terça-feira, 4 de março de 2025

Carnaval é tempo de Schiacciata Alla Fiorentina

 

Hoje é o ultimo dia do carnaval aqui no Brasil, a famosa “terça gorda”, que tem origens nas religiões antigas de gregos e romanos, mas que se solidificou na Idade Média com os Católicos por ser, além do ultimo dia de carnaval, o ultimo dia de comer comidas “gordas” antes do jejum da Quaresma. Pensando nisso, a postagem de hoje é sobre uma “comida gorda” para este ultimo dia de carnaval, como pede a tradição.

Há uma sobremesa que em Florença é associada ao período do Carnaval e não há florentino, ou mesmo toscano, que não tenha pelo menos ouvido falar da Schiacciata alla Fiorentina. Estou falando de pura tradição florentina: uma tradição da cozinha florentina, que pode ser tanto doce como salgada.

Schiacciata alla Fiorentina é um bolo fermentado aromatizado com laranja. Deve ter cerca de 3 centímetros de espessura e é coberto com bastante açúcar de confeiteiro, o que dá ao confeiteiro a oportunidade de “brincar graficamente” com símbolos (o mais comum é o Lírio de Florença) ou com a escrita, tudo isso usando cacau em pó.

O nome do bolo significa "achatado", o que, em si tratando de uma massa levedada pode parecer estranho. Ou não, se lembrarmos, por exemplo, da Tarte Tropézienne (mas, sobre essa última, tratarei noutro post).

“Uma sobremesa muito antiga”, escreveu Aldo Santini em La cucina fiorentina: Storia e ricette. “Acompanhou o Carnaval. E diferente de todas as outras schiacciatas toscanas feitas para a Páscoa, que são todas altas, esta é baixa”, acrescentou antes de fornecer a receita. Na verdade, se não fosse baixa, neste caso cerca de três centímetro, não seria uma aposta segura... Ainda hoje, quem quiser comer essa sobremesa precisa esperar até janeiro e fevereiro, quando ela desaparece das prateleiras dos grandes varejistas e confeitarias da cidade.

Pellegrino Artusi propôs isso em seu livro La scienza in cucina e l’arte di mangiar bene Ciência na Cozinha e a Arte de Comer Bem, relatando a “Stiacciata coi siccioli” no número 596 e a “Stiacciata unta” no número 597, atribuindo a receita desta última, assim como da Mantovana, àquele “homem bom, porque tinha o gênio de sua arte” Antonio Mattei, renomado chef pasteleiro de Prato, a segunda mais populosa cidade da Toscana, cuja tradição confeiteira ainda hoje nos permite saborear em várias criações na antiga sede da loja pratese. Ele considerou a receita indicada com o número 597 mais simples que a anterior.

Na realidade, esta sobremesa, que à primeira vista parece fácil de fazer, apresenta algumas dificuldades relacionadas com o fermento, que é o segredo da sua maciez, mas não é o único requisito, mas vem acompanhada daquele aroma particular que a casca de laranja ralada e a massa de pão fermentado lhe conferem.

Hoje a receita original sofreu alguns ajustes ligados ao novo sabor e ao fato de que as tradicionais sempre se prestam a variações mais ou menos bem-sucedidas.

Quando nasceu, a schiacciata, era também a época de matar os porcos e por isso havia lardo e banha de porco em abundância: além da banha, que a tornava “gordurosa”, ela era enriquecida com siccioli (também conhecido por cicciolo, um tipo de torresmo, resultante das partes gordas do porco, derretidas para obter banha, geralmente usadas como alimento e condimento em receitas), o que tornava a receita ainda mais “gorda”, como pede na melhor tradição carnavalesca que antecede o tempo da Quaresma e quando as prescrições religiosas ainda eram respeitadas.

Os ingredientes da receita de Artusi incluíam: Massa de pão fermentada, 700 gramas. Banha, 120 gramas. Açúcar, 100 gramas. Torresmo, 60 gramas. Gemas de ovos, n. 4. Uma pitada de sal. raspas de casca de laranja ou limão. E ele recomendou: “Se quiser sem torresmo, acrescente mais duas gemas e mais 30 gramas de banha”.

Aqui está a receita de Santini de La cucina fiorentina: Storia e ricette:: “Na bancada da cozinha, misture 300 gramas de farinha com o fermento dissolvido em água morna e deixe a massa resultante descansar por algumas horas, sob um pano de prato: um procedimento clássico. Em seguida, adicione as gemas de 2 ovos, 100 gramas de banha, 100 gramas de açúcar, uma pitada de sal, a casca ralada de uma laranja e um pouco de baunilha. Agora despeje a mistura em uma forma baixa, untada e enfarinhada. Deixe descansar por mais 2 horas, coberto com o pano de prato de costume. Depois, leve ao forno em temperatura média. Meia hora. É servido frio, polvilhado com açúcar de confeiteiro."

Se quiser, você pode substituir a banha por manteiga, rechear com u, creme de sai preferência ou apenas com chantilly… mas se for bem feito, fica gostoso mesmo sem eles.

Em Florença, você pode encontrar três tipos de schiacciata: 

        Schiacciata salata elaborada com azeite de oliva, coberta com cebola e tomate. Geralmente é servida com frios.


        Schiacciata coll´uva, uma versão doce feita com azeite de oliva, uvas e alecrim.


        E, finalmente, a versão que trago hoje. Schiacciata Alla Fiorentina, feita com banha, especiarias e laranja, polvilhada com açúcar de confeiteiro e cacau em pó.



Essa preparação florentina é tradicionalmente consumida no Carnaval. Mas, a essa altura, vocês sabem que eu sou daqueles que acredita que, apesar de haver datas específicas para cada coisa, pode-se e deve-se apreciá-las quando nos convier. E ainda mais se é algo que se acaba de descobrir!

Em diferentes partes da Itália, o Carnaval é sentido com muito amor e paixão, como por exemplo na Toscana. Existem tradições centenárias, como o famoso Carnaval de Viareggio, com suas imponentes carruagens nas quais muitos cidadãos trabalham durante a maior parte do ano, o Carnaval de Puccini, que é baseado na figura de "Gambe di Merlo", o Carnaval dos Filhos de Bocco em Arezzo, celebrado em uma pequena vila medieval repleta de máscaras, trajes de seda, veludo e brocados (que aparentemente não tem nada a invejar do Carnaval de Veneza).

Florença celebrou seu carnaval de forma majestosa sob o senhorio de Lorenzo de Medici até o século XVII. Nele você podia desfrutar de danças, shows e muita diversão tanto nas ruas quanto nas mesas da nobreza. Infelizmente, hoje só resta a figura de Stenterello, a máscara do Teatro Dell´Arte inventada no final de 1700 pelo ator florentino Lorenzo del Buono.





Em Florença, de fato, a tradição dos carros alegóricos chamados triunfos (montados em madeira e juta) tornou possível celebrar os dias antes da Quaresma de forma animada, curiosa e lotada. Os desfiles de carros alegóricos, as festas, o jogo foram mantidos no período em que a Lorena reinou sobre a Toscana: o percurso das carruagens, as vigílias, as danças nos teatros (começando com La Pergola, onde óperas e comédias também foram estreadas para a ocasião) e as suntuosas reuniões de máscaras na Piazza Santa Croce eram geralmente permitidas à tarde e à noite, enquanto os teatros permaneciam abertos por mais tempo e se tornavam o lugar perfeito para organizar festas dançantes, que também eram organizadas nas casas particulares dos palácios de diplomatas estrangeiros.

E justamente no final do século XVIII, no Teatro del Cocomero, graças ao ator florentino Luigi del Buono, nasceu o personagem de Stenterello: magro pelas dificuldades que viveu, pálido, trêmulo, populoso e pobre, irônico e astuto, ele representa o homem que consegue salvar a pele todas as vezes e ao mesmo tempo criticar e polemizar com as autoridades, o tipo perfeito de florentino de seu tempo.

No colete amarelo, uma dupla declaração de identidade: o 28º no peito (e em Florença, como sabemos, é o número daqueles que são traídos por sua esposa) e a inscrição deitada na borda o identificam como um tipo calmo, aparentemente distraído, mas capaz de evitar qualquer esforço.

Ela é lembrada como a última máscara do teatro florentino e da comédia da arte antiga. Um personagem simples, um tanto assustador e com reações impulsivas, mas cômica.

Em Florença, você pode, sem dúvida, sentir que é época de Carnaval simplesmente entrando em qualquer confeitaria da cidade, pois não há uma vitrine que não tenha uma linda schiacciata alla fiorentina à vista. Nos últimos anos, surgiram versões recheadas com cremes diversos que devem ser consideradas decididamente espúrias em comparação ao original, cuja característica é justamente a simplicidade de um bolo caseiro polvilhado com açúcar de confeiteiro e cacau em pó. 

Schiacciata Fiorentina

Ingrediente para 2 unidades de 600 g

Para a massa:

600 g de farinha de trigo/pão

3 ovos grandes

75 g de banha em temperatura ambiente

75 g de manteiga sem sal em temperatura ambiente

125 g de açúcar

5 g de fermento biológico seco ou use a mesma quantidade de levedura para cerveja

100 g de suco de laranja espremido na hora (frio se possível)

raspas de uma laranja

55 g de água fria

4,5 g de canela em pó

1/4 colher de chá de noz-moscada

8 g de sal

Para decorar:

2 colheres de sopa de manteiga sem sal, derretida e resfriada

açúcar de confeiteiro peneirado o quanto baste

cacau em pó o quanto baste

Preparo: Faça a massa - Na tigela da batedeira, usando o gancho para massas,  adicione a farinha junto com o ovo, suco de laranja, fermento seco, água, raspas de laranja, canela, noz-moscada, sal e metade do açúcar. Sove em velocidade baixa por cerca de 8 a 10 minutos. Adicione o restante do açúcar e sove novamente até que esteja completamente integrado. Devemos obter uma massa semi-desenvolvida, paciência, o processo de amassamento será longo. Pare a batedeira e incorpore a banha. Sove até obter uma massa homogênea. (tudo pode ser feito à mão, sem uso da batedeira, mas tende a demorar mais). Comece a adicionar a manteiga aos poucos. Ela deve estar totalmente integrada à massa antes de adicionar mais. Sove até obter um bom desenvolvimento do glúten. A massa deve ser elástica, macia, suave e não quebrar. Coloque a massa dentro de um pote com tampa e a deixe fermentar na geladeira, pode levar de 2 a 4 horas. Depois disso, tire a massa da geladeira, deixe ela por 1 hora e meia a aproximadamente descansando fora da geladeira, para em seguida modelar.

Modele. Despeje a massa em uma superfície de trabalho limpa e divida a massa  em 2 pedaços de 600 g cada. Em seguida modele á seu gosto: a forma mais tradicional é um retângulo. Mas, você pode fazer redonda, quadrada ou pequenas círculos. Coloque cada massa dentro de uma forma, untada e polvilhada ou, você pode forrar com papel manteiga, e vá ajustando a massa para dar a melhor forma. Cubra com filme plástico ou coloque em sacos grandes para freezer e deixe crescer fermentar mais um pouco. Lembre-se, não precisa crescer tanto, já que a sobremesa tradicional deve ter 3cm de altura. Mas não se assuste se a sua massa crescer mais que isso, é o poder do fermento agindo com a temperatura do seu lugar, Pré-aqueça o forno a 355ºF (180ºC). Asse por 40 minutos. Depois de assado, retire do forno, pincele com manteiga derretida e deixe esfriar completamente em uma grade. Decore - Recomendo que você decore somente antes de servir, pois com o passar do tempo o açúcar começa a ser absorvido pela massa. Polvilhe generosamente com açúcar de confeiteiro. Faça um molde com o lírio de Florença, ou use a sua criatividade, segurando o molde levemente sobre o bolo, polvilhe com cacau em pó. Retire o molde com cuidado para que nenhum resto de cacau destrua seu desenho. Serva.


sábado, 1 de fevereiro de 2025

O que liga a última fatia de panetone do Natal com San Biagio?

 

Você sabia que existe uma tradição da Lombardia, região ao Norte da Itália e cuja capital é Milão, que pede para que seja guardada a última fatia do panetone que sobrou do Natal, para que ela seja comida apenas no dia 3 de fevereiro? Se nunca ouviu falar dessa história, esse post é pra você!

Isso mesmo que você está pensando, de 25 de dezembro até 3 de fevereiro já se passaram quarenta dias desde o Natal, mas justamente nesse terceiro dia de fevereiro uma tradição popular lombarda nos lembra de comer, pela manhã, tão logo desperte, a bendita fatia do panetone que foi guardada ainda no Natal, geralmente daqueles panetones que foram preparados ou ganhados como presentes de Natal.

Essa tradição nos leva à existência de Biagio di Sebaste, conhecido como San Biagio mas que no Brasil se conhece por São Braz, foi um bispo e santo armênio, venerado pelas Igrejas Católica e Ortodoxa.

Vários milagres foram atribuídos a San Biagio, incluindo o resgate de uma criança que estava sufocando após ingerir uma espinha de peixe: Biagio, então lhe deu uma grande migalha de pão que, descendo pela garganta, moveu e retirou a espinha presa na garganta, salvando assim o menino.

Portanto, em muitos lugares, justamente por causa desse milagre realizado por Biagio, no dia 3 de fevereiro, é tradição realizar a bênção da garganta com duas velas abençoadas cruzadas abaixo do queixo, no dia anterior (2 de fevereiro, dia da Madona Candelária, Nossa Senhora da Candelária, também chamada de Nossa Senhora da Luz, Nossa senhora das Candeias ou Nossa Senhora da Purificação).

Não se sabe muito sobre ele; sabe-se que seu martírio ocorreu durante as perseguições aos cristãos, por volta de 316, durante os conflitos entre os imperadores Constantino (no Ocidente) e Licínio (no Oriente).

Capturado pelos romanos, foi espancado e esfolado vivo com pentes de ferro, usados para cardar lã, e finalmente decapitado por se recusar a renunciar à fé em Cristo. É um santo conhecido e venerado tanto no Ocidente como no Oriente, e faz parte dos quatorze santos chamados ajudantes, ou seja, aqueles santos invocados para a cura de enfermidades particulares.

Após o martírio, Biagio foi proclamado santo e declarado protetor do nariz e da garganta, como dizem os lombardos "San Bias el benediss la forza e él nas".

Na Itália, San Biagio é venerado em muitas cidades e localidades, das quais é também padroeiro de muitas, e é celebrado no dia 3 de fevereiro em quase toda a península. Seus emblemas são o báculo, a vela, a palma e o pente de lã, e ele é obviamente o protetor da garganta.

As relíquias de San Biagio estão guardadas na Basílica de Maratea, cidade da qual ele também é padroeiro: ali chegaram em 723 dentro de uma urna de mármore com uma carga que deveria chegar a Roma vindo de Sebaste, viagem então interrompida em Maratea, a única cidade de Basilicata com vista para o Mar Tirreno, devido a uma tempestade.

Lá mesmo, o Santo é celebrado duas vezes por ano: no dia 3 de fevereiro, como de costume, e dia do aniversário da trasladação das relíquias, onde as celebrações duram 8 dias, desde o primeiro sábado de maio até o segundo domingo do mês.

Mas o que liga o Santo Bispo de Sebaste com a última fatia do panetone do Natal, que sobrou e que, como manda a tradição, deve ser benzida e consumida no dia 3 de fevereiro?

Para encontrar a resposta foi preciso conhecer outra história popular ligada a um milagre, seguindo a vida de San Biagio, que relata precisamente a história de uma mulher que, antes do Natal, trouxe para um frade milanês um panetone que ela mesma havia preparado para sua família e queria que ele o abençoasse. Muito ocupado, o frade cujo nome era Desidério e que alguns o tinham como sendo um homem muito ganancioso, disse-lhe que deixasse o panetone com ele e passasse nos dias seguintes para pegá-lo. Porém, a mulher esqueceu-se e o irmão Desidério, depois de abençoá-lo, começou a comê-lo até perceber que havia terminado.

A mulher apareceu para pedir o panetone abençoado no dia 3 de fevereiro, dia de San Biagio. Enquanto o frade se preparava para devolver o embrulho vazio à mulher, desculpando-se pelo ocorrido, notou que naquele prato havia um panetone grande, com o dobro do tamanho daquele deixado pela mulher. Foi um milagre, o milagre de San Biagio que deu início à tradição de trazer uma sobra de panetone para abençoar nesta data e depois comê-lo no café da manhã para proteger a garganta.

A tradição manda que o panetone seja daqueles que restou da comilança natalina, de preferência, mas se não tiver, fique à vontade para comprar um novo (com a industrialização, isso é muito possível)!

Alternativamente, em outras regiões da Itália, são abençoados vários doces ou pães simples que são compartilhados no almoço com todos os convidados; assim a bênção do Santo para proteger a garganta chega a todos aqueles que comem aquele pão abençoado.

A Festa do Pão, em 3 de fevereiro é uma data especial em Salemi, na província de Trapani. De fato, neste dia é celebrado São Biagio, padroeiro da cidade junto com São Nicolau: para a ocasião, Cavadduzzi e Cuddureddi são preparados para a tradicional Festa do Pão.

Cavadduzzi e Cuddureddi são pequenos pães em miniatura, feitos com água e farinha, sem fermento e assados no forno, criados pelas mãos experientes do povo de Salento. Eles são amassados primeiro à mão e depois com a chamada “sbria”, uma ferramenta antiga que tem a função de virar a massa.


A verdadeira maestria consiste na criação de minuciosas decorações e esculturas com a ponta de uma pequena faca chamada “mucacia”. Essas pequenas obras-primas reconstituem, na forma e no nome, alguns episódios marcantes da vida de San Biagio. Em particular, os “cuddureddi” simbolizam a garganta, da qual o santo é o protetor (a tradição diz que ele salvou a vida de um menino que estava morrendo após sufocar com uma espinha de peixe), enquanto os “cavadduzzi”, em forma de gafanhotos, eles relembram um evento que aconteceu durante o reinado de Carlos V.

Em 1542, pela intercessão do santo, a zona rural de Salemi foi libertada de uma invasão de enxames de gafanhotos que destruíram a colheita, o que lhe rendeu o "título" de co-padroeiro da cidade de Salemi. Desde então, esses pães artísticos têm sido reproduzidos todos os anos como um sinal de gratidão.

Os “cavadduzzi”, além de representarem gafanhotos, podem assumir as formas mais díspares resultantes da inspiração criativa dos padeiros: cavalos-marinhos ou outros pequenos animais, mesmo imaginários, até reproduzir partes do corpo do santo como o braço e a mão abençoadora e, novamente, a de um bastão com decorações florais, símbolo de fertilidade. Esses pães podem ser considerados uma espécie de prelúdio antecipatório à “Ceia de São José”, que é celebrada em 19 de março.

A festa, porém, não termina aí, porque para celebrar San Biagio é tradição comer não só sobras do mais famoso panetone milanês, mas também um bolo especial, o bolo San Biagio di Cavriana, produto à base de amêndoas, típico da região de Mântua. Os ingredientes previstos no caderno de especificações permitem apenas produtos isentos de OGM, açúcar, ovos frescos, amêndoas com casca, chocolate preto (mínimo 55%), rum destilado, limão, fava de baunilha e banha, devendo a manteiga estar numa quantidade máxima de 50 %. % em comparação com banha. O ingrediente principal são obviamente as amêndoas de Cavriana de sabor particular e intenso que até foram consideradas afrodisíacas e particularmente apreciadas pela família Gonzaga que as adquiria em quantidades abundantes para deliciar o paladar dos nobres da corte.

A tradição da Torta di San Biagio

A festa do Padroeiro é celebrada no município de Mântua de 2 a 4 de fevereiro há 450 anos. Nestes dias a Comunidade é chamada a participar no antigo rito de bênção da garganta pelo sacerdote. A preparação nos dias atuais recebeu o reconhecimento de P.A.T. (Produto Agroalimentar Tradicional Italiano) além de ser uma "De.C.O." (Denominação Comunal de Origem).

Assim, no dia 3 de fevereiro, acontece em Cavriana, pequena cidade da província de Mântua, um antigo rito: a bênção da garganta concedida na igreja pelo sacerdote por meio de duas velas cruzadas sob o queixo.

E a torta di San Biagio é a sobremesa típica desta festa. Reza a lenda que a receita é muito antiga e que originalmente o bolo à base de amêndoa tinha mais de três metros de diâmetro. Este era então cortado e oferecido ao público reunido na Piazza Castello.

 De fato, já em 1600, eram colhidas nas amendoeiras de Cavriana amêndoas de sabor particular e intenso, graças ao agradável ambiente montanhoso, este tipo de noz era considerada por todos um afrodisíaco; nos meses de inverno, os próprios membros da ilustre família dos Gonzagas compravam grandes quantidades para deleitar o paladar dos nobres da corte.

Conta-se que, num certo período dos anos de 1600, o rei francês Luís XIII enviou ao Ducado de Mântua uma delegação de cozinheiros e confeiteiros experientes com a tarefa de aprender novas receitas para utilizar no palácio. Os chefs franceses tomaram imediatamente conhecimento das amêndoas de Cavriana e por isso quiseram fazer uma Inspecção durante a centenária feira de San Biagio.


A população que tomou conhecimento do assunto ganhou vida para tentar dar um acolhimento digno a estes estrangeiros e decidiu preparar algo único para doar à Rainha Ana, a famosa e culta esposa de Luís XIII.

Das mãos experientes das mulheres cavrianas e da mistura de ingredientes simples nasceu uma sobremesa de amêndoa com um sabor contrastante; mas, ao mesmo tempo equilibrado: rústica como a terra de onde veio, requintada como a soberana a quem foi dedicada. Desde então é costume nos dias dessa festividade realizar o ritual de cortar e entregar o bolo e dividir com todos os visitantes: sinal de que o tempo não apaga as coisas feitas com amor e generosidade.

Torta di San Biagio

Para a massa

400g de farinha de trigo

120 ml de vinho branco seco

80g de manteiga

80g de açúcar

1 colher de chá de extrato de baunilha

As rapas de um limão

Para o recheio

300 g de amêndoas doces descascadas e picadas

100g de açúcar

100g de chocolate amargo picado (ou em gotas)

2 ovos

Preparo: Primeiro ligue o forno e leve-o à temperatura de 180° C. Prepare a massa básica colocando a farinha numa superfície de mármore 9ou onde você possa amassar), junte o açúcar, a manteiga em temperatura ambiente (ponto de pomada), o vinho branco, a baunilha e as raspas de limão. Misture os ingredientes cuidadosamente e obtenha uma bola de massa. (você também pode usar o mixer ou a batedeira com o gancho). Abra dois terços da massa com um rolo e coloque-a no fundo e nas bordas de uma forma de uma forma de 24cm de diamentro (forma media) previamente untada com manteiga e enfarinhada, ou forrada com papel manteiga. Prepare o recheio misturando numa tigela as amêndoas descascadas e picadas, o açúcar, os ovos e o chocolate picado (ou em gotas); Depois de obter uma mistura macia, despeje-a na massa previamente preparada, nivelando bem. Decore a superfície com a restante massa cortada em tiras cruzadas, como numa torta tradicional; leve ao forno e asse por cerca de 30-35 minutos (verifique, porque o tempo depende sempre do forno; deve dourar bem, mas não muito). Retire do forno, deixe esfriar completamente e retire da forma.

Nota: existe aqueles que incrementam essa receita agregando ao recheio uma porção de biscoitos amaretti quebrados, se desejar isso, você pode adicionar no preparo do recheio 100g de amaretti picados grosseiramente.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

La tarta de queso de 'La Viña' para celebrar São Sebastião

 

Carregando uma cor dourada (Caramelizado) no topo, com um recheio extremamente cremoso no centro, servida sem geleias nem enfeites, apresentada no balcão com nada mais do que um garfo, a torta de queijo do restaurante La Viña em San Sebastián, Espanha, conseguiu o feito de conquistar muitos paladares pelo mundo e tornar essa preparação do País Basco como a mais popular pelos amantes de gastronomia que amam sobremesas com queijo por odo o planeta.

Além disso, ela encontrou uma nova vida em lugares tão distantes quanto Cingapura, onde reencarnado como um sorvete soft-serve, ao ponto de figurara e nas páginas do New York Times como um "Sabor do Ano", em 2021 — tudo isso enquanto ainda continua a ser servida em fatias no restaurante familiar onde foi criada.

Fazendo minhas leituras para criar este post, entre livros e sites, foi notável a variação de receitas e formas que uma torta de queijo basca poderia ter (e, talvez, ser considerada uma aberração por um habitante basco): umas, ostentando casca de massa de biscoito; outras queimadas em excesso; umas tantas assados em forma de coração ou flor; uma que foi aromatizada como ube roxo (um inhame roxo, cujo nome cientifico é Dioscorea alata, bastante popular no Japão,  com seu gosto de nozes e textura levemente terrosa e adocicada; que, inclusive foi o sabor do ano de 2024); outras ainda aparecem servidos com creme de speculoos (um biscoito de especiarias tipicamente holandês, já tratei sobre ele no  blog, ver AQUI) e, por aí vai...parei de procurar quando já achei que as deformidades da torta estavam fugindo do controle criativo.

Ocorre que, hoje é comemorado o dia de São Sebastião que, por sinal é o padroeiro da vila de San Sebastián-Donostia, no País Basco, onde fica localizado o restaurante que inventou essa maravilha gastronômica. E as curiosidades já começam pelo nome da cidade, já que San Sebastián tem diversas denominações:


San Sebastián – É o nome oficial em espanhol. Sua origem remonta a um mosteiro consagrado em San Sebastián (mosteiro de San Sebastián, El Antiguo,), que se encontrava na atual localização do palácio de Miramar, próximo ao bairro de El Antiguo. A villa medieval foi fundada pelo rei Navarro Sancho el Sabio hacia 1180 nas cercanias do mosteiro e está estabelecida na carta-puebla que a villa se chama pelo San Sebastián. Como o documento foi redigido em latim, o nome que aparece mencionado é o de Sanctus Sebastianus, que evoluiu no romance até dar o nome de San Sebastián. San Sebastián foi o nome oficial da cidade até 1980. É o nome mais conhecido internacionalmente e do qual derivam as denominações da cidade em outros idiomas. Assim, a denominação habitual em francês é Saint-Sébastien e em inglês Saint Sebastian, sem acento na a e pronunciada acentuando as sílabas. O nome em espanhol é abreviado com Sn. Sn., S. S. (formas corretas), Sn.Sn., S.S., SnSn o SS (SS era a sigla que apareceu nas Matrículas automovilísticas de España registradas na província de Guipúzcoa até que o sistema mudou em 2000).

Donostia – É o nome oficial em Euskera, a língua baasca. Segundo a teoria mais aceita, é uma forma derivada da denominação eusquérica antiga do santo padroeiro, Done (< lat. Domine) Sebastiáne, do mesmo modo que surgia as formas vascas Donibane (San Juan), Doneztebe (Santesteban) ou Donejakue (Santiago ), e a forma atual foi perdida através dos próximos passos, tal como explica o linguista Koldo Mitxelena, em seu livro Apellidos vascos de 1953: «... el nombre vasco de San Sebastián, cuja evolução aproximada habrá sido Donasa(b)astiai, Donasastia, Donastia, Donostia» ( 2ª edição, 1955, p. 96). Não há que esquecer que em euskera se usa Donosti para duas outras referências a esse santo: a ermita de San Sebastián (em euskera Jaun Donosti) em Orendáin, e outra meio destruída de mesmo nome, em Arano. Outra teoria deriva do termo em latim: Domine (San) Ostium («Ostia», «porto». O que é o mesmo, «señor del puerto», em alusão a Sebastián Mártir). De qualquer forma, você tem referências escritas a esse nome em euskara em uma canção do final do século XV («juntadu ditu laster / Donostiako irian», «Donostiako murruan / islaren goienean»), ou em poemas do século XVI (da mão do alava Juan Pérez de Lazarraga: "Donostiako San Frantziskuan / hagoan gizon soldadua (Eu sou um soldado)”. Donostia não era um nome oficial até 1980, embora derive do gentílico dos habitantes da cidade, "donostiarras", tanto em castelhano como em vasco.

Donostia-San Sebastián - nome oficial entre 1980 e 2012. Devido à sua falta de raízes sociais e à confusão que este nome composto criou, o conselho municipal pleno, por proposta do governo municipal, decidiu por unanimidade adotar o nome oficial bilíngue. nome, Donostia / San Sebastián, a fim de formalizar o uso exclusivo de Donostia nas comunicações em basco e San Sebastián para as comunicações em espanhol.

La Bella Easo ou, simplimente, Easo – esse nome que surgiu da crença de séculos passados de que a antiga cidade romana de Oiasso ou Easo estava localizada no local da moderna San Sebastián. O genitivo "easonense", usado como uma variante culta de Donostiarra, e atualmente em desuso, derivou dessa crença. Descobertas arqueológicas recentes confirmam que a antiga Oiasso estava localizado em Irún e não em San Sebastián. Como legado do nome Easo, o código IATA para o Aeroporto de San Sebastián é EAS.

Irutxulo ou Hirutxulo – que significa "três buracos" em vasco, é o nome que os pescadores deram a San Sebastián, já que do mar a cidade parecia três entradas ou brechas: a que se formava entre o monte Igueldo e a ilha de Santa Clara, a que é localizada entre Santa Clara e o Monte Urgull e a localizada entre Urgull e o Monte Ulía.

Sã – essa é a forma coloquial e afetuosa que deriva de San Sebastián, também muito utilizada pelos moradores de San Sebastián de los Reyes, na Comunidade de Madri.

Dito isso, agora vamos ao que interessa: celebrar esse Dia de São Sebastião com uma sobremesa digna e deliciosa. E ela se originou no restaurante La Viña, que abriu suas portas naquela cidade em 1959, fundado por Eladio Rivera, seu irmão Antonio e suas esposas, Carmen Jiménez e Conchi Hernáez. O filho de Eladio, Santi, começou a trabalhar no bar desde pequeno. Um cozinheiro apaixonado e autodidata, ele foi estimulado pelos conselhos de seus amigos chefs e por cursos ocasionais de culinária.

A torta de queijo não era um prato tradicional basco (aliás, já tratei sobre a origem da cheesecake AQUI), mas isso foi no final dos anos 1980 e Santi estava cheio de ideias de cursos que ele frequentou mais longe, em lugares como Paris. O cream cheese e outros itens alimentícios "modernos" estavam chegando à Espanha pela primeira vez, quando o país se abriu para a economia global, e Santi adorava experimentar.

A torta de queijo foi servida por anos, mas foi somente quando a chefado do Turismo Gastronômico pela região que ela alavancou. Graças a tendência das tours de pintxos - para aqueles que não são formados em turismo nem adeptos do turismo gastronômico, a Academia Real Espanhola define pintxo como uma “porção de comida consumida como aperitivo, que às vezes é perfurada com um palito de dente”. Mas, na pratica, além de os pintxos significarem petiscos montados, nos quais um “palito” (chamado pincho) é usado para prender um ou mais ingredientes a uma pequena fatia de pão, daí o termo pinchar. Existe também as banderillas, um tipo de pintxo onde os ingredientes são fixados em um palito de dente sem a fatia de pão, normalmente feito com picles, peixe e azeitonas.



Atualmente, o pintxo é encontrado em toda a Espanha, mas é ao norte que ele representa um pilar essencial da cultura gastronômica local. Além do País Basco, que inclui San Sebastián e Bilbao, as regiões de Navarra, Cantábria e La Rioja também são famosas pela cultura e qualidade dos pintxos.

Cuidado para não confundir os pinchos espanhóis (pintxos) com pinchos da América Latina, muito populares em países como Porto Rico e Venezuela. A versão latina é mais parecida com os pinchitos, que são espetos de carne grelhada também tradicional na Andaluzia.



Assim, com a decolada das tours de pintxo ganhando visibilidade e decolando nos anos 2000, os turistas estrangeiros em massa começaram a descobrir o a torta de queijo do La Viña, que dispõe até hoje nas prateleiras do bar, inúmeras formas de fundo falso, com papel manteiga chamuscado saindo do topo. A fama foi tanta que conquistou inúmeras postagens no Instagram e Tripadvisor, o que promoveu ainda mais a fama da delicia fazendo com que Santi compartilhasse a sua receita online — não há segredos comerciais aqui.

E a premissa para essa atitude dele foi louvável: “Os chefs bascos elaboraram os estatutos da Cozinha Basca, e um deles era que a culinária deveria ser transmitida ao público em geral para que todos pudessem desfrutar”, diz ele. “Eu vivo por esse estatuto. Sempre há 15% que não podem ser ensinados — não porque você não queira, mas porque está nas mãos da pessoa que faz a sobremesa.”

A receita, pode-se dizer, é uma adaptação do cheesecake tradicional. Mas, com uma cremosidade espetacular, uma cor dourada intensa e, na composição não vai nada mais do que cream cheese, ovos, creme, açúcar e um pouco de farinha. O que torna esta sobremesa única são, na verdade, seus ingredientes "ausentes" e a técnica "incorreta".


Enquanto um cheesecake assado normalmente envolve cozinhar o delicado creme de queijo com ovos em um fogo relativamente baixo, esta torta recebe um tratamento um pouco mais áspero — ela é cozida em uma temperatura tecnicamente muito alta, o que significa que as partes do bolo em contato com a forma douram em uma crosta natural, enquanto o topo queima em alguns lugares e o interior permanece mole e solto.

Outra diferença é que acompanhamentos como sorvete, caldas e coulis de frutas vermelhas estavam fora de questão devido às restrições de espaço na cozinha do La Viña. A base de biscoito? Não, sem isso, por favor. Essas questões são explicadas com o conhecimento ao longo do tempo.

Santi, revelou, que quando ele assumiu o La Viña em 1997, um chef veio do Ritz-Carlton em Paris, e lhes disse: "Este bolo precisa ser mantido fora da geladeira porque a geladeira o torna mais denso". Ele acusa que não prestou muita atenção naquela fala[risos]. Mas então, com o passar do tempo, percebeu que a dica do chef francês estava certa. Então, foi quando Santi parou de guardar a tarta de queso na geladeira e passou a coloca-la ao lado da máquina de café. As pessoas locais e os turistas começaram a vê-la ali, perto dos pintxos e do vinho. E foi aí que ele realmente começou a vender. Começamos a fazer duass de cada vez, depois quatro de cada vez, e assim por diante.

O fato daquela cidade ser um destino turístico popular e uma potência culinária, ajudou nesse processo de tornar a tarta de queso do La Viña popular. Além disso, por lá, eles passaram a apresentar as sobremesas como continuação do pintxo. Isso influenciou o conceito.

Outro detalhe que Santi enfatiza é que, por lá eles não deixam a torta queimar, imagem que é muito comum de ser vista por aí. Ele acredita que o queimado traz um amargor para a receita que não o agrada. Mas, claro, todos podem fazer o que quiserem quando preparam a sua.

Agora, o gran finale, a receita da tarta de queso perfeita pra você comer até esborrachar (desculpem, os termos, mas é isso que acontece comigo!). vocês verão que é fácil, e a qualidade dos ingredientes é o que garantirá um doce excelente.

Tata de queso basca do la Viña

1 kg de cream cheese (eu gosto do resultado com o San Millán ou o Philadelphia. Mas com um pouco do Cabrales misturado com cream cheese fica ótimo) )

7 ovos

400g de açúcar

1 colherada de farinha de trigo

200 ml de nata (ou creme de leite fresco)

Preparo: Pré-aqueça o forno a 200ºC e forre uma assadeira de 25 centímetros de diâmetro, primeiro com uma folha de papel alumínio, e por cima dela coloque uma folha de papel manteiga, ajeite tudo muito bem na forma. Na batedeira, bata o cream cheese até ficar cremoso (tudo isso pode ser feito na mão, mas vai demorar um pouquinho mais). Coloque a batedeira em velocidade mínima e adicione aos poucos o creme de leite até que a mistura fique homogênea. Repita o mesmo procedimento com o açúcar. Adicione os ovos um a um, integrando bem cada unidade à massa. Por fim, coloque a colher de sopa de farinha de trigo e misture. Asse por cerca de 55 minutos. Se após 40 minutos a torta estiver dourada o suficiente, cubra a assadeira com papel alumínio para que termine de assar sem queimar. Retire do forno e deixe esfriar fora da geladeira pelo menos duas horas antes de servir.

 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

La Cornucópia della Fortuna: História, Lendas e Mitos Relacionados ao “Corno da Abundância”

 

Bem-vindos à 2025! Que este seja um ano de muita abundância para todos nós. E é sobre ela a nossa primeira conversa do ano: hoje lhe trago breves explanações sobre a cornucópia da fortuna.

O que é a cornucópia? Considerado um emblema da iconografia do outono, hoje é mais associado ao Dia de Ação de Graças, celebrado na América do Norte. Mas, suas origens, na verdade, são muito antigas e têm raízes no Velho Continente. “Cornucopia” é um nome que deriva da união dos termos latinos “cornu” (chifre) e “copia” (abundância): este corno da abundância, não por acaso, é representado como um grande cone transbordante de frutos, flores, vegetais ou moedas de ouro.

O simbolismo, evidente, remete à fertilidade da terra, às dádivas da colheita e, ao mesmo tempo, à sorte. Porque a sorte é a “condição sine qua non” para obter uma colheita rica. E se o nascimento da cornucópia é geralmente rastreado até a mitologia grega, há muitos estudiosos que a conectam a um período anterior à civilização helênica: Tique (em grego: Τύχη, trad. Tykhe, "sorte"), nos antigos cultos gregos, era a deusa grega responsável pela fortuna e prosperidade de uma cidade, seu destino e sorte — fosse ela boa ou ruim. Sua equivalente na mitologia romana era Fortuna.

A Tyche (Fortuna) de Antioquia. Mármore, cópia romana de um original de bronze grego de Eutychides do século III a.C.

O historiador grego Stylianos Spyridakis expressou de maneira concisa a atração de Tique para o mundo helenístico, repleto de violência arbitrária e revises desprovidas de significado: "Nos anos turbulentos dos epígonos de Alexandre, uma percepção da instabilidade dos assuntos humanos levou as pessoas a acreditarem que Tique, uma amante cega da Fortuna, governava a humanidade com uma inconstância que explicava as vicissitudes da época."

                                                 Noel Coypel, “L’abbondanza” (1700 ca.)

Durante o período helenístico era comum que cada cidade venerasse sua própria versão icônica específica de Tique, usa uma coroa mural (uma coroa com o formato das muralhas da cidade). Na literatura estas versões receberam diversas genealogias diferentes, por vezes como filha de Hermes e Afrodite, ou considerando uma das Oceânides, filhas de Oceano e Tétis, ou Zeus Píndaro. Era ainda associada a Nêmesis e Agatodemon ("bom espírito"), e venerada em Itanos, na ilha de Creta, como Tyche Protogeneia, associada à Protogenia ("primogênita") ateniense, filha de Erecteu, cujo auto-sacrifício salvou a cidade. Em Alexandria, o Tiqueão (Tykhaeon), templo de Tique, foi descrito por Libânio como um dos mais magníficos de todo o mundo helenístico.

                          Pietro Paolo Rubens, “L’unione di Terra e Acqua” (1618 ca.)

Tique aparece em diversas moedas nos três séculos que antecedem o nascimento de Cristo, especialmente nas cidades ao redor do mar Egeu. Mudanças imprevisíveis da fortuna são a força-motriz nas complicadas tramas dos romances helenísticos, como Leucipe e Clitofonte ou Dáfnis e Cloé. Seu culto experimentou um ressurgimento durante outro período de mudanças turbulentas, os últimos dias do paganismo sancionado pelas autoridades, no fim do século IV, entre o reinado dos imperadores romanos Juliano e Teodósio I Juliano e Teodósio I, que fechou definitivamente os templos. A eficácia de seu caprichoso poder alcançou respeitabilidade até mesmo nos círculos filosóficos da época, embora entre os poetas fosse um lugar-comum insultá-la como uma meretriz inconstante. Existiam templos dedicados a ela em Cesareia Marítima, Antioquia, Alexandria e Constantinopla.

                                         Frans Snyders, “Cerere e Pan” (1615-1620 ca.)

Dentre os símbolos principais dessa deusa, está a cornucópia que a acompanhava em todos os momentos. Ela era a deusa que dava vida e nutrição a todas as criaturas vivas, mas também a deusa da fortuna e da prosperidade. Sua aparência era a de uma jovem com uma coroa de flores na cabeça e um manto verde enfeitado com decorações florais douradas. Na mão direita ele segura uma cornucópia cheia de frutas e na esquerda um maço de espigas de milho. O enorme chifre da abundância se refere ao chifre dos animais dos quais o leite é obtido: gado e cabras, na época, forneciam um precioso meio de sustento.

Mas Tique (ou Fortuna, ou Abundantia, seus nomes latinos) também era uma deusa lunar, cujo chifre simbolizava o chifre da Lua e, como tal, ela era dotada de uma rica herança interior; Ela reinava sobre o mundo dos vivos e dos mortos, e é por isso que em muitas obras ela é retratada com uma cornucópia vazia. Capaz de dar vida e morte, a deusa protegia os ancestrais das famílias (especialmente para as famílias romanas) – mas, os espíritos protetores dos ancestrais, na verdade, os chamados Lares, que por vezes eram representados com uma cornucópia na mão, assim como a deusa Abundantia.

 Lar dançante: na mão direita eleva um rito ou cornucópia com cabeça de pantera no seu acabamento, e na esquerda carrega uma sitela ou sítula. (Museu Arqueológico Nacional de Nápoles)

A deusa também promovia o bem-estar econômico da família e a conclusão de negócios lucrativos e vantajosos, daí a miríade de moedas transbordando de seu chifre. Ao longo dos anos, a figura de Abundantia foi absorvida por diversas deusas do panteão romano, sobretudo pela deusa Fortuna (divindade do Acaso e do Destino). A deusa Fortuna e os Lares eram figuras muito veneradas na Roma antiga: eles zelavam pela gens e favoreciam sua prosperidade. Um lararium, uma espécie de santuário doméstico, era até dedicado aos espíritos protetores dos ancestrais. No entanto, é preciso dizer que a cornucópia não era exclusiva da deusa Abundantia ou da deusa Fortuna. Ceres (Deméter, deusa da colheita e das colheitas), Tellus (Gaia, deusa da Terra fértil) e Proserpina (Perséfone, deusa da agricultura e da vida após a morte) também eram associadas ao corno da abundância: este constituía o emblema da sua natureza trina, que incluía o céu, a terra e o inferno. A mãe de todos os deuses e seres vivos, como já vimos, tinha o poder de dar vida, mas também de tirá-la.

                              Jan Bruegel Il Vecchio, “Le ninfe riempiono la cornucopia” (1615)

Na mitologia grega, as origens da cornucópia estão interligadas com duas lendas evocativas. A primeira apresenta Zeus (Júpiter, para os romanos), rei e pai de todos os deuses do Olimpo. Zeus nasceu da união dos titãs Cronos e Reia. Cronos, seu pai, certo dia teve uma premonição: no futuro, um de seus filhos o deporia. Então, ele decidiu devorar sua prole para evitar que o evento que ele temia acontecesse. Reia, no entanto, descobriu o plano de Cronos e conseguiu esconder Zeus em uma caverna na ilha de Creta. Lá ela o deixou com Amalteia, uma cabra que o criou e o alimentou com seu leite. Há versões da lenda segundo as quais Amalteia era a ninfa dona da cabra que amamentou Júpiter. Filha do titã Oceano, a ninfa usou um dos chifres do animal para alimentar Zeus: ela o encheu com frutas, mel, leite e tudo o que era necessário para sustentar o pequeno filho de Cronos. Diz a lenda que quando Júpiter cresceu e se tornou o rei dos olímpicos, ele quis mostrar sua gratidão à cabra, elevando-a ao céu com seu chifre e dando origem à constelação de Capricórnio, de “caprum”, cabra, e “cornu”, chifre. A outra versão da história conta que Zeus, quando já crescido, arrancou um chifre do bode e o dotou de poderes extraordinários: bastava fazer um pedido e ele seria preenchido com tudo o que a pessoa desejasse. Foi assim que nasceu a cornucópia, o chifre da abundância, na mitologia grega. Mas há uma segunda lenda sobre sua gênese.

Aqueloo, um deus grego do rio (filhos dos titãs Oceano e Tétis), aspirava se casar com Dejanira, a bela filha de Eneu, o rei dos etólios. Mas Hércules, nascido de Zeus e Alcmena, também pediu sua mão. Uma luta sem limites começou entre os dois competidores; Eneu então anunciou que daria Dejanira em casamento ao vencedor da luta. Aqueloo e Hércules lutaram furiosamente: Aqueloo, sendo um deus, aproveitou seus dons transformando-se primeiro em uma serpente, depois em um dragão e, finalmente, em um homem com cabeça de boi. Mas foi justamente graças a essa última metamorfose que Hércules prevaleceu. Quando Aqueloo investiu contra ele para perfurá-lo com seus chifres, Hércules os agarrou e arrancou um deles. Aqueloo caiu no chão exausto, a luta havia sido vencida pelo filho de Zeus. Ao ver o chifre no chão, as Náiades (ninfas das águas) correram para pegá-lo e o encheram de frutas, flores e todo tipo de guloseimas. A partir daquele momento, o chifre se tornou sagrado e foi considerado um símbolo de abundância: a cornucópia.

                Nicolas Poussin - A Amamentação de Júpiter (1630).

Os emblemas aos quais a cornucópia está ligada, ou seja, fertilidade, prosperidade e abundância, permanecem mais ou menos os mesmos em todas as civilizações que a adotaram. Os antigos celtas a esculpiram em uma estatueta representando Epona, deusa das mulas e cavalos, mas também nas mãos de Olloudious, um deus que os romanos equiparavam a Marte. Parece que para as populações celtas a cornucópia também era associada à cura, enquanto os persas a associavam às oferendas de sacrifício com as quais os reis prestavam homenagem aos deuses. Ovídio menciona a cornucópia em sua obra-prima, “Metamorfoses”, citando a lenda de Hércules (renomeado Hércules pelos romanos) e Aqueloo. Em Roma, por volta do século II d.C., a cornucópia se referia principalmente à deusa Fortuna e aos Lares. 

Aqueloo era frequentemente reduzido a uma máscara com barba. Chão em mosaico, Zeugma, Turquia.

Na Idade Média, porém, a cornucópia foi enriquecida com um significado adicional: honra. Ou seja, abundância combinada com prestígio e valor. Em uma miniatura dos Evangelhos de Otão III (ou, Ottone III), datada do ano 1000, quatro personificações das províncias imperiais prestam homenagem a Otão III, Sacro Imperador Romano, com presentes preciosos. Nem é preciso dizer que havia uma cornucópia entre eles.

                                Evangelario di Ottone III, miniatura da escola de Reichenau (1000 ca.)

Durante a Idade Média, portanto, o significado de abundância ao qual a cornucópia se refere se amplia, fundindo-se perfeitamente com o brilho das pessoas e dos lugares. De fato, personificações de cidades, áreas geográficas e elementos naturais retratados ao lado de uma cornucópia não são incomuns.

Desde então, o corno da abundância aparece com frequência no simbolismo heráldico e até o encontramos nas bandeiras de certos estados, um dos quais é o Peru. Hoje em dia, a cornucópia é mais associada ao Dia de Ação de Graças nos EUA e Canadá. A razão é óbvia: este feriado celebra a abundância da colheita do ano anterior e suas bênçãos. A cornucópia, portanto, ocupa um lugar de destaque naquele dia, ao lado do peru, da batata-doce, do molho de cranberry e da torta de abóbora. Claro que, neste caso, ela estará cheia de frutas e vegetais da estação: abóboras, uvas, figos, maçãs, nozes, peras, milho, couve-flor... O que ele simboliza, você já sabe... o que talvez você não saiba é que, com o tempo ela se transforma na “Cesta da Fortuna”.

Essa cesta da fortuna, inicialmente poderia ser uma cesta (de madeira, palha, bamboo) ou tigela de barro na qual eram colocados presentes comestíveis, símbolos de riqueza, sorte e saúde. Essa cesta era então guardada em casa ou dada de presente a alguém a quem você deseja um ano de sorte.

Hoje a cesta da sorte é mais uma curiosidade e pode ser encontrada no mercado em miniatura, como lembrança. Normalmente essas cestas continham lentilhas e legumes, frutas secas (avelãs, nozes) e pelo menos uma moeda... tudo coberto de resina para durar para sempre.

E vale ressaltar os significados de alguns dos produtos das cestas: as lentilhas lembram o tilintar do dinheiro - é por isso que elas também são um prato típico de Ano Novo; as frutas secas também são sinônimo de abundância e boa saúde; na verdade, elas têm sido um lanche clássico após as refeições desde a época dos antigos romanos. Por fim, a moeda: não importa o seu valor, sua função é simplesmente simbolizar dinheiro. Até algumas décadas atrás, as cestas propriamente ditas eram mais ricas e incluíam frutas cítricas, doces, chocolate, passas, figos, tâmaras, cerejas em conserva e uma garrafa de vinho ou espumante.

Isso te lembra alguma coisa? Parece exatamente a clássica cesta de Natal que é usada para presentear durante as festas de fim de ano. E de fato é assim: a cesta de Natal deriva desse costume antiquíssimo, nascido entre os primeiros povos itálicos durante as celebrações solsticiais.



O costume da Cesta de Natal é tão querido pela cultura ancestral italiana que, também se tornou um doce: a Cornucópia da Fortuna. Bom, ... a associação era bem óbvia. Na região da Campânia, no entanto, ela foi transformada em uma obra de arte: uma cornucópia de crocante de amêndoas, cheia de mini struffoli cobertos com mel e granulados. Uma alegria para a vista e para o paladar!


Como tradição de início de ano, é sempre bom convidar a abundância para entrar na sua casa... e, nada mais simbólico do que preparar uma cornucópia da fortuna, para se deliciar e garantir fortuna, boa sorte ao longo de todo o ano. E para tornar essa preparação ainda mais ritualística, com o peso ancestral que ela mercê, que tal preparar tudo ao som de “Carmina Burana”?

“O Fortuna / És como a Lua / Mutável, Sempre aumentas / Ou diminuis; A detestável vida / Ora oprime E ora cura / Para brincar com a mente; Miséria, Poder, Ela os funde como gelo” – O Fortuna Imperatrix Mundi

                            A roda da fortuna, no codex dos Carmina Burana.

Essas são as palavras que iniciam a famosa composição de Carl Orff escrita no séc. XX, Carmina Burana.

Esse começo arrebatador, tão utilizado em trilhas sonoras para causar uma imponência ou até mesmo terror discute a inconstância da roda da fortuna, ou seja, do destino, da sorte, da ventura ou do acaso: estamos todos sujeitos ao imprevisível. Mas o que significa Carmina Burana e da onde veio o texto dessa obra?

O nome Camina Burana significa Canções de Benediktbeuren. Que nome esquisito, não é mesmo? Benediktbeuren foi a abadia, na Alemanha, onde essas canções, ou melhor, o Códex Buranus foi encontrado no séc. XIX.

Esse Ccódex Buranus, é um conjunto de textos que, nesse caso, foi escrito em 1230 e contém 254 poemas que falam sobre zombaria, juventude, amor e vícios como a bebida. Esses poemas estão escritos em latim e alemão medievais. Além disso, alguns desses textos têm indicações musicais daquele período, que são bem diferentes da notação de música atual.

Esses textos foram os Goliardos. Eles eram monges, estudantes e frades que frequentavam as tabernas, onde eles compunham vários desses versos, desiludidos com o clero. Praticamente os textos satirizam a igreja, são carregados de erotismo e enaltecem a juventude, em especial o vinho.

O tema dos goliardos era muito semelhante à ideia do Carpe Diem (aproveite o momento):

“Edamus, bibamus, gaudeamus!” (Comamos, bebamos, folguemos!)

Carl Orff, então, musicou 24 desses versos do códex e criou esta famosa cantata profana. Carmina Burana de Orff é emoldurada por este símbolo da Roda da Fortuna: uma roda que gira permanentemente e pode trazer sorte ou azar. O Fortuna Imperatrix Mundi, que se direciona à Deusa da Fortuna, abre e encerra esta peça. (claramente uma homenagem para a deusa ancestral).

“A roda da Fortuna gira; eu desço, diminuído; outro é levado ao alto; lá no topo senta-se o rei no ápice? Que ele tema a ruína! Pois sob o eixo lemos o nome da Rainha Hécuba”.

Se gostou da ideia, segue a baixo a receita pra você preparar, já que o ano de 2025 acabou de começar. Faz, e depois em conta...

Cornucópia da Fortuna

Ingredientes para a cornucópia de amêndoa crocante

500 g de açúcar

250 g de amêndoas descascadas e picadas grosseiramente

1 colher de sopa de suco de limão

para os struffoli de laranja e chocolate

400 g de farinha de trigo

3 ovos

50 g de açúcar

60 g de manteiga derretida

3 colheres de sopa de licor de laranja

a casca ralada de 1 laranja

1 pitada de sal

Óleo para fritar

para montar:

300 g de mel

40 g de granulados coloridos

40 g de laranja cristalizada

pérolas de açúcar prateado

40 g de cerejas cristalizadas

100 g de chocolate amargo

um pedaço pequeno de manteiga

Preparo: Primeiro, prepare a cornucópia. Coloque o açúcar e o suco de limão em uma panela antiaderente. Acenda o fogo e cozinhe em fogo médio/alto até que o açúcar esteja completamente dissolvido. Mexa sempre. Após cerca de 10/15 minutos o açúcar irá caramelizar e assumir uma cor âmbar. Adicione as amêndoas picadas grosseiramente, desligue o fogo e misture tudo bem. Despeje a mistura em uma folha de papel manteiga. Cubra a mistura com outra folha de papel manteiga e abra a massa com um rolo de massa. Depois, retire a folha de papel-manteiga que você colocou por cima e enrole a massa em volta de um cone de papel-manteiga (prepare-o com antecedência e insira um pouco de papel-alumínio dentro para deixá-lo mais rígido). Molde sua cornucópia com as mãos. Deixe esfriar e só depois que estiver bem frio você pode retirar o cone de dentro. Prepare os struffoli: Em uma tigela, coloque a farinha, o sal, a casca de laranja ralada, o açúcar, a manteiga derretida (fria) e o licor. Misture bem com uma colher. Adicione os ovos e continue misturando. Retire a mistura e continue amassando com as mãos sobre uma tábua de cozinha por alguns minutos até obter uma mistura lisa. Cubra com filme plástico e deixe descansar em temperatura ambiente por 15 minutos. Neste ponto, molde pequenas bolinhas de massa com pedaços de 1 cm. Frite os struffoli em bastante óleo. Após cerca de 3/4 minutos de cozimento, eles estarão cozidos e terão adquirido uma cor dourada. Escorra-os e transfira-os para um prato forrado com papel absorvente para secar o excesso de óleo. Imediatamente depois, despeje-os em uma tigela e deixe esfriar. Montagem: Numa outra panela, aqueça o mel e despeje sobre os struffoli. Adicione os granulados coloridos, a laranja cristalizada, as pérolas de açúcar e misture. Encha a cornucópia com os struffoli e decore com as cerejas cristalizadas. Por fim, derreta o chocolate amargo com a manteiga em banho-maria. Espalhe sobre os struffoli para decorar.  Servir,