Quando se é criança, parece
que a arte da danação se instala silenciosa, como um software invisível, na
alma que ainda tropeça nos primeiros passos. Estripulias, artimanhas, pequenas
travessuras — termos que os adultos usam para catalogar a nossa descoberta do
mundo à nossa maneira. Mas há um rótulo que sempre me encantou, uma sentença
que ainda ecoa: “- Esse menino está possuído!”. É nesse ponto, nesse limiar
entre a inocência e o sobrenatural, que quero iniciar este devaneio, nesses
dias que antecedem o Dia das Bruxas.
Falar em possessão nas
vésperas de uma celebração das bruxas é, por si só, um retorno ao lar. Pois
tantas histórias antigas narram mulheres supostamente possuídas por demônios,
acorrentadas à tortura e à fogueira, condenadas pelos senhores do Santo Ofício,
convencidos de que aquelas almas queimavam sob a influência infernal.
Hoje, contemplando os
fragmentos de manuscritos e relatos, percebemos que o demônio talvez nunca
tenha agido além das mentes dos condenadores. O verdadeiro fogo residia na
dominação e no medo, na repressão de um poder feminino que eles não podiam
conter.
Mas, a literatura e o cinema
perpetuaram essas visões de possessão.
A literatura sempre fez da
bruxaria e da possessão um espelho onde o humano se contempla entre o desejo e
o medo. A temática da bruxaria e da possessão percorre séculos de literatura,
revelando mais sobre os temores e fantasias humanas do que sobre qualquer
realidade sobrenatural. De Macbeth (1606), de Shakespeare — onde as bruxas
simbolizam o caos e a ambição desmedida, as feiticeiras dançam entre a névoa e
o destino, sussurrando verdades que os homens preferem chamar de maldição —; em
As Bruxas de Salem (1953), de Arthur Miller, onde se transpõe o fanatismo
religioso para uma crítica política ao macarthismo, o feminino associado ao
oculto torna-se metáfora do poder subjugado e da diferença – ali se reaviva o
fogo inquisitorial, mostrando que o inferno arde nas bocas dos acusadores. Em
romances como O Mestre e Margarida (1966), de Mikhail Bulgákov – o pacto com o
diabo é menos pecado que libertação –, ou A Hora das Bruxas (1990), de Anne
Rice, a feitiçaria é reconfigurada como força de autonomia e conhecimento
proibido – e a linhagem encantada de mulheres guarda em seu sangue o eco do
sagrado e do profano.
No entanto, as raízes mais
sombrias dessa construção simbólica remontam ao Malleus Maleficarum (O Martelo
das Bruxas), tratado publicado em 1486 pelos inquisidores Heinrich Kramer e
Jacob Sprenger. A obra, apresentada como manual para identificar e punir
bruxas, consolidou a perseguição misógina sob o disfarce da fé, legitimando
séculos de tortura e execuções. Foi escrita com a frieza de quem acreditava
servir a Deus enquanto dissecava o corpo e a alma do feminino. É um texto que
exala o perfume acre da fé corrompida, onde o medo toma forma de doutrina e a
imaginação dos inquisidores se torna mais demoníaca que qualquer feitiço. Ler
esse livro hoje é ouvir o murmúrio das fogueiras antigas, ainda crepitando sob
a superfície da história. Hoje, lê-se o Martelo não apenas como documento
histórico, mas como testemunho da violência institucionalizada contra o
feminino e da transformação do medo em instrumento de poder.
Mas o tempo, esse grande
alquimista, transformou o medo antigo em novas narrativas. A fogueira cedeu
lugar à página, e o demônio — outrora visto no corpo da mulher insubmissa —
passou a habitar outros rostos, outras culpas. O século XX herdou da Idade das
Trevas não apenas o vocabulário da possessão, mas o fascínio pela fronteira
entre fé e delírio. O que antes era grito nas praças tornou-se murmúrio nas
salas de leitura, uma inquietação que a modernidade não conseguiu silenciar. É
desse eco, desse resíduo de superstição e desejo, que nascem obras como The
Exorcist (O Exorcista), onde o horror volta a se erguer, agora sob a forma de
literatura — e, depois, de cinema —, trazendo à tona os mesmos temores que
ardiam nas chamas da história.
Antes de sua ascensão às
telas, havia o livro: The Exorcist (1971), obra de William Peter Blatty.
Inspirado por um caso real — o chamado Exorcismo de Roland Doe, ou “Robbie
Mannheim”, pseudônimos de Ronald Edwin Hunkeler (1935-2020), um garoto que supostamente sofreu possessão demoníaca e foi submetido a ritos de expulsão do demônio em 1949
— Blatty, ainda estudante universitário, encontrou nesse episódio um sopro
inquietante que o empurrou para a criação de seu romance.
Então, o livro encontrou a
tela. William Friedkin conduziu a obra ao cinema, guiado pelo próprio Blatty,
que participou ativamente da produção e da adaptação do roteiro.
Contudo, o relato que nasceu
nas páginas não se prenderia à frieza da história real: dramatizações,
invenções, e transformações foram necessárias para que o horror se tornasse
palpável. O menino deu lugar à menina Regan MacNeil, e o terror se fez carne e
sombra, pronto para assombrar além do papel. O investimento foi vultoso: cerca
de 12 milhões de dólares, mas o retorno ultrapassou as mais sombrias previsões,
com impressionantes 428,9 milhões de dólares em bilheteria mundial — valor que,
ajustado pelo tempo e relançamentos, alcançaria algo como 1,2 bilhão de
dólares, segundo o Guinness. O Exorcista não foi apenas um sucesso
comercial; foi um marco cultural, erguendo-se como um colosso do gênero terror.
Sua recepção crítica também
foi extraordinária, especialmente para uma obra de horror: foram dez indicações
ao Oscar, um feito quase inédito na época. Saiu vitorioso em duas categorias:
Melhor Roteiro Adaptado, honrando a visão de Blatty, e Melhor Som, celebrado
nos nomes de Christopher Newman, Robert Knudson, Robert Glass e Richard P.
Rogers. Assim, entre câmeras, páginas e sombras, O Exorcista se tornou
não apenas filme ou livro, mas um ritual de suspense, mistério e medo, onde a
ficção abraça a realidade e a eterniza.
A primeira questão que se
impõe, quase sussurrada pelas sombras do enredo, é esta: a possuída, Regan
MacNeil, foi interpretada por Linda Blair. Mas por que alterar o sexo do
sujeito possuído, transformando o menino Roland Doe em uma menina?
Meu eu mais comum, terreno, humano,
arrisca uma resposta: talvez a época fosse permeada por um pensamento
profundamente machista. Era mais fácil, pensava-se, conceber uma mulher — ainda
que criança — como receptáculo do mal, pois a fragilidade era-lhe atribuída por
natureza. E talvez, também, o próprio diretor intuísse que, nas histórias de
possessão que circulavam, a figura feminina aparecia com mais frequência:
afinal, quantos bruxos ou jovens possuídos lembramos com clareza, senão
mulheres?
Enquanto meu lado cientista,
pesquisador, de olhar meticuloso, traz menos especulação e mais lucidez. As
razões tornam-se claras, quase didáticas, e se alinham com a liberdade da arte:
primeiro, o diretor possuía autonomia criativa; não desejava um documentário,
mas uma experiência cinematográfica intensa. Segundo, o impacto emocional: a
imagem de uma menina inocente sendo tomada pelo mal desperta maior empatia, e
com isso, um terror mais profundo. Terceiro, o símbolo da pureza — uma
personagem feminina enfatiza a perda da inocência, tornando o horror ainda mais
dolorosamente humano. Por fim, a narrativa cinematográfica: o contraste entre a
fragilidade da menina e a violência da possessão cria um efeito perturbador que
permanece na retina e na memória, e neste último ponto, meu eu terreno e meu eu
estudioso se encontram, cúmplices, reconhecendo a genialidade sombria dessa
escolha.
As estatísticas, frias em
sua precisão, escondem um terror muito mais profundo que qualquer número
poderia revelar. Entre os séculos XV e XVIII, estima-se que entre 40.000 e
60.000 pessoas foram executadas durante as caças às bruxas na Europa. Mas o
horror não se encerrava na contagem: ele pulsava nas histórias de possessão,
nos transes de mulheres acusadas, nos olhos que refletiam o medo do invisível.
A esmagadora maioria das
vítimas eram mulheres — entre 75% e 85% delas. Acusadas de pactos com o diabo,
de feitiçaria e de traições à ordem divina, eram julgadas por homens —
inquisidores que se consideravam santos —, que interpretavam cada gesto estranho,
cada febre ou delírio, como sinais de possessão demoníaca. Muitos relatos da
época descrevem essas mulheres em transe, seus corpos e vozes tomadas por
forças que pareciam além do entendimento humano, enquanto os inquisidores
observavam e decretavam sentenças. A sociedade via nelas a fragilidade, mas
também o perigo, e nelas se projetava o medo do sobrenatural, do desconhecido,
do mal encarnado.
Os homens, por sua vez,
representavam apenas cerca de 15% a 25% das vítimas. Acusados com menos
frequência, eram muitas vezes vítimas de associação ou suspeitas de heresia,
raramente de possessão direta. Mas em todos os casos, a narrativa girava em
torno do corpo possuído, da alma corroída, do controle de forças invisíveis que
se manifestavam de forma brutal e aterradora.
É nesse contexto histórico
que se percebe o eco do terror retratado em O Exorcista: a imagem da inocência
corrompida, da pureza feminina submetida a forças obscuras, não surge do nada.
Ela é irmã das mulheres queimadas na fogueira, daquelas vistas em transe,
possuídas e condenadas, cujas histórias de medo e poder moldaram a maneira como
a sociedade e, posteriormente, a arte, compreendem o conceito de possessão.
Cada grito no cinema ressoa com gritos que atravessaram séculos, lembrando que
a ideia de possessão feminina — vulnerável, aterrorizante e paradoxalmente
poderosa — sempre carregou uma sombra histórica, tão real quanto os números que
registram seu destino.
Os antigos gregos também
conheciam estados de entrega que ultrapassavam a razão humana. Nas festas
dionisíacas, as Bacantes — ou Menades — eram tomadas por Baco, o deus do vinho,
do êxtase e da força primitiva da natureza. Não se tratava de uma invasão maléfica,
mas de uma possessão divina: o corpo e a voz das devotas se curvavam ao poder
do deus, e nelas ressoava o estrondo de Bromios, o rugido selvagem de Dionísio.
Nessas noites de Bacanais, a mulher não era submissa; era veículo e relâmpago,
atravessada pelo êxtase, libertada dos limites do corpo e da consciência,
entregando-se à força primordial que a transformava em algo ao mesmo tempo
humano e divino.
É possível dizer que,
historicamente, as Bacantes ou Menades foram talvez as “possuídas” mais
populares da história, arquétipos de transe e transgressão que permaneceram na
memória coletiva por séculos. Nelas, a possessão se ligava ao etílico — o vinho
que corrompe e liberta — e a aspectos sexuais, à celebração do desejo e da
fertilidade, à mistura de prazer e desordem. A força que as atravessava não era
maldição, mas poder; e, paradoxalmente, o possuído tornava-se possuidor:
instrumento e expressão da energia divina, ao mesmo tempo corpo e extensão de
Baco.
O estado de transe das
Bacantes, com corpos tomados, vozes alteradas e força além do normal, guarda
uma estranha semelhança com as descrições de possessão do cristianismo. Mas o
significado cultural é oposto:
Para os gregos, era contato
divino, um êxtase positivo que libertava;
Para o cristianismo, passou
a ser visto como sinal de possessão demoníaca, ameaça e corrupção.
Assim, o que antes era
sacral, uma entrega total ao divino, transformou-se em horror, medo e culpa. E
ainda hoje, ao observarmos Regan MacNeil, não podemos deixar de perceber o eco
distante dessas Menades: corpos atravessados por forças invisíveis, vozes que
não lhes pertencem totalmente, e a tensão entre o sagrado e o profano, entre o
êxtase e o terror.
Na mitologia grega, um
epíteto não era apenas um nome; era um título sagrado, um apelido que capturava
a essência, o poder ou a faceta particular de uma divindade. Atena, por
exemplo, é chamada de Palas Atena, a guerreira; Zeus, o soberano, é reverenciado
como Zeus Olímpico; e Dionísio, deus do vinho, do êxtase e da transgressão,
carrega dezenas de epítetos, cada um refletindo uma dimensão distinta de sua
natureza multifacetada.
Observar esses epítetos é
fundamental para qualquer estudo da Antiguidade. Não se trata apenas de
curiosidade linguística: eles são janelas para a mentalidade, a religião e a
cultura de um povo. Cada título revela o que os antigos consideravam essencial em
seus deuses, o modo como buscavam compreender o divino, os poderes que
admiravam ou temiam, e a forma como essas forças se manifestavam no cotidiano e
no ritual.
É justamente nesse contexto
que se entende o termo Bacchanalia, festivais e celebrações dedicadas a
Dionísio. Não se trata apenas de festas ou excessos; Bacchanalia é a expressão
de um culto complexo, em que o deus se manifesta por meio do vinho, do êxtase e
do transe. Nessas cerimônias, o divino atravessava os corpos, e as Bacantes —
suas devotas mais conhecidas — eram simultaneamente possuídas e possuidoras,
canais do poder de Dionísio, vivenciando uma experiência que os gregos chamavam
de entrega total ao deus.
Assim, compreender os
epítetos de Dionísio nos ajuda a perceber que Bacchanalia não é apenas folia,
mas um rito de comunicação com o divino, onde o corpo tomado, a voz alterada e
a consciência diluída tornam-se instrumentos de transcendência. É o mesmo impulso
que, séculos depois, a cultura cristã começaria a interpretar como possessão
demoníaca — um eco antigo, agora temido, do que antes era sagrado.
Dionísio não era apenas o
deus do vinho; ele encarnava a fertilidade, a natureza selvagem, o êxtase
religioso e a loucura divina, o teatro, a transformação e a libertação das
normas sociais. Cada epíteto do deus revelava uma faceta única de sua
personalidade e do culto que lhe era dedicado, uma chave para compreender o
poder que atravessava os corpos e as consciências de seus devotos. Entre seus
muitos títulos, destacam-se:
Bromios (Βρόμιος) – “O
Estrondoso” ou “O Barulhento”
Evoca o rugido da natureza e
o som poderoso dos rituais, a força que rompe limites e faz tremer os corpos
tomados pelo êxtase.
Eleutherios (Ἐλευθέριος) –
“O Libertador”
Reflete a capacidade de
libertar o ser humano das amarras sociais e emocionais, de dissolver medos e
convenções através do êxtase e do vinho.
Lysios (Λύσιος) – “O Que
Dissolve” ou “Liberta”
Um aspecto terapêutico e
místico do deus, que libera da dor, da razão e da repressão, oferecendo fuga e
transcendência.
Dithyrambos (Διθύραμβος)
Nome de um hino ritual
dedicado a Dionísio, conectado ao teatro e à origem da tragédia grega,
lembrando a força da música e da poesia na experiência sagrada.
Zagreus – “O Caçador
Noturno”
Representa o Dionísio
subterrâneo, renascido e órfico, símbolo de morte, renascimento e mistério
profundo.
Anthios – “O Florescente”
Ligado à fertilidade, ao
crescimento da primavera e à energia vital que brota da terra.
Lenaios (Ληναῖος) – “Do
Lagar de Vinho”
Associado à produção e
celebração do vinho, elemento central das festas e do contato com o divino.
Bacchus / Bakchos
Nome latino (e também grego
posterior) que personifica o êxtase absoluto e o espírito das Bacchanalia,
quando o corpo humano se torna veículo do deus.
Omadios – “Comedor de Carne
Crua”
Expressa o lado selvagem,
primal e ritualístico do culto, lembrando que a possessão pode ser tanto
prazerosa quanto assustadora.
Enorches – “O Viril, o
Vigoroso”
Ligado à fertilidade
masculina e à potência vital que atravessa os corpos, reforçando a força
primordial de Dionísio.
Cada epíteto ilumina uma dimensão
do deus: sensual e divino, selvagem e terapêutico, destruidor e libertador. A
multiplicidade desses nomes permite perceber a complexidade do êxtase
dionisíaco — o mesmo êxtase que, séculos depois, seria interpretado pelo
cristianismo como possessão demoníaca. Entre o sagrado e o profano, entre a
entrega e o medo, Dionísio permanece como símbolo de forças que ultrapassam a
razão e transformam aqueles que se deixam atravessar por elas.
No coração da noite, quando
a lua se esgueira entre os ciprestes e o vento arrasta os murmúrios das
colinas, surgem as Bacanais — festas de Dionísio, onde o ordinário se desfaz e
o homem se curva à selvageria do divino. Não eram meras celebrações; eram convocações
à posse do corpo pelo espírito do deus, momentos em que o vinho, o canto e o
frenesi se tornavam instrumentos de transgressão e revelação.
Dionísio, o senhor do vinho
e do êxtase, carregava em si muitos nomes, cada um fragmento de sua essência.
Mas entre todos os epítetos, Bacchus se destacava. Não era apenas um nome: era
o bradador, o possuído, aquele que se manifestava nos corpos das Bacantes, nas
mãos trêmulas e nos pés que dançavam em transe. Quem o invocava não o recebia
com passividade; era engolido por ele, atravessado por sua força, até que a
consciência humana se dissolvia em êxtase.
As festas de Dionísio — as
Bacanais — não surgiam por capricho, mas como rito necessário para o encontro
entre mortal e divino. O vinho tornava-se veículo, o canto, conjuração, e o
corpo, templo do deus. Naquele instante, as mulheres e homens não pertenciam
mais a si mesmos; eram tomados, possuídos pelo rugido de Bakchos, pelo espírito
que bradava dentro de cada fibra, pelo deus que não podia ser contido.
E assim, Bacchus não é
apenas Dionísio; Bacchus é a posse, a fúria, o arrebatamento. Quem o invoca
dança entre o prazer e o terror, entre a liberdade e a rendição. A Bacanal não
é festa para os fracos: é rito de entrega, de abandono total à força que corrói
o ordinário e ergue o espírito ao domínio do deus. É no nome de Bacchus que a
natureza selvagem do homem se revela, grita e se funde ao divino, possuído,
bradando, eterno.
Outra questão que se
entrelaça à ideia de possessão é o canibalismo simbólico, uma força que emerge
quando o corpo se torna veículo do deus. O próprio Baco, em seus mistérios e
epítetos, apresenta essas tensões que merecem ser discutidas. O epíteto Omadios,
tantas vezes interpretado como “comedores de carne crua”, exige cuidado: não se
trata de canibalismo no sentido clássico. Na tradição grega, o termo para referir-se
ao comer humanos seria “anthropophagos” (ἀνθρωποφάγος) — anthropos, humano;
phagos, comedor. No latim, “cannibalis” ou “homo edens” cumpririam essa função
literal.
Omadios, porém, descreve
algo mais profundo e primordial: o comer selvagem, o ser atravessado pela força
primal do deus, consumindo o ordinário, devorando a contenção, a racionalidade
e a inibição humana. O possuído por Omadios não mata o outro; transforma seu
próprio corpo em instrumento do divino, em um rito de energia vital, êxtase e
transgressão ritual. É um canibalismo interno, simbólico, ligado à força
sexual, ao desejo, à fúria da natureza que Dionísio desperta.
Dessa forma, Omadios
aproxima-se mais do sacrifício da carne simbólica e da libertação da ordem que
do horror literal do antropófago. O possuído é atravessado pelo selvagem que
habita em si, consumindo suas próprias limitações, rendendo-se ao instinto primordial
do deus. Nessa entrega absoluta, a possessão de Omadios não apenas domina o
corpo: liberta-o, regenera-o e o transforma em templo do divino, mostrando que
a verdadeira ferocidade do deus não está na destruição do outro, mas na
dissolução do humano contido dentro de si mesmo.
No extremo do mundo
conhecido, onde o Mediterrâneo se curva em silêncio e as ondas quebram em
fúria, habitavam os Lestrígones — gigantes deformes, humanos apenas na forma,
mas selvagens em essência. Homero os descreve como antropófagos, devoradores de
estrangeiros, força primitiva que desafia a civilização grega, expulsos do
convívio humano, enclausurados em sua ilha isolada. Não eram deuses nem
fantasmas, mas homens levados ao extremo do selvagem, corpos gigantes, força
descomunal, instintos cruéis.
O canibalismo que praticavam
não era ritual divino, não era possessão de um deus; era a expressão literal do
poder, do domínio sobre o outro e da violência da natureza incontrolável. Comer
o estrangeiro, destruir navios, devorar marinheiros — tudo isso simbolizava a
ameaça absoluta do desconhecido, a vulnerabilidade do humano diante do caos, e
a impotência da força sem astúcia. Ulisses aprendeu, então, que a sobrevivência
não depende apenas da coragem, mas da sagacidade frente a forças que consomem e
destroem.
Na Odisseia, a ilha dos
Lestrígones torna-se metáfora do limite do mundo civilizado. O canibalismo é a
expressão máxima do poder e do perigo, lembrando que a vida humana é frágil
frente ao desconhecido. Para quem estuda possessão ou forças que atravessam o
corpo e a mente, os Lestrígones funcionam como um reflexo literal daquilo que
Omadios simboliza em Dionísio: a força que consome, que atravessa, que devora —
mas, no caso de Baco, transforma e regenera; no caso dos Lestrígones, destrói e
elimina.
Assim, enquanto o possuído
por Dionísio oferece-se ao êxtase e ao selvagem interior, os Lestrígones
mostram o selvagem exterior, aquele que não tolera contenção, que devora o
outro sem mediação divina. Entre o ritual e a violência, entre a possessão e o canibalismo
literal, a mitologia grega desenha um mapa da força, da entrega e do perigo —
do corpo que se abre ao divino e da carne que se entrega à selvageria absoluta.
Eu falo de tudo isso porque,
cedo, ao ligar o notebook para escrever, deixei a música tocar no YouTube e
surgiu, como se fosse convocação do destino, Adriana Calcanhotto cantando
“Vamos Comer Caetano”. E eu pensei, quase em um sussurro: “Ela devia estar possuída
quando compôs isso!” — e, de repente, todas essas reflexões vieram à mente,
como se a própria Bacanal tivesse se infiltrado na minha sala.
A canção é, de certa forma,
uma possessão musical. Não pelo demoníaco, mas pelo espírito criativo que
atravessa o corpo da artista, que a toma e a transforma em instrumento do
desejo de absorver e reinterpretar o legado de Caetano Veloso. A repetição de “Vamos
comer Caetano”, “Vamos devorá-lo”, ressoa como o eco de Omadios — não devorando
o outro no sentido literal, mas consumindo o ordinário, transgredindo limites,
transformando-se pelo poder do artista que se manifesta em cada gesto, cada
palavra, cada nota.
O “incesto” e o “pela
frente, pelo verso” que a letra sugere são metáforas de entrega total e transe,
muito próximas das Bacantes atravessadas por Dionísio, ou dos estados de êxtase
onde o corpo se torna veículo do divino. Há sensualidade, há fome — mas é uma
fome ritual e simbólica, não antropófaga como a dos Lestrígones. Ao mesmo
tempo, a canção cria sua própria ilha de selvageria: uma ilha de desejo
criativo, onde o devorar é também celebração, banquete e comunhão com a força
do outro, mas sempre dentro do território da arte e do imaginário.
Imagens de bacantes e
banquetes evocam Baco Omadios, aquele que desperta a natureza primal e
atravessa o corpo da possuída, transformando a carne e a mente em instrumentos
de êxtase. O “cru” e o “revelarmo-nos” remetem à entrega absoluta, à
transgressão dos limites do convencional — uma espécie de possessão poética,
onde a música se torna veículo de libertação e metamorfose.
Assim, ao ouvir “Vamos Comer
Caetano”, tudo o que estudamos sobre possessão, Dionísio, Omadios e até os
Lestrígones se faz presente: há o selvagem dentro do ser, há o outro que devora
simbólico ou literal, há a fusão entre corpo, mente e força criativa que
atravessa e transforma. A canção é, portanto, uma Bacanal moderna, um ritual
onde o devorar é arte, o possuído é músico e o deus é o próprio impulso de
criação que não pode ser contido.
Mais aí, me veio à memória
uma lembrança pessoal, e não pude deixar de rir sozinho: eu adoro um tartar, e
numa das primeiras vezes que um amigo me viu comendo aquela carne crua, ele
soltou, entre o espanto e a brincadeira: “Ele deve estar possuído para comer
isso!” — e eu não pude deixar de pensar: talvez ele estivesse certo.
O steak tartare, esse prato que hoje se serve com refinamento e temperos, vem do francês “tartare”, ligado aos Tártaros, um povo nômade da Ásia Central. Diz a lenda que, para amaciar a carne, eles a colocavam sob a sela do cavalo enquanto cavalgavam — e depois a comiam crua. Uma prática que, mais do que mera alimentação, parecia carregar em si um ritual de resistência, força e selvageria, atravessando a carne com a vida e o movimento do cavalo, como se a própria carne tivesse sido possuída pelo impulso vital da jornada.
A história pode ser
romantizada, mas é impossível não perceber o paralelo: assim como Omadios, a
ideia de devorar não é literalmente antropofágica, mas é uma fome primal, uma
posse da carne e da experiência, atravessando limites, transformando o ordinário
em ritual. No tartar, não há outro devorado — há o corpo, o instinto, a
natureza crua que se deixa consumir, temperar e elevar.
E, assim como nas Bacanais
de Dionísio, onde o possuído se deixa atravessar pelo divino, comer tartar se
torna um ato que mistura prazer, entrega e transgressão: uma pequena Bacanal na
mesa, um encontro entre corpo, instinto e força primal. É também uma metáfora
perfeita para a canção de Adriana Calcanhotto: “Vamos Comer Caetano” é o
espírito de Omadios musical, possuindo a artista, atravessando limites,
devorando o legado e transformando-o em festa, prazer e criação.
Mesmo os Lestrígones, com
seu canibalismo literal, funcionam aqui como contraponto: eles devoravam o
outro como força destrutiva, ameaça externa. No tartar, na música, na Bacanal,
a força atravessa o próprio ser, não o outro, é autotransformadora, libertadora.
Comer cru, devorar a arte, entregar-se ao êxtase — tudo se conecta. É a mesma
fome de Dionísio, de Omadios, a mesma possessão que atravessa o corpo e a
mente, agora em pratos, notas musicais e lembranças.
E eu ri de novo, lembrando
do amigo: talvez, para ele, eu estivesse mesmo possuído — mas não pelo mal, nem
pelo horror, e sim pela força selvagem, criativa e vital que atravessa o
ordinário e transforma o corpo, a mente e a experiência em algo maior.
E foi aí que o pensamento se
voltou para o grito antigo, o chamado que ecoa através dos séculos: “Evoé!”.
Porque, assim como o Omadios devora a própria contenção, assim como os
Lestrígones devoravam sem piedade, eu devorava a experiência da carne crua, atravessado
por algo que me lembrava Dionísio: a entrega total, a dissolução das barreiras,
a libertação do corpo e da mente.
“Evoé!” — era o grito de
Baco, o chamado do deus, a invocação da posse divina, do êxtase e da libertação
dos sentidos. Nas Bacanais, “Evoé!” atravessava o ar, atravessava o corpo dos
fiéis, anunciando que a razão humana se dobrava perante a força selvagem do
divino. Quem gritava “Evoé!” não apenas celebrava: era possuído, tomado pelo
rugido de Dionísio, entregue ao vinho, à música, à dança e ao frenesi que
dissolvia o ordinário.
O Evoé está diretamente
ligado à essência de Baco: ele não é apenas uma festa ou um ritual; é o momento
em que o humano se funde com o deus, em que o corpo se torna veículo da força
primordial. Assim como o possuído por Omadios consome a própria natureza
contida, atravessado pela fome ritual, quem entoa “Evoé!” entrega-se à
transformação total — carne, sangue, instinto, emoção, tudo tomado pelo deus. É
o mesmo espírito que atravessa as Bacantes, que dança nos corpos, que devora
limites e reinventa a experiência de existir.
Portanto, “Evoé!” não é só
um grito: é a manifestação sonora da possessão dionisíaca, do encontro entre
mortal e divino, do êxtase que atravessa corpo e mente. É o mesmo impulso que
vemos simbolizado nos ritos, nos epítetos de Dionísio, no Omadios que devora a
própria contenção, e até nas metáforas de devorar — seja um prato cru, uma
música ou uma obra de arte. Tudo se encontra na força de Baco, que atravessa e
transforma.
E, ao fim de toda essa
viagem, percebo que o fio condutor de tudo — do horror do Exorcista à
metamorfose de gênero, das bruxas possuídas aos ritos dionisíacos, dos epítetos
de Dionísio ao Omadios que devora a própria contenção, das terras selvagens dos
Lestrígones à música que devora Caetano, do tartar cru ao grito de Evoé! — é a
mesma energia primordial: a possessão. Não aquela possessão restrita à dor ou
ao medo, mas a possessão vital, a força que atravessa carne e espírito, que
rasga limites, que transforma o ordinário em sagrado, que nos lembra que ser
humano é também ser atravessado, tomado, incendiado.
Cada instante de entrega —
mastigar a carne crua, dançar na música, ouvir o eco dos rituais antigos — é
uma convocação àquilo que nos excede, àquilo que nos pertence sem ser nosso. É
a lembrança de que a vida, para ser sentida plenamente, exige libertação, exige
travessia, exige o grito, o riso e o arrebatamento. É no mesmo sopro de Evoé!
que a loucura e o êxtase se encontram, que o humano se funde ao divino, que o
selvagem interior se manifesta em celebração e sacrifício simbólico.
E assim, chega-se ao
instante em que a experiência se torna ritual: o prato à frente, a carne crua
que guarda história, mitos e energia, esperando para ser transformada em
prazer, em ato, em rito. O tartar não é apenas comida; é possessão, é convite à
travessia, é celebração do impulso primordial que atravessa séculos, culturas e
histórias. Cada mordida será grito, cada sabor será eco, e cada textura será
lembrança de que, em nós, o selvagem e o divino coexistem, dançam, bradam e
consomem.
Possuídos ou devoradores,
somos atravessados pelo prazer, pelo horror, pela transcendência — sempre à
beira de uma epifania que só a entrega total pode proporcionar. Somos o corpo
que se oferece ao impulso, a mente que se dissolve no excesso, a carne que se
torna veículo do sagrado e do selvagem. Cada gesto, cada sabor, cada som nos
atravessa e nos transforma, como se estivéssemos tocando o divino com os
dentes, com a pele, com a alma.
No instante em que nos
permitimos ser consumidos pela experiência, a linha entre o eu e o Outro se
desfaz. O medo se mistura ao êxtase, o ordinário ao extraordinário, o humano ao
divino. Mastigar, dançar, gritar, delirar — tudo se torna rito, tudo se torna
carne e espírito. O Omadios que devora a própria contenção, o Evoé que rasga os
céus das Bacanais, o canto que devora Caetano, o tartar que toca a língua —
tudo é um mesmo sopro de transcendência, uma convocação para atravessar o mundo
sem se apegar a ele.
Somos Lestrígones e
Bacantes, homens e deuses, músicos e devoradores, navegando entre caos e ordem,
entre fome e saciedade, entre morte simbólica e renascimento ritual. Cada
impulso, cada entrega, cada instante de êxtase é uma afirmação de que a vida
plena exige que nos deixemos atravessar, que nos deixemos tomar, que nos
deixemos devorar — pela arte, pelo mito, pelo vinho, pela carne crua, pelo
grito que atravessa séculos: Evoé!
E nesse limiar, entre o
selvagem e o divino, é que o ritual se conclui. Respire, contemple e
prepare-se: porque agora, o instante se torna corporeidade, o mito se torna
sabor, e o tartar não é apenas comida — é o último ato do rito, a consumação da
travessia, o momento em que ser possuído e devorador se torna uma experiência
única de vida.
Então, respire fundo. Erga a
faca e o garfo. Prepare-se para o rito. Porque, no instante em que o tartar
tocar sua boca, o Evoé! se fará carne, e você será, por um momento, inteiro,
possuído, e absolutamente vivo.
Steak
Tartare Clássico à Francesa
Ingredientes:
200g de filé
mignon ou alcatra de alta qualidade, moída na hora
1 gema de ovo
fresca
1 colher de
chá de mostarda Dijon
1 colher de
chá de molho inglês (Worcestershire)
1 colher de
chá de alcaparras bem picadas
1 colher de
chá de cebola roxa bem picada
1 colher de
chá de pepinos em conserva (cornichons) picados
Sal e
pimenta-do-reino moída na hora a gosto
1 colher de
chá de conhaque (opcional, para um toque sofisticado)
Fatias finas
de pão torrado, batatas fritas ou chips de batatas para acompanhar
Preparo: Em uma tigela fria, combine a carne moída com a mostarda, molho inglês, alcaparras, cebola e pepinos em conserva. Misture delicadamente até incorporar bem os ingredientes. Adicione a gema de ovo e o conhaque (se estiver usando). Tempere com sal e pimenta-do-reino a gosto. Modele a mistura em um prato fundo, formando um pequeno montículo. Sirva imediatamente, acompanhado de fatias de pão torrado ou batatas fritas crocantes. Pra quem gosta de mais untuosidade, pode decorar com uma gema crua ou com gema curada.















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