazer — que o mundo pode ser
modificado pelo toque humano. A carne, antes crua, agora tem sabor. Não apenas
come: cozinha. E isso, embora simples, é um marco silencioso em sua
humanidade. É quando o “monstro” que nasceu do frio da ciência acende, pela
primeira vez, o calor da cultura. A brasa sobre a qual repousa a víscera
roubada dos viajantes é mais que chama: é metáfora. Porque preparar o alimento
é, em si, um gesto de permanência, um ensaio de civilização. Ele não apenas
alimenta o corpo — começa, ali, a alimentar a ideia de que pode pertencer ao
mundo que o rejeita.
Essa oposição — a dieta como escolha ética — é o núcleo da leitura que
Michael Owen Jones (2022) e Carol J. Adams (1990) propõem: o monstro pode ser
lido como figura vegetariana, cuja dieta, longe de ser anedótica, é manifesto
moral. Comer, aqui, significa escolher. Victor escolhe dominar; o monstro
escolhe preservar.
UMA FOME
SEM SANGUE: O MONSTRO VEGETARIANO
Há uma dissonância inquietante que escapa à maioria dos leitores
apressados — talvez por força do mito, talvez por medo de ver humanidade onde
se esperava apenas horror. Quando se imagina um ser monstruoso, moldado em
partes de mortos e expulso das leis naturais, o instinto coletivo o associa à
selvageria: dentes gotejando sangue, impulsos carnívoros, um apetite feroz por
destruição.
Mas o que Frankenstein revela é outro retrato, infinitamente mais
doloroso. Ao nascer, a criatura — desamparada, inocente, recém-animada sob o
peso do abandono — escolhe não comer carne. Não caça, não rasga, não devora.
Alimenta-se de frutos, raízes e nozes, colhidos com o mesmo cuidado com que
observa, de longe, os gestos dos humanos. Em suas próprias palavras:
“Eu me satisfazia com frutas vermelhas, nozes e raízes...”
E então se pergunta: se soubéssemos disso desde o início — que ele é
vegetariano, que evita o sofrimento de outros seres vivos — será que o veríamos
com os mesmos olhos? Será que os gritos de medo seriam tão automáticos, ou
o nojo tão imediato? Ou nossa repulsa não vem do que ele faz, mas do que ele
parece? A criatura foi chamada de demônio muito antes de agir como tal. Foi
rejeitada antes de ferir.
Talvez essa escolha alimentar, silenciosa e ética, revele uma alma que
nasceu gentil — e que só depois foi empurrada ao abismo da violência. A fome
por carne nunca foi sua. A fome que o move é outra: a de pertencimento. Mas o
mundo, surdo a qualquer linguagem que não fosse aparência, respondeu com
pedras. E então a pergunta que fica não é o que ele come, mas o que o mundo
devorou nele antes que pudesse florescer.
INTERSEÇÃO: A MESA COMO TRIBUNAL MORAL
Quando observamos juntos essas mesas — do criador e da criatura —
entendemos que Shelley não apenas descreve alimentos: ela os usa como
sinalizadores morais. A negligência de Victor pela alimentação do outro reproduzem-se
na negligência quanto às consequências do saber; a modéstia no prato do monstro
denuncia uma ética de resistência à violência humana. A comida, então, torna-se
prova em processo: mostra quem ama, quem explora, quem é capaz de remorso.
Se a comida denuncia caráter, resta perguntar: como a própria cozinha
(suas técnicas, seus rituais, seus erros) espelha a dinâmica da criação e da
ruína? Como o ato de cozinhar — juntar fragmentos, aplicar fogo, temperar com
intenção — se parece com o gesto de Victor ao montar sua criatura?
Na próxima parte explorarei a metáfora culinária da criação e destruição,
traçando paralelos entre o laboratório e a despensa; a seguir, navegarei pelas
tradições gastronômicas da época, até desembocar no gesto simbólico da sopa — a
Kohlsuppe mit Geräuchertem Speck — que proporei como epílogo culinário e moral
para este ensaio.
PARTE III
— O LABORATÓRIO E A COZINHA: CRIAÇÃO, DESTRUIÇÃO E OS RITOS DA MESA
Há algo de profundamente culinário no gesto de Victor Frankenstein quando
recolhe, de hospitais e cemitérios, os fragmentos que irão compor sua criatura.
O romance descreve um laboratório gélido, úmido, erguido em meio a noites
insones, onde ciência e alquimia se confundem — mas não é difícil, para o
leitor sensível, enxergar ali o avesso de uma cozinha. Pois cozinhar é também
reunir partes dispersas: raízes, carnes, líquidos, sais. É unir o que está
morto para dar vida a algo novo, palatável, que aquece e sustenta. É um ato
criador.
Mas, como todo ato de criação, a cozinha traz em si a possibilidade da
ruína. Um excesso de sal, o fogo demasiado, a carne crua demais — e o banquete
se converte em desastre. Assim também com Victor: ao manipular os
“ingredientes” da vida sem atenção ao afeto, ele produz não um milagre de
nutrição, mas uma abominação abandonada à própria fome.
A ALQUIMIA DA PANELA, A ALQUIMIA DO CORPO
Na panela, a água começa insípida. Aos poucos, recebe legumes, raízes,
gordura, tempero. Na imaginação romântica, é como se cada elemento trouxesse
sua memória, sua ancestralidade: a cenoura guarda o solo onde repousou, a
batata carrega o frio subterrâneo, a cebola chora o corte. Do atrito entre
esses mundos nasce algo novo, síntese maior que a soma de suas partes. Victor,
no entanto, esquece essa verdade simples que toda cozinheira sabe: não basta
reunir elementos, é preciso acompanhá-los com tempo, paciência e calor.
A criatura é, portanto, uma sopa sem cuidado — uma mistura apressada que, em vez de nutrir, envenena. O paralelo entre cozinha e ciência se ilumina: a diferença entre vida e horror é a mesma que distingue o prato confortador da mistura intragável. Shelley nos mostra, pela ausência da mesa, o peso da responsabilidade em cada gesto de criação.
DE QUE
MANEIRA OS HÁBITOS ALIMENTARES CONTRASTAM?
Na tradição europeia do início do século XIX, as classes instruídas —
como a família Frankenstein — comiam carne regularmente, acompanhada de sopas
ricas, pães de trigo, vinho. Victor, integrado a esse mundo, consome a refeição
burguesa como quem cumpre um rito social, mas sem atenção real ao que ingere.
Ele mastiga distraído, pensando em fórmulas, em galvanismo, em cadáveres.
Já o monstro, ao contrário, é um comedor do mundo direto. Sua boca
conhece a seiva da raiz, o sumo ácido de uma maçã recém-colhida, a aspereza da
casca de noz entre os dentes. Se Victor representa o alimento mediado pela
cultura e pela sociedade, a criatura é puro contato com a natureza. Essa
diferença ecoa em sua moralidade: Victor come como quem consome poder; o
monstro come como quem pede licença à terra para sobreviver.
A criatura jamais cozinha, e nisso reside sua tragédia e sua pureza:
viver apenas de alimentos crus é aceitar o mundo como dado, não como
transformado. Victor, ao cozinhar vida em seu laboratório, quis ser demiurgo,
mas recusou-se a nutrir. O monstro, ao aceitar a maçã tal como é, recusa-se a
dominar.
CRIAÇÃO E DESTRUIÇÃO: O PRATO
COMO METÁFORA DA VIDA
Se Victor tivesse sido um cozinheiro, poderíamos imaginar sua cozinha
como um arsenal de aço e ossos: facas, pinças, caldeirões, vapores de
substâncias não nomeadas. Seu prato final seria como carne servida fria, sem
tempero, onde o apetite é suprimido pela repulsa. O monstro, por sua vez, traz
ao imaginário outro tipo de mesa: um banquete sem fogo, um piquenique trágico
de frutos partidos e raízes.
O ato de cozinhar, de fato, é a metáfora mais precisa da narrativa.
Cozinhar é manipular vida e morte. É transformar o vegetal, que já não cresce,
em algo que ainda nutre; é pegar o animal morto e sublimá-lo em caldo que
aquece. Victor fracassa porque esquece que cozinhar exige partilha: cozinhar é
sempre fazer para alguém. Sua criatura é um prato servido sem convivas — e, por
isso, não alimenta, apenas assombra.
AS
TRADIÇÕES CULINÁRIAS DA ÉPOCA COMO ATMOSFERA DO ROMANCE
Quando Mary Shelley escreveu Frankenstein, a Europa atravessava
invernos de guerra e renascimento científico. Os Alpes suíços, cenário de parte
da narrativa, eram marcados por alimentos simples e resistentes ao frio:
repolho, cenouras, batatas, raízes secas, sopas densas de cevada e bacon defumado.
Nas casas camponesas, o fogo constante na lareira mantinha caldeirões onde se
cozinhavam lentamente sopas de repolho (Kohlsuppe), guisados de feijão, pães de
centeio escurecidos pela fumaça.
Esses sabores — pungentes, ásperos, cheios de fumaça e gordura — ecoam na
própria tessitura gótica do romance. Pois o gótico é também isso: comida
pesada, sombras na cozinha, pratos de subsistência que aquecem, mas também
sufocam. O cheiro do bacon defumado guardado em celeiros pode ser lido como a
mesma névoa moral que paira sobre Victor; a leveza de uma maçã mordida junto ao
rio reflete a pureza ainda não corrompida do monstro.
Na próxima e última parte, darei corpo à conclusão: as lacunas ainda não exploradas — a relação explícita entre comida, moralidade e identidade; o sofrimento que a fome expõe; e a metáfora do banquete como criação e culpa. O ensaio culminará na receita da sopa de repolho com bacon defumado (Kohlsuppe mit Geräuchertem Speck), apresentada não apenas como prato, mas como gesto reconciliador: um convite ao leitor para degustar o gótico, refletir sobre a criação e, talvez, redimir-se pelo calor de uma refeição partilhada.
PARTE IV —
O BANQUETE DA CRIAÇÃO: ENTRE A FOME E O PERDÃO
Toda a narrativa de Frankenstein pode ser lida como um grande
banquete interrompido. Victor prepara, com mãos febris, um prato impossível —
e, no instante de servi-lo, recua em horror, deixando seu convidado faminto à
porta. A criatura vaga, faminta de alimento e de afeto, aprendendo a distinguir
raízes e frutos, como uma criança que descobre o mundo pelo paladar. Mas não há
pão repartido, não há mesa posta, não há taça compartilhada.
A ausência da refeição em comum é a verdadeira tragédia do romance. Pois
cozinhar não é apenas transformar a morte em vida; é transformar o solitário em
comunhão. Victor esquece que toda criação pede partilha. Ao recusar-se a
alimentar o monstro, recusa-se também a reconhecê-lo como semelhante.
E assim, a cozinha nos ensina o que a ciência de Victor não pôde: que não
basta dar forma à vida, é preciso nutri-la. O alimento é o mais íntimo dos
pactos, a verdadeira aliança entre corpos e almas.
O SOPRO QUENTE DA SOPA
Nas montanhas geladas, onde Mary Shelley situou cenas de seu romance,
havia uma comida que sustentava gerações: a sopa de repolho e bacon defumado,
lentamente cozida em grandes caldeirões de ferro. O aroma adocicado do repolho
se misturava ao sal e à fumaça do bacon, e o caldo grosso aquecia os ossos dos
viajantes e camponeses.
Essa sopa, tão simples, contém em si uma lição que Victor jamais
aprendeu: a vida não se cria apenas com fogo e sangue, mas com tempo, paciência
e partilha. É a alquimia cotidiana, menos grandiosa que a faísca elétrica de um
laboratório, mas infinitamente mais poderosa — pois consola, reúne, perdoa.
EPÍLOGO — A SOPA COMO REDENÇÃO
Se Victor tivesse oferecido ao seu monstro uma tigela fumegante dessa
sopa, talvez o destino da narrativa fosse outro. Talvez o calor do caldo
tivesse aquecido não apenas a garganta da criatura, mas também a frieza do
coração de seu criador. Pois não há ódio que resista inteiramente ao gesto de
repartir o pão, não há exílio que não se abrandar diante de uma sopa que
esquenta as mãos.
Na ausência dessa partilha, resta-nos nós, leitores, recompor o banquete
interrompido. Cozinhar essa sopa hoje é, de certo modo, redimir o fracasso de
Victor: é sentar-se com a criatura à mesa, ouvi-la, reconhecê-la. É aceitar que
a verdadeira faísca da vida não está na eletricidade, mas no gesto simples de
alimentar.
Eis o pacto que Shelley nos deixou: que aprendamos a cozinhar não
monstros, mas mesas cheias de humanidade.
KOHLSUPPE
MIT GERÄUCHERTEM SPECK
(Sopa de repolho com bacon defumado, século XIX)
Ingredientes:
1 repolho
médio, cortado em tiras finas
150 g de
bacon defumado em cubos (ou use linguiça fininha defumada)
2 cenouras em
rodelas
2 batatas em
cubos
1 cebola
grande picada
2 dentes de
alho amassados
1 litro de
caldo de carne ou legumes
Sal e pimenta
a gosto
Uma colher de
manteiga ou banha (como se usava na época)
Preparo: Em
uma panela, derreta a manteiga ou a banha e refogue o bacon até soltar gordura
e perfumar (se usar a linguiça defumada, corte em pedaçso ano muito pequenos, e
deixe dourar). Acrescente a cebola e o alho, deixando dourar suavemente. Adicione
as cenouras e as batatas, mexendo até que se misturem aos sabores do bacon.
Junte o repolho, cubra com o caldo e deixe cozinhar lentamente, em fogo baixo,
por cerca de 40 minutos, até que tudo se torne macio e aromático. Ajuste o sal,
polvilhe com pimenta e sirva fumegante, acompanhado de pão escuro.
Dica:
Eu, particularmente, gosto de sentir o repolho com um pouco de crocância, então
e deixo para colocá-lo depois que os legumes já estão no ponto. Assim eu coloco
o repolho acerto sal e pimenta, mexo bem e tampo a panela. O caldo dela deixará
o repolho no ponto que eu gosto. E no meu prato e coloco coentro e cebolinha
picados, pois eu amo. Asi, fique à vontade pra fazer ao seu modo.
Reubens
Barão de Gourmandise
Dicas de leitura:
SHELLEY, Mary Wollstonecraft. Frankenstein; or, The Modern Prometheus.
London: Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones, 1818.
JONES, Michael Owen. Frankenstein Was a Vegetarian: Essays on Food
Choice, Identity, and Symbolism. Jackson: University Press of Mississippi,
2022. Disponível em: https://academic.oup.com/mississippi-scholarship-online/book/45032.
Acesso em: 02 out. 2025.
ADAMS, C.J. Frankenstein's Vegetarian Monster. Chapter
6 of The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory (New
York, Continuum, 1990), 108-119. Disponível em: https://knarf.english.upenn.edu/Articles/adams.html. Acesso
em: 02 out. 2025
























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