Eu era ainda uma criança
quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos
livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado
que eu conhecia melhor: os gibis.
Eu era ainda uma criança
quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos
livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado
que eu conhecia melhor: os gibis.
Antes de prosseguir, preciso
fazer um adendo — talvez vocês, leitoras e leitores, não saibam — mas a própria
palavra “gibi” já carregava em si um sopro de mistério, um aroma de
curiosidade. Nasceu muito antes de eu existir. Em 1939, a Editora Globo lançou
uma revista em quadrinhos com esse nome exato: Gibi.
Na gíria da época, “gibi”
era termo para menino negro, para o moleque das ruas — com conotações racistas,
infelizmente comuns naquele tempo. Mas o sucesso da revista foi tão grande, tão
encantador, que transformou a conotação do termo, apagando o sentido pejorativo
original. Aos poucos, “gibi” deixou de ser sinônimo de desprezo e passou a
significar travessura, curiosidade, espírito inquieto.
Naquela época, eu não sabia
disso. Aprendi muito tempo depois, entre leituras de quadrinhos e outros mundos
que minha curiosidade me arrastava a explorar. Foi assim que descobri que a
palavra gibi vinha do quimbundo ngibi, sussurrada no Brasil desde o século XIX,
e trazia consigo o eco de outro continente, a África — a mesma terra que,
séculos antes, dera origem à rainha lendária que eu pressentira em meus olhos
de criança.
A revista se espalhou com
uma rapidez quase mágica, conquistando crianças e adultos, ocupando bancas e
invadindo imaginações. Como acontece com tudo que cresce além de si, seu nome
escapou das capas e passou a nomear um universo inteiro.
O destino das palavras, às
vezes, é quase mágico: transcender a si mesmas, escapar das limitações do que
originalmente significavam, assumir novas vidas. Assim, o “gibi” seguiu o
caminho de outras criaturas linguísticas que, como ele, ganharam asas e se tornaram
universais — Xerox, que deixou de ser apenas marca e se transformou em
fotocópia; Gilete, que se libertou para virar sinônimo de lâmina; Corn Flakes,
que atravessou o mundo para nomear todo cereal matinal de flocos de milho;
Chiclets, que se espalhou pelos bolsos e mochilas como qualquer goma de mascar;
Maizena, que passou a encarnar o próprio amido.
E assim, com o tempo e a
persistência encantadora do cotidiano, qualquer revista em quadrinhos, fosse de
onde viesse, recebeu o apelido carinhoso e definitivo: gibi — um pequeno
feitiço linguístico, capaz de transformar uma palavra em universo.
Em resumo: uma palavra
africana atravessou séculos, ganhou nova casa, transformou-se no menino
travesso da gíria, tornou-se revista, e depois, como um encantamento cotidiano,
passou a nomear todas as histórias desenhadas em quadrinhos que povoaram minha infância.
Naqueles anos, devorava sem
trégua as aventuras da Turma da Mônica e da Disney. Meu tio Mário, irmão mais
velho da minha mãe, mantinha assinaturas da revista Veja, que de vez em quando
enviava, de brinde, revistas infantis. Mas ele também tinha assinaturas
próprias de revistas para crianças; não sei se existiam antes do nascimento dos
meus primos, seus filhos, mas o fato é que pilhas coloridas chegavam à casa
como pequenos tesouros enviados pelo correio, sempre pontuais, sempre
encantadas, como se soubessem exatamente onde pousar.
Foi na casa do tio Mário que
encontrei um livro da Disney diferente de tudo que eu já conhecera. Estranho,
porque não estava junto das revistinhas empilhadas na estante do quarto dos
meus primos. Estava escondido numa gaveta da cristaleira — lembro que me
pediram para pegar algo em um desses móveis antigos, cheios de gavetas, que
ficava na sala de jantar, uma mistura de aparador e cristaleira. Fui atrás do
objeto solicitado, abri a gaveta, encontrei o que procurava... e, no mesmo
instante, o destino me apresentou outro tesouro: aquele livro.
Levei-o comigo, fascinado.
Foi algo tão inesperado, tão arrebatador, que até hoje não consigo me lembrar
do que fui buscar naquela gaveta; só me recordo do livro, que parecia ter me
escolhido primeiro, como se soubesse que eu precisava encontrá-lo antes de
qualquer outra coisa.
Era estranho e incomum: além
das histórias curtas, mostrava os personagens clássicos da Disney vestidos como
figuras históricas — e, para meu espanto, trazia receitas. Na verdade, era um
livro de cozinha. Pertencia à minha tia Cida, esposa do tio Mário. Encantei-me
imediatamente.
Foleando o livro, perdido
entre as cores e as formas, eu me deixava levar pelo encanto das páginas. Os
personagens da Disney, como atores de uma peça fantástica, encenavam cenas
históricas com graça e irreverência, e cada ilustração parecia sussurrar histórias
por si mesma. Havia comidas, receitas detalhadas, cada passo explicado com a
paciência de quem deseja ensinar não apenas a cozinhar, mas a sentir, a tocar,
a provar com os olhos antes de experimentar.
E então, parei numa página
especial, uma página que ainda hoje pulsa em minha memória: o Pudim de
Chocolate e Abacaxi da Rainha de Sabá.
Na ilustração, Margarida — a
eterna pata elegante, namorada do Pato Donald — encarnava a Rainha de Sabá.
Altiva, envolta em tecidos que pareciam fluídos, adornada com joias que
reluziam como pequenas constelações, ela não comandava apenas o palácio, mas parecia
dominar o próprio tempo.
Patinhos fantasiados, que eu
supunha serem os sobrinhos do Pato Donald, esforçavam-se sob o peso de um pudim
gigantesco, quase impossível, que carregavam atrapalhadamente. Vestiam-se como
pequenos egípcios — ou, ao menos, era assim que minha infância imaginava toda a
África, confundindo continentes e eras, misturando história e fantasia em uma
só imagem luminosa.
E, no topo do pudim,
erguia-se um abacaxi como um cetro comestível, coroando o monumento doce,
imponente e encantador. Aquela visão — tão absurda quanto majestosa, tão
impossível quanto real no meu imaginário — jamais se apagou da minha memória.
Cada detalhe permanecia, gravado como se o livro tivesse sussurrado para minha
alma de criança: isso é magia, e a magia é para sempre.
Aquilo me arrebatou.
Talvez porque foi a primeira
vez que me vi questionando uma receita: como poderia alguém imaginar chocolate
e abacaxi juntos? Como aquilo poderia ser real, harmonioso, quase mágico? A
imagem se gravou em mim como um ícone indecifrável, uma lembrança que se
recusava a se apagar.
Anos depois, tentei
reencontrar o livro. Vasculhei catálogos, sebos, internet — tudo. Sabia que nos
anos 1980 e 1990 a Disney no Brasil era publicada pela Editora Abril, e ainda
assim, nada. Procurei até edições em inglês; encontrei uma de 1975, Mickey nas
Cozinhas do Mundo, mas no índice não havia sinal do bendito pudim de chocolate
e abacaxi da Rainha de Sabá.
E, durante essa busca,
outras perguntas começaram a surgir, inquietantes: como poderia a Rainha de
Sabá, que viveu antes de Cristo, ter provado chocolate e abacaxi — frutos
descobertos séculos depois? Mas logo compreendi: a publicação não buscava
fidelidade histórica; buscava abrir portas à imaginação, convidar crianças a
adentrar a cozinha de mãos dadas com seus pais.
Ainda assim, o pudim jamais
abandonou minha mente. Queria encontrar aquele livro. Queria reencontrar o
mistério.
E, enquanto procurava,
descobri imagens do tal pudim carregado pelos patinhos, encontrei algo
parecido, em imagens antigas de sobremesas vitorianas. Um creme de chocolate
montado em moldes antigos, ornado por relevos delicados, idêntico ao pudim da
Rainha de Sabá — faltavam apenas os enfeites laterais e o abacaxi coroando o
topo, como uma joia comestível.
Foi por causa daquele pudim
impossível que, mais tarde, senti a necessidade de conhecer a verdadeira mulher
por trás do mito. Quem era essa Rainha, tão bonita, tão rica, tão famosa — tão
poderosa que, na minha imaginação de criança, já degustava chocolate e abacaxi
antes que o mundo sequer sonhasse com eles?
Descobri uma mulher envolta
em mitos: alguns majestosos, outros hilários, até desrespeitosos — como a lenda
de que teria pés de cabra – animal que alguns ligavam ao satanismo. Talvez
invenções de adversários políticos; talvez fruto do medo ancestral de que ela
fosse um demônio sedutor.
Quanto mais eu lia, mais me
perdia e me encontrava naquela figura: misteriosa, lendária, quase indomável,
como se cada página sussurrasse segredos que só minha imaginação podia
compreender.
E, ironicamente — ou talvez
com a precisão poética do destino — anos depois, seu nome acabaria coroando
outra delícia, um bolo de chocolate, daqueles que se tornam memória e prazer,
um dos que mais amo na vida, como se o próprio passado tivesse decidido que a
Rainha de Sabá merecia perpetuar sua majestade em sabor e em lembrança.
A RAINHA DE SABÁ ENTRE O
TEMPO E O MISTÉRIO
Não em voz alta — jamais com
a urgência de um grito — mas com a atenção suspensa, como se o tempo respirasse
entre páginas antigas, senti a história se desprender de uma folha amarelada e
flutuar pelo ar, leve, quase imperceptível. Um sussurro que carregava o
crepúsculo, tocando ainda a toalha posta sobre a mesa, onde a luz se despedia
em faixas de ouro queimado.
A Rainha de Sabá. Um nome
que paira, quase inalcançável, envolto em especiarias e ouro, como canela que
se queima lentamente no ar quente, ou âmbar líquido derramado em silêncio. Há
quem a chame de lenda, como se a memória de uma mulher assim pudesse ser
reduzida a mito. Há outros que juram tê-la visto cruzando Jerusalém, deixando
reis de joelhos, antes que o último gole de vinho tocasse a boca.
O que restou, afinal? Não
são conquistas, não são tronos. É aquilo que persiste invisível e insistente: o
gosto que ficou, o gesto que escapou, o perfume que ainda ronda os lugares onde
passou. Séculos depois, ainda se manifesta, de formas inesperadas — nos
sabores, nas receitas, nos aromas que atravessam o tempo. Como um bolo que não
guarda apenas farinha e açúcar, mas a sombra e o eco de sua passagem.
Ela não se desvaneceu.
Transformou-se em memória que se mastiga, que se sente na pele, na boca, nos
olhos que procuram o brilho de ouro antigo, no aroma que se derrama como
promessa.
No cerne de eras apagadas,
ergue-se a Rainha de Sabá como um lampejo de ouro atravessando a neblina do
tempo, cintilando com a suavidade de uma promessa esquecida. Mulher de olhos
que parecem enxergar além do horizonte, cujo raciocínio desliza entre a couraça
da diplomacia e o fogo indomável da sedução, revelando segredos que apenas a
lua poderia compreender.
Ela vem de um reino onde o
vento carrega incenso e mirra, e entoa murmúrios secretos às palmeiras,
histórias que escorrem entre folhas e se infiltram nas pedras antigas. Cada
gesto seu é calculado, uma dança entre poder e curiosidade, entre luz e sombra,
como se soubesse exatamente onde o mundo hesita.
Nunca se sabe ao certo onde
começa sua história — se nos jardins suspensos sobre o Mar Vermelho, onde
flores raras curvam-se à sua passagem, ou na boca entreaberta de um ancião, que
jura tê-la visto descer de um tapete de ouro puxado por leopardos de olhar
lento e silencioso. Há cantos do mundo onde ainda se murmura que sua pele
reluzia como bronze molhado sob a lua; em outros, que escondia pés de cabra sob
túnicas de linho perfumado de incenso.
Ela habita o espaço entre
mito e carne, entre sombra e brilho, como se a própria história respirasse
através dela. Cada rumor, cada lenda, cada aroma que paira no ar parece
carregar um fragmento dela — um fragmento que recusa desaparecer, mesmo quando
os séculos tentam apagar o seu rastro.
Ainda há quem dissesse que
ela viajava num tapete tecido com sombra e aromas de mirra e âmbar, guiada por
estrelas e visões. Que poderia ler nos olhos dos camelos a cadência dos
caminhos por vir; e que sua coroa era feita de alvorada e escrita invisível.
Em Belkiss, Eugénio de
Castro evoca essa majestade simbólica, como se ela surgisse não para ser vista,
mas para ser pressentida, reverberando entre o perfume do louro e o eco do
mistério. Um enigma que se devolvia apenas
no silêncio do olhar. Como um bolo que parece rígido na crosta, mas guarda um
centro tenro e preservado — o convite ao segredo, ao desejo, à lembrança.
Sempre foi assim com
mulheres maiores que os limites dos mapas: não se admite que elas tenham apenas
nascido. Precisam ter sido moldadas por deuses ou por delírios, como se
carregassem em suas veias a essência de tempestades ancestrais, ou o sussurro
silencioso de eras esquecidas. Elas não pertencem ao comum, ao mundano — são
enigmas ambulantes, figuras que desafiam a lógica dos homens e a linearidade do
tempo.
É como se cada gesto seu
fosse uma inscrição em um livro proibido, cada olhar um portal para segredos
que o mundo tenta esconder sob o véu do silêncio. São sombras que caminham sob
a luz, presenças que se sentem antes mesmo de serem vistas, e cuja existência
desafia a razão dos mapas, das fronteiras, das histórias contadas e repetidas.
Essas mulheres — tão vastas
em sua aura, tão densas em sua essência — não nascem, transcendem. São a
encarnação viva dos desejos não confessados, das paixões mais obscuras e dos
mistérios que o tempo se recusou a revelar. E é assim que permanecem: eternas,
inexplicáveis, soberanas do próprio mistério que as cerca.
Mas havia algo mais em Sabá
— Makeda, Balqis, ou qualquer que fosse seu nome real — que nem os mais céticos
ousavam negar: sua inteligência era simultaneamente corda de seda e lâmina de
aço, uma força que se equilibrava entre a delicadeza e o corte preciso. Mulher
capaz de atravessar desertos inteiros apenas para encontrar Salomão, o rei de
Jerusalém, não para se curvar diante de sua fama, mas para testá-lo, para medir
a substância por trás do mito.
Sabá não era peregrina em
busca de respostas fáceis, nem rainha enfeitiçada pelo brilho alheio de um
trono que não era seu. Ela era tempestade e enigma, um furacão contido em
vestes de linho e ouro, dona de um conhecimento profundo, um código invisível que
se revelava em palavras meticulosamente escolhidas, em perguntas afiadas como
lâminas e em silêncios que ressoavam com mais força do que qualquer
proclamação.
Cada passo que dava parecia
calcular o ritmo do mundo, cada gesto era uma declaração velada de poder que se
insinuava sem anunciar sua presença. Ao sentar-se diante do rei, Sabá não
buscava sua aprovação — buscava sua verdade, a vulnerabilidade oculta sob a
arrogância, a frágil invencibilidade de um homem que se julgava o mais sábio
entre os mortais. Ela desafiava não apenas sua sabedoria, mas o próprio
conceito de autoridade, de destino, de história contada pelos vencedores.
E enquanto os servos se
afastavam em silêncio, como se pressentissem a eletricidade que pulsava entre
aqueles dois seres, Sabá permanecia imóvel, como uma esfinge viva, seu olhar
atravessando não apenas o rei, mas o tempo, as lendas e os ecos de todos os que
tentariam decifrar sua presença.
Ela era um mistério de luz e
sombra, uma lenda que escapava das mãos de quem tentava aprisioná-la em
histórias. A presença dela não apenas reconfigurava o espaço, mas dobrava o
tempo, fazendo com que aquele encontro — mesmo que breve — reverberasse séculos
além, como uma inscrição gravada em pedra viva.
E enquanto os cronistas e
poetas tentavam eternizá-la em versos e mitos, Sabá continuava além deles, uma
força invisível que não se entregava à memória, mas que, silenciosamente,
escrevia seu próprio legado nas frestas do mundo.
Até o rei Salomão, que
estava acostumado a súditos, oráculos, moedas de ouro e mulheres que se
curvavam ao seu olhar, se rendeu totalmente aos encantos dele. Mas Sabá entrou
com os olhos retos, a boca firme, os ombros imóveis — como se carregasse mil
anos de histórias e desertos nas vértebras. E ele soube: ou a conquistaria ou
se perderia para sempre no eco do riso dela.
“Ela veio para prová-lo com
enigmas” — dizem as Escrituras, como quem sussurra o prenúncio de algo mais
profundo do que uma simples visita. Nos antigos livros de reis e crônicas, está
registrado que a Rainha de Sabá atravessou vastidões de areia e silêncio não
apenas para saudar Salomão, mas para desafiá-lo — não com armas ou exércitos,
mas com o fino fio da inteligência, com enigmas que eram tão antigos quanto o
mundo e tão perigosos quanto o desejo.
Essa passagem, gravada nas
páginas de 1 Reis 10:1 e 2 Crônicas 9:1, ecoa ainda hoje como uma das mais
sutilmente provocadoras da tradição bíblica — e sua sombra se estende também
pelo Alcorão, onde a rainha — ali chamada Bilkis — surge não como súdita, mas
como espelho de um profeta, num diálogo onde fé, poder e sabedoria se
entrelaçam como perfumes raros num salão selado.
Não foi, portanto, uma
mulher comum que se apresentou diante do rei. Foi um enigma em forma de
presença. Um desafio envolto em ouro, mirra e silêncios. A prova viva de que o
verdadeiro poder, muitas vezes, chega sob o disfarce da curiosidade.
“Ela veio para prová-lo com
enigmas” — e talvez nunca mais, em toda a história, um eufemismo tenha sido tão
carnal.
Porque os enigmas de Sabá
não se limitavam à mente. Eram labirintos de desejo, de olhar e palavra, de
silêncio e movimento — um jogo sutil onde a lógica se dissolvia na pele e no
ar, onde cada gesto podia ser ao mesmo tempo promessa e armadilha.
Ela desafiava Salomão em
cada encontro, como se fosse um duelo velado, uma dança de intelecto e vontade,
onde a vitória não pertencia a quem respondia primeiro, mas àquele que soubesse
seduzir o mistério e deixar o outro perdido em sua própria dúvida.
Os relatos sussurram que
Sabá não apenas trouxe presentes de ouro e especiarias, mas também um presente
mais perigoso — uma presença que incendiava a corte e enredava o rei em um jogo
onde o poder e a paixão se confundiam.
E não era apenas a força de
sua beleza ou a precisão de sua mente que encantava, mas a complexidade com que
entrelaçava ambos. Sabá era uma tempestade que se permitia ser calma, um fogo
que se escondia sob a superfície, um enigma que não se revelava por inteiro,
mas se insinuava nas sombras da alma.
Dizem que o rei, sábio e
inabalável diante do mundo, encontrou nela um espelho inquietante — alguém que
desafiava seus limites e o fazia sentir, pela primeira vez, o peso suave e ao
mesmo tempo cruel do desconhecido.
Assim, Sabá não veio apenas
para testar a sabedoria de um rei, mas para desafiar o próprio conceito de
domínio, reescrevendo, em cada encontro, o que significava poder e rendição.
Durante dias, trocaram
enigmas e versos, temperados com vinho, tâmaras e a incerteza do próximo passo.
A tensão era tamanha que os escribas esqueceram de registrar as respostas: só
se sabe que ela saiu de lá com um filho e ele, com o coração desfeito.
Mas Salomão, rei que era,
jamais choraria em praça pública. E Sabá, rainha que era, não ficaria para
consolar um homem — ainda que o amasse. Porque se há um drama eterno que o
tempo não apaga, é este: o amor entre iguais que não se permite florescer.
Em noites sem nome, talvez
ela tenha olhado para o céu, deitada em algum terraço alto, e pensado: "E
se eu tivesse ficado? Mas rainhas não ficam. Elas partem. E reis — mesmo os
mais sábios — não correm atrás. Eles escrevem provérbios, constroem templos,
deixam o coração entre as pedras.
Sabá voltou ao seu reino.
Grávida. Dizem que levando a Arca da Aliança. Dizem que nunca mais amou. E o
mundo seguiu, desmemoriado e injusto com ela — como sempre é com mulheres que
não pedem licença ao desejo, nem ao destino.
E enquanto o tempo lavava
cidades e desertos, Sabá carregava consigo não apenas memórias de reis e
templos, mas também o gosto de aromas que atravessariam séculos — mirra,
canela, especiarias exóticas que tocavam a língua como notas de música
distante. Sua presença deixava rastros que não se contavam em histórias, mas em
sabores que insistiam em sobreviver, em suspirar por mãos que soubessem
transformá-los em algo tangível. Mesmo sem chocolate ou frutos das Américas,
cada aroma e cada tempero parecia conter um segredo antigo, uma promessa de
luxo e deleite que atravessava o tempo.
Nos interstícios entre lenda
e memória, entre pergaminhos amarelados e murmúrios de vento, a rainha de Sabá
se tornava também alquimista: convertia a experiência do mundo — perfumes,
cores, texturas, calor da cozinha real — em pequenas maravilhas que resistiam à
ruína do tempo. Era uma rainha que podia governar o silêncio, mas também
transformar o cotidiano em ritual, e a comida em uma narrativa de poder e
desejo.
E assim, cada gesto seu,
cada segredo guardado nas especiarias do Oriente, parecia implorar por
continuidade. Não apenas nas histórias que homens e mulheres contariam, mas
naquilo que os sentidos retêm: o aroma da coragem, da audácia, do prazer que se
permite existir mesmo diante da eternidade da história. Porque algumas rainhas
— assim como certos bolos — não podem ser apenas lembradas: precisam ser
saboreadas com atenção, degustada na memória e no tempo, como se cada fragmento
fosse um fragmento de mundo que sobrevive.
SABÁ EM FATIAS: A EPIFANIA DE JULIA
CHILD NA FORMA DE BOLO DE CHOCOLATE
A rainha de Sabá não é
apenas uma lenda esculpida em ouro e histórias antigas — ela é também um sabor,
uma presença que se insinua nos sentidos, uma essência que se descortina
lentamente, camada por camada, como a mais intricada das poesias, onde cada nota
de especiaria, sussurra segredos de reis e desertos longínquos. Há nela algo
que não se memoriza apenas com a mente, mas que se prova na pele, no paladar,
no ar que se respira com atenção.
E então, permita-me conduzir
essa metamorfose: da rainha que caminhava entre palácios e pergaminhos, à
rainha que reina entre tigelas e fouets, onde a alquimia do chocolate e das
especiarias se torna cerimônia.
Julia Child, cozinheira e
apresentadora de TV americana, não era apenas uma mulher que cozinhava — era
uma mulher que se entregava por inteiro ao rito da cozinha, com corpo e
espírito imersos no amor pelos ingredientes, pelos gestos, pelos aromas que dançam
no ar. Sua devoção era generosa, quase magnética, capaz de transformar o ato de
preparar uma receita em um verdadeiro tributo à história e ao prazer.
Ela nos legou algo digno de
coroar qualquer trono doce: o Bolo Rainha de Sabá — não apenas um bolo, mas uma
epifania de chocolate profundo, especiarias que sussurram histórias antigas, e
uma sofisticação que se move sem pressa, deixando que cada camada se revele no
tempo certo. Cada mordida é reverência, memória e celebração de um poder
feminino que atravessa séculos, que carrega em si a majestade de uma rainha que
escolheu seu próprio caminho.
Há registros dela preparando
este bolo (veja AQUI), e até hoje, ao ver Julia mover-se na cozinha, percebe-se que cada
gesto era ritual e poesia, como se o chocolate e as especiarias se dobrassem
diante de sua presença, obedecendo à sua vontade e à cadência de sua paixão.
Ela não apenas ensinava receitas: ensinava respeito pelo tempo, pelo sabor,
pela memória — ensinava a transformar alimento em experiência, em memória viva,
em celebração silenciosa do que é essencial e eterno.
O Bolo Rainha de Sabá,
assim, torna-se mais do que uma sobremesa: é um elo entre séculos, entre a
Rainha lendária e quem se permite sentir, saborear e celebrar o poder feminino
que não se curva, que resiste, que se manifesta em cada aroma e em cada pedaço
que se leva à boca. Julia Child nos entregou isso como quem entrega um segredo
precioso, envolto em chocolate, especiarias e reverência.
Às vezes a elegância reside
na opulência do sabor — e este bolo é mais que sobremesa: é celebração em cada
fatia.
Assim como a rainha
atravessou desertos e desafiou reis, seu bolo carrega em si a mesma promessa de
exotismo e poder silencioso. Não é apenas uma sobremesa; é uma viagem delicada
e envolvente aos territórios do paladar, onde o doce se entrelaça com especiarias
distantes, e a textura seduz como o olhar de uma mulher que conhece seus
próprios mistérios e os guarda com graça absoluta.
O Bolo Rainha de Sabá é, em
sua elegância, um convite a desvendar segredos — um jogo sutil entre o amargo e
o suave, o intenso e o etéreo. Cada mordida é um diálogo: o cacau profundo
conversa com notas exóticas, como as histórias que rodeiam sua musa, que jamais
se entregava por completo e sempre deixava, no ar, o rastro de um fascínio
impossível de apagar.
Ao saborear esta criação,
não se trata apenas de alimentar o corpo, mas de nutrir a alma com um fragmento
do enigma que foi, e ainda é, a Rainha de Sabá — símbolo de força, inteligência
e sedução que transcende séculos, sobrevivendo no gesto, no aroma, no sabor.
Assim, o bolo deixa de ser
apenas receita: torna-se celebração da mulher que desafia definições simples,
que comanda silenciosamente sua própria história e nos convida a provar, ainda
que por um instante, da grandiosidade de seu espírito em cada mordida.
E se alguém perguntar por
que este bolo carrega o nome de uma rainha esquecida, sorria. Diga que é porque
ela ainda vive — no mito que se recusa a desaparecer, na paixão interrompida
que resiste, no aroma de chocolate que sobe da forma como uma lembrança que se
recusa a ser apenas lembrança. Diga que ela foi uma mulher que poderia ter
escolhido o amor, mas escolheu guardá-lo para sempre, como quem preserva um
segredo precioso.
E isso, às vezes, é mais
eterno que qualquer gesto entregue ou palavra pronunciada.
Hoje, em tardes silenciosas,
talvez se perceba sua presença nas cozinhas onde se prepara um bolo denso,
escuro, sutilmente perfumado de chocolate e especiarias, onde cada mexida é um
ritual, cada suspiro do forno uma reverência à memória.
Se este bolo tem gosto de
algo, é do que sentimos ao lembrar dela: da força silenciosa que atravessa
séculos, da inteligência que não se curva, da beleza que desafia o tempo e o
espaço. É o sabor de um mistério que não se entrega, do desejo contido em um
gesto, do poder contido em um olhar que conhece todos os segredos do mundo.
Cada pedaço é memória e
celebração — um fragmento da rainha que escolheu seu próprio caminho, que
atravessou desertos e reis, que guardou o amor como quem guarda ouro e incenso.
No aroma que sobe da forma, no calor que envolve a cozinha, no sussurro do chocolate
e das especiarias, a rainha de Sabá respira.
Para mim, a Rainha de Sabá
não é apenas história. Não é apenas mito. Ela é vento que atravessa desertos,
luz que cintila sobre ouro antigo, aroma que persiste nas cozinhas silenciosas
do tempo. Ela é presença — intensa, sutil, impossível de esquecer — uma
epifania que se prova, se saboreia e se sente.
Ela vive na infância daquele
menino que pressentia mistérios nos gibis; nos olhos que encontram magia em
livros escondidos; no encantamento de um pudim impossível que desafiava a
lógica e a imaginação; na curiosidade que o fez buscar o passado como quem busca
um segredo guardado. Ela vive nas páginas que não se desgastam, nos aromas que
atravessam séculos, nas especiarias que sussurram histórias de reis, desertos e
mulheres que não se dobram.
Ela vive no gesto generoso
de Julia Child, na alquimia de um bolo que transforma chocolate em memória, em
celebração, em ritual. Cada fatia do Bolo Rainha de Sabá é um portal: o amargo
do cacau, o perfume das especiarias, a textura que se desmancha na boca — tudo
fala de um poder silencioso, de uma inteligência que desafia o tempo, de um
desejo que não se entrega, mas se preserva com majestade.
Cada pedaço é memória, cada
aroma é história, cada sabor é enigma. A Rainha de Sabá não se foi. Ela se
espalhou pelo mundo em pequenas maravilhas — nos olhos de quem observa, no
paladar de quem prova, na reverência silenciosa de quem entende que certos seres
não se apagam. Eles se transformam em eternidade.
Enquanto houver alguém que feche os olhos diante de um bolo, que respire seu perfume e deixe o chocolate derreter lentamente na língua, a Rainha de Sabá continuará viva. Não apenas em tronos ou pergaminhos, mas nos sentidos que guardam seu mistério, na memória que recusa esquecê-la, na força de uma presença que atravessa séculos sem pedir licença. Ela é poder, inteligência, desejo e magia — e, acima de tudo, é indomável. Sempre foi, sempre será.
Bolo Rainha de Sabá
[Reine de Saba avec Glaçage au Chocolat, ou Bolo de Amêndoas e Chocolate, da Julia Child]
Para o bolo:
120g de chocolate meio-amargo, com 50%
de cacau;
2 colheres de sopa de rum, ou de café
quente;
120g de manteiga sem sal, em temperatura
ambiente;
2/3 da xícara de açúcar;
3 gemas;
3 claras;
1 pitada de sal;
1 colher de sopa de açúcar;
1/3 da xícara [85g] de farinha de
amêndoas;
1/2 xícara de farinha de trigo.
Para o glacé:
70g de chocolate meio-amargo, com 50% de
cacau;
75g de manteiga sem sal, em temperatura
ambiente;
2 colheres de sopa de rum ou café
quente;
Amêndoas em lascas para decorar.
Preparo: Bolo - Pré-aqueça o forno a 170 graus. Unte
uma fôrma redonda de 20cm de diâmetro com manteiga e enfarinhe, batendo bem
para retirar o excesso de farinha. Reserve. Pique o chocolate em pedaços
pequenos, junte o café ou rum e leve ao fogo, em banho-maria, mexendo até
derreter [apague o fogo antes da água do banho-maria começar a ferver].
Reserve. Em uma tigela média bata a manteiga com o açúcar até ficar cremoso e
claro [pode ser com a batedeira ou com uma colher grande/ fouet]. Adicione as
gemas, uma a uma, batendo bem após cada adição. Reserve. Em outra tigela bata
as claras em neve, com a pitada de sal, até formar picos moles. Adicione a
colherada de açúcar e continue batendo até formar picos firmes. Reserve.
Adicione o chocolate derretido à mistura de gemas, misturando para incorporar.
Adicione a farinha de amêndoas e misture bem. Junte as claras em neve às
colheradas, alternando com colheradas de farinha, e misturando com movimentos
circulares de baixo para cima, sem bater. Distribua a massa na fôrma preparada e
alise a superfície. Leve ao forno por cerca de 25 minutos, até que nas bordas a
massa esteja assada, mas com o centro ainda meio mole. Retire do forno, deixe
esfriar por 10 minutos na forma, e desenforme. Passe para o prato de servir e
deixe esfriar completamente. Prepare o glacê – Derreta lentamente o chocolate
misturado com o rum ou café em uma tigela de metal ou vidro, em banho-maria,
sem deixar a água ferver. Retire do banho-maria, acrescente a manteiga, uma
colherada por vez, misturando bem após cada adição. Prepare uma tigela grande,
com gelo e água gelada, e coloque a tigela do glacé sobre dessa, misturando
sempre, até esfriar e ganhar uma consistência de cobertura. Espalhe o glacé
sobre o bolo frio, com o auxílio de uma espátula, e decore com as lascas de
amêndoas.
Dica de leitura: CASTRO, Eugénio de. Belkiss, Rainha de Sabá, d’Axum e do Hymiar: poema dramático em prosa. Coimbra: F. França Amado, 1909.



































