sábado, 23 de agosto de 2025

O Cappuccino Entre Monges, Modas e Maus Modos: Um Ensaio Gastronômico com Espuma e Ironia

 Deste barão cozinheiro, que virou antropólogo ocasional e poeta do café, entrelaçando amor pela bebida e irreverência contra as etiquetas do paladar

Poucas coisas no mundo têm o poder de transformar uma manhã comum em um pequeno ritual de prazer como uma xícara de cappuccino. A espuma que se eleva suavemente sobre o expresso, o leite aquecido ao ponto da cremosidade, e o aroma que preenche o ar como se fosse um incenso moderno — tudo isso faz do cappuccino mais que uma bebida: ele é um estado de espírito. Mas, como toda boa criação humana, ele também carrega o peso da tradição, da cultura e, infelizmente, da opinião alheia.

O cappuccino, como nos ensina a tradição italiana (e o bom senso), nasceu como uma celebração do equilíbrio. Uma parte de expresso, uma parte de leite vaporizado, uma parte de espuma. Nada de menos. Nada de mais. Diz-se que o nome veio da ordem dos monges capuchinhos, cuja batina marrom-clara coincidia, curiosamente, com o tom da mistura de café e leite.

Contudo, o cappuccino como o conhecemos só se tornou possível e popular a partir da invenção da máquina de expresso no início do século XX, quando Luigi Bezzera patenteou, em 1901, um sistema que extraiu o café de forma mais rápida e intensa, permitindo que a espuma cremosa do leite vaporizado se misturasse ao expresso com perfeição. Décadas depois, Achille Gaggia aprimorou a técnica, trazendo ao cappuccino a textura e o corpo que elevam essa bebida à categoria de arte líquida.

A história, no entanto, se permite também ao capricho da poesia: há algo de monástico na experiência de beber um cappuccino. Um silêncio interno, quase ritualístico, que suspende o tempo entre o primeiro gole e o último suspiro de espuma. É, portanto, irônico que uma bebida nascida do recolhimento e da contemplação seja hoje alvo de patrulhas sociais tão efusivas quanto o vapor de uma máquina de expresso em plena atividade.

Há poucos minutos, suspirei com aquele tipo de desconcerto que só acontece quando a realidade escorrega por entre as frestas da rotina. Estava no meio de uma manhã comum, eu — homem moderno, às vezes cético, quase sempre pragmático, e plenamente soberano no pequeno território da minha cozinha — quando dei de cara com um espectro peculiar da nossa cultura nacional: o vídeo de uma senhora da alta sociedade paulistana, dessas que desfilam entre colunas dóricas e cadeiras Luís XV, provavelmente em uma sala ensolarada de Higienópolis ou dos Jardins.

Com a entonação precisa de quem já corrigiu talheres fora de lugar e risos fora de hora, ela declarava, solenemente, que cappuccino, veja bem, só se deve tomar até as 11 da manhã. Não antes. Não depois. Como se o mundo terminasse ali, no final da espuma.

A senhora do vídeo parecia saída de um romance de época — desses que se passam entre taças de cristal e tigelas de porcelana Limoges. Ela não gritava, claro. Apenas declarava, com a gravidade de um juiz e a compostura de um bordado antigo, que cappuccino depois das 11 era um crime de paladar.

Onze da manhã. Como se o ponteiro do relógio fosse a linha que separa o bom gosto do pecado capital. Como se o sol, ao atingir certo grau de elevação no céu, azedasse o leite do cappuccino, tornando-o vulgar. Como se o sabor se submetesse, resignado, à tirania da etiqueta.

Não se trata aqui de zombar da etiqueta em si — há códigos sociais que, quando bem compreendidos, tornam a convivência mais bela e gentil. Não se pode negar que a etiqueta, em sua origem, visava justamente suavizar encontros, promover o respeito e construir pontes invisíveis entre pessoas. Quando ela é uma dança leve e bem ensaiada, a convivência se torna mais harmoniosa. O que incomoda, porém, é quando essa mesma dança se transforma em um passo de exclusão, onde quem pisa fora do compasso vira alvo de olhares desconfiados e suspiros censores.

A etiqueta do cappuccino às 11h funciona perfeitamente nas ruas estreitas de Bolonha, onde o desjejum ainda é uma cerimônia compacta. Mas transposta para os cafés de São Paulo, onde as pessoas vivem entre fones de ouvido, planilhas abertas e a pressa coreografada do metrô — essa mesma etiqueta se converte em adorno ornamental: bela em teoria, mas deslocada, quase ridícula, como um fraque usado em plena Avenida Paulista sob o sol de janeiro.

E se em São Paulo o gesto já parece estranho, o que dizer de outras geografias do Brasil? Na Recife ardente, na Salvador saturada de maresia, ou no coração do sertão cearense, onde o calor não dá tréguas nem à noite, as pessoas seguem bebendo café fumegante como quem desafia o próprio clima — uma conspiração contra a lógica térmica. Ali, o café não é obediência a um ritual estrangeiro, mas insubordinação cotidiana: prova-se fervente quando a pele já transpira, sorve-se denso quando o corpo pede alívio.

      Eu preciso comprar uma caneca dessas para quando eu for tomar capuccino depois das 11h.

Talvez resida aí a heresia brasileira: o café como insígnia de resistência, não de etiqueta. Enquanto os italianos se debatem com regras de horário, nós o bebemos como quem beija — a qualquer hora, em qualquer lugar, mesmo quando o gesto parece impossível. Porque no fundo, café para nós não é apenas bebida: é insígnia, amuleto, sacramento.

Claro, deve haver uma lógica cultural razoável, ainda que envolta em véus de tradição: na Itália, berço da bebida, o cappuccino é visto como uma bebida matinal, um café da manhã líquido e espumante. A presença do leite — volumosa, cálida e rica em gordura — o torna, aos olhos da etiqueta europeia, algo "pesado demais" para ser consumido após as primeiras horas do dia. À tarde, dizem os manuais não escritos, toma-se café puro. Expresso, seco, direto ao ponto. O leite, assim como a emoção, seria reservado apenas às horas do despertar.

Confesso que por um breve momento, quase considerei desligar a chaleira. Mas eram 11h15. E algo dentro de mim — talvez o espírito dos monges capuchinhos ou apenas o desejo legítimo de saborear um bom cappuccino — ergueu-se com mais convicção do que qualquer código de conduta herdado da aristocracia decadente. A etiqueta, afinal, tem seu charme. Mas o paladar tem sua própria liturgia — e esta, por vezes, exige uma leve transgressão.

Assim, cercado pelo silêncio cúmplice de uma manhã já ferida pelo relógio, caminhei até a cozinha como quem atende a um chamado íntimo. Lá estavam eles: dois pequenos sachets de cappuccino instantâneo da marca holandesa Moccona — resquícios elegantes de uma gentileza antiga, quase relíquia doméstica esquecida entre embalagens mais ordinárias.

Rasguei um deles com a delicadeza que se reserva ao que é raro. O aroma instantâneo subiu como um sussurro de nostalgia, doce e reconfortante. Recusei a porcelana fina, esse símbolo das manhãs ensaiadas, e escolhi, em vez disso, uma caneca de cerâmica espessa, rude e calorosa, capaz de abraçar as mãos com a ternura silenciosa de quem entende o peso das manhãs e a urgência do afeto. Era exatamente esse colo bruto e sincero que o momento requeria.

E o desejo, ali, não era educado. Nem pontual. Veio às 11h15, cruzando com elegância distraída a fronteira imaginária do bom-tom, traçada por uma senhora de voz platinada e convicções vitrificadas em cristaleiras. Ela que me perdoe, mas há vontades que não obedecem ao relógio — e há silêncios que só se preenchem com espuma quente.

O tempo é, como Montaigne bem vislumbrou, esse mestre elástico e imprevisível, um contrato invisível que o corpo e a alma renovam a cada instante. Ele não se dobra às engrenagens dos relógios, tampouco às cobranças sociais. É uma dança íntima entre o desejo e a consciência, onde às vezes o espírito nos chama a quebrar regras — não por frivolidade, mas por necessidade profunda.

Aquilo não era rebeldia — era lucidez. A vontade de saborear o que oferece prazer — um gesto simples, mas carregado da nobreza silenciosa que há em atender a um desejo legítimo. Não por capricho, mas porque o corpo o pediu com a firmeza de uma necessidade íntima, quase espiritual. O tempo, afinal, é um contrato flexível entre a alma e o desejo, entre o instinto e a consciência. Já a etiqueta — essa sim — tende a ser inflexível, muitas vezes mais próxima de uma sentença do que de uma sugestão. E é aí, justamente aí, que o problema começa: quando os códigos se esquecem de quem os vive.

Para compreender a alma do cappuccino, é preciso voltar não apenas à sua receita, mas aos salões de época em que o gesto de misturar café ao leite já anunciava um certo refinamento matinal. Embora o cappuccino moderno — com sua espuma espessa e equilíbrio milimétrico — só tenha se consolidado na Itália do início do século XX, a prática de temperar o amargor do café com a doçura e o calor do leite remonta à Europa do século XVII, onde as manhãs começavam frias e o café ainda era um ritual exótico, quase alquímico.

Em Viena, cidade de candelabros, cafés densos e casacos longos, surgiu o Kapuziner — uma bebida à base de café forte misturado a creme de leite e, às vezes, açúcar ou especiarias. Servido em pequenas xícaras de porcelana, o Kapuziner era denso, aromático e encorpado como uma conversa de inverno. Seu nome, assim como o cappuccino, faz alusão à coloração das vestes dos monges capuchinhos — aquele marrom claro aveludado que também define a cor da bebida perfeitamente equilibrada entre luz e sombra.

Há quem diga que o cappuccino herdou mais do que o nome dos claustros: herdou também um certo espírito contemplativo, quase litúrgico, que ainda hoje persiste nos cafés silenciosos da manhã.

E há ainda Voltaire — o filósofo das luzes, dos salões parisienses e das ideias afiadas — que, segundo registros curiosos de biógrafos, consumia entre 40 e 50 xícaras diárias de uma mistura robusta de café com leite e chocolate, numa alquimia líquida que talvez explicasse seu ritmo mental quase sobrenatural. Evelyn Beatrice Hall, em The Friends of Voltaire, não hesita em registrá-lo assim: como alguém que escrevia ideias incendiárias embalado por goles profundos de uma bebida escura e densa, feita para mentes que não descansam.

O que ele teria dito, se vivo fosse, ao descobrir que seu gosto matutino por algo cremoso e estimulante agora seria passível de censura por conta da hora em que é servido? Provavelmente sorriria com o canto dos olhos e pediria mais uma xícara — às onze e quinze, só por prazer e provocação.

Aliás, se algum personagem literário soube capturar a essência estética, quase voluptuosa, do cappuccino — essa bebida híbrida que transcende o simples café para se tornar uma experiência tátil, olfativa, visual, essa poção ambígua entre o sagrado e o profano — foi Jean des Esseintes, o anti-herói decadente e solitário de À Rebours (“Às Avessas”), de Joris-Karl Huysmans. Des Esseintes, com sua aversão calculada à banalidade do cotidiano e seu mergulho em prazeres extremos e cuidadosamente orquestrados, encarnava a própria ideia de um hedonismo cerebral e exclusivo.

Jean des Esseintes não era apenas um personagem — era o próprio arquétipo do esteta melancólico, imerso em uma mansão que mais parecia um mausoléu dos sentidos, onde cada objeto, cada sabor, cada gesto, era meticulosamente escolhido para provocar, encantar e desafiar o comum. Em “À Rebours”, Joris-Karl Huysmans pintou um retrato da decadência fina, onde o prazer torna-se uma arte cruel e requintada, e a rotina, um inimigo a ser combatido com extravagâncias sensoriais. Para Des Esseintes, a ordem do relógio e da etiqueta era uma prisão de onde escapava com um sorriso de desdém, bebendo seus líquidos preciosos como quem desafia o próprio tempo.

Para ele, o café não seria mera rotina ou hábito social; seria um ritual de distinção, um deleite para os sentidos, uma fuga da mesmice mundana. Como um alquimista dos sabores e das sensações, Des Esseintes desprezaria qualquer etiqueta que regulasse o horário de um gole, rindo com desdém da tirania do relógio. Afinal, para esse esteta melancólico, o verdadeiro luxo reside exatamente na liberdade de ignorar as expectativas alheias — e no prazer sublime de desfrutar aquilo que a alma deseja, no momento em que o corpo e o espírito mandam, sem se importar com convenções ou com os relógios da alta sociedade.

É a esta liberdade, esta audácia sensual, que o café deve seu encanto eterno — não apenas uma bebida, mas um manifesto líquido de rebeldia elegíaca, servida em taças de porcelana ou canecas rústicas, sempre com a mesma promessa: o deleite irrestrito do instante presente.

Mas, para mim, o verdadeiro espírito do cappuccino — sobretudo quando bebido fora dos rígidos horários que a etiqueta arcaica do século passado tenta impor — é muito mais profundo e libertador. Ele sussurra um segredo atemporal, quase filosófico: parte do êxito da vida está em saborear o que realmente se ama, deixando que o alimento lute por você, silencioso e poderoso, dentro do corpo e da alma.

O cappuccino, então, deixa de ser apenas uma bebida; torna-se um gesto de rebeldia doce e silenciosa contra o relógio, um instante de aconchego em meio ao tumulto do cotidiano. A espuma delicada, que repousa sobre o expresso como uma nuvem aveludada, é a carícia que suaviza o amargor dos dias, a promessa de um refúgio efêmero onde o tempo pode se dobrar ao prazer.

É um convite à indulgência genuína — sem desculpas, sem culpa, sem as correntes invisíveis de etiquetas embalsamadas e códigos que parecem querer congelar a vida em formalismos sem alma. Porque o cappuccino, no fundo, é isso: o abraço quente da liberdade, servido numa xícara, a celebração líquida do instante vivido com leveza, sabor e, sobretudo, autenticidade.

Em tempos de redes sociais, onde o mais singelo dos prazeres pode ser lançado às tormentas impiedosas do julgamento coletivo, tomar um cappuccino fora do horário prescrito tornou-se quase um ato de resistência estética — uma dança delicada sobre águas revoltas, onde o sabor e a vontade tentam escapar da correnteza das normas invisíveis. Que a senhora paulista, trancada em sua torre de porcelana e rodeada por regras herdadas dos manuais imaculados da Belle Époque, permaneça ali, com seu relógio e sua rigidez.

Beber um cappuccino fora do horário “permitido” é um pequeno ato revolucionário, uma declaração silenciosa de que o prazer pessoal vale mais do que o relógio implacável ou os olhares julgadores. É um gesto de coragem contra o puritanismo do paladar, uma apoteose discreta da liberdade que escolhemos ao transformar o banal em sublime. Cada gole torna-se um manifesto contra o tédio das regras que congelam a vida, uma celebração do instante que só a alma reconhece como sagrado.

Nós, os hereges do paladar, que tomam capuccino fora das normas da etiqueta, continuaremos com nossas xícaras erguidas, navegando entre o clássico e o improvisado, entre o expresso intenso e o modesto instantâneo, entre o ritual solene e o prazer espontâneo — celebrando o direito sagrado de beber o que se ama, quando se ama.

E que o cappuccino nos encontre, como sempre, na hora certa — a nossa. Que suas nuvens de espuma sejam o nosso céu particular, onde o tempo se dissolve e só resta o prazer sereno de um instante perfeito, eternizado em cada gole. E que o cappuccino nos encontre, como sempre, na hora certa — a nossa.

 

MANUAL PARA PEQUENA REBELDIA NA XÍCARA

E porque toda contemplação digna do nome que se faça sobre o cappuccino — essa poção morna entre o devaneio e o vício — exige, no final, o gesto concreto da xícara entre as mãos, deixo ao leitor duas promessas. Duas possibilidades, como amores de épocas distintas, cada qual com seu ritmo e capricho.

A primeira é um capuccino old-fashioned — expressão que, na melhor tradição anglófona, designa aquilo que, ainda que fora de moda, carrega em si um charme obstinado, nostálgico e deliciosamente resistente ao tempo. Uma bebida feita sob medida, densa como veludo envelhecido, teatral como um romance do século XIX, daqueles que não se lê, mas se atravessa — colherada após colherada — exigindo uma certa entrega ao excesso, quase uma liturgia em si. Há algo de operático em sua espuma, algo que sussurra decadência e prazer em igual medida.

A segunda é sua antítese prática e algo desdenhosa: uma mistura simples, imediata, para os dias em que o desejo se recusa a vestir coletes ou sapatos de verniz. Aqui, basta esquentar a água — e eis que a fumaça se levanta como um espírito antigo, convocado não por rituais, mas por pura urgência. Um café que não pede licença, tampouco poesia.

Entre ambos, o verdadeiro luxo: escolher. Rende-se à pompa e circunstância do prazer demorado — esse antigo flerte com o excesso — ou bebe-se, sem cerimônia, o atalho apressado da vontade. Há espaço para ambos, como há para a ópera e o sussurro, o vinho envelhecido e o trago furtivo. 

MISTURA PRA CAPUCCINO CASEIRO SIMPLINHO

50g de café solúvel de boa qualidade

250g de leite em pó

3 colheres de sopa de chocolate em pó (não achocolatado)

1 colher de chá de bicarbonato de sódio (é o que dá a consistência cremosa)

1 colher de chá de canela em pó

250g de açúcar ou adoçante a gosto

Preparo: Misture todos os ingredientes e guarde em um pote bem fechado. Para preparar a bebida, use duas colheres de sobremesa por xícara. Para um cappuccino mais cremoso, prepare-o com leite, ao invés de apenas água.

Cappuccino Caseiro Obsceno do barão de Gourmandise

(Serve 1 caneca generosa)

Ingredientes

1 dose de café expresso bem forte (ou 60 ml de café coado concentrado)

150 ml de leite integral

1 colher (chá) de açúcar mascavo (opcional)

1 colher (sopa) de chocolate em pó 50% cacau (ou cacau puro para mais intensidade)

1 pitada de canela ou noz-moscada (opcional)

1 colher (sopa) de creme de leite fresco (opcional — para cremosidade pecaminosa)

1 punhado generoso de gotas de chocolate meio amargo (ou ao leite, se quiser algo mais doce)

Chantilly ou espuma extra por cima (opcional, mas... por que não?)

Raspas de chocolate ou cacau em pó para finalizar

Preparo: Prepare o café. Faça uma dose de expresso bem forte. Se não tiver máquina, use café coado mais concentrado (coloque mais pó para menos água).

Aqueça o leite. Em uma panelinha, aqueça o leite com o chocolate em pó, o açúcar (se usar) e as especiarias. Mexa bem até incorporar. Quando estiver bem quente (sem ferver), adicione o creme de leite, mexa mais uma vez e desligue o fogo.

Espume o leite. Se tiver mixer, espumador ou até um batedor manual, use para criar uma espuma rica e espessa.

Monte o capuccino. Em uma caneca larga, coloque o café no fundo. Adicione as gotas de chocolate diretamente sobre o café quente — elas começarão a derreter lentamente. Despeje o leite cremoso e quente por cima, finalizando com a espuma.

Finalização obscena. Cubra com chantilly ou mais espuma, salpique raspas de chocolate ou cacau em pó e, se quiser, finalize com um fio de chocolate derretido ou calda de chocolate dessas pra sorvete.

 Notas finais (com decadência)

Para torná-lo ainda mais "obsceno", use chocolate belga 70% picado em vez de gotas de chocolate.

Uma pitada de sal no leite acentua o sabor do chocolate.

Um toque de licor (como Amarula, Frangelico ou Baileys) transforma isso num dessert-in-a-cup. 

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

17 DE AGOSTO, DIA DO PÃO DE QUEIJO: DA TRADIÇÃO MINEIRA À VITRINE GLOBAL

  

No fundo da tigela, as mãos sabem mais do que a boca jamais diria: medem o polvilho, sentem a umidade do queijo, pressentem o instante em que a massa desperta, como se tivesse alma própria. E nesse silêncio que antecede o forno, já nasce a promessa de um afeto partilhado.

No calor da cozinha, o forno respira antigo, deixando escapar um sopro que parece coração oculto, latejando em brasas invisíveis. O perfume que se ergue não é apenas queijo, não é apenas polvilho: é herança que atravessa séculos, a seiva da terra em brasa condensada em pequenas luas douradas, cada uma prometendo eternidade no instante de ser devorada.

Pra mim, não se pode falar do pão de queijo sem falar de desejo. Não um desejo banal, mas aquele que tangencia o sagrado, que nos possui como uma febre secreta e nos arrasta em silêncio. Minas Gerais o engendrou nas cozinhas coloniais do século XVIII, quando mulheres, guardiãs de lares erguidos sobre serras e veios de ouro, transformaram restos endurecidos de queijo, ovos frescos e o polvilho extraído da mandioca em algo vivo, latejante. Foi alquimia da necessidade: nada se desperdiçava, tudo se transfigurava. No calor do forno de barro, nasceu o sortilégio — pequenas esferas que se inflavam suavemente, firmes por fora, macias e luminosas por dentro. Um sopro de eternidade em forma de alimento, carregando consigo não apenas sabor, mas a memória quente de um lar, de uma pertença que atravessa o tempo.

Mas o feitiço não permaneceu preso às montanhas de Minas. Aos poucos, rompeu fronteiras e deslizou pelos sertões de Goiás e pelo cerrado do Centro-Oeste, acariciou as praias do Nordeste, fez-se presente nas mesas cariocas, percorreu os arrabaldes e avenidas de São Paulo, atravessou os rios amazônicos e o sul frio e verdejante, até se aninhar em cada canto do país. Hoje, viaja para além do Atlântico, brilhando em vitrines estrangeiras, silencioso mensageiro de uma identidade construída com afeto, memória e sabor. O pão de queijo, assim, deixou de ser apenas mineiro: tornou-se brasileiro, quase universal.

Ele é, ao mesmo tempo, ritual e metáfora: o ouro verdadeiro de Minas não saiu das minas profundas, mas dos fornos domésticos, onde o desejo tomou forma de alimento. Comer um pão de queijo é, portanto, um gesto de comunhão: mordemos o passado, mas provamos também a eternidade que se renova a cada fornada.

Ao tocá-lo com os dedos, quando ainda quente, sentimos o mesmo que se sente ao roçar a pele de alguém amado: a tensão da crosta, a maciez escondida no interior. É alimento que seduz, que prende, que nos olha de volta quando mordemos.

E o 17 de agosto passou a ser consagrado ao pão de queijo — como se fosse possível aprisionar em um único dia o feitiço de séculos de tradição. A origem da data é curiosa: em 2007, no palco iluminado do programa Mais Você, Ana Maria Braga encerrou a final do concurso “O Melhor Pão de Queijo do Brasil” com uma proposta que soou, à primeira vista, televisiva e passageira. Mas a sugestão de transformar aquele dia em marco comemorativo ultrapassou o instante do espetáculo: encontrou ressonância em algo maior, no sentimento de pertencimento coletivo que o pão de queijo já carregava em cada mesa mineira e brasileira. O que parecia efêmero tornou-se rito, porque o pão de queijo não é apenas alimento, é memória viva, raiz que atravessa gerações. Desde então, padarias, quitandeiras e vendedores anônimos celebram a data, reafirmando no calendário aquilo que o coração já sabia: o pão de queijo é um símbolo de afeto e identidade nacional.

A verdade, porém, é que o pão de queijo não precisa de decretos nem efemérides.  Ele é eterno, porque vive em cada cozinha que se acende ao amanhecer, em cada tabuleiro que sai do forno como oferenda de calor e de carne transfigurada em massa.

Há nele uma sensualidade discreta: a fumaça que se ergue como véu, o estalo da casca ao romper-se nos lábios, a lenta revelação da sua umidade cremosa. Quem come não se satisfaz — deseja mais, como se buscasse, naquela pequena esfera dourada, a lembrança de uma outra fome, mais profunda e ancestral.

Celebrar o pão de queijo é celebrar o mistério do tempo suspenso. É ser envolvido pela história ao mesmo tempo em que a saboreia. Como se cada fornada fosse um rito secreto, um chamado que ecoa de séculos passados até pousar em nossas manhãs de hoje.

Cada mordida é uma eternidade em miniatura: o instante em que corpo, memória e desejo se entrelaçam suavemente. Nele, não há pressa — apenas o aconchego de um calor que acolhe, de um sabor que abraça, de uma lembrança que nunca se desfaz.

Celebrar o pão de queijo é, enfim, entregar-se a um sortilégio. Ele não é apenas lembrança, nem apenas desejo: é o instante em que a eternidade se materializa em nossas mãos. O dourado que se rompe sob os dentes anuncia não um fim, mas uma promessa — como se cada fornada trouxesse consigo a renovação de um pacto secreto entre gerações.

E assim, o pão de queijo se afirma não apenas como alimento, mas como epifania cotidiana. Um gesto simples que, em sua singeleza, guarda o esplendor daquilo que resiste ao tempo — um feitiço suave, eterno, que continua a nos possuir sem violência, apenas com a doce entrega do sabor.

E quando pensamos que tudo já foi dito, ele nos devolve ao princípio: à mesa, ao afeto, ao calor do forno. O pão de queijo não se explica, se repete. Não se encerra, se reinicia. É círculo, rito, retorno.

E por isso, ao compartilhar a receita que eu uso, não o faço como quem entrega um manual, mas como quem abre um relicário. Que cada ingrediente seja lido como palavra de um encantamento antigo, e cada gesto, uma invocação do que permanece. Pois só assim compreenderemos: não é apenas o pão de queijo que nos alimenta — somos nós que, ao mordê-lo, entramos em sua eternidade.

Pão de Queijo 

Ingredientes:

250 g de polvilho azedo

250 g de polvilho doce

75 ml de leite

75 ml de água

75 ml de óleo

10 g de sal

15 g de manteiga

200 g de queijo minas curado (ralado)

3 ovos pequenos (ou 2 grandes, dependendo do tamanho)

Preparo: Em uma panela, aqueça juntos o leite, a água e o óleo até ferver. Em uma tigela, misture os dois tipos de polvilho e o sal. Escalde essa mistura de polvilho com o líquido quente, mexendo até obter uma massa úmida e homogênea. Incorpore a manteiga e o queijo, misturando bem. Adicione os ovos, um a um, sovando até a massa ficar lisa e elástica. Com as maoes levemente untadas com óleo, modele pequenas bolinhas e disponha em assadeira. Asse em forno preaquecido a 180–200 ºC por aproximadamente 20 a 23 minutos, até que estejam dourados e levemente crocantes por fora.

 

sábado, 16 de agosto de 2025

“Os Filhos dos Dias” o Destino de Wandinha Addams

  

Foi Roland Barthes, em A Câmara Clara (1980, p.89), quem disse que “a fotografia é esse delírio: que as coisas passaram e que, ao mesmo tempo, foram capturadas para sempre”. Enquanto o mundo girava no eixo trincado de tragédias e afundado em manchetes eu, para fugir da loucura do mundo, via amenidades no Instagram. Foi algo mais banal que me deteve.

No Instagram, entre as atualizações e os absurdos do dia, uma imagem cintilou com a força silenciosa dos encantamentos: um casal posando sob uma gigantesca letra M, emoldurado por um cenário gótico e improvável. O mundo podia ruir; eu precisava olhar aquilo de novo.

Uma imagem melancólica, quase bela demais para o caos digital — uma cena polida, envolta em roxo e sombras, capturada num desses eventos da Netflix, tão bem roteirizados quanto os próprios personagens que celebram. Era um modelo francês — de olhar oblíquo e rosto talhado com precisão —, desses que parecem ter sido inventados num espelho veneziano em vez de paridos por uma mãe real. Ele não estava só.

Fotografados sob um arco gótico rendado de ferro forjado, como os últimos convidados de um baile espectral que só começava com o cair da noite, o casal posa diante da monumental letra M — púrpura como um hematoma antigo, imensa como um segredo não dito. O modelo, de silhueta esculpida, veste o preto com a mesma autoridade de quem conhece o silêncio das catedrais. Ao seu lado, o namorado, ligeiramente desalinhado — como quem veio de outro mundo, ou apenas do fim de um expediente — apoia-se nele como quem reconhece sua própria salvação. O rio Sena corre ao fundo como um presságio, e acima deles ao M gigante, que representava a inscrição em francês — Mercredi, nome de meio da semana e da menina que inspirou a série —, iluminado com uma luz oblíqua entre o gótico e o pop. Era o tipo de imagem que eu teria emoldurado na memória, não por vaidade, mas por algum tipo de encantamento inexplicável, como se pressentisse que aquele cenário, por um breve instante, me colocasse dentro de uma canção antiga.

O grande M em púrpura — mais próximo da cor de um segredo mal curado do que de qualquer festa — pairava sobre a entrada como um presságio elegante. Mercredi, identificava. E bastou ver essa palavra, grafada em francês, para que algo dentro de mim se partisse com delicadeza: como a película fina de um crème brûlée ao toque da colher. Mercredi. Quarta-feira. Foi esse nome que me suspendeu. Não foram as manchetes que me fizeram parar — mas sim o nome da filha dos Addams, impresso em francês e aceso como uma lamparina em corredor escuro.


É engraçado como a elegância da língua francesa pode escancarar significados que estavam há muito escondidos no cotidiano. Nessas horas, percebo como saber línguas é, também, herdar as camadas invisíveis das palavras. Porque o nome da Wandinha não foi dado à toa — eu já sabia, que a filha de Morticia e Gomez Addams se chamava Wednesday (Quarta-feira) no original, e que no português ela se tornara Wandinha, talvez numa tentativa de suavizar a escuridão que ganhara como herança de uma cantiga inglesa do século XIX, que mapeava o destino das crianças de acordo com o dia em que nasceram.

Recordei então da antiga cantiga inglesa, daquelas que parecem sussurradas por avós invisíveis entre as frestas de um berço vitoriano. Li-a ainda criança, creio — ou talvez ela tenha me lido primeiro. Chamava-se Monday’s Child, uma rima tradicional que remonta ao século XIX, publicada pela primeira vez em 1838 no livro Solomon Grundy, atribuído ao antiquário James Orchard Halliwell. Tornou-se, com o tempo, uma daquelas melodias de ninar que colam na memória como açúcar mascavo nos dedos.

Em seus versos, cada dia da semana molda o destino das crianças, como se o relógio cósmico temperasse almas com o rigor de um velho cozinheiro do tempo. Ainda hoje, ao repeti-la mentalmente, sinto-a pairar no ar como o cheiro de uma receita esquecida no forno. Um oráculo disfarçado de rima, que diz assim na sua versão mais conhecida:

Monday’s child is fair of face,

Tuesday’s child is full of grace,

Wednesday’s child is full of woe,

Thursday’s child has far to go,

Friday’s child is loving and giving,

Saturday’s child works hard for a living,

And the child that is born on the Sabbath* day

Is bonny and blithe and good and gay.

Poesia de berço, mas também sentença. Sete versos para sete dias. Uma moldura para vidas inteiras.

A criança de segunda é bela de rosto — talvez um encanto fácil, um presságio de espelhos benevolentes. A de terça, cheia de graça — dançarina invisível entre as expectativas sociais. A de quarta-feira — e aqui, Wandinha ganha seu nome — está cheia de aflição, de infortúnio, de angústia. Não tristeza dramática, mas aquela névoa constante que cobre as manhãs de outono. A de quinta-feira, meu dia, “has far to go” — tem muito a percorrer, o que soa como esperança e fadiga ao mesmo tempo. Sexta é puro afeto, sendo amorosa e generosa; Sábado, trabalha duro pra viver. E o Domingo, ah, o domingo… reservado aos afortunados: bons, alegres, sorridentes como se fossem feitos de luz solar e risos em porcelana.

Ao reler esses versos, percebi como as palavras agem como sabores antigos: às vezes doces, às vezes difíceis de tragar. Há algo na ideia de que nosso nascimento num dia comum da semana nos molda, como uma colher que revolve lentamente o fundo de uma panela esquecida no fogo.

Wandinha, ou melhor, Wednesday, ou ainda Mercredi, carrega a maldição da quarta-feira — não como um castigo, mas como um traço essencial de seu tempero: aquele amargor do chocolate 90%, que poucos compreendem, mas muitos respeitam. O ‘woe’ não é mero sofrimento; é profundidade. É o talento de ver a podridão por trás da beleza, e ainda assim seguir em frente, de tranças firmes e olhos sem piscadelas.

E eu, nascido numa quinta-feira, com “far to go”, tenho me sentido às vezes como um trem em trilhos incertos, partindo de lugar algum e sem estação final clara. Há conforto nisso também — o movimento, a busca, o inacabado.

E eu, moldado pelo nascimento numa quinta-feira, com esse “far to go” que sussurra como um vento que nunca cessa, tenho vivido como quem viaja de vagão em vagão, sem mapa nem pressa. Não é errância, é fermentação — há uma leveza em estar a caminho, como massa que cresce no escuro, como caldo que apura com o tempo. Não sei de onde vim exatamente, nem para onde vou com precisão, mas sigo — ora cheio de fervor, ora em silêncio — confiando que há beleza no inacabado, que há verdade no provisório. Ser de quinta é carregar no peito uma bússola sem ponteiro, mas com apetite. É aceitar que o longe não é castigo, mas vocação — uma travessia movida mais pelo desejo do que pelo destino. E assim sigo: não perdido, mas profundamente entregue à arte de ir — com passos inseguros, mas olhos abertos.

Assim, entre memórias de poemas de infância e devaneios, que resolvi ofertar minha quinta-feira ao silêncio. Um gesto simples, mas impregnado de intenção — como quem dobra um guardanapo com delicadeza antes de partir.

Quis, com isso, render uma espécie de homenagem íntima às crianças de todos os dias, mas sobretudo às de quarta-feira. Porque são elas que cozinham com a sombra sentada à mesa, que sabem temperar com silêncios longos, e que olham para o roxo do ube (inhame roxo) ou de uma batata-doce roxa como quem lê um presságio, não apenas uma cor.

Sob aquela inscrição — Mercredi, destacado em roxo pulgente e sobre o ferro forjado — era impossível não pensar na Nightshade Society, aquela irmandade clandestina que se esconde entre paredes de pedra e manuscritos, no subsolo da fictícia Nevermore.  

Para quem não conhece o mundo da série da Wandinha, a Nightshade Society (Sociedade das Beladona, em tradução livre) é um grupo seleto e secreto de estudantes com poderes ou dons especiais, que se reúnem às escondidas nos subterrâneos da escola. Sua história remonta a fundadores da Nevermore Academy e tem laços com a luta por justiça para os "párias" — seres com dons sobrenaturais que são marginalizados pela sociedade "normie" (isto é, normal, sem poderes). Como a flor que lhe dá nome — bela, letal, e incompreendida — esse grupo secreto floresce na sombra, cultivando saberes antigos com a precisão de um feitiço bem medido. Herdeiros de dons estranhos e sensibilidades à margem, eles resistem ao esquecimento por meio de rituais que misturam magia, memória e sabor.

Repleta de mentes dotadas com dons estranhos e almas desalinhadas com o mundo, essa sociedade pulsa com o mesmo ritmo das palavras de Edgard Allan Poe: uma elegância mórbida, uma rebeldia que se oculta sob o verniz da tradição. E se a série nos oferece essa imagem como um espelho da alma de Wandinha, talvez devêssemos considerar que cozinhar, também, é um tipo de rito secreto. Há quem entre na cozinha para seguir receitas; outros, para fugir do mundo. Mas há ainda os que adentram o espaço como quem ingressa numa sociedade discreta e ancestral, onde cada ingrediente guarda um segredo, cada preparo, ativa a memória e gera um encantamento, e a chama ou o forno consagra tudo como um altar.

Então, como quem sussurra um feitiço antigo, fui murmurando minha busca — não por um doce fácil, desses que se acomodam em vitrines como sorrisos prontos, mas por algo que exigisse paciência e camadas, como um segredo bem guardado. Por isso, não foi acaso — mas quase destino — que a receita escolhida para encerrar este percurso fosse justamente a que repousa, com imponência silenciosa, na capa do The Official Wednesday Cookbook. Não é uma escolha decorativa: é um presságio medido.

A imagem que adorna a capa é, na verdade, um convite — uma armadilha elegante — para adentrar o universo de Wandinha pela boca, com o assombro sereno de quem sabe que, com essa receita, a própria Wandinha servisse, ou se deleitasse numa noite chuvosa, quando os corvos se aninham no peitoril das janelas. Um doce com nome de poema, cores de veneno e gosto de sonho: o Nightshade Society Poe Parfait (cuja receita vai estar no final do texto).

O Nightshade Society Poe Parfait — com suas camadas de roxos noturnos e negros abissais — ergue-se como páginas comestíveis de um diário gótico esperando que cada colher fosse uma escavação entre lembranças e presságios. Ali está, envolto em neblina de mistério, coroado por migalhas de biscoito que lembram terra úmida, selando um segredo em textura e cor. Sendo mais que sobremesa; é retrato.

E assim, entre sombras e colheradas, encerra-se essa divagação. Não com um ponto final, mas com reticências que se dissolvem no céu da boca — como se o doce deixasse rastros invisíveis nos corredores do paladar e nas lembranças que preferem a penumbra. Talvez, ao preparar esta receita, você também ouça o eco distante de passos nos subterrâneos de Nevermore, ou perceba, por um breve instante, que o mundo dos párias e o nosso não são tão distintos assim. Porque alguns sabores — como certos segredos — só se revelam a quem está disposto a provar a escuridão com calma.

E se comecei este percurso hipnotizada pelo roxo profundo de grande M — na cor de veneno e de violeta seca —, encerro não com respostas, mas com a doçura ambígua de um pressentimento. Porque, como o próprio nome "Mercredi" sussurra ao ser pronunciado, há uma tristeza antiga costurada na identidade daqueles que nascem entre sombras. Wandinha não escolheu o luto: ela o incorporou. Assim também é esta sobremesa — não feita para agradar multidões, mas para quem encontra beleza no que é denso, em camadas, em silêncio. Talvez certas receitas não alimentam o corpo, mas a parte secreta da alma que observa o mundo de canto, com olhos de bruxa e paladar de poeta. O Nightshade Society Poe Parfait não fecha este texto — ele o continua, como um sussurro que pede outra colher, outra noite, outro segredo.

E eu, que nasci na quinta, sigo. Porque ainda há muito por onde ir.

 Barão de Gourmandise

 *Obs.: Na Inglaterra daquele tempo, o Sabbath day, que tradicionalmente é o sábado no judaísmo, passou a ser observado como o domingo por muitos cristãos, especialmente após a Reforma Protestante e a ascensão do puritanismo. Essa mudança foi influenciada pela crença de que a ressurreição de Jesus ocorreu no domingo, o primeiro dia da semana.

 REFERÊNCIA

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Paulo Neves. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.89, 1980.

 NIGHTSHADE SOCIETY POE PARFAIT

Ingredientes:

Para o Crème Pâtissière de Ube:

3 colheres de sopa de amido de milho

⅔ xícara de açúcar

¼ colher de chá de sal

4 gemas de ovo grandes

1½ xícaras de leite integral

½ xícara de creme de leite fresco

2 colheres de sopa de manteiga sem sal

½ colher de chá de extrato de ube (é uma essência de inhame roxo peculiar, se não achar, use um corante roxo e coloque a essência que desejar)

½ colher de chá de baunilha

Para o Crumble de Cacau Preto:

½ xícara de farinha de trigo

¼ xícara de açúcar mascavo claro

2 colheres de sopa de cacau preto em pó

¼ xícara de sementes de gergelim preto

¼ colher de chá de sal

1½ colher de chá de pasta de gergelim preto

4 colheres de sopa de manteiga gelada, em cubos

Para o Chantilly de Ube:

½ xícara de creme de leite fresco

2 colheres de sopa de açúcar de confeiteiro

2 a 3 gotas de extrato de ube

Sementes de gergelim preto para decorar (ou use sementes de papoula, para dar ainda mais sentido)

Modo de Preparo: Prepare o crème pâtissière: Misture todos os ingredientes exceto a manteiga, ube e baunilha. Cozinhe até engrossar, mexendo sempre. Fora do fogo, incorpore a manteiga e os extratos. Refrigere com filme em contato por pelo menos 4 horas.

Crumble: Misture os ingredientes secos e incorpore a manteiga até formar uma farofa. Asse em forno a 175 °C por 15 minutos ou até dourar levemente. Esfrie.

Chantilly: Bata o creme com açúcar e extrato de ube até formar picos firmes.

Montagem: Em taças transparentes, alterne camadas de creme, crumble e chantilly. Finalize com sementes de gergelim e sirva gelado — ou morno, se preferir o lamento quente.

Obs.: aos curiosos, antes que me inundem com perguntas sobre o gosto e o cheio do extrato de ube, já adianto que ele faz a diferença. O extrato de ube é bastante usado para dar cor e sabor em bolos, sorvetes, doces e pães nas receitas Filipinas, de onde ele é originário, trazendo aquele toque exótico e marcante. Mas, talvez não seja difícil de encontrar na internet e nas boas casas de confeitaria.

O aroma do extrato de ube é como um sussurro da terra, doce e terroso, que dança delicadamente no ar — uma lembrança suave de raízes profundas que carregam a quietude da floresta úmida. Há uma doçura natural, quase infantil, que evoca memórias de sobremesas caseiras feitas em tardes preguiçosas. Mas não é uma doçura simples; é complexa, com nuances quase de noz e uma leve cremosidade que lembra o toque de um sonho longínquo.

É o cheiro da terra depois da chuva, misturado a uma brisa leve de flores que se recusam a revelar seu nome, e a um toque sutil, quase etéreo, que lembra um beijo de amêndoas doces sem ostentação. Este aroma envolve, conforta e convida, sem jamais impor — é a promessa de um sabor que é ao mesmo tempo familiar e exótico, discreto e inesquecível. Então, se não conseguir, use as quantidades que a receita pede por um extrato de sua preferência, só não esqueça que precisará usar um corante roxo para dar a cor que a sobremesa pede. 

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

RITA LEE E SEU MACARRÃO COM LINGUIÇA E PIMENTÃO: ENTRE A MÚSICA E O PRATO

 

Estava na hora de pensar no que preparar para o almoço, esse ritual sagrado e cotidiano que, para alguns, flui naturalmente, mas que para mim sempre soa como um desafio — e não um pequeno. Há em mim uma inquietação quase infantil diante da repetição; enjoo fácil da mesmice dos temperos, dos pratos reciclados do dia anterior, da cozinha feita apenas por obrigação. Eu preciso, confesso, de um pouco de encantamento no prato. Preciso de algo novo, algo que “alegre meu estômago” — sim, é isso. Comer, para mim, é sempre uma conversa entre o que sinto e o que desejo.



Foi nessa busca silenciosa por inspiração — com a mente leve, quase vazia, e o coração pulsando de vontades — que Rita Lee começou a sussurrar baixinho nos meus fones de ouvido. Meu Doce Vampiro. A melodia, tão íntima, sempre me arranca um sorriso oblíquo, desses que desarmam, como se eu não soubesse o motivo exato. Mas, no fundo, eu sei: é a lembrança de um fascínio antigo, quase secreto, pelos vampiros — criaturas sombrias e sedutoras que, ainda na infância, me encontraram nas páginas originais de Drácula, de Bram Stoker, lidas em inglês, com a pureza e o assombro de uma descoberta inaugural. Mais tarde, as crônicas vampíricas de Anne Rice se apoderaram da minha imaginação, enredando-me em tramas tão sedutoras que me inspiraram a escrever sobre esse universo. Textos que, certa vez, enviei à própria autora (confira aqui  AQUI e AQUI). Para minha surpresa — e deleite — ela gostou tanto que publicou um deles em sua página no Facebook.

Anos depois, presenteou-me com uma homenagem singela: deu meu segundo nome a um de seus personagens — Reuben (sem o “s” final do meu segundo nome, Reubens). Não era um dos sedutores vampiros que tanto amo, mas um lobisomem. Confesso que senti um leve desapontamento, como quem recebe um beijo no lugar de uma mordida prometida. Ainda assim, o gesto guardou-se em mim com carinho intacto, profundo e constante.

E toda vez que ouço Rita Lee cantar Meu Doce Vampiro, o sorriso retorna — discreto, como quem prova um segredo guardado no fundo da boca. Nesse encontro entre literatura, música e memória, cada nota se acende como uma chama viva, acalentando o fogo que alimenta tanto a cozinha quanto o coração.

A voz de Rita Lee — irreverente e encantada, como uma taça de vinho erguida à meia-noite — atravessou a cozinha como um feixe de sol inesperado, dourando as paredes e os instantes. Mas junto à luz veio também uma saudade diferente: não aquela que oprime o peito, mas a que se derrama quente, como um caldo lento, sobre a memória. Desde que Rita partiu deste mundo, sua música tornou-se mais do que melodia; é presença invisível, perfume que insiste em ficar no ar. Rainha do rock brasileiro, ela segue viva no eco de cada acorde — fogo, memória e vida latejando — como se, ao cantar, ainda mordesse delicadamente a eternidade.

Lembrei que, ao longo da vida, Rita Lee foi muitas: musa psicodélica, garota transgressora, depois mãe, amante dos bichos, e, por fim, mulher que se fez vegana, cuidadosa ao pensar o mundo e o futuro. Mas nem sempre foi assim. No início, Rita era tão humana quanto nós — com fraquezas, vícios e prazeres (que devia incluir os da mesa). Às vezes me pergunto se, naquela juventude elétrica, ela também se rendia a um prato fumegante de macarrão, desses que têm o gosto simples e festivo das cozinhas populares, e que abraçam o estômago com a mesma ternura ardente com que uma boa canção envolve a alma.

Se ela comia macarrão com linguiça e pimentão? Quem sabe. Mas ela fez até música sobre isso (ouça no final da postagem). Porque Rita sabia, como poucos, que o sabor também é uma forma de revolução. E é possível imaginar Rita na cozinha, com esse dom raro de transformar o trivial em feitiço, como quem joga uma pitada de anarquia na frigideira e serve afeto em forma de prato. Talvez, ela entendesse que cozinha também é palco — onde o fogo é dramaturgo e o aroma, trilha sonora.

E se não cantou literalmente sobre comida, cantou sobre entrega, sobre vertigem, sobre aquele momento em que os sentidos se rendem ao prazer: "Me aqueça, me vira de ponta-cabeça..." — e de algum modo, não é isso que a comida boa faz? Ela nos vira do avesso e depois nos acolhe. Era isso que eu queria: abrir a boca, fechar os olhos, e deixar que cada colherada me ensinasse a viver com mais coragem, mais gosto, mais sal.

Pensei nos tempos em que Rita, jovem e sem filtros, cantava ser a “ovelha negra da família” — talvez num jantar de domingo, enquanto o resto da casa ainda acreditava em bifes bem passados e feijão sem poesia. Mas ela já mirava além. Via jardins brotando entre tijolos, liberdade servida no prato e no palco. Na minha cozinha, senti algo parecido: o desejo de preparar um prato que fosse, ao mesmo tempo, protesto e celebração — que incendiasse o tédio e acendesse os sentidos, como se cada garfada fosse um gesto de insubmissão e afeto.

Então decidi: hoje seria o dia do macarrão com linguiça e pimentão que Rita Lee transformou em canção. Um prato simples, mas carregado de símbolos, onde cada ingrediente guarda algo da Rita que me encanta. A linguiça, com sua gordura generosa e cheia de sabor, lembra o excesso delicioso de seus refrões — sempre intensos, sempre impossíveis de esquecer. O pimentão, vivo e audacioso, é a Rita dos anos 70: colorida, insolente, deixando marcas em quem se aproximava. E o macarrão, que se enlaça no molho como quem se rende a um abraço, maleável e surpreendente, é metáfora perfeita para uma carreira que nunca se deixou prender, sempre pronta a mudar de forma e a seduzir de novo.

Enquanto os pimentões cediam à lâmina — em cortes largos, quase teatrais —, a música trocou de pele. E, com ela, Rita sussurrou pela boca invisível da cozinha, como se a própria casa confessasse sua mágoa:
"Eu não queria magoar você / Foi ciúme, sim / Fiz greve de fome / Guerrilhas, motim, perdi a cabeça / Esqueça." "Desculpe o Auê", ela disse, mas parecia um feitiço, não um pedido.

Às vezes, cozinhar é isso — um ato de rebelião contida, de erotismo canalizado em vapor e azeite, de mágoas temperadas em sal e alho. Uma alquimia onde se misturam rancor e desejo, ternura e raiva, tudo reduzido, lentamente, até virar sabor.

Porque na cozinha, como no amor, não há espaço para o fingimento. Cada gesto carrega algo de feroz: uma fúria contida no estalar do alho na frigideira, um perdão implícito no dourado perfeito de uma cebola.

Há, sim, tumulto — sempre há. E um pouco de desordem também. Mas acima disso, há amor. Um amor quente, imperfeito, intenso. Daquele que cozinha em fogo baixo, mas arde até o fim.

Era como se Rita sorrisse pra mim. Um sorriso lento, cúmplice, como quem finalmente aceita: Não se nasce para a moderação quando o sangue pede intensidade. Nem no prato. Nem na paixão. Nem na música que insiste em doer bonito.

Enquanto a cebola dourava lentamente na panela, seu aroma doce e terroso se espalhava pela cozinha como uma promessa sutil — não de paz, mas de verdade. Daquelas que só se revelam no tempo certo, depois do fogo baixo, depois da espera. Meus pensamentos, leves e inquietos, estouravam como pipocas — pequenas alegrias impacientes que pulsam no calor do agora, antes de caírem de volta ao fundo da panela, onde tudo — tudo mesmo — acaba se misturando.

Era como se Rita estivesse ali, não como um fantasma, mas como uma memória em carne viva, encostada na moldura da porta, com os olhos semiabertos e a voz translúcida, quase rindo. Ela não falava sobre finais — falava sobre danças. Sobre o brilho dos instantes antes da explosão. Sobre a beleza trêmula do quase. "Se Deus quiser / Um dia eu morro bem velha / Na hora H, quando a bomba estourar / Quero ver da janela / E entrar no pacote de camarote" — canta ela, e há um sabor de ironia nisso, sim, mas também uma sabedoria quase pagã, um amor pela efervescência do agora.

A vida, no fundo, é essa panela — quente, agitada, às vezes um pouco perigosa. E a colher que mexe, quase sempre com força, também acalma. Mexer é um gesto de fé. Continuar ali, entre aromas e lembranças, é um modo secreto de resistir.

Enquanto o vapor subia e se enroscava em meus cabelos, senti que estar ali, presente — inteiro — era um ato sagrado. Não um espetáculo, mas um rito. Porque há um poder silencioso no simples: no escutar da música certa, no cheiro que abraça antes mesmo de tocar, no gosto que explode depois da espera.

E é isso. É isso que eu celebro. Não as grandes entradas, nem os finais dramáticos. Mas o miolo da coisa. O instante que cozinha. O momento que, por ser tão comum, chega a ser eterno.

A verdade é que, por trás de cada gesto à beira do fogão, há resistência. Não a resistência heroica das grandes causas, mas a cotidiana — íntima, silenciosa, e, por isso mesmo, feroz. Há dias em que o fogo na cozinha não é apenas chama para cozer, mas um reflexo exato do incêndio de dentro.

A cebola chia na frigideira, entregando seu perfume como uma oferenda. A gordura da linguiça estala em pequenos aplausos, não de plateia, mas de um palco solitário, onde cada movimento é confissão.

Rita sussurra outra vez, agora com a voz embriagada de desejo e provocação: "Pegar fogo nunca foi atração de circo" — ela dizia em Jardins da Babilônia — e, naquele instante, compreendo. O fogo não é para entreter. É para revelar.

Porque a cozinha, nesse exato momento, torna-se espetáculo, sim — mas um espetáculo íntimo, aceso por dentro. Não há público, não há cortinas, só o calor e eu. A colher dança como batuta, conduzindo uma sinfonia feita de óleo, memória, desejo. Cada ingrediente um acorde, cada estalo uma lembrança que se solta do osso da alma.

Cozinhar, afinal, é isso: arder por dentro com uma ternura antiga. É queimar sem se destruir. É deixar que o fogo revele, camada por camada, o que ainda pulsa. Sem medo da labareda. Sem medo do que sobra depois que tudo — inclusive você — é reduzido ao essencial.

Foi então que me encontrei suspenso — entre a colher e a lembrança —, imerso na luz preguiçosa da manhã que se adensa. A cozinha se aquecia aos poucos, como um corpo que desperta. E não era apenas o calor do fogão: era algo mais antigo, quase mítico, acendendo sob a pele, entre os cheiros e os gestos.

A linguiça ainda chiava, impaciente, e os pimentões — apenas vermelhos, rubros como desejo bem guardado — liberavam seus óleos com uma docilidade que parecia querer seduzir o próprio ar. Tudo em mim se embebia dessa mistura — desejo, lembrança, fome.

Havia, ali, um amor que não se direcionava a ninguém em particular, mas que era vasto e terno como o calor de uma tarde de verão. Um amor que nascia, inteiro, do simples ato de criar algo com as mãos.

E como todo rito — e Rita Lee, que é mais rito do que gente — merece sua oferenda, preparei a minha bebericagem com a solenidade que se dá às coisas simples quando feitas com desejo. Um cuba-libre, servido com esmero lânguido, sem nenhuma pressa, como se o tempo escorresse junto ao rum dourado e a Coca‑Cola — líquido ambíguo, quase um vício, quase um feitiço – se encontrando como amantes noturnos. Gelo em profusão, e limão espremido com a preguiça voluptuosa dos dias que pedem rendição ao calor. Uma ausência d’água que ninguém contesta, porque há momentos em que o excesso é uma forma legítima de oração.

O gesto, embora simples, parecia carregado de magia doméstica — uma alquimia cotidiana entre sombra e prazer. Algo que, talvez, a própria Rita aprovasse com aquele sorriso enviesado que era metade sarcasmo, metade carinho. Como quem ergue um brinde à beira do caos — e dança, mesmo assim, entre os escombros e as melodias.

Na cozinha, o vapor da panela se elevava como um incenso doméstico, enquanto o primeiro gole me escapava pelos lábios — e então, como se invocada pela canção que irrompia nos fones, ela veio: "ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu?" — o lamento elétrico de Arrombou a Festa soando como uma pergunta que nunca quis resposta.

E ali, com o molho se formando na panela e a alma em suspenso, compreendi: Rita ainda era capaz de bagunçar meus dias. Mesmo ausente, ela se insinuava entre os objetos e os afetos, desordenando o automatismo morno de comer apenas por comer. Em vez disso, eu cozinhava comovido, transbordando daquela emoção que só artistas de verdade provocam — os que não se contentam em existir, mas transfiguram o mundo.

A cozinha, por instantes, foi palco. O almoço, um espetáculo íntimo de rock e ternura. E eu, sacerdote e espectador, brindava à mesa não apenas uma refeição, mas um ritual de memória e criação. Porque Rita, como toda boa bruxa, nunca se vai por completo...

A comida enfim estava pronta — não apenas pronta, mas consagrada. Provei o molho como quem prova uma memória antiga, dessas que se desdobram na boca com o peso de uma saudade esquecida. Ajustei o sal com o cuidado devoto de um maestro afinando sua orquestra antes do primeiro acorde, escutando o silêncio para melhor ouvi-lo.

Escorri o macarrão com a solenidade de um gesto aprendido pela repetição amorosa dos dias, e o envolvi naquele abraço quente de sabores que havia construído com as próprias mãos. Sobre tudo, deixei cair uma chuva quase cerimonial de cheiro-verde — não apenas um tempero, mas um último aceno, um aplauso verde e silencioso ao espetáculo recém-nascido no prato.

Sentei-me, e o vapor ainda subia como um espírito leve dançando no ar, traçando espirais entre a luz da porta da cozinha e o som de Rita, que embalava meus pensamentos como uma velha amiga que nunca foi embora de verdade.

Foi ali que compreendi: aquele almoço era mais que refeição. Era rito. Era travessia. Um instante suspenso entre o que já partiu e o que ainda pulsa. Um lugar onde o corpo se nutre, sim — mas onde, sobretudo, a alma desperta, se estica, se espreguiça... e canta.

Olho o prato finalizado e, quase sem querer, deixo escapar: “Meu bem, você me dá água na boca” — como cantou Rita, numa canção onde o corpo é território de desejo, mas que ali, naquele instante, podia muito bem ser uma ode ao próprio prato. Afinal, entre os dois — o corpo e a comida — a distância é mínima. Há sabores que não saciam apenas a fome do estômago, mas tocam uma sede mais funda, mais secreta: a ânsia de sentir, de estar inteiro, de viver com apetite.

O macarrão com linguiça calabresa e pimentão tem esse dom raro. Não se limita a alimentar — ele seduz. Sorri. Convida. Abraça. Carrega o calor de uma festa inventada no susto, a cumplicidade preguiçosa de um domingo sem pressa, o conforto de uma lembrança boa que voltou no vapor da panela, sem ser chamada.

E talvez por isso Rita o teria cantado — porque entendia, como só os que vivem com fúria e doçura sabem entender, que certos pratos são também canções. Que algumas receitas, quando feitas com desejo, tornam a cozinha o lugar mais erótico da casa: onde o toque é íntimo, o tempo é lento, e cada gesto carrega a promessa de prazer.

E foi ali, com o prato diante de mim e a música ainda vibrando no ar como um perfume antigo, que compreendi: não era só fome que me movia — era o desejo de pertencer ao instante. De fazer parte desse milagre silencioso onde um corpo cozinha, outro canta, e o mundo, por um segundo, se torna belo demais para ser real. Porque há momentos — raros, quase sagrados — em que comer é uma forma de amar o que já se perdeu e, ainda assim, continua vivo. E naquele vapor que subia do prato como uma oferenda discreta, eu vi Rita. Não como ausência, mas como presença acesa. Ardente. Como só os eternos sabem ser.

 

Macarrão com linguiça e pimentão da Rita Lee*

 

1/2 xícara de azeite de oliva

200 g de linguiça calabresa picada ao seu gosto

1 cebola picadinha

Um pouco de salsinha a gosto

4 tomates batidos no liquidificador

2 pimentões vermelhos picados (ou em tiras finas)

2 colheres sopa de massa de tomate

1 tablete de caldo de carne

Macarrão tipo caracol (o nome original dela é Chifferi)

Sal a gosto

Preparo:  Aqueça o azeite e frite a linguiça picada ao seu gosto até ficar douradinha. Adicione a cebola e refogue até murchar. Acrescente o tomate batido, os pimentões e o extrato de tomate. Dissolva o tablete de caldo (não precisa ser em banho-maria como na música, tá? Mas, se seu coração quiser deixar a receita mais fiel, não discuta com a instrução da mestra) e coloque na panela. Tempere com sal e finalize com salsinha. Enquanto isso, cozinhe o macarrão em água fervente com sal até ficar al dente. Escorra e misture no molho. sirva quentinho. 

* Nota deste Barão cozinheiro: a música não revela todos os segredos do preparo, e a intuição pode ser a melhor aliada. Para quem gosta do prato mais molhadinho, um pouco mais de molho nunca será demais; para os amantes de sabores concentrados, deixar o molho secar um pouco mais fará a festa também.