terça-feira, 28 de outubro de 2025

FRANKENSTEIN DEGUSTADO: ENTRE A FOME E A CRIAÇÃO

 

Chega o fim de outubro — e, mesmo sob o calor persistente do Ceará, há um rumor de sombras no ar. O vento seco levanta poeiras antigas, como se procurasse histórias esquecidas nos quintais; as noites, um pouco mais longas, parecem convidar à leitura e à espera. Não há chaminés acesas, mas o cheiro da terra quente e das frutas maduras se mistura a algo invisível — talvez o prenúncio do Dia das Bruxas, essa data estrangeira que, ainda assim, desperta em nós a velha fome pelo mistério. É tempo de abrir livros como quem abre a carne de um fruto escuro, de provar nas páginas o sal e o sangue da criação.


Foto promocional de Boris Karloff em uma clássica interpretação do monstro, em  The Bride of Frankenstein (A Noiva de Frankenstein), de 1935.

PARTE I — OUTUBRO, A MESA E O MONSTRO

Este ensaio — urdido de literatura, memória e alimento — convida o leitor a revisitar um dos grandes clássicos da modernidade: Frankenstein, de Mary Shelley. Não é o medo gótico que aqui nos guiará, mas a mesa silenciosa onde se revelam escolhas, carências e morais.

                                                       Mary Shelley, a autora de Frankenstein.

Mais que um romance de terror, Mary Shelley nos legou um espelho da humanidade em suas contradições: um criador que esquece de nutrir e uma criatura que, na simplicidade dos frutos e raízes, encontra a primeira ética. Este texto busca apresentar o romance sob um olhar inusitado, mas profundamente humano: o da comida, essa companheira invisível que atravessa épocas, corpos e histórias. A cada parte, a cozinha se tornará palco de reflexão, e, ao final, será também reconciliação — entre homem e monstro — na partilha simbólica de uma sopa.

Sirvo aqui o primeiro prato de um banquete narrativo: um ensaio onde o romance se desdobra lentamente, e a comida revela mais do que sabores — revela almas. É o início de uma degustação crítica em que o alimento não apenas nutre, mas denuncia, absolve, corrompe. Mais adiante, voltarei àquela cozinha literária, às receitas possíveis — ontem e hoje — e ao gesto último, quase ritual, em que uma simples sopa sela a delicada fusão entre o homem e o monstro.

FRANKENSTEIN – PARA QUEM NÃO LEU

Frankenstein; or, The Modern Prometheus, de Mary Shelley, publicado em 1818, escreve-se como um relato em camadas — cartas, narrativas dentro da narrativa, confissões ao estertor da razão.

No limiar da história, como um suspiro que ainda não desvela seu segredo, quatro cartas — cartas ao mesmo tempo íntimas e universais — são endereçadas a Margaret Saville, irmã distante e porto seguro da alma inquieta do marinheiro Robert Walton.

Nelas, o leitor é convidado a um prelúdio de silêncio e esperança, onde o gelo do Ártico se torna um palco vasto e impassível para as ambições e solitudes do explorador. Victor Frankenstein, figura de tormento e gênio, permanece uma sombra etérea até os últimos movimentos desse delicado balé epistolar, surgindo enfim na terceira e quarta carta — não como um personagem já revelado, mas como um enigma flutuante, um homem resgatado da imensidão branca, portador de uma história que se abrirá como uma profusão de sabores complexos, amargos e doces, na narrativa que se desdobra após o silêncio inicial.

Carta III – Trecho onde Walton menciona o encontro com Victor (ainda sem saber seu nome)

Para: Sra. Saville, Inglaterra

Data: 7 de agosto de 17—

"(...) We perceived a low carriage, fixed on a sledge and drawn by dogs, pass on towards the north, at the distance of half a mile. A being which had the shape of a man, but apparently of gigantic stature, sat in the sledge and guided the dogs."

"Avistamos uma carroça baixa, fixada num trenó e puxada por cães, passando rumo ao norte, a cerca de meia milha de distância. Um ser com forma humana — mas aparentemente de estatura gigantesca — estava sentado no trenó, guiando os cães." 

Esse foi o primeiro vislumbre da Criatura — antes mesmo de Victor aparecer. 

Carta IV – Quando Victor já está a bordo do navio e Walton escreve sobre ele 

Para: Sra. Saville, Inglaterra

Data: 19 de agosto de 17—

"(...) What can I say that will enable you to understand the depth of my sorrow when I reflect that the man whom I now regard as a brother, whose mind and heart are alike cultivated and capacious, whose eyes have been wet with tears of sympathy for my sufferings, and whose voice has often been the sweetest music to my ears—has now, for many days, been lost to hope and life!"

"O que posso dizer para que você compreenda a profundidade da minha tristeza ao refletir que o homem que agora considero um irmão — cuja mente e coração são igualmente refinados e vastos, cujos olhos se encheram de lágrimas de compaixão pelas minhas dores, e cuja voz tantas vezes foi a mais doce música aos meus ouvidos — está, há muitos dias, perdido para a esperança e para a vida!"


Aqui, Walton já desenvolveu uma ligação emocional com Victor, reconhecendo nele uma figura nobre e profundamente sofrida.

Esse lento despertar do protagonista através da correspondência não é mero capricho; é um convite à degustação profunda, uma dança entre o oculto e o revelado, onde a voz de Walton ecoa como o primeiro aroma, e a de Frankenstein, o prato principal que sacia e inquieta ao mesmo tempo.

Para que fique claro: a narrativa se desdobra inicialmente em quatro cartas delicadamente entrelaçadas, endereçadas por Robert Walton à sua irmã distante, Margaret Saville — um fio terno de confidências entre o gelo imenso e o silêncio das almas. É na vastidão congelada do Ártico que Walton, navegando entre blocos que parecem suspensos no tempo, vislumbra uma figura colossal deslizando em um trenó puxado por cães — é a criatura, uma presença monstruosa que encarna a própria materialização do medo e do desconhecido.

Mas é ao encontrar, não longe dali um homem exangue e solitário, vagando perdido entre a neve, que Walton reconhece a verdadeira humanidade da tragédia: Victor Frankenstein, aquele que ousou desafiar os limites da vida e da morte, um criador atormentado, perseguido pelas consequências de sua hybris.

Este encontro abre a passagem para que Victor, recuperado e ainda marcado pelas dores físicas e morais, entregue a Walton seu relato — a história de um jovem ambicioso, moldado pela razão e pela curiosidade, que em seu laboratório obsessivo buscou dar vida a uma forma feita de partes dispersas, um ato que mudou para sempre o significado do humano.

Assim, a correspondência epistolar não é apenas uma estrutura narrativa, mas um delicado convite a saborear, em camadas, o amargor e a doçura da criação e da destruição, do monstruoso e do humano, que permeiam todo o romance.

É nesse encontro entre o narrador e o resgatado que a história ganha sua pulsação viva: as cartas de Walton deixam de ser apenas confidências geladas para se tornarem o portal por onde adentramos o coração dilacerado de Victor Frankenstein. Ele não é mais apenas um homem perdido no gelo, mas a voz que carregará a revelação da ambição desmedida e da dor inexorável.

A correspondência, então, se expande — abrindo espaço para o relato íntimo de uma criação que se torna fardo, de um sonho que se transforma em sombra. É a transição delicada entre o mundo contido nas cartas e o vasto território da tragédia pessoal, onde o prodígio da vida renascida se corrompe em horror.

A criatura desperta, uma centelha de vida que surge do silêncio gélido do nada, mas o prodígio que nasceu nas mãos de Victor logo se torna um espelho distorcido do horror. O criador, grotescamente confrontado com a materialização de sua ambição, volta-lhe as costas com um gesto irrevogável, abandonando aquele ser que clamava por reconhecimento e ternura.

Sozinho, como um espectro deslocado, o monstro percorre um mundo estranho e implacável. Nas trilhas agrestes dos Alpes, ele caminha entre picos que tocam o céu, onde o silêncio é tão vasto quanto sua própria solidão; atravessa aldeias onde portas se fecham ao seu passo, e olhares se desviam, carregados de medo e repulsa, fazendo do seu corpo uma marca de exclusão.

Isolado em seu refúgio improvisado, a criatura encontra abrigo em uma cabana modesta, próxima à humilde morada dos De Lacey, cuja existência observa com olhos ávidos de compreensão e pertencimento. Nesse recanto silencioso, longe do olhar hostil do mundo, depara-se com um pequeno acervo de livros — relíquias preciosas, deixadas como ecos distantes de uma civilização que para ele ainda é um mistério.

Esses volumes, longe de serem uma biblioteca grandiosa, tornam-se para ele santuários do saber e da emoção. Entre as páginas gastas, a criatura descobre não apenas palavras, mas um verdadeiro mapa para decifrar a complexa tapeçaria da existência humana. Aprende a linguagem que transcende a simples comunicação; descobre os meandros do sentimento, das histórias que carregam alegrias e dores, dos sonhos que lhe são negados.

É nesse espaço íntimo, silencioso e solitário, que ela constrói, lentamente, sua consciência e sua alma, atravessando a distância entre o monstruoso e o humano com cada página que absorve.

Perdido na vastidão de sua própria solidão, ele encontrou nos livros um refúgio e um espelho onde tenta compreender o mundo que a rejeitou. Não trata-se de uma busca casual, mas uma peregrinação do espírito — páginas gastas que se tornam janelas para a linguagem da humanidade, portas para as emoções mais profundas e para as tragédias universais.

Lendo “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe, a criatura bebe a melancolia e a paixão desesperada de um jovem consumido pelo amor e pelo desespero, reconhecendo ali ecos de sua própria exclusão. A Bíblia Sagrada lhe oferece imagens de redenção e juízo, esperança e condenação, um código moral que, apesar de distante, ressoa em seu coração atormentado. Nas narrativas de Plutarco, descobre heróis e vilões, virtudes e vícios, e a complexa tapeçaria da natureza humana. Cada livro é um passo na construção de sua consciência — um aprendizado doloroso de que, apesar de sua origem monstruosa, seu desejo por beleza, amor e aceitação é tão genuíno quanto o de qualquer homem. Contudo, ao desvelar essas verdades, o peso do abandono e da rejeição torna-se mais cruel, e a fome de afeto, mais desesperada.

 Assim, entre as páginas silenciosas daquele pequeno acervo, sente crescer a angústia da fome que vai além do corpo: a fome social, o vazio da ausência do afeto, da aceitação negada. Reconhecendo sua condição de ser criado sem guia, sem amor, sem espelho para refletir sua humanidade, ele dirige a Victor um pedido carregado de uma complexidade profunda — a súplica por uma companheira que não é apenas desejo, mas também um sinal de esperança e ameaça, uma promessa que carrega em si o peso da vingança e a frágil esperança de redenção.

O pedido da criatura não é apenas uma súplica, mas um grito de sobrevivência — um apelo para que seu sofrimento encontre eco, e para que a solidão que corrói sua essência seja mitigada por uma presença que reflita sua própria dor.

Porém, Victor, imerso em um turbilhão de responsabilidade e medo, inicialmente cede ao apelo desesperado da criatura — aceita conceber uma companheira, um reflexo que poderia aliviar a solidão de seu tormento. Mas o receio das consequências incertas e a sombra do desastre futuro o dominam: no momento decisivo, ele destrói aquela promessa de alívio e redenção antes mesmo que ela tome forma, desencadeando a fúria inexorável do monstro.

A traição desse gesto torna-se a centelha que acende uma fúria inexorável: o monstro, movido pela vingança e pelo abandono, lança-se numa perseguição implacável, ceifando aqueles que Victor ama: primeiro, o irmão mais jovem de Victor, o frágil William, é arrancado da vida — sua inocência ceifada como uma flor delicada em terreno árido. Justine Moritz, cuja pureza e bondade nada sabiam da monstruosidade que se gestava, é injustamente acusada, condenada e sacrificada, seu destino selado pelo silêncio dos que preferem a certeza amarga à verdade dolorosa.

Por fim, Elizabeth Lavenza, a noiva de Victor, uma promessa de amor e redenção para Victor, torna-se a vítima última, seu destino marcado pelo pacto sombrio entre criador e criatura: na madrugada silenciosa que se seguiu à cerimônia, quando as luzes da festa já se apagavam e o véu do sono começava a envolver a jovem esposa, Elizabeth repousava no quarto nupcial — um espaço que deveria ser santuário de ternura e promessas cumpridas. Mas a sombra do destino cruel se insinuava, silenciosa e inexorável. Enquanto o mundo lá fora ainda celebrava o enlace, a criatura, atormentada por sua dor e fúria, irrompeu naquela alcova sagrada, tornando-se espectro implacável da vingança. No silêncio profundo da noite, o grito contido do amor desfeito ecoou nas paredes frias do aposento, enquanto a vida de Elizabeth se esvaía, tragada pela escuridão que ela jamais poderia compreender.

A vida de Elizabeth foi silenciada pelas mãos que carregavam o peso do abandono e da ira. Um estrangulamento que trouxe o abraço da morte, um aperto cruel que apagou a luz que brilhava nos olhos dela. Aquilo foi mais do que um assassinato — era o último ato de um drama entre criador e criatura, onde o desejo de redenção se mesclava à dor do abandono, e a esperança se quebrava sob o peso da fatalidade.

Cada morte golpeou não apenas a carne, mas perfurou a alma de Victor, abrindo um abismo profundo onde a culpa e o desespero se entrelaçam. Nesse vórtice sombrio, a vingança se torna um laço invisível que prende criador e criatura, enredando-os numa dança sombria e interminável, onde o sofrimento ecoa como uma melodia trágica que não encontra descanso.

Finalmente, do calor abafado dos laboratórios e dos recantos sombrios da Europa, a narrativa se desloca, quase sem fôlego, para as amplas e cruéis extensões do Ártico — um mundo de gelo infinito e silêncio cortante. É ali, entre montanhas de gelo cintilante e mares congelados, que Victor Frankenstein, fugido da tragédia e da culpa, persegue incansavelmente a criatura que ele mesmo lançou ao mundo.

O caminho é tortuoso, marcado por geleiras traiçoeiras e tempestades impiedosas que castigam a carne e o espírito. Cada passo nessa imensidão congelada é um desafio à vida; cada respiração, um ato de resistência contra o frio que penetra os ossos. Victor avança, exaurido, guiado por uma mistura cruel de ódio, responsabilidade e uma sombra tênue de esperança.

Atrás dele, o monstro o persegue com igual intensidade, carregando no coração a dor lancinante da rejeição e o peso de uma existência vazia. Entre os ventos cortantes e o brilho implacável da neve, a caçada se torna um confronto final — não apenas de corpos, mas de almas marcadas pela criação, pelo abandono e pela vingança.

No silêncio gélido desse vasto deserto branco, onde o tempo parece suspenso, a vida de Victor se apaga, enquanto a criatura contempla o corpo do criador com um misto de remorso e resignação, preparando-se para desaparecer nas profundezas implacáveis do Ártico, encerrando assim um ciclo trágico de criação e destruição.

O PRIMEIRO ENGANO: CASTELOS E A FÁBULA DO GÓTICO

Entre os equívocos que cercam o imaginário popular sobre Frankenstein, talvez o mais persistente seja este: o de que a criatura — esse ser condenado à margem — teria ganhado vida em um castelo sombrio, cercado por torres, raios, trovões e janelas góticas. A imagem é poderosa, cinematográfica, gravada no inconsciente coletivo por adaptações que preferiram o espetáculo ao silêncio. No entanto, a verdade que Mary Shelley escreveu é de outra ordem — mais discreta, mais trágica, mais humana.

Victor Frankenstein, ao deixar as margens plácidas da sua cidade natal, Genebra, e a segurança dos Alpes suíços, parte ainda jovem rumo à Universidade de Ingolstadt, na Baviera, sul da Alemanha — uma cidade mergulhada em nevoeiros bávaros e prenúncios de excesso. Ali, entre corredores úmidos e tratados encardidos pelo tempo, ele se lança, com uma fome quase sagrada, ao estudo das ciências naturais: anatomia, química, filosofia da vida. Mas não é apenas o saber que o move — é a ânsia de desafiar os próprios limites da criação.

O nascimento da criatura não se dá, portanto, num cenário teatral de trovões e torres, mas num quarto adaptado, acinzentado, onde frascos fervem em silêncio e a solidão pesa mais do que o próprio mistério da vida.

O laboratório improvisado, feito de bancadas manchadas, lâmpadas a óleo e caixas com fragmentos do que um dia foi humano, carrega mais horror do que qualquer castelo: porque é real. É um espaço mundano, quase banal em sua pobreza, e é justamente por isso que o ato se torna tão brutal. 

O SEGUNDO ENGANDO: NÃO FORAM OS RAIOS QUE TROUXERAM VIDA PARA O MONTRO – NA AUSÊNCIA DO RAIO, O PECADO

Entre os tantos enganos que o tempo sedimentou sobre essa obra, talvez nenhum seja tão insistente quanto o da tempestade que teria dado vida à criatura. Imaginamos relâmpagos rasgando os céus, torres metálicas conduzindo raios furiosos, faíscas dançando sobre o corpo costurado, e Victor — ofegante, enlouquecido — gritando: “Está vivo!” Mas nada disso está no romance de Mary Shelley. A autora, ao narrar o instante da criação, retira dele qualquer espetáculo:

“Foi numa noite sombria de novembro [...] que reuni os instrumentos da vida ao meu redor, para que eu pudesse infundir uma centelha de ser na coisa sem vida que jazia a meus pés.”


Essa “centelha de ser”, embora evocativa, não revela método. Shelley, deliberadamente, opta pelo mistério. Não há menção a raios, nem a faíscas, nem mesmo à eletricidade visível — apenas um silêncio cheio de tensão e um gesto que se dá à sombra, no isolamento. Ainda assim, a imagem do raio tornou-se indissociável da criatura.

Isso porque, mais de um século depois, o cinema buscaria no céu o que a literatura velou: a versão de 1931, com Boris Karloff, trocou o sussurro pelo trovão. Criou-se, então, o mito da torre, da tempestade, do grito — uma iconografia poderosa, mas infiel.

Mary Shelley, influenciada pelos debates do galvanismo e pelos temores do progresso científico de seu tempo, sabia exatamente o que omitir. Ao recusar-se a revelar o mecanismo da criação, ela desloca o foco do “como” para o “por quê” — e, sobretudo, para o “e depois?”. Porque o verdadeiro horror não está na centelha que anima, mas no abandono que sucede o despertar.

O monstro, afinal, não nasce de um raio — nasce de um estudante. Não vem do alto de uma torre, mas do porão da vaidade humana. E talvez o verdadeiro gótico esteja nisso: não no cenário, mas no gesto. Não na arquitetura, mas na ausência de responsabilidade. A criatura é filha da obsessão, e sua primeira casa foi o quarto de um jovem que quis brincar de Deus, sozinho, sob a luz trêmula de uma lâmpada esquecida.

O TERCEIRO, E MAIOR DOS ENGANOS: O NOME QUE NÃO SE DÁ – IDENTIDADE, AUSÊNCIA E O ERRO COMUM

Deixando para trás as margens plácidas do lago de Genebra e a segurança doméstica dos Alpes suíços, Victor Frankenstein parte ainda jovem rumo à Universidade de Ingolstadt — uma cidade envolta em neblinas bávaras e presságios. Ali, entre corredores úmidos e tratados empoeirados, ele se entrega com febre à alquimia moderna: química, anatomia, filosofia natural. Mas não é apenas o saber que o consome — é a sede de ultrapassar os limites do humano.

Em um quarto escurecido pelo isolamento e pelo ardor da ambição, ele improvisa um laboratório, não com relâmpagos e torres góticas, como o imaginário popular insiste, mas com mesas manchadas, vidrarias tremendo à chama, restos de corpos ocultos em caixas.

É nesse espaço mundano — quase banal em sua pobreza — que a transgressão ocorre. O monstro não nasce de um castelo, mas de uma obsessão cultivada no silêncio de um estudante que ousa brincar de Deus sob a luz mortiça de uma lâmpada a óleo.

Há um equívoco, persistente como o maior eco antigo, que atravessa gerações de leitores: a crença de que Frankenstein é o nome do ser criado — da criatura que vaga, trêmula e desamparada, por entre os nevoeiros da imaginação gótica. Mas não. Frankenstein é, na verdade, o nome do homem que ousou jogar dados com os deuses — Victor, o jovem cientista cuja ambição inflamou a centelha da vida artificial. É dele o nome que intitula a obra, e é ele quem carrega o peso da criação.

À sua criação, porém, ele não concede um nome. E essa ausência não é casual, nem inocente. Victor Frankenstein recorre a palavras que não nomeiam, mas condenam: “criatura”, “demônio”, “monstro”, “ogro”, “aberração”, “coisa”. Em seu vocabulário, o ser que forjou não tem identidade própria — é um erro, uma ruptura na ordem natural, uma afronta à linguagem tanto quanto à biologia.

Sobre esse embate entre criador e criação — feito de silêncio, recusa e dor — há dois trechos que me feriram com especial delicadeza, como quem toca uma ferida que ainda pulsa.

O primeiro vem de Victor, ao reconhecer a aproximação daquele ser que tentou apagar da memória, mas que retorna, imenso e inevitável, como uma sombra sobre a própria consciência: “Percebi, conforme se aproximava (visão tremenda e abominável!), que era o desgraçado que eu tinha criado.”

Aqui, Victor não vê um filho, nem uma obra de gênio, mas um erro — uma falha viva. O adjetivo "desgraçado" carrega o peso do abandono e da culpa. É como se cada passo da criatura ecoasse a pergunta que Victor jamais ousa responder: "Por que me deixaste?"

O segundo momento é ainda mais pungente, pois é a própria criatura que fala — e o faz com uma dignidade trágica, tocando as cordas do coração com uma força inesperada. Ela não clama por vingança, ao menos não de imediato, mas por reconhecimento: “Lembra que sou tua criatura; deveria ser teu Adão, mas sou apenas o anjo caído de quem afastaste a alegria não por delito… Eu era virtuoso e bom; a miséria me tornou um demônio…”

É uma súplica que ressoa como prece e acusação. Ao invocar a figura de Adão, a criatura clama por humanidade, por lugar, por nome. Mas é tratada como Lúcifer — não por rebelião, mas por abandono. E nessa inversão amarga, vemos o verdadeiro horror da história: não o monstro que mata, mas o homem que recusa amar aquilo que fez nascer.

E, no entanto, o ser criado — esse corpo costurado com os restos dos que já não falam — deseja nome. Ele anseia por pertencimento, por batismo, por uma palavra que o inscreva no mundo dos homens. Em um gesto tocante de angústia e teologia, ele sugere que deveria se chamar Adão, evocando o primeiro homem moldado do barro pelas mãos de um criador. Mas nem isso lhe é concedido oficialmente. Ele permanece sem nome — um ser nascido da linguagem e, paradoxalmente, banido dela.

Há, aqui, uma ferida aberta. Pois nomear é reconhecer. E ao recusar esse gesto, Victor não apenas nega à criatura um lugar no mundo — ele também recusa sua própria responsabilidade. Ao apagar o nome, tenta apagar a culpa.

Assim, a confusão moderna — de chamar “Frankenstein” aquilo que é, na verdade, sua criação — não deixa de ser, ironicamente, um acerto intuitivo. Porque talvez, no fundo, os dois estejam fundidos num só destino. Criador e criatura são espelhos partidos, ecos um do outro. Talvez o verdadeiro monstro nunca tenha sido o ser sem nome, mas o homem que ousou criar sem amar, gerar sem nomear. 

PARTE II – O QUE SE COME DIZ QUEM SE É: COMO A COMIDA REFLETE A MORALIDADE E AS ESCOLHAS DOS PERSONAGENS

Se nos dispusermos a analisar com cautela, a cozinha pode ser mais do que o santuário do corpo. Se permitirmos que a cozinha funcione como sala de interrogatório da alma — ela se torna um tribunal secreto, onde a alma dos personagens é convocada a depor sem subterfúgios.

Assim, é possível ver nas refeições contidas na obra de Shelley pistas incontornáveis sobre ética e caráter: cada prato é uma confissão murmurada em aroma, textura e escolha. Não há garfada ou bocado que não revele um traço de caráter, uma culpa abafada, um desejo reprimido. A comida, ali, não se apresenta como simples cenário, mas como gramática visceral — um idioma silencioso, em que o pão partilhado, a água recusada e o vinho servido à sombra da culpa conjugam, com precisão trágica, os verbos do bem e do mal.

A comida, nesse romance, não é mero pano de fundo: é linguagem material, um espelho. Tomemos duas mesas imaginárias:

A MESA DO DR. VICTOR FRANKENSTEIN: COMIDA UTILITÁRIA, MENTE UTILITÁRIA

Victor Frankenstein alimenta-se como quem mal tolera o corpo que habita — um espírito inquieto preso à carne apenas pelo dever de mantê-la funcionando. Durante seus anos em Ingolstadt (Baviera, sul da Alemanha) entregando-se à febre da descoberta, suas refeições não passam de gestos automáticos: caldo morno resfriado sobre a mesa, pedaços de pão envelhecido arrancados à pressa, quando o estômago protesta. A carne, raramente presente, dependia da oferta da cidade ou da estação — e o inverno bávaro, com seus ventos cortantes e mercados vazios, fazia dela um luxo intermitente. Victor não cozinhava; sobrevivia.

Na ânsia de gerar vida, negligencia a sua própria. Cada alimento é mero combustível — algo que se engole, não que se saboreia. Não há rito, não há prazer, não há mesa posta. O gesto de comer é suprimido pelo desejo de transcender o humano, e essa abstenção afetiva revela mais do que ascetismo: revela frieza, distanciamento, uma moral instrumental. Ele cria uma criatura, mas não lhe oferece calor. Da mesma forma, não oferece calor a si mesmo. E nesse afastamento do corpo — do seu e do outro — começa a se delinear o traço mais terrível de seu caráter: o desprezo por aquilo que vive, sente, precisa.

O gesto de comer — apressado, desatento, sem passada pelo rito do afeto — revela uma alma que instrumentaliza: o corpo serve ao intelecto; o humano serve ao projeto. A negligência pela alimentação própria ecoa, numa escala moral, a negligência pela criatura. Victor cria vida mas não a acolhe; assim como despreza a mesa onde outro poderia esperar calor, despreza a responsabilidade que a criação lhe impõe.

Há ainda um simbolismo de classe nessa mesa: a comida preparada, servida, fala de civilidade, de convenção social. Victor pertence a um mundo onde o alimento é mediado — cardápios, redes, protocolos — e, por isso, é possível que sua visão da vida também esteja polida por distanciamento. Sua dieta é a dieta do poder: suficiente, controlada, fria nas intenções.

A MESA DO MONSTRO: ALIMENTAÇÃO DO MUNDO, ÉTICA DA COLETA

Contrastando com isso, imagine a tigela do monstro: frutos silvestres, raízes escavadas, bagas lavadas em rios glaciais. Não há luxo, há honestidade. Ele não caça por esporte; colhe o necessário. Quando o livro menciona os hábitos alimentares da criatura — o pão que encontra, as maçãs que rouba por fome, a água límpida de córregos — é a narrativa a sublinhar sua inocência inicial. A dieta do monstro é ética porque obedece a uma regra simples: não aniquilar para se alimentar quando é possível coexistir. É a cozinha da sobrevivência que não se transforma em opressão.


A trajetória da criatura — marcada pela exclusão, pela errância e pela ausência de nome — é também narrada por sua fome. Antes mesmo de desejar amor, ele deseja sustento. O alimento é seu primeiro vínculo com o mundo natural e com a crueza da existência. Em um de seus primeiros relatos, diz:

“A comida, no entanto, tornou-se escassa; e muitas vezes passei o dia inteiro procurando em vão por algumas bolotas para aplacar a fome.”

Neste trecho, a criatura se refere às bolotas — os frutos do carvalho, também conhecidas como landres ou glandes. Embora hoje sejam associadas mais à alimentação de porcos ou à simbologia de florestas antigas, as bolotas já foram parte da dieta humana em períodos de escassez, especialmente quando secas, moídas e transformadas em uma espécie de farinha. Não se tratava de alimento nobre, tampouco agradável ao paladar: seu sabor é amargo, sua textura, áspera. Na região da Baviera, onde a história se desenrola entre florestas densas e terrenos selvagens, os carvalhos são abundantes, e as bolotas compõem o cenário natural com que a criatura, sem nome, tenta se alimentar e sobreviver.

Ainda assim, na solidão do exílio e na fome não escolhida, até esses frutos rústicos tornaram-se valiosos para aquele que, sem nome, buscava na terra um consolo para a ausência de acolhimento. Que o primeiro sustento da criatura venha das raízes e dos carvalhos — e não do sangue — é um detalhe que diz mais sobre sua essência do que muitos estão dispostos a reconhecer

Essa frase ecoa como ladainha de um corpo que se reconhece na ausência — e que, ao contrário de Victor, não negligencia o que consome, mas experimenta cada raiz e cada baga como um pacto com a sobrevivência. Longe de mesas civilizadas, ele se resigna à floresta e ao instinto:

“… e me satisfiz com frutas vermelhas, nozes e raízes, que colhi de uma floresta vizinha.”


Há algo de Adâmico nesse gesto — o primeiro homem também estendeu a mão ao fruto e dele tomou a consciência. A criatura, por sua vez, descobre no ato de colher não apenas o que comer, mas o que é ser no mundo. E então, quase como um rito de iniciação, vem o fogo. Não como tecnologia dominada, mas como revelação ancestral:

“Descobri que algumas das vísceras que os viajantes haviam deixado estavam assadas e tinham um sabor muito mais saboroso do que as frutas vermelhas que colhi das árvores. Tentei, portanto, temperar minha comida da mesma maneira, colocando-a sobre as brasas vivas.”

Nesse momento, ele descobre — com espanto e prazer — que o mundo pode ser modificado pelo toque humano. A carne, antes crua, agora tem sabor. Não apenas come: cozinha. E isso, embora simples, é um marco silencioso em sua humanidade. É quando o “monstro” que nasceu do frio da ciência acende, pela primeira vez, o calor da cultura. A brasa sobre a qual repousa a víscera roubada dos viajantes é mais que chama: é metáfora. Porque preparar o alimento é, em si, um gesto de permanência, um ensaio de civilização. Ele não apenas alimenta o corpo — começa, ali, a alimentar a ideia de que pode pertencer ao mundo que o rejeita.

Essa oposição — a dieta como escolha ética — é o núcleo da leitura que Michael Owen Jones (2022) e Carol J. Adams (1990) propõem: o monstro pode ser lido como figura vegetariana, cuja dieta, longe de ser anedótica, é manifesto moral. Comer, aqui, significa escolher. Victor escolhe dominar; o monstro escolhe preservar.

UMA FOME SEM SANGUE: O MONSTRO VEGETARIANO

Há uma dissonância inquietante que escapa à maioria dos leitores apressados — talvez por força do mito, talvez por medo de ver humanidade onde se esperava apenas horror. Quando se imagina um ser monstruoso, moldado em partes de mortos e expulso das leis naturais, o instinto coletivo o associa à selvageria: dentes gotejando sangue, impulsos carnívoros, um apetite feroz por destruição.

Mas o que Frankenstein revela é outro retrato, infinitamente mais doloroso. Ao nascer, a criatura — desamparada, inocente, recém-animada sob o peso do abandono — escolhe não comer carne. Não caça, não rasga, não devora. Alimenta-se de frutos, raízes e nozes, colhidos com o mesmo cuidado com que observa, de longe, os gestos dos humanos. Em suas próprias palavras:

“Eu me satisfazia com frutas vermelhas, nozes e raízes...”

E então se pergunta: se soubéssemos disso desde o início — que ele é vegetariano, que evita o sofrimento de outros seres vivos — será que o veríamos com os mesmos olhos? Será que os gritos de medo seriam tão automáticos, ou o nojo tão imediato? Ou nossa repulsa não vem do que ele faz, mas do que ele parece? A criatura foi chamada de demônio muito antes de agir como tal. Foi rejeitada antes de ferir.

Talvez essa escolha alimentar, silenciosa e ética, revele uma alma que nasceu gentil — e que só depois foi empurrada ao abismo da violência. A fome por carne nunca foi sua. A fome que o move é outra: a de pertencimento. Mas o mundo, surdo a qualquer linguagem que não fosse aparência, respondeu com pedras. E então a pergunta que fica não é o que ele come, mas o que o mundo devorou nele antes que pudesse florescer.

INTERSEÇÃO: A MESA COMO TRIBUNAL MORAL

Quando observamos juntos essas mesas — do criador e da criatura — entendemos que Shelley não apenas descreve alimentos: ela os usa como sinalizadores morais. A negligência de Victor pela alimentação do outro reproduzem-se na negligência quanto às consequências do saber; a modéstia no prato do monstro denuncia uma ética de resistência à violência humana. A comida, então, torna-se prova em processo: mostra quem ama, quem explora, quem é capaz de remorso.

Se a comida denuncia caráter, resta perguntar: como a própria cozinha (suas técnicas, seus rituais, seus erros) espelha a dinâmica da criação e da ruína? Como o ato de cozinhar — juntar fragmentos, aplicar fogo, temperar com intenção — se parece com o gesto de Victor ao montar sua criatura?

Na próxima parte explorarei a metáfora culinária da criação e destruição, traçando paralelos entre o laboratório e a despensa; a seguir, navegarei pelas tradições gastronômicas da época, até desembocar no gesto simbólico da sopa — a Kohlsuppe mit Geräuchertem Speck — que proporei como epílogo culinário e moral para este ensaio.

PARTE III — O LABORATÓRIO E A COZINHA: CRIAÇÃO, DESTRUIÇÃO E OS RITOS DA MESA

Há algo de profundamente culinário no gesto de Victor Frankenstein quando recolhe, de hospitais e cemitérios, os fragmentos que irão compor sua criatura. O romance descreve um laboratório gélido, úmido, erguido em meio a noites insones, onde ciência e alquimia se confundem — mas não é difícil, para o leitor sensível, enxergar ali o avesso de uma cozinha. Pois cozinhar é também reunir partes dispersas: raízes, carnes, líquidos, sais. É unir o que está morto para dar vida a algo novo, palatável, que aquece e sustenta. É um ato criador.

Mas, como todo ato de criação, a cozinha traz em si a possibilidade da ruína. Um excesso de sal, o fogo demasiado, a carne crua demais — e o banquete se converte em desastre. Assim também com Victor: ao manipular os “ingredientes” da vida sem atenção ao afeto, ele produz não um milagre de nutrição, mas uma abominação abandonada à própria fome.


A ALQUIMIA DA PANELA, A ALQUIMIA DO CORPO

Na panela, a água começa insípida. Aos poucos, recebe legumes, raízes, gordura, tempero. Na imaginação romântica, é como se cada elemento trouxesse sua memória, sua ancestralidade: a cenoura guarda o solo onde repousou, a batata carrega o frio subterrâneo, a cebola chora o corte. Do atrito entre esses mundos nasce algo novo, síntese maior que a soma de suas partes. Victor, no entanto, esquece essa verdade simples que toda cozinheira sabe: não basta reunir elementos, é preciso acompanhá-los com tempo, paciência e calor.

A criatura é, portanto, uma sopa sem cuidado — uma mistura apressada que, em vez de nutrir, envenena. O paralelo entre cozinha e ciência se ilumina: a diferença entre vida e horror é a mesma que distingue o prato confortador da mistura intragável. Shelley nos mostra, pela ausência da mesa, o peso da responsabilidade em cada gesto de criação. 

DE QUE MANEIRA OS HÁBITOS ALIMENTARES CONTRASTAM?

Na tradição europeia do início do século XIX, as classes instruídas — como a família Frankenstein — comiam carne regularmente, acompanhada de sopas ricas, pães de trigo, vinho. Victor, integrado a esse mundo, consome a refeição burguesa como quem cumpre um rito social, mas sem atenção real ao que ingere. Ele mastiga distraído, pensando em fórmulas, em galvanismo, em cadáveres.

Já o monstro, ao contrário, é um comedor do mundo direto. Sua boca conhece a seiva da raiz, o sumo ácido de uma maçã recém-colhida, a aspereza da casca de noz entre os dentes. Se Victor representa o alimento mediado pela cultura e pela sociedade, a criatura é puro contato com a natureza. Essa diferença ecoa em sua moralidade: Victor come como quem consome poder; o monstro come como quem pede licença à terra para sobreviver.

A criatura jamais cozinha, e nisso reside sua tragédia e sua pureza: viver apenas de alimentos crus é aceitar o mundo como dado, não como transformado. Victor, ao cozinhar vida em seu laboratório, quis ser demiurgo, mas recusou-se a nutrir. O monstro, ao aceitar a maçã tal como é, recusa-se a dominar.

                 CRIAÇÃO E DESTRUIÇÃO: O PRATO COMO METÁFORA DA VIDA

Se Victor tivesse sido um cozinheiro, poderíamos imaginar sua cozinha como um arsenal de aço e ossos: facas, pinças, caldeirões, vapores de substâncias não nomeadas. Seu prato final seria como carne servida fria, sem tempero, onde o apetite é suprimido pela repulsa. O monstro, por sua vez, traz ao imaginário outro tipo de mesa: um banquete sem fogo, um piquenique trágico de frutos partidos e raízes.

O ato de cozinhar, de fato, é a metáfora mais precisa da narrativa. Cozinhar é manipular vida e morte. É transformar o vegetal, que já não cresce, em algo que ainda nutre; é pegar o animal morto e sublimá-lo em caldo que aquece. Victor fracassa porque esquece que cozinhar exige partilha: cozinhar é sempre fazer para alguém. Sua criatura é um prato servido sem convivas — e, por isso, não alimenta, apenas assombra.

AS TRADIÇÕES CULINÁRIAS DA ÉPOCA COMO ATMOSFERA DO ROMANCE

Quando Mary Shelley escreveu Frankenstein, a Europa atravessava invernos de guerra e renascimento científico. Os Alpes suíços, cenário de parte da narrativa, eram marcados por alimentos simples e resistentes ao frio: repolho, cenouras, batatas, raízes secas, sopas densas de cevada e bacon defumado. Nas casas camponesas, o fogo constante na lareira mantinha caldeirões onde se cozinhavam lentamente sopas de repolho (Kohlsuppe), guisados de feijão, pães de centeio escurecidos pela fumaça.

Esses sabores — pungentes, ásperos, cheios de fumaça e gordura — ecoam na própria tessitura gótica do romance. Pois o gótico é também isso: comida pesada, sombras na cozinha, pratos de subsistência que aquecem, mas também sufocam. O cheiro do bacon defumado guardado em celeiros pode ser lido como a mesma névoa moral que paira sobre Victor; a leveza de uma maçã mordida junto ao rio reflete a pureza ainda não corrompida do monstro.

Na próxima e última parte, darei corpo à conclusão: as lacunas ainda não exploradas — a relação explícita entre comida, moralidade e identidade; o sofrimento que a fome expõe; e a metáfora do banquete como criação e culpa. O ensaio culminará na receita da sopa de repolho com bacon defumado (Kohlsuppe mit Geräuchertem Speck), apresentada não apenas como prato, mas como gesto reconciliador: um convite ao leitor para degustar o gótico, refletir sobre a criação e, talvez, redimir-se pelo calor de uma refeição partilhada. 


PARTE IV — O BANQUETE DA CRIAÇÃO: ENTRE A FOME E O PERDÃO

Toda a narrativa de Frankenstein pode ser lida como um grande banquete interrompido. Victor prepara, com mãos febris, um prato impossível — e, no instante de servi-lo, recua em horror, deixando seu convidado faminto à porta. A criatura vaga, faminta de alimento e de afeto, aprendendo a distinguir raízes e frutos, como uma criança que descobre o mundo pelo paladar. Mas não há pão repartido, não há mesa posta, não há taça compartilhada.

A ausência da refeição em comum é a verdadeira tragédia do romance. Pois cozinhar não é apenas transformar a morte em vida; é transformar o solitário em comunhão. Victor esquece que toda criação pede partilha. Ao recusar-se a alimentar o monstro, recusa-se também a reconhecê-lo como semelhante.

E assim, a cozinha nos ensina o que a ciência de Victor não pôde: que não basta dar forma à vida, é preciso nutri-la. O alimento é o mais íntimo dos pactos, a verdadeira aliança entre corpos e almas.

O SOPRO QUENTE DA SOPA

Nas montanhas geladas, onde Mary Shelley situou cenas de seu romance, havia uma comida que sustentava gerações: a sopa de repolho e bacon defumado, lentamente cozida em grandes caldeirões de ferro. O aroma adocicado do repolho se misturava ao sal e à fumaça do bacon, e o caldo grosso aquecia os ossos dos viajantes e camponeses.

Essa sopa, tão simples, contém em si uma lição que Victor jamais aprendeu: a vida não se cria apenas com fogo e sangue, mas com tempo, paciência e partilha. É a alquimia cotidiana, menos grandiosa que a faísca elétrica de um laboratório, mas infinitamente mais poderosa — pois consola, reúne, perdoa.

EPÍLOGO — A SOPA COMO REDENÇÃO

Se Victor tivesse oferecido ao seu monstro uma tigela fumegante dessa sopa, talvez o destino da narrativa fosse outro. Talvez o calor do caldo tivesse aquecido não apenas a garganta da criatura, mas também a frieza do coração de seu criador. Pois não há ódio que resista inteiramente ao gesto de repartir o pão, não há exílio que não se abrandar diante de uma sopa que esquenta as mãos.

Na ausência dessa partilha, resta-nos nós, leitores, recompor o banquete interrompido. Cozinhar essa sopa hoje é, de certo modo, redimir o fracasso de Victor: é sentar-se com a criatura à mesa, ouvi-la, reconhecê-la. É aceitar que a verdadeira faísca da vida não está na eletricidade, mas no gesto simples de alimentar.

Eis o pacto que Shelley nos deixou: que aprendamos a cozinhar não monstros, mas mesas cheias de humanidade.

KOHLSUPPE MIT GERÄUCHERTEM SPECK

(Sopa de repolho com bacon defumado, século XIX)

Ingredientes:

1 repolho médio, cortado em tiras finas

150 g de bacon defumado em cubos (ou use linguiça fininha defumada)

2 cenouras em rodelas

2 batatas em cubos

1 cebola grande picada

2 dentes de alho amassados

1 litro de caldo de carne ou legumes

Sal e pimenta a gosto

Uma colher de manteiga ou banha (como se usava na época)

Preparo: Em uma panela, derreta a manteiga ou a banha e refogue o bacon até soltar gordura e perfumar (se usar a linguiça defumada, corte em pedaçso ano muito pequenos, e deixe dourar). Acrescente a cebola e o alho, deixando dourar suavemente. Adicione as cenouras e as batatas, mexendo até que se misturem aos sabores do bacon. Junte o repolho, cubra com o caldo e deixe cozinhar lentamente, em fogo baixo, por cerca de 40 minutos, até que tudo se torne macio e aromático. Ajuste o sal, polvilhe com pimenta e sirva fumegante, acompanhado de pão escuro. 

Dica: Eu, particularmente, gosto de sentir o repolho com um pouco de crocância, então e deixo para colocá-lo depois que os legumes já estão no ponto. Assim eu coloco o repolho acerto sal e pimenta, mexo bem e tampo a panela. O caldo dela deixará o repolho no ponto que eu gosto. E no meu prato e coloco coentro e cebolinha picados, pois eu amo. Asi, fique à vontade pra fazer ao seu modo.

Reubens

Barão de Gourmandise 

Dicas de leitura:

SHELLEY, Mary Wollstonecraft. Frankenstein; or, The Modern Prometheus. London: Lackington, Hughes, Harding, Mavor & Jones, 1818.

JONES, Michael Owen. Frankenstein Was a Vegetarian: Essays on Food Choice, Identity, and Symbolism. Jackson: University Press of Mississippi, 2022. Disponível em: https://academic.oup.com/mississippi-scholarship-online/book/45032. Acesso em: 02 out. 2025.

ADAMS, C.J. Frankenstein's Vegetarian Monster. Chapter 6 of The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory (New York, Continuum, 1990), 108-119. Disponível em: https://knarf.english.upenn.edu/Articles/adams.html. Acesso em: 02 out. 2025

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