domingo, 23 de novembro de 2025

RAINHA DE SABÁ, O ENIGMA SERVIDO EM FATIAS

 

Eu era ainda uma criança quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado que eu conhecia melhor: os gibis.

Essa é a delícia de hoje: o bolo rainha de Sabá, mas é preciso um pouco de história até chegar nele...

Eu era ainda uma criança quando, pela primeira vez, pressenti a presença de uma Rainha de Sabá — não nos livros antigos, nem nos altares silenciosos das igrejas, mas no reino encantado que eu conhecia melhor: os gibis.

Antes de prosseguir, preciso fazer um adendo — talvez vocês, leitoras e leitores, não saibam — mas a própria palavra “gibi” já carregava em si um sopro de mistério, um aroma de curiosidade. Nasceu muito antes de eu existir. Em 1939, a Editora Globo lançou uma revista em quadrinhos com esse nome exato: Gibi.

Na gíria da época, “gibi” era termo para menino negro, para o moleque das ruas — com conotações racistas, infelizmente comuns naquele tempo. Mas o sucesso da revista foi tão grande, tão encantador, que transformou a conotação do termo, apagando o sentido pejorativo original. Aos poucos, “gibi” deixou de ser sinônimo de desprezo e passou a significar travessura, curiosidade, espírito inquieto.

Naquela época, eu não sabia disso. Aprendi muito tempo depois, entre leituras de quadrinhos e outros mundos que minha curiosidade me arrastava a explorar. Foi assim que descobri que a palavra gibi vinha do quimbundo ngibi, sussurrada no Brasil desde o século XIX, e trazia consigo o eco de outro continente, a África — a mesma terra que, séculos antes, dera origem à rainha lendária que eu pressentira em meus olhos de criança.

A revista se espalhou com uma rapidez quase mágica, conquistando crianças e adultos, ocupando bancas e invadindo imaginações. Como acontece com tudo que cresce além de si, seu nome escapou das capas e passou a nomear um universo inteiro.

O destino das palavras, às vezes, é quase mágico: transcender a si mesmas, escapar das limitações do que originalmente significavam, assumir novas vidas. Assim, o “gibi” seguiu o caminho de outras criaturas linguísticas que, como ele, ganharam asas e se tornaram universais — Xerox, que deixou de ser apenas marca e se transformou em fotocópia; Gilete, que se libertou para virar sinônimo de lâmina; Corn Flakes, que atravessou o mundo para nomear todo cereal matinal de flocos de milho; Chiclets, que se espalhou pelos bolsos e mochilas como qualquer goma de mascar; Maizena, que passou a encarnar o próprio amido.

E assim, com o tempo e a persistência encantadora do cotidiano, qualquer revista em quadrinhos, fosse de onde viesse, recebeu o apelido carinhoso e definitivo: gibi — um pequeno feitiço linguístico, capaz de transformar uma palavra em universo.

Em resumo: uma palavra africana atravessou séculos, ganhou nova casa, transformou-se no menino travesso da gíria, tornou-se revista, e depois, como um encantamento cotidiano, passou a nomear todas as histórias desenhadas em quadrinhos que povoaram minha infância.

Naqueles anos, devorava sem trégua as aventuras da Turma da Mônica e da Disney. Meu tio Mário, irmão mais velho da minha mãe, mantinha assinaturas da revista Veja, que de vez em quando enviava, de brinde, revistas infantis. Mas ele também tinha assinaturas próprias de revistas para crianças; não sei se existiam antes do nascimento dos meus primos, seus filhos, mas o fato é que pilhas coloridas chegavam à casa como pequenos tesouros enviados pelo correio, sempre pontuais, sempre encantadas, como se soubessem exatamente onde pousar.

Foi na casa do tio Mário que encontrei um livro da Disney diferente de tudo que eu já conhecera. Estranho, porque não estava junto das revistinhas empilhadas na estante do quarto dos meus primos. Estava escondido numa gaveta da cristaleira — lembro que me pediram para pegar algo em um desses móveis antigos, cheios de gavetas, que ficava na sala de jantar, uma mistura de aparador e cristaleira. Fui atrás do objeto solicitado, abri a gaveta, encontrei o que procurava... e, no mesmo instante, o destino me apresentou outro tesouro: aquele livro.

Levei-o comigo, fascinado. Foi algo tão inesperado, tão arrebatador, que até hoje não consigo me lembrar do que fui buscar naquela gaveta; só me recordo do livro, que parecia ter me escolhido primeiro, como se soubesse que eu precisava encontrá-lo antes de qualquer outra coisa.

Era estranho e incomum: além das histórias curtas, mostrava os personagens clássicos da Disney vestidos como figuras históricas — e, para meu espanto, trazia receitas. Na verdade, era um livro de cozinha. Pertencia à minha tia Cida, esposa do tio Mário. Encantei-me imediatamente.

Foleando o livro, perdido entre as cores e as formas, eu me deixava levar pelo encanto das páginas. Os personagens da Disney, como atores de uma peça fantástica, encenavam cenas históricas com graça e irreverência, e cada ilustração parecia sussurrar histórias por si mesma. Havia comidas, receitas detalhadas, cada passo explicado com a paciência de quem deseja ensinar não apenas a cozinhar, mas a sentir, a tocar, a provar com os olhos antes de experimentar.

E então, parei numa página especial, uma página que ainda hoje pulsa em minha memória: o Pudim de Chocolate e Abacaxi da Rainha de Sabá.

Na ilustração, Margarida — a eterna pata elegante, namorada do Pato Donald — encarnava a Rainha de Sabá. Altiva, envolta em tecidos que pareciam fluídos, adornada com joias que reluziam como pequenas constelações, ela não comandava apenas o palácio, mas parecia dominar o próprio tempo.

Patinhos fantasiados, que eu supunha serem os sobrinhos do Pato Donald, esforçavam-se sob o peso de um pudim gigantesco, quase impossível, que carregavam atrapalhadamente. Vestiam-se como pequenos egípcios — ou, ao menos, era assim que minha infância imaginava toda a África, confundindo continentes e eras, misturando história e fantasia em uma só imagem luminosa.

E, no topo do pudim, erguia-se um abacaxi como um cetro comestível, coroando o monumento doce, imponente e encantador. Aquela visão — tão absurda quanto majestosa, tão impossível quanto real no meu imaginário — jamais se apagou da minha memória. Cada detalhe permanecia, gravado como se o livro tivesse sussurrado para minha alma de criança: isso é magia, e a magia é para sempre.

Aquilo me arrebatou.

Talvez porque foi a primeira vez que me vi questionando uma receita: como poderia alguém imaginar chocolate e abacaxi juntos? Como aquilo poderia ser real, harmonioso, quase mágico? A imagem se gravou em mim como um ícone indecifrável, uma lembrança que se recusava a se apagar.

Anos depois, tentei reencontrar o livro. Vasculhei catálogos, sebos, internet — tudo. Sabia que nos anos 1980 e 1990 a Disney no Brasil era publicada pela Editora Abril, e ainda assim, nada. Procurei até edições em inglês; encontrei uma de 1975, Mickey nas Cozinhas do Mundo, mas no índice não havia sinal do bendito pudim de chocolate e abacaxi da Rainha de Sabá.

E, durante essa busca, outras perguntas começaram a surgir, inquietantes: como poderia a Rainha de Sabá, que viveu antes de Cristo, ter provado chocolate e abacaxi — frutos descobertos séculos depois? Mas logo compreendi: a publicação não buscava fidelidade histórica; buscava abrir portas à imaginação, convidar crianças a adentrar a cozinha de mãos dadas com seus pais.

Ainda assim, o pudim jamais abandonou minha mente. Queria encontrar aquele livro. Queria reencontrar o mistério.

E, enquanto procurava, descobri imagens do tal pudim carregado pelos patinhos, encontrei algo parecido, em imagens antigas de sobremesas vitorianas. Um creme de chocolate montado em moldes antigos, ornado por relevos delicados, idêntico ao pudim da Rainha de Sabá — faltavam apenas os enfeites laterais e o abacaxi coroando o topo, como uma joia comestível.

 Essa era uma sobremesa vitoriana que tinha a aparência desnuda do pudim de chocolate com abacaxi...

Foi por causa daquele pudim impossível que, mais tarde, senti a necessidade de conhecer a verdadeira mulher por trás do mito. Quem era essa Rainha, tão bonita, tão rica, tão famosa — tão poderosa que, na minha imaginação de criança, já degustava chocolate e abacaxi antes que o mundo sequer sonhasse com eles?

Descobri uma mulher envolta em mitos: alguns majestosos, outros hilários, até desrespeitosos — como a lenda de que teria pés de cabra – animal que alguns ligavam ao satanismo. Talvez invenções de adversários políticos; talvez fruto do medo ancestral de que ela fosse um demônio sedutor.

Quanto mais eu lia, mais me perdia e me encontrava naquela figura: misteriosa, lendária, quase indomável, como se cada página sussurrasse segredos que só minha imaginação podia compreender.

E, ironicamente — ou talvez com a precisão poética do destino — anos depois, seu nome acabaria coroando outra delícia, um bolo de chocolate, daqueles que se tornam memória e prazer, um dos que mais amo na vida, como se o próprio passado tivesse decidido que a Rainha de Sabá merecia perpetuar sua majestade em sabor e em lembrança.

A RAINHA DE SABÁ ENTRE O TEMPO E O MISTÉRIO

Não em voz alta — jamais com a urgência de um grito — mas com a atenção suspensa, como se o tempo respirasse entre páginas antigas, senti a história se desprender de uma folha amarelada e flutuar pelo ar, leve, quase imperceptível. Um sussurro que carregava o crepúsculo, tocando ainda a toalha posta sobre a mesa, onde a luz se despedia em faixas de ouro queimado.

 Aqui está a representação da Rainha de Sabá feita por um artista. A imagem vem do manuscrito medieval Bellifortis, de Conrad Kyeser, e data de cerca de 1405.

A Rainha de Sabá. Um nome que paira, quase inalcançável, envolto em especiarias e ouro, como canela que se queima lentamente no ar quente, ou âmbar líquido derramado em silêncio. Há quem a chame de lenda, como se a memória de uma mulher assim pudesse ser reduzida a mito. Há outros que juram tê-la visto cruzando Jerusalém, deixando reis de joelhos, antes que o último gole de vinho tocasse a boca.

O que restou, afinal? Não são conquistas, não são tronos. É aquilo que persiste invisível e insistente: o gosto que ficou, o gesto que escapou, o perfume que ainda ronda os lugares onde passou. Séculos depois, ainda se manifesta, de formas inesperadas — nos sabores, nas receitas, nos aromas que atravessam o tempo. Como um bolo que não guarda apenas farinha e açúcar, mas a sombra e o eco de sua passagem.

Ela não se desvaneceu. Transformou-se em memória que se mastiga, que se sente na pele, na boca, nos olhos que procuram o brilho de ouro antigo, no aroma que se derrama como promessa.

No cerne de eras apagadas, ergue-se a Rainha de Sabá como um lampejo de ouro atravessando a neblina do tempo, cintilando com a suavidade de uma promessa esquecida. Mulher de olhos que parecem enxergar além do horizonte, cujo raciocínio desliza entre a couraça da diplomacia e o fogo indomável da sedução, revelando segredos que apenas a lua poderia compreender.

Ela vem de um reino onde o vento carrega incenso e mirra, e entoa murmúrios secretos às palmeiras, histórias que escorrem entre folhas e se infiltram nas pedras antigas. Cada gesto seu é calculado, uma dança entre poder e curiosidade, entre luz e sombra, como se soubesse exatamente onde o mundo hesita.

Nunca se sabe ao certo onde começa sua história — se nos jardins suspensos sobre o Mar Vermelho, onde flores raras curvam-se à sua passagem, ou na boca entreaberta de um ancião, que jura tê-la visto descer de um tapete de ouro puxado por leopardos de olhar lento e silencioso. Há cantos do mundo onde ainda se murmura que sua pele reluzia como bronze molhado sob a lua; em outros, que escondia pés de cabra sob túnicas de linho perfumado de incenso.

Ela habita o espaço entre mito e carne, entre sombra e brilho, como se a própria história respirasse através dela. Cada rumor, cada lenda, cada aroma que paira no ar parece carregar um fragmento dela — um fragmento que recusa desaparecer, mesmo quando os séculos tentam apagar o seu rastro.

Ainda há quem dissesse que ela viajava num tapete tecido com sombra e aromas de mirra e âmbar, guiada por estrelas e visões. Que poderia ler nos olhos dos camelos a cadência dos caminhos por vir; e que sua coroa era feita de alvorada e escrita invisível.

Em Belkiss, Eugénio de Castro evoca essa majestade simbólica, como se ela surgisse não para ser vista, mas para ser pressentida, reverberando entre o perfume do louro e o eco do mistério.  Um enigma que se devolvia apenas no silêncio do olhar. Como um bolo que parece rígido na crosta, mas guarda um centro tenro e preservado — o convite ao segredo, ao desejo, à lembrança.

Sempre foi assim com mulheres maiores que os limites dos mapas: não se admite que elas tenham apenas nascido. Precisam ter sido moldadas por deuses ou por delírios, como se carregassem em suas veias a essência de tempestades ancestrais, ou o sussurro silencioso de eras esquecidas. Elas não pertencem ao comum, ao mundano — são enigmas ambulantes, figuras que desafiam a lógica dos homens e a linearidade do tempo.

É como se cada gesto seu fosse uma inscrição em um livro proibido, cada olhar um portal para segredos que o mundo tenta esconder sob o véu do silêncio. São sombras que caminham sob a luz, presenças que se sentem antes mesmo de serem vistas, e cuja existência desafia a razão dos mapas, das fronteiras, das histórias contadas e repetidas.

Essas mulheres — tão vastas em sua aura, tão densas em sua essência — não nascem, transcendem. São a encarnação viva dos desejos não confessados, das paixões mais obscuras e dos mistérios que o tempo se recusou a revelar. E é assim que permanecem: eternas, inexplicáveis, soberanas do próprio mistério que as cerca.

Mas havia algo mais em Sabá — Makeda, Balqis, ou qualquer que fosse seu nome real — que nem os mais céticos ousavam negar: sua inteligência era simultaneamente corda de seda e lâmina de aço, uma força que se equilibrava entre a delicadeza e o corte preciso. Mulher capaz de atravessar desertos inteiros apenas para encontrar Salomão, o rei de Jerusalém, não para se curvar diante de sua fama, mas para testá-lo, para medir a substância por trás do mito.

O Rei Salomão e a Rainha de Sabá. Pintura de Giovanni Demin, 1824. 

Sabá não era peregrina em busca de respostas fáceis, nem rainha enfeitiçada pelo brilho alheio de um trono que não era seu. Ela era tempestade e enigma, um furacão contido em vestes de linho e ouro, dona de um conhecimento profundo, um código invisível que se revelava em palavras meticulosamente escolhidas, em perguntas afiadas como lâminas e em silêncios que ressoavam com mais força do que qualquer proclamação.

Cada passo que dava parecia calcular o ritmo do mundo, cada gesto era uma declaração velada de poder que se insinuava sem anunciar sua presença. Ao sentar-se diante do rei, Sabá não buscava sua aprovação — buscava sua verdade, a vulnerabilidade oculta sob a arrogância, a frágil invencibilidade de um homem que se julgava o mais sábio entre os mortais. Ela desafiava não apenas sua sabedoria, mas o próprio conceito de autoridade, de destino, de história contada pelos vencedores.

E enquanto os servos se afastavam em silêncio, como se pressentissem a eletricidade que pulsava entre aqueles dois seres, Sabá permanecia imóvel, como uma esfinge viva, seu olhar atravessando não apenas o rei, mas o tempo, as lendas e os ecos de todos os que tentariam decifrar sua presença.

Ela era um mistério de luz e sombra, uma lenda que escapava das mãos de quem tentava aprisioná-la em histórias. A presença dela não apenas reconfigurava o espaço, mas dobrava o tempo, fazendo com que aquele encontro — mesmo que breve — reverberasse séculos além, como uma inscrição gravada em pedra viva.

E enquanto os cronistas e poetas tentavam eternizá-la em versos e mitos, Sabá continuava além deles, uma força invisível que não se entregava à memória, mas que, silenciosamente, escrevia seu próprio legado nas frestas do mundo.

Até o rei Salomão, que estava acostumado a súditos, oráculos, moedas de ouro e mulheres que se curvavam ao seu olhar, se rendeu totalmente aos encantos dele. Mas Sabá entrou com os olhos retos, a boca firme, os ombros imóveis — como se carregasse mil anos de histórias e desertos nas vértebras. E ele soube: ou a conquistaria ou se perderia para sempre no eco do riso dela.

“Ela veio para prová-lo com enigmas” — dizem as Escrituras, como quem sussurra o prenúncio de algo mais profundo do que uma simples visita. Nos antigos livros de reis e crônicas, está registrado que a Rainha de Sabá atravessou vastidões de areia e silêncio não apenas para saudar Salomão, mas para desafiá-lo — não com armas ou exércitos, mas com o fino fio da inteligência, com enigmas que eram tão antigos quanto o mundo e tão perigosos quanto o desejo.

Essa passagem, gravada nas páginas de 1 Reis 10:1 e 2 Crônicas 9:1, ecoa ainda hoje como uma das mais sutilmente provocadoras da tradição bíblica — e sua sombra se estende também pelo Alcorão, onde a rainha — ali chamada Bilkis — surge não como súdita, mas como espelho de um profeta, num diálogo onde fé, poder e sabedoria se entrelaçam como perfumes raros num salão selado.

Não foi, portanto, uma mulher comum que se apresentou diante do rei. Foi um enigma em forma de presença. Um desafio envolto em ouro, mirra e silêncios. A prova viva de que o verdadeiro poder, muitas vezes, chega sob o disfarce da curiosidade.

“Ela veio para prová-lo com enigmas” — e talvez nunca mais, em toda a história, um eufemismo tenha sido tão carnal.

Porque os enigmas de Sabá não se limitavam à mente. Eram labirintos de desejo, de olhar e palavra, de silêncio e movimento — um jogo sutil onde a lógica se dissolvia na pele e no ar, onde cada gesto podia ser ao mesmo tempo promessa e armadilha.

Ela desafiava Salomão em cada encontro, como se fosse um duelo velado, uma dança de intelecto e vontade, onde a vitória não pertencia a quem respondia primeiro, mas àquele que soubesse seduzir o mistério e deixar o outro perdido em sua própria dúvida.

Os relatos sussurram que Sabá não apenas trouxe presentes de ouro e especiarias, mas também um presente mais perigoso — uma presença que incendiava a corte e enredava o rei em um jogo onde o poder e a paixão se confundiam.

E não era apenas a força de sua beleza ou a precisão de sua mente que encantava, mas a complexidade com que entrelaçava ambos. Sabá era uma tempestade que se permitia ser calma, um fogo que se escondia sob a superfície, um enigma que não se revelava por inteiro, mas se insinuava nas sombras da alma.

Dizem que o rei, sábio e inabalável diante do mundo, encontrou nela um espelho inquietante — alguém que desafiava seus limites e o fazia sentir, pela primeira vez, o peso suave e ao mesmo tempo cruel do desconhecido.

Assim, Sabá não veio apenas para testar a sabedoria de um rei, mas para desafiar o próprio conceito de domínio, reescrevendo, em cada encontro, o que significava poder e rendição.

Durante dias, trocaram enigmas e versos, temperados com vinho, tâmaras e a incerteza do próximo passo. A tensão era tamanha que os escribas esqueceram de registrar as respostas: só se sabe que ela saiu de lá com um filho e ele, com o coração desfeito.

Mas Salomão, rei que era, jamais choraria em praça pública. E Sabá, rainha que era, não ficaria para consolar um homem — ainda que o amasse. Porque se há um drama eterno que o tempo não apaga, é este: o amor entre iguais que não se permite florescer.

Em noites sem nome, talvez ela tenha olhado para o céu, deitada em algum terraço alto, e pensado: "E se eu tivesse ficado? Mas rainhas não ficam. Elas partem. E reis — mesmo os mais sábios — não correm atrás. Eles escrevem provérbios, constroem templos, deixam o coração entre as pedras.

Sabá voltou ao seu reino. Grávida. Dizem que levando a Arca da Aliança. Dizem que nunca mais amou. E o mundo seguiu, desmemoriado e injusto com ela — como sempre é com mulheres que não pedem licença ao desejo, nem ao destino.

E enquanto o tempo lavava cidades e desertos, Sabá carregava consigo não apenas memórias de reis e templos, mas também o gosto de aromas que atravessariam séculos — mirra, canela, especiarias exóticas que tocavam a língua como notas de música distante. Sua presença deixava rastros que não se contavam em histórias, mas em sabores que insistiam em sobreviver, em suspirar por mãos que soubessem transformá-los em algo tangível. Mesmo sem chocolate ou frutos das Américas, cada aroma e cada tempero parecia conter um segredo antigo, uma promessa de luxo e deleite que atravessava o tempo.

Nos interstícios entre lenda e memória, entre pergaminhos amarelados e murmúrios de vento, a rainha de Sabá se tornava também alquimista: convertia a experiência do mundo — perfumes, cores, texturas, calor da cozinha real — em pequenas maravilhas que resistiam à ruína do tempo. Era uma rainha que podia governar o silêncio, mas também transformar o cotidiano em ritual, e a comida em uma narrativa de poder e desejo.

E assim, cada gesto seu, cada segredo guardado nas especiarias do Oriente, parecia implorar por continuidade. Não apenas nas histórias que homens e mulheres contariam, mas naquilo que os sentidos retêm: o aroma da coragem, da audácia, do prazer que se permite existir mesmo diante da eternidade da história. Porque algumas rainhas — assim como certos bolos — não podem ser apenas lembradas: precisam ser saboreadas com atenção, degustada na memória e no tempo, como se cada fragmento fosse um fragmento de mundo que sobrevive.

SABÁ EM FATIAS: A EPIFANIA DE JULIA CHILD NA FORMA DE BOLO DE CHOCOLATE

A rainha de Sabá não é apenas uma lenda esculpida em ouro e histórias antigas — ela é também um sabor, uma presença que se insinua nos sentidos, uma essência que se descortina lentamente, camada por camada, como a mais intricada das poesias, onde cada nota de especiaria, sussurra segredos de reis e desertos longínquos. Há nela algo que não se memoriza apenas com a mente, mas que se prova na pele, no paladar, no ar que se respira com atenção.

E então, permita-me conduzir essa metamorfose: da rainha que caminhava entre palácios e pergaminhos, à rainha que reina entre tigelas e fouets, onde a alquimia do chocolate e das especiarias se torna cerimônia.


Julia Child, cozinheira e apresentadora de TV americana, não era apenas uma mulher que cozinhava — era uma mulher que se entregava por inteiro ao rito da cozinha, com corpo e espírito imersos no amor pelos ingredientes, pelos gestos, pelos aromas que dançam no ar. Sua devoção era generosa, quase magnética, capaz de transformar o ato de preparar uma receita em um verdadeiro tributo à história e ao prazer.

Ela nos legou algo digno de coroar qualquer trono doce: o Bolo Rainha de Sabá — não apenas um bolo, mas uma epifania de chocolate profundo, especiarias que sussurram histórias antigas, e uma sofisticação que se move sem pressa, deixando que cada camada se revele no tempo certo. Cada mordida é reverência, memória e celebração de um poder feminino que atravessa séculos, que carrega em si a majestade de uma rainha que escolheu seu próprio caminho.

Há registros dela preparando este bolo (veja AQUI), e até hoje, ao ver Julia mover-se na cozinha, percebe-se que cada gesto era ritual e poesia, como se o chocolate e as especiarias se dobrassem diante de sua presença, obedecendo à sua vontade e à cadência de sua paixão. Ela não apenas ensinava receitas: ensinava respeito pelo tempo, pelo sabor, pela memória — ensinava a transformar alimento em experiência, em memória viva, em celebração silenciosa do que é essencial e eterno.

O Bolo Rainha de Sabá, assim, torna-se mais do que uma sobremesa: é um elo entre séculos, entre a Rainha lendária e quem se permite sentir, saborear e celebrar o poder feminino que não se curva, que resiste, que se manifesta em cada aroma e em cada pedaço que se leva à boca. Julia Child nos entregou isso como quem entrega um segredo precioso, envolto em chocolate, especiarias e reverência.

Às vezes a elegância reside na opulência do sabor — e este bolo é mais que sobremesa: é celebração em cada fatia.

Assim como a rainha atravessou desertos e desafiou reis, seu bolo carrega em si a mesma promessa de exotismo e poder silencioso. Não é apenas uma sobremesa; é uma viagem delicada e envolvente aos territórios do paladar, onde o doce se entrelaça com especiarias distantes, e a textura seduz como o olhar de uma mulher que conhece seus próprios mistérios e os guarda com graça absoluta.

O Bolo Rainha de Sabá é, em sua elegância, um convite a desvendar segredos — um jogo sutil entre o amargo e o suave, o intenso e o etéreo. Cada mordida é um diálogo: o cacau profundo conversa com notas exóticas, como as histórias que rodeiam sua musa, que jamais se entregava por completo e sempre deixava, no ar, o rastro de um fascínio impossível de apagar.


Ao saborear esta criação, não se trata apenas de alimentar o corpo, mas de nutrir a alma com um fragmento do enigma que foi, e ainda é, a Rainha de Sabá — símbolo de força, inteligência e sedução que transcende séculos, sobrevivendo no gesto, no aroma, no sabor.

Assim, o bolo deixa de ser apenas receita: torna-se celebração da mulher que desafia definições simples, que comanda silenciosamente sua própria história e nos convida a provar, ainda que por um instante, da grandiosidade de seu espírito em cada mordida.

E se alguém perguntar por que este bolo carrega o nome de uma rainha esquecida, sorria. Diga que é porque ela ainda vive — no mito que se recusa a desaparecer, na paixão interrompida que resiste, no aroma de chocolate que sobe da forma como uma lembrança que se recusa a ser apenas lembrança. Diga que ela foi uma mulher que poderia ter escolhido o amor, mas escolheu guardá-lo para sempre, como quem preserva um segredo precioso.

E isso, às vezes, é mais eterno que qualquer gesto entregue ou palavra pronunciada.

Hoje, em tardes silenciosas, talvez se perceba sua presença nas cozinhas onde se prepara um bolo denso, escuro, sutilmente perfumado de chocolate e especiarias, onde cada mexida é um ritual, cada suspiro do forno uma reverência à memória.

Se este bolo tem gosto de algo, é do que sentimos ao lembrar dela: da força silenciosa que atravessa séculos, da inteligência que não se curva, da beleza que desafia o tempo e o espaço. É o sabor de um mistério que não se entrega, do desejo contido em um gesto, do poder contido em um olhar que conhece todos os segredos do mundo.

Cada pedaço é memória e celebração — um fragmento da rainha que escolheu seu próprio caminho, que atravessou desertos e reis, que guardou o amor como quem guarda ouro e incenso. No aroma que sobe da forma, no calor que envolve a cozinha, no sussurro do chocolate e das especiarias, a rainha de Sabá respira.

Para mim, a Rainha de Sabá não é apenas história. Não é apenas mito. Ela é vento que atravessa desertos, luz que cintila sobre ouro antigo, aroma que persiste nas cozinhas silenciosas do tempo. Ela é presença — intensa, sutil, impossível de esquecer — uma epifania que se prova, se saboreia e se sente.

Ela vive na infância daquele menino que pressentia mistérios nos gibis; nos olhos que encontram magia em livros escondidos; no encantamento de um pudim impossível que desafiava a lógica e a imaginação; na curiosidade que o fez buscar o passado como quem busca um segredo guardado. Ela vive nas páginas que não se desgastam, nos aromas que atravessam séculos, nas especiarias que sussurram histórias de reis, desertos e mulheres que não se dobram.

Ela vive no gesto generoso de Julia Child, na alquimia de um bolo que transforma chocolate em memória, em celebração, em ritual. Cada fatia do Bolo Rainha de Sabá é um portal: o amargo do cacau, o perfume das especiarias, a textura que se desmancha na boca — tudo fala de um poder silencioso, de uma inteligência que desafia o tempo, de um desejo que não se entrega, mas se preserva com majestade.

Cada pedaço é memória, cada aroma é história, cada sabor é enigma. A Rainha de Sabá não se foi. Ela se espalhou pelo mundo em pequenas maravilhas — nos olhos de quem observa, no paladar de quem prova, na reverência silenciosa de quem entende que certos seres não se apagam. Eles se transformam em eternidade.

Enquanto houver alguém que feche os olhos diante de um bolo, que respire seu perfume e deixe o chocolate derreter lentamente na língua, a Rainha de Sabá continuará viva. Não apenas em tronos ou pergaminhos, mas nos sentidos que guardam seu mistério, na memória que recusa esquecê-la, na força de uma presença que atravessa séculos sem pedir licença. Ela é poder, inteligência, desejo e magia — e, acima de tudo, é indomável. Sempre foi, sempre será. 

Bolo Rainha de Sabá

[Reine de Saba avec Glaçage au Chocolat, ou Bolo de Amêndoas e Chocolate, da Julia Child]

Para o bolo:

120g de chocolate meio-amargo, com 50% de cacau;

2 colheres de sopa de rum, ou de café quente;

120g de manteiga sem sal, em temperatura ambiente;

2/3 da xícara de açúcar;

3 gemas;

3 claras;

1 pitada de sal;

1 colher de sopa de açúcar;

1/3 da xícara [85g] de farinha de amêndoas;

1/2 xícara de farinha de trigo.

Para o glacé:

70g de chocolate meio-amargo, com 50% de cacau;

75g de manteiga sem sal, em temperatura ambiente;

2 colheres de sopa de rum ou café quente;

Amêndoas em lascas para decorar.

Preparo: Bolo - Pré-aqueça o forno a 170 graus. Unte uma fôrma redonda de 20cm de diâmetro com manteiga e enfarinhe, batendo bem para retirar o excesso de farinha. Reserve. Pique o chocolate em pedaços pequenos, junte o café ou rum e leve ao fogo, em banho-maria, mexendo até derreter [apague o fogo antes da água do banho-maria começar a ferver]. Reserve. Em uma tigela média bata a manteiga com o açúcar até ficar cremoso e claro [pode ser com a batedeira ou com uma colher grande/ fouet]. Adicione as gemas, uma a uma, batendo bem após cada adição. Reserve. Em outra tigela bata as claras em neve, com a pitada de sal, até formar picos moles. Adicione a colherada de açúcar e continue batendo até formar picos firmes. Reserve. Adicione o chocolate derretido à mistura de gemas, misturando para incorporar. Adicione a farinha de amêndoas e misture bem. Junte as claras em neve às colheradas, alternando com colheradas de farinha, e misturando com movimentos circulares de baixo para cima, sem bater. Distribua a massa na fôrma preparada e alise a superfície. Leve ao forno por cerca de 25 minutos, até que nas bordas a massa esteja assada, mas com o centro ainda meio mole. Retire do forno, deixe esfriar por 10 minutos na forma, e desenforme. Passe para o prato de servir e deixe esfriar completamente. Prepare o glacê – Derreta lentamente o chocolate misturado com o rum ou café em uma tigela de metal ou vidro, em banho-maria, sem deixar a água ferver. Retire do banho-maria, acrescente a manteiga, uma colherada por vez, misturando bem após cada adição. Prepare uma tigela grande, com gelo e água gelada, e coloque a tigela do glacé sobre dessa, misturando sempre, até esfriar e ganhar uma consistência de cobertura. Espalhe o glacé sobre o bolo frio, com o auxílio de uma espátula, e decore com as lascas de amêndoas.

Dica de leitura:  CASTRO, Eugénio de. Belkiss, Rainha de Sabá, d’Axum e do Hymiar: poema dramático em prosa. Coimbra: F. França Amado, 1909. 

 

 

 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

DA COZINHA À REVOLTA: O QUIBEBE DE LUÍSA MAHIN E A MEMÓRIA QUE REACENDE NO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

 

Hoje, Dia da Consciência Negra, sinto a alma do Brasil estremecer como um grande pilão ancestral, onde séculos de dor e coragem são ainda moídos até virar sustento — espesso, vivo, inapagável. O ar parece murmurar histórias quando passei pelo mercado e senti de longe o cheiro do dendê aquecido que alguém usava pra saborear uma farofa pra acompanhar um prato qualquer.

Aquele cheiro me alcançou: era como se alguém estivesse mexendo uma panela funda, lenta, ritualística — dessas que anunciam seu perfume muito antes de revelarem seu conteúdo. E naquele instante, o ar pareceu se abrir em véus. O cheiro não vinha apenas de um tacho; vinha de um tempo. Cada nota quente, gordurosa e luminosa do dendê carregava um rastro antigo, como se mãos anônimas — mãos que já não estão entre nós, mas ainda regem a respiração do Brasil — voltassem a mexer os caldeirões da memória coletiva.

Esse cheiro, neste dia preciso do calendário, acendeu-se em mim como um fósforo riscado no escuro — não para iluminar minha própria história, mas para revelar, por um instante, a vastidão da memória coletiva que não me pertence, mas que reconheço, reverencio e busco compreender. Sou branco, e é justamente por isso que caminho com cuidado por essa chama: ela não arde em mim da mesma maneira, mas ainda assim me alcança, como um calor que pede silêncio, escuta e respeito.

Neste Dia da Consciência Negra, esse fósforo metafórico não queima para destruir; ele serve para revelar contornos antigos — vidas, dores, alegrias, sabores — que a história tentou apagar. E diante dessa luz breve e intensa, percebo que a memória não exige sangue compartilhado, mas humanidade disponível para enxergar.

É por isso que retorno, quase como quem retorna a um altar doméstico, àquela história que nunca sei se pertence ao reino das lendas ou ao das verdades demasiado reais: o quibebe de Luísa Mahin. Um prato humilde na aparência, mas que nasceu para carregar dentro de si não apenas abóboras macias, e sim segredos — bilhetes dobrados como asas, sinais de uma rebelião que ardia em 1835.



Há algo de profundamente comovente nisso: numa época em que a liberdade precisava viajar escondida, a cozinha transformou-se em porto seguro, cofre mágico, mensageira silenciosa. Hoje, enquanto honramos a memória negra que sustenta nossas mesas, nossas histórias e nossos passos, revisitar esse quibebe é como acender uma lamparina num quarto antigo e ver, na chama que dança, o rosto de todos aqueles que lutaram para que ainda estivéssemos aqui.

Quando penso em Luísa Mahin, mãe de Luís Gama, penso naquelas figuras históricas cuja biografia parece ter sido escrita com tinta que o tempo insistiu em apagar. Suas datas são sombras, suas origens, sussurros; seus passos sobrevivem não por registros, mas por testemunhos rachados — e, ainda assim, luminosos. É quase cruel notar que figuras como ela, negras, mulheres, libertas ou escravizadas, só aparecem na história quando tocam o nervo da ordem colonial. Mas talvez seja justamente nessa fricção que o mito se acende.

É 1835, Salvador.

O Recôncavo pulsa como um coração dividido.

Enquanto o açúcar move fortunas e o tráfico atlântico de escravos ainda ergue sua máquina brutal (lembrando que o fim legal só viria em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós), a cidade se torna um dos maiores centros urbanos africanos das Américas. Iorubás, haussás, jejes, nagôs: a geografia dos povos étnicos da Costa da Mina se refaz em becos e ladeiras.

É também ali que fermenta a Revolta dos Malês — a mais bem organizada revolta urbana de africanos escravizados no Brasil. De 24 para 25 de janeiro de 1835, muçulmanos alfabetizados em árabe, muitos deles ex-escravos ou libertos, conspiram por meses para rasgar a ordem escravista. E aqui entra o ingrediente essencial da história: sem comunicação, não há levante. Sem bilhete, não há insurreição. Sem mensageiras, não há esperança.

As fontes do processo de 1835 — especialmente os autos de Devassa — registram a presença constante das negras de ganho, essas mulheres que circulavam pelas ruas como tecelãs de mundos: vendiam comida, tabaco, doces, hortaliças; sabiam ouvir, observar, desviar-se quando necessário. Eram, de fato, o sistema nervoso da cidade.

Entre elas, aparece o nome de Luísa Mahin — ou melhor, a suspeita, o rastro, o rumor. Não há prova documental de que ela atuou na Revolta, mas há indícios, há tradições orais, há a poderosa declaração de Luís Gama, em 1880, ao descrevê-la como “mina, livre, de extraordinária inteligência, orgulho, altivez e coragem”. E há, sobretudo, o silêncio típico do que era perigoso registrar.

É nesse cenário que entra o quibebe, uma preparação ancestral da África Ocidental. adaptada no Recôncavo: abóbora cozida, desmanchando-se em doçura terrosa, perfumada com azeite, pimenta, cebola, quiabo ou dendê — dependendo da mão que o preparasse. O prato era barato, portátil, fácil de aquecer, vendido por negras de ganho desde pelo menos o final do século XVIII. Mas, na Salvador de 1835, tornou-se também uma embalagem perfeita para códigos.

Documentos da época descrevem bilhetes enrolados e escondidos em trouxas de comida. O quibebe, com sua textura densa, cremosa, envolvente, podia camuflar mensagens dobradas, pequenas tiras de papel com versos do Alcorão, senhas em árabe, nomes, pontos de encontro. A comida, que nunca era revistada por soldados brancos por medo de contaminação simbólica e ignorância dos ingredientes, tornava-se passagem segura — e cúmplice.

Há nisso uma poesia feroz: um alimento simples, feminino, africano, humilde aos olhos de quem não o entende, transformado em arma política.

Eu gosto de pensar que toda refeição abriga uma confidência — mas, neste caso, a confidência não sussurra: ela arde, pulsa, se esconde. O quibebe não era apenas comida; era uma escrita de fogo mascarada em abóbora, um pequeno sortilégio doméstico que disfarçava a febre da insurgência. Havia nele uma cintilação quase sobrenatural, como se a doçura fosse apenas o verniz de um segredo mais antigo, um código cozido lentamente para atravessar as mãos do opressor sem ser percebido. Era alimento, sim — mas também senha, feitiço, mapa dobrado na palma da mão. E cada colherada carregava uma rebelião inteira tentando respirar.

Mas o que mais me toca é que esse prato, aparentemente frágil, venceu a passagem do tempo. Ele atravessou séculos. Continuou nos tabuleiros das baianas, nas cozinhas matriarcais, nos cadernos ungidos pelo dendê. Tornou-se símbolo do que só o povo negro sabe fazer com maestria: transformar o cotidiano em estratégia, e a comida em sobrevivência.

Hoje, Dia da Consciência Negra, lembrar o quibebe de Luísa Mahin é lembrar que a história da alimentação no Brasil não é só feita de festas, receitas nobres, mesas europeias, doces de mosteiros e conventos. É feita de resistência. De códigos escondidos entre fibras de abóbora. De bilhetes que escaparam da devassa porque se. camuflaram no aroma quente que saía das panelas.

A comida sempre foi fronteira.

Aqui, tornou-se também arma, refúgio, linguagem.

E cada colher deste quibebe ancestral ainda carrega — densa, vibrante, luminosa — a promessa de liberdade que corria pelas ruas de Salvador em 1835.

 

Receita Histórica Reconstruída

 

Quibebe das Negras de Ganho (c. 1830–1840)**

baseada em registros culinários da Costa da Mina, descrições do Recôncavo Baiano e relatos sobre comidas de ganho

 

Observação importante:

Não existe um registro escrito exato da receita usada por negras de ganho em Salvador em 1835.

Contudo, sabemos pelos Autos da Devassa da Revolta dos Malês, por descrições de viajantes como Rugendas (1835) e Koster (1816), e por obras de culinária afro-baiana do século XIX, como as recolhidas posteriormente por Manuel Querino, quais eram os ingredientes típicos dessas preparações vendidas nas ruas.

 

A receita abaixo é uma reconstrução historicamente fiel, seguindo ingredientes disponíveis na época, técnicas documentadas e a simplicidade prática necessária ao transporte e à venda. 

QUIBEBE

1 kg de abóbora-menina (a variedade mais comum no Recôncavo)

2 colheres de sopa de azeite de dendê

1 cebola grande picada bem miúdo

1 pedaço pequeno de gengibre ralado (ingrediente comum entre nagôs e haussás)

1 pimenta malagueta inteira (ou amassada conforme o gosto)

Sal grosso a gosto

Opcional histórico:

1 ou 2 quiabos fatiados finos (há registros de quibebe com quiabo para dar liga)

1 colher de farinha de mandioca fina para engrossar (usada em tabuleiros de ganho)

Preparo: Descasque a abóbora, corte em pedaços grandes e leve ao fogo com um pouco de água e sal grosso. Cozinhe até que fique completamente macia — quase desfazendo ao toque. Em outra panela de ferro ou barro (os recipientes mais usados pelas vendedoras), refogue a cebola no azeite de dendê, até dourar levemente. O dendê era mais escuro e aromático que o atual, extraído artesanalmente. Adicione o gengibre e a pimenta malagueta, mexendo para liberar aroma. Acrescente a abóbora cozida, já amassada com colher de pau, misturando ao refogado até formar um creme espesso. Se desejar, junte os quiabos, que ajudarão a dar uma consistência mais viscosa — muito prática para manter o calor durante o transporte. Se o quibebe precisar ficar ainda mais firme (especialmente para ser levado em trouxas, como acontecia à época), acrescente uma colher de farinha de mandioca fina e mexa até engrossar. Cozinhe em fogo baixo, mexendo sempre, até obter uma pasta espessa, brilhante, densa — fácil de embalar em folhas ou potes de barro e perfeita para “esconder” pequenos papéis entre suas dobras.

Servia-se quente ou morno, em pequenas porções, vendidas nas ruas, nos mercados e nas portas das igrejas de Salvador.

 Eu gosto de preparar quibebe mais molinho, pra servir com arroz branco e carne de porco empanada, pra espremer um limão por cima e devorar com gosto.

 DICAS DE LEITURA:

KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1816.

RUGENDAS, Johann Moritz. Malerische Reise in Brasilien (Voyage Pittoresque dans le Brésil). Paris: Engelmann & Cie., 1835.

BRASIL. Arquivo Público do Estado da Bahia. Autos da Devassa da Revolta dos Malês (1835). Salvador: APEB, 1835.

QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador: Livraria Econômica, 1916.

QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Salvador: Tipografia Beneditina, 1938. Ver menos

 

 

sábado, 15 de novembro de 2025

KARPATKA: A TORTA QUE SABOREIA OS CÁRPATOS E TOCA AS SOMBRAS DE DRÁCULA


Sempre fui apaixonado pela escrita — não como quem escolhe um passatempo, mas como quem reconhece, num sussurro íntimo, a própria natureza. Lembro-me, com uma nitidez quase sobrenatural, de ter dez ou onze anos quando meu avô paterno, Mário Coelho — o querido vô Bidade — fazia de mim seu pequeno espetáculo doméstico. Bastava que alguma visita atravessasse a soleira para que ele, altivo como um mestre de cerimônias, anunciasse: “Este menino é muito inteligente. Recebe cartas do Brasil inteiro… e até do estrangeiro. Todo dia chega uma diferente. É tão sabido que ele entende até o que os estrangeiros escrevem!”


Eu permanecia ali, meio imóvel, enquanto a mão da visita deslizava pelos meus cabelos num gesto que misturava afeto e uma espécie de consagração silenciosa. O arrepio que me subia pela nuca era tímido, mas cheio daquele orgulho inconfessável que as crianças não sabem nomear. Eu sorria de canto, envergonhado — e então vinha a ordem do avô, soberana: que eu fosse buscar as cartas mais recentes, prova viva de que sua história não era exagero.

E não era mesmo. Desde muito cedo, em uma época em que se escreviam cartas com a mesma solenidade com que se acende uma vela, eu me encantava com o ritual: papel, envelope, selo, a caligrafia se derramando conforme o coração ditava. Grande parte das correspondências que ia e vinha pertencia aos lendários SACs (Serviço de Atendimento ao Consumidor) das empresas alimentícias — Nestlé, Lacta, Garoto, Maizena, e mais tarde Unilever, Hellmann’s, Pó Royal, um universo inteiro de marcas que existiam, para mim, como personagens magnânimas.

E, no fundo, havia ali um indício silencioso do que mais tarde se tornaria parte vital de quem eu sou: meu fascínio pela comida, por seus mistérios, por tudo o que vive entre o sabor e a memória. Eu escrevia para aquelas empresas movido por uma curiosidade quase científica — queria entender por que certos chocolates derretiam mais rápido, por que um fermento fazia o bolo erguer-se como uma catedral, ou como o cheiro de uma sopa podia mudar o humor de uma casa inteira.

E, para minha fortuna, naquele tempo as empresas ainda tratavam seus consumidores com uma delicadeza quase artesanal: respondiam a cada carta com esmero, enviavam folhetos ilustrados, pequenos livrinhos de receitas, amostras que pareciam tesouros, e às vezes até delícias embrulhadas com uma generosidade que hoje parece improvável. Cada envelope que chegava não trazia apenas resposta — trazia alimento para a minha imaginação, para o meu paladar e para uma vocação que, sem eu saber, já se desenhava.

Naquele tempo, as empresas ainda cultivavam o hábito de conversar com seus consumidores, quase como vizinhos que dividem receitas no portão. Ofereciam cursos, mandavam pequenos livros culinários, brindes coloridos. E assim, dia após dia, o carteiro deixava em nossa casa um punhado de envelopes que pareciam conter mundos — e era por isso que Bidade tanto me exibia: porque a casa se enchia de cartas, e eu, menino ainda, era o ponto onde todas elas se encontravam.

No cenário internacional, tudo assumia um brilho mais raro, quase encantatório. Eu sonhava estudar no Velho Mundo, e, como mensageiros de um destino possível, empresas de intercâmbio e colégios estrangeiros enviavam programas, convites e um mundo de papéis perfumados de promessa. Era uma festa cada vez que o carteiro surgia aos berros no portão — e o cachorro, em sua travessura jubilosa, corria para decidir se abocanhava a correspondência ou a canela do mensageiro. Para minha sorte, as cartas sempre saíam ilesas, e o carteiro, rendido ao afeto canino, acabou tornando-se seu amigo fiel.

Essa intimidade com a comunicação epistolar moldou profundamente meu modo de existir. Eu era feito de envelopes, selos e expectativas. Foi só com o avanço da internet discada — não ria, se você não conheceu esse período quase paleontológico da tecnologia — que o velho ritual começou a se dissolver no ar.

Eu tinha treze anos quando a internet se abriu ao público brasileiro, em 1995. Antes disso, a primeira conexão do país com esse vasto organismo digital surgira em 1991, restrita ao ambiente acadêmico, um fio sutil estendido entre a FAPESP e universidades norte-americanas. Só em 1995 é que a Internet se tornou comercial, ganhando corpo, voz e acesso às casas comuns — e lentamente transformando o modo como o mundo nos encontrava.

Entre o fim de 1999 e o alvorecer de 2000, quando a América Online Brasil — a lendária AOL — abriu seus portões digitais, eu celebrei com a euforia de quem observa o surgimento de uma nova constelação. Mas não era apenas a AOL que brilhava no céu da conexão: havia também a BOL (Brasil On-Line) e a iG (Internet Group), dois mastros importantes desse universo nascente. A BOL foi lançada em abril de 1996 pelo Grupo Abril e, pouco depois, incorporada ao UOL – daí você entender porque vinha com CDs de gratuidade junto de revistas. Em outubro de 1999, tornou-se pioneira no Brasil como provedor de e-mail gratuito, e em agosto de 2000 já contabilizava mais de 4 milhões de contas registradas. Já a iG (Internet Group) lançou-se no mercado por volta de 2000, oferecendo desde então serviços de portal, notícias e provedor discado.

Era um tempo em que o futuro ainda vinha pelo correio: envelopes espessos, propaganda reluzente, e, dentro deles, pequenos discos prateados que prometiam acesso a um reino invisível. Revistas que eu assinava, lojas que queriam seduzir clientes, empresas em busca de um aceno… todas me enviavam aqueles CDs de instalação, talismãs modernos que iluminavam a mesa onde eu os empilhava como quem coleciona luas. E havia mais — encontravam-se à venda nas livrarias, repousando entre romances e manuais, ou então como brindes esquecidos em bancas de jornal, supermercados, esquinas. Cada um sussurrava a mesma promessa: horas grátis de internet discada.

Mas a internet discada… ah, essa criatura de outra era — é preciso contá-la para quem nasceu depois, para quem nunca ouviu sua voz. Ela não era uma corrente silenciosa como hoje, mas um ritual. Primeiro, conectava-se o cabo telefônico ao computador, como se costurássemos dois mundos distintos. Depois, ao clicar em “conectar”, começava um canto estranho: estalos metálicos, guinchos agudos, um zumbido que parecia emergir das entranhas da própria máquina. Era o modem chamando um outro modem, dois espíritos tentando se reconhecer através dos fios da casa inteira. Só quando o ruído terminava — um suspiro final, quase um selo — é que o portal se abria.

E, no instante da conexão, a casa mudava. O telefone se calava, interditado. Tudo parecia suspenso, como se a própria noite prendesse a respiração. A internet era lenta, sim, mas tinha a intensidade de algo recém-nascido, algo que exigia presença, paciência, quase devoção. As páginas se formavam em lentas camadas, revelando-se como pintura que se completa aos poucos. Cada segundo era conquista. Cada minuto, descoberta. A simples chegada a um site tinha o gosto cerimonioso de atravessar um corredor de velas.

Assim era o mundo naquela época: mágico em sua precariedade, terno em seu barulho estranho, íntimo como um segredo compartilhado entre máquinas e humanos. E eu, cercado de meus inúmeros CDs cintilantes, acreditava, com a mesma fé dos alquimistas, que ali — naquele chiado de modem, naquele fio que roubava o telefone — residia o início de algo que mudaria tudo.

Dentre as muitas novidades trazidas pela internet, o e-mail, era uma forma mais rápida de correspondência. Acho que minha primeira conta de e-mail foi exatamente com a BOL — esse endereço @bol.com.br que, para mim, era como possuir uma chave para atender o mundo. E, sim, a BOL ainda existe — embora seu papel tenha mudado bastante com o tempo, ela continua funcionando dentro do universo do UOL. Talvez não resista mais à velocidade vertiginosa da internet moderna, mas no meu horizonte adolescente ela era tudo.

Mas, para usar E-Mail, naquela época, era preciso estar atualizado; entrei em cursos de informática e de como usar a internet, algo que, na época, era extremamente moderno, chique até. Uma verdadeira evolução: eu ainda usava máquina de escrever, e aprender comandos de computador era quase uma revolução. Somente nos anos 2000, com o início da internet banda larga, houve o declínio da AOL e das demais conexões discadas. Mas aquele barulhinho de modem, inconfundível, ainda ecoa na memória.

A minha correspondência física aumentou com a chegada do e-mail, que chegava mais rápido, e com a automação das malas diretas que despachavam materiais para mim. Até o ano 2000, recebia muitas cartas físicas, muito mais do que e-mails — completamente diferente do que acontece hoje, quando tudo é feito por e-mail ou WhatsApp.

Mas eu sempre tive uma devoção quase litúrgica pelas cartas. Colecionava papéis de carta como quem guarda fragmentos de um mundo mais delicado — alguns eram tão belos que eu jamais ousava escrever neles, preservados como relíquias. Ajuntava também selos, moedas antigas, cartões de felicitação que pareciam carregar ecos de outras vidas. E me encantavam, sobretudo, os livros em que a alma da narrativa era conduzida por correspondências — como se a história respirasse através de envelopes.

Entre esses livros, havia um farol: Drácula, de Bram Stoker. E o curioso é que minha primeira leitura não foi num volume impresso, mas num ritual quase clandestino. Eu tinha treze anos quando, graças à internet discada, consegui acessar uma biblioteca britânica que oferecia o romance para download gratuito. A lentidão daquela conexão — e seu feitiço — exigia astúcia. Cada CD de acesso garantia apenas uma hora de navegação, e os arquivos eram pesados demais para abrir sem paciência monástica. Assim, inventei um método: abria o livro digital com a solenidade de quem empurra uma porta antiga, e tentava imprimir um capítulo por vez, se o tempo, o modem e os deuses da conexão permitissem.


Demorei semanas inteiras para conquistar todas aquelas páginas, capítulo após capítulo, como quem recolhe peças de um corpo adormecido. E quando enfim tive o livro completo nas mãos — impresso, desalinhado, mas inteiro — senti que não possuía ainda a história em sua profundidade; havia apenas trazido Drácula até mim, página a página arrancada ao fluxo caprichoso daquela internet pré-histórica, como quem convoca uma presença que ainda precisa ser decifrada (se tiver curiosidade, veja ISSO).

E, para completar o ritual, havia o temperamento instável das primeiras impressoras — criaturas barulhentas, quase ofegantes. Às vezes engasgavam com o papel, mastigando bordas e cuspindo folhas tortas; outras, famintas de toner, entregavam páginas pálidas, quase ilegíveis, como se o próprio texto se dissolvesse em névoa. Era comum precisar recomeçar tudo, paciente e obstinado, até que cada capítulo viesse ao mundo com alguma dignidade. E assim, entre rangidos mecânicos e páginas renascidas, o livro ia tomando forma — fragmentado, imperfeito, mas meu.


Depois disso, surgiu outro desafio: eu já entendia inglês, talvez até melhor do que hoje, mas não sabia se meu inglês era suficiente para compreender tudo. Descobri então a possibilidade de usar dicionários online, e isso ajudou muito. Minha impressão do livro se tornou uma verdadeira aventura: cheia de rabiscos, círculos em palavras inglesas, setas apontando traduções… um mapa pessoal, detalhado, que acompanhava cada frase, cada mistério do texto.

E por que contar tudo isso? Porque, ao falar hoje da torta Karpatka, descubro que meu caminho até ela passa exatamente por essas memórias: cartas enviadas e recebidas, CDs de internet discada, páginas engolidas e cuspidas por impressoras primitivas, rabiscos de tradução, coleções que guardavam o mundo em miniatura, bibliotecas virtuais que rangiam como portas antigas. Tudo isso se enlaça e, como num feitiço suave, conduz direto a Drácula, de Bram Stoker — ponte delicada e inesperada entre minha adolescência inquieta e o bolo polonês que evoca os Cárpatos, a névoa gótica, os picos irregulares e a doçura clandestina da descoberta.


DRÁCULA DE BRAM STOKER E A REPRESENTAÇÃO DOS CÁRPATOS

Eu não nego: sempre tive uma queda visceral pelos vampiros — esses ícones da literatura fantástica que vivem entre o sagrado e o proibido. E entre todos eles, Drácula permanece como o monarca absoluto, a sombra mais alta, o eco mais persistente.

Meu fascínio era tão vasto, tão antigo em mim quanto um perfume esquecido numa gaveta de infância, que, anos depois, nos corredores silenciosos do meu Mestrado em Turismo, não pude senão transformá-lo em objeto de devoção acadêmica. Ali, entre mapas, teorias e madrugadas insones, ele tomou forma de pesquisa — e dessa alquimia nasceu um artigo científico, “Turismo e balcanismo a partir do Drácula de Bram Stoker”, publicado em 2015 pela RITUR, a Revista Iberoamericana de Turismo.

Foi nesse mergulho profundo, quase um pacto silencioso com sombras e arquivos, que encontrei uma verdade tão inquietante quanto sedutora: o Drácula vampiro que o Ocidente venerou com ardor — esse monarca noturno, envolto em mitos e sangue literário — permanecera, por décadas, quase invisível aos olhos de seu próprio povo. Como se o vampiro houvesse sido expulso do solo que o concebeu, para então renascer, glorioso e distorcido, nas páginas estrangeiras que o adotaram. Um exilado tornado lenda, retornando apenas em eco. Para quem desejar se aprofundar nesse labirinto fascinante, o artigo está disponível aqui: AQUI,


O “castelo de Bram” — a sedução turística do mito. Há um castelo na Romênia que muitos juram ser o lar de Drácula — e de certa forma ele é, mas somente no mesmo sentido em que um palco se torna, por uma noite, a morada temporária de um personagem inventado. O Castelo de Bran, com suas ameias afiadas e paredes brancas que cintilam como ossos sob a neve dos Cárpatos, tornou-se o castelo de Bram: a versão turística, cuidadosamente polida, de um lar imaginado por Bram Stoker, apesar de o escritor jamais ter cruzado aquelas montanhas. Ele é vendido ao viajante com a mesma doçura ardilosa com que um confeiteiro oferece um doce que parece antigo, mas foi criado na véspera. Seu interior ecoa de histórias, sim — mas são histórias herdadas, moldadas pelo desejo ocidental de encontrar, naquele penhasco, a morada do vampiro mais célebre do mundo. Não é o castelo do romance, e tampouco é o castelo verdadeiro de Vlad. Mas é, talvez, o castelo que os turistas querem ver: cênico, gótico, quase teatral.

Mas voltemos ao que importa aqui. A primeira coisa que me arrebatou em Drácula foi seu formato: o romance inteiro é tecido como uma grande colcha epistolar. Diários, cartas, telegramas, recortes de jornal e, em algumas partes, memorandos — cada fragmento é uma janela entreaberta, cada voz uma pulsação distinta, cada documento uma peça de um mosaico de horror e fascínio. É como seguir as pegadas de uma criatura que nunca se mostra inteira, mas cuja presença se insinua em cada página, em cada silêncio. Uma aventura fragmentada e febril, construída sobre o vampiro mais célebre do imaginário humano — entidade que, desde então, habita algum canto meu, tão viva quanto as velhas cartas guardadas em caixas e gavetas.

Naquela época, ainda não conhecia Carmilla, de Joseph Sheridan Le Fanu, publicada em 1872 — vinte e cinco anos antes de Drácula. Essa novella gótica possui um peso quase ancestral: uma das primeiras histórias de vampiros claramente delineadas na literatura moderna. Introduz uma vampira feminina que estabelece uma relação íntima e intensa com a protagonista Laura, carregada de um subtexto homoerótico sutil, e deixou marcas profundas em muitas obras que se seguiram, inclusive Drácula.

Ainda assim, foi o cinema ocidental que, provavelmente, me conduziu primeiro ao conde vampiro transilvano. Confesso que degustava o livro aos poucos, com a ansiedade de quem prova uma iguaria proibida. Fiquei particularmente impactado — e enlevado, e um tanto constrangido — com as passagens das chamadas “prostitutas do demônio”. (Ria-se, se quiser; eu ria comigo mesmo)

Desde as primeiras páginas, Stoker constrói um mundo vívido e opressivo, descrevendo tudo com uma riqueza de detalhes que beira o ritual: os picos sombrios dos Cárpatos, a névoa que escorrega sobre os vales, o frio cortante que parece penetrar pelas palavras, e, é claro, o próprio monstro que paira nas sombras. Para não deixar o relato demasiado extenso — como se eu conseguisse domar a vastidão do texto original — deixarei apenas alguns trechos, acompanhados de minha própria tradução, selecionados com cuidado, como se cada fragmento fosse uma joia escolhida para revelar o essencial da presença gótica que me fascinou.

“Diário de Jonathan Harker

Local: Bistritz, Transilvânia

3 de maio de 1897.

Saí de Munique no dia 1º de maio, às 20h35, e cheguei a Viena na manhã seguinte; deveria ter chegado a Bistritz na manhã de 5 de maio, mas o trem atrasou. Ao atravessar a fronteira húngara, percebi uma mudança completa na paisagem e nas pessoas. [...] À medida que avançávamos, o caminho se tornava cada vez mais acidentado, e finalmente entramos nos Cárpatos, uma das regiões mais selvagens e menos conhecidas da Europa. Nunca tinha visto nada igual à beleza de suas encostas e vales profundos, das florestas de faias e pinheiros, e das ravinas que, de vez em quando, se abriam diante de nós.” 

“Diário de Jonathan Harker

4 de maio — A caminho dos Cárpatos.

A região dos Cárpatos é cheia de uma beleza selvagem e misteriosa. As pessoas que encontrei são de muitos tipos — saxões, magiares e valáquios —, mas todas parecem possuir uma superstição profunda. Quando mencionei o nome do Conde Drácula, os camponeses se benzeram e recusaram-se a continuar o assunto. [...] É curioso observar como essas montanhas parecem esconder segredos antigos, como se cada colina tivesse sua própria história e cada vale seu espírito guardião.” 

“Diário de Jonathan Harker

5 de maio de 1897. Castelo do Conde Drácula.

O crepúsculo caía quando partimos de Bistritz. As sombras das montanhas estendiam-se como asas gigantes sobre o vale, e o frio tornava-se mais intenso à medida que subíamos. O luar surgiu entre as nuvens, iluminando os picos nevados dos Cárpatos, que se erguiam diante de nós como muralhas ciclópicas. O cocheiro, envolto em seu grande manto, parecia fazer parte da própria noite. Tudo era tão estranho e silencioso que comecei a sentir um pressentimento de estar entrando em um mundo que não era mais dos vivos.”

À medida que lia cada trecho do diário, cada carta, sentia-me como Jonathan Harker atravessando os Cárpatos: a paisagem mudava diante de meus olhos e, ao mesmo tempo, a minha própria percepção se transformava. As montanhas, com suas encostas misteriosas e vales profundos, não eram apenas cenário; tornavam-se parte de um ritual de iniciação, guiando-me pela cultura, pelos costumes e pelo folclore da Transilvânia. Cada camponês supersticioso, cada aldeia banhada pela névoa, cada lenda sussurrada através das páginas me arrastava para dentro de um mundo que pulsava com histórias ancestrais, onde o medo e a fascinação se entrelaçavam.

Ler Drácula não era apenas absorver palavras; era permitir que meu próprio poder de imaginação tomasse forma. Cada frase, cada descrição, era um convite silencioso: eu não apenas acompanhava Jonathan Harker pelos Cárpatos, eu os habitava. Eu sentia o frio cortar a pele, a névoa subir pelos vales, os sussurros do folclore romeno e o peso ancestral das montanhas.

A leitura, nesse sentido, não me conduzia sozinha — era minha própria mente que erguia castelos, que espalhava sombras, que encarnava a presença do Conde Transilvano. O livro oferecia o mapa, e eu traçava os caminhos, respirava o ar, temia e desejava. Esse é o verdadeiro poder da literatura: não o de impor imagens, mas o de liberar o que já reside em nós, esperando apenas a centelha das palavras.

Houve outro momento, no livro, que me marcou profundamente: o primeiro encontro de Jonathan Harker com o próprio Conde Drácula. É uma passagem que condensa o terror e a fascinação, como se cada gesto do vampiro estivesse carregado de uma força silenciosa capaz de penetrar a alma do visitante.

Quando Harker chega ao castelo, Drácula o recebe com uma cortesia quase ritual, conduzindo-o por escadas sinuosas, corredores silenciosos e aposentos gelados. A primeira impressão é de estranheza e hospitalidade ao mesmo tempo, como se cada gesto escondesse uma intenção secreta: “Bem-vindo à minha casa! … Entre, o ar da noite está frio, e você deve precisar comer e descansar.”

O Conde ajuda Harker com sua bagagem e o leva pelos corredores sombrios, deixando claro que cada pedra, cada porta do castelo tem seu próprio ritmo, sua própria história. É uma recepção cortês, mas carregada de suspense, onde o frio da noite parece infiltrar-se nas palavras. Deposi de instalado, eles descem para o jantar. Mas, aí, Harker, revela a primeira fissura entre anfitrião e hóspede: Drácula não come com ele, mantendo uma distância silenciosa que causa estranheza e tensão. “Sente-se e jante como lhe aprouver … rogo que me desculpe … eu já jantei, e não sou de ‘supper’.” (supper = uma refeição leve à noite).

Harker observa que Drácula já jantou, reforçando uma distância quase ritual entre eles. Enquanto isso, ele próprio come sozinho — frango assado, queijo, salada e vinho Tokay — e nota pequenos detalhes, como o cigarro que o Conde oferece, apenas para recusar em seguida: uma cortesia enigmática, uma pista de que ali tudo funciona segundo regras próprias.

Após a refeição, Harker decide explorar o castelo. Encontra uma biblioteca com muitos livros em inglês, mas logo percebe que não há servos, nenhum som humano além do uivar distante dos lobos. Portas trancadas se multiplicam à sua frente, como barreiras silenciosas. Ele sente a vastidão do lugar, a solidão e a sensação de ser um intruso: “Portas, portas, portas por toda parte, e todas trancadas… O castelo é uma verdadeira prisão, e eu sou um prisioneiro!”

É nesse clima de beleza selvagem e silêncio opressivo que a presença de Drácula se faz sentir: cortês e ao mesmo tempo inquietante, distante, mas profundamente invasiva, como se cada gesto do anfitrião deixasse rastros de algo sobrenatural. A primeira noite é marcada por essa tensão inicial, que combina recepção elegante e mistério latente, preparando o terreno para o que está por vir.

Com o recolhimento, e a volta ao aposento, ele percebe o toque sutil de uma mão, o olhar que brilha com intenções indecifráveis, o mistério absoluto que se mantém mesmo sob a luz do dia — tudo isso cria uma tensão quase física no leitor, uma sensação de proximidade com algo que não deveria existir. É nesse instante que a narrativa deixa de ser apenas relato e se torna experiência: sentimos o frio da pedra do castelo, o perfume das sombras e a inquietação de Harker como se fossem nossos próprios sentidos despertando para o sobrenatural.

“Diário de Jonathan Harker

8 de maio de 1897. Castelo do Conde Drácula.

Comecei a temer, enquanto escrevia neste livro, que estivesse sendo demasiado prolixo; mas agora me alegro de ter entrado em detalhes desde o início, pois há algo tão estranho neste lugar — e em tudo o que nele habita — que não posso deixar de me sentir inquieto… Pendurei meu espelho de barbear junto à janela e estava apenas começando a me barbear, quando, de repente, senti uma mão no meu ombro e ouvi a voz do Conde dizendo: ‘Bom dia.’ Mas não havia reflexo dele no espelho! … Seus olhos brilharam com uma espécie de fúria demoníaca, e ele subitamente tentou agarrar minha garganta.”

Esse encontro, registrado por Harker, é carregado de tensão sobrenatural e simbolismo. É como se, naquele instante, a própria realidade se rompesse: o Conde Drácula, presente e invisível, tão próximo que pode tocar seu ombro — mas sem refletir no espelho, como se não pertencesse ao mundo normal. Esse gesto é uma declaração: ele não é um anfitrião comum, mas uma criatura que desafia as leis da natureza.

Quando seus olhos “brilham com uma fúria demoníaca” diante do sangue, é como se despertasse algo primal, uma sede ancestral e terrível. A mão que toca a garganta de Harker é tanto uma ameaça física quanto um convite sombrio: ao mesmo tempo, poder e perigo se entrelaçam. Há intimidade, mas também violência.

Para mim, esse momento revela o poder dual de Drácula: ele seduz, fascina, mas também domina. Não é apenas um aristocrata misterioso — é um ser cuja presença exige entrega e medo.

E para quem lê, esses fragmentos são como um espelho quebrado: não vemos tudo de uma vez, mas somos arrastados para a escuridão, justamente porque a imaginação corre solta, preenchendo cada lacuna com nossos pensamentos mais íntimos.

Esse encontro inicial entre Harker e o Conde é, para mim, o ápice da sedução gótica: é aí que o véu entre a curiosidade e o horror se rasga, e começamos a vislumbrar quem Drácula realmente é — não apenas nas palavras, mas no silêncio, na sombra e no reflexo que falta.

Pequenos indícios de prazeres proibidos, de encontros carregados de tensão e desejo, começavam a se insinuar com a leitura, como se sob a majestade das montanhas e a serenidade do luar existisse uma escuridão viva, pronta para se revelar.

Esse prenúncio se tornaria evidente em um dos momentos mais perturbadores e fascinantes do livro: a aparição das chamadas “prostitutas do demônio”, vampiras que misturam sedução e perigo em cada gesto.

O impacto desse episódio é múltiplo. Por um lado, senti o perigo físico — o toque, o olhar, os dentes afiados — e a iminência de uma violência literal. Por outro, percebi a tensão sexual quase hipnótica, que não se reduz ao horror: há um prazer perverso e proibido, que o próprio Harker sente, e que eu, enquanto leitor fui compelido a imaginar.

As representa das "moças" no cinema!

No episódio das chamadas “prostitutas do demônio”, é importante notar que não é Mina Harker quem fala diretamente, mas sim Van Helsing, que transcreve e comenta os eventos a partir de seu conhecimento e interpretação do diário de Mina.

“Diário de Mina Harker

6 de novembro 1897

Serei paciente, meu amigo. Não é um inimigo comum com quem lidamos. Ai! Ai de nós que a querida senhora Mina tenha de sofrer! Ele não é o próprio demônio, embora seja de sua linhagem; mas, oh meu Deus! que ‘demônios do Inferno’ eram aquelas criaturas que irromperam sobre nós pela garganta daquela criança? E estamos todos — como estamos, e como haveremos de estar.”

 Aqui, Van Helsing narra a aparição das três vampiras no diário de Mina, reforçando o caráter sobrenatural e aterrador das “Noivas de Drácula”, e preparando o leitor para o confronto entre fascínio e medo.

Enquanto Van Helsing nos alerta, através de sua narração do diário de Mina, para a presença demoníaca e sexualmente carregada das vampiras, Jonathan Harker experimenta esse mesmo terror em primeira pessoa. É ele quem presencia, no castelo, a aproximação dessas criaturas, sentindo a tensão e o perigo de forma quase física: o toque suave e estremecente dos lábios na garganta, a pressão firme dos dentes, os olhares hipnóticos e sussurros sedutores.

Bram Stoker constrói essas cenas com uma delicadeza cruel, mostrando que a atração e o terror caminham lado a lado, e que o prazer não está dissociado do perigo.

Jonathan Harker — 15 de maio 1897

“Eu não estava sozinho. O quarto era o mesmo, mas de algum modo diferente. Embora tivesse fechado as venezianas, o luar entrava pelas frestas, e havia luz suficiente para ver. Eu podia ver seus rostos pálidos, olhos brilhantes e duros, dentes brancos, línguas vermelhas que tocavam os lábios. Senti em meu coração um desejo perverso e ardente de que me beijassem com aqueles lábios vermelhos. Não é bom registrar isto, para que Mina não leia e sofra, mas é a verdade. Elas sussurraram entre si e depois riram uma risada prateada e musical, mas amarga. A moça loura avançou e inclinou-se sobre mim. Senti o toque suave e estremecente de seus lábios na minha garganta, e a pressão firme de seus dentes arranhando minha pele. Fechei os olhos em êxtase lânguido e esperei — esperei com o coração a bater.”

Aqui, a tensão que Van Helsing descreve ganha corpo e intensidade nos olhos de Harker. O leitor sente a mistura de fascínio, medo e desejo que permeia o encontro: a ameaça física se entrelaça com a sedução sexual, e cada gesto das vampiras revela a duplicidade de sua natureza — ao mesmo tempo bela e monstruosa. Esse momento destaca o poder de Stoker em transformar uma cena de terror em experiência sensorial: não lemos apenas os acontecimentos, quase os vivemos, sentindo a respiração gelada do castelo, o perfume do perigo e o magnetismo perverso das criaturas.

Ao mesmo tempo, essas cenas preparam o terreno para a intervenção de Drácula, que, como vimos, reivindica Harker como seu, reforçando a hierarquia perversa do harém de vampiras e a combinação de erotismo e controle absoluto que caracteriza sua presença. É nesse ponto que a narrativa se torna mais do que relato: ela nos arrasta para o mundo gótico e insólito que Stoker construiu, fazendo o sobrenatural palpitar como se fosse real diante dos nossos sentidos.

Drácula interrompe as vampiras

“A moça ajoelhou-se e inclinou-se sobre mim, quase se deleitando. Havia nela uma voluptuosidade deliberada, excitante e repulsiva, e ao arquear o pescoço chegou a lamber os lábios como um animal. Nesse instante, o Conde abriu a porta e, com uma palavra feroz, puxou-a para trás. Seus olhos faiscavam. “Como ousas tocá-lo? Este homem pertence a mim!” Depois, voltando-se para as outras, disse: “Vamos! Vamos! Serei vosso pai no devido tempo; mas ainda não. Ainda não! Vão, eu ordeno!”

Aqui, a citação não é apenas uma descrição de ação: é um instante de tensão máxima, em que o terror e o desejo se entrelaçam. O leitor sente a proximidade do perigo e, ao mesmo tempo, a estranha sedução da cena, como se estivesse espiando um mundo onde as regras humanas são subvertidas. Cada gesto do Conde, cada olhar das vampiras, cada hesitação de Harker nos coloca dentro da narrativa, fazendo-nos experimentar a mistura de medo, fascínio e perversidade que Stoker domina com precisão quase ritualística.

Apesar de muitas outras cenas se seguirem no romance, não me detenho nelas aqui. A intenção é apenas dar um vislumbre do poder de Stoker em criar experiências que nos fazem imaginar — quase sentir — cada toque, cada olhar, cada sombra. É nesse entrelaçar de horror e sedução, de controle e prazer, que a narrativa alcança seu efeito mais profundo: não apenas nos contar uma história, mas nos fazer viver a intensidade do gótico que transcende o papel impresso.

O Monte Cárpatos e o Bolo que Eleva Seu Nome

Após explorar a narrativa epistolar de Bram Stoker em Drácula e as descrições vívidas dos Cárpatos nas anotações de Jonathan Harker, percebo como a literatura gótica se alimenta de geografia e folclore. Não é por acaso que Stoker escolheu os Cárpatos como cenário do castelo do Conde — uma região de montanhas imponentes, florestas densas e mitos antigos, perfeita para o sobrenatural.

A ligação entre o mundo literário e o mundo real dos Cárpatos pode ser observada também em aspectos culturais inesperados, como a gastronomia: é aqui que a cordilheira empresta seu nome a um famoso bolo/torta polonês, mostrando como paisagens e tradições se entrelaçam com a imaginação humana.

As montanhas dos Cárpatos formam uma cordilheira de aproximadamente 1.500 quilômetros na Europa Central e Leste Europeu, estendendo-se em arco do oeste ao leste, da República Tcheca à Romênia. Entre elas, destacam-se os Tatras, na fronteira da Eslováquia com a Polônia, um parque nacional com vários picos acima de 2.400 metros. Mais da metade da cordilheira fica na Romênia, coberta por densas florestas de píceas, lar de ursos-pardos, lobos e linces.

Historicamente, essas montanhas carregam também uma rica mitologia. Na Transilvânia e arredores, histórias sobre vampiros, espíritos e seres sobrenaturais eram transmitidas de geração em geração. Lendas sobre bruxas, guardiões das montanhas e criaturas noturnas permeavam o imaginário popular. Stoker, ao situar o castelo de Drácula nesse cenário, aproveitou essas tradições para criar uma atmosfera que combina o exótico, o misterioso e o assustador.

Essa mesma fusão entre realidade e fantasia se reflete até em elementos aparentemente mundanos: o relevo das montanhas inspirou não apenas descrições literárias, mas também associações culturais, como o bolo que leva o nome dos Cárpatos. É uma lembrança de que o imaginário humano — literário, geográfico e até gastronômico — está profundamente interligado, e que, muitas vezes, o sobrenatural se esconde nas pequenas conexões entre mundo e narrativa.

A Transilvânia ergue-se como um coração selvagem encravado nos Cárpatos, onde a névoa se enrosca nos picos e desce pelas florestas densas, envolvendo vilarejos esquecidos pelo tempo. Cada vale estreito guarda o sussurro de séculos, e cada castelo de pedra parece observar, silencioso, a passagem das gerações. É nesta terra que a realidade se dobra sobre a lenda: onde a história de Vald, o Empalador, se mistura ao imaginário coletivo, e onde as sombras de Drácula, figura literária que nasceu da alma da região, caminham lado a lado com o vento que sopra das montanhas.

Vlad III da Valáquia, conhecido como o Empalador, não foi apenas um príncipe de ferro; sua presença era capaz de inspirar temor e respeito, transformando a crueldade em lenda viva. Suas campanhas contra invasores otomanos, marcadas por punições horrendas, deixaram memórias gravadas nas pedras e nos relatos dos aldeões. Com o tempo, a figura de Vlad se fundiu ao mito do vampiro, criando uma aura de terror e fascínio que atravessou fronteiras e desembocou nas páginas de Bram Stoker, alimentando a imaginação coletiva do Ocidente.

Vlad III, O Empalador, o Drácula da vida real.

Mas a Transilvânia vai além da história e da literatura: é folclore pulsante. Nas florestas sombrias, contam que espíritos da noite percorrem trilhas invisíveis; que bruxas dançam sob a luz da lua cheia; que lobos e corvos atuam como mensageiros entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Lendas de strigoi — almas inquietas que retornam para assombrar os vivos — povoam casas e capelas de pedra, enquanto amuletos e rituais de proteção sobrevivem de geração em geração, como se cada aldeia guardasse um segredo antigo e perigoso.

A Transilvânia é, portanto, um território de tensão e sedução, onde a beleza agreste da natureza convive com uma sombra permanente de mistério. Cada torre, cada muralha de castelo, cada cemitério abandonado carrega ecos de histórias que desafiam a razão e convidam à imaginação. Caminhar por essas terras é percorrer uma ponte entre o real e o fantástico, entre o concreto das montanhas e o etéreo das lendas. É nesse cenário gótico e indomável que Drácula se solidifica como mito — um lugar onde o sobrenatural parece tangível, quase capaz de tocar a pele de quem ousa explorá-lo.

E assim, entre as florestas densas, os cumes nevados dos Cárpatos e a memória de um príncipe que impunha sua justiça com mão de ferro, a Transilvânia se revela não apenas como território, mas como experiência sensorial e emocional: medo e fascínio entrelaçados, beleza e crueldade coexistindo numa dança atemporal, enquanto o visitante percebe o chamado silencioso das sombras, murmurando histórias antigas… e sente, de maneira surpreendente, o eco dessas montanhas traduzido no Karpatka, o bolo que transforma picos nevados em doçura palpável.

Ao atravessar os Cárpatos poloneses, percebe-se a continuidade de um território mítico que, embora distante das fortalezas da Transilvânia, compartilha a mesma aura de mistério e reverência pela natureza indomável. A Polônia se insere nos Cárpatos como um contraponto gelado e encantador, onde o clima rigoroso e as neves eternas moldam picos que inspiram tanto contemplação quanto imaginação.

É nesse cenário que a cultura polonesa encontrou nos relevos da cordilheira inspiração para transformá-los em arte comestível. A massa ondulada do Karpatka, com suas camadas de creme e plissados que recriam as silhuetas irregulares dos picos, leva à mesa a sensação de caminhar pelos cumes nevados: cada fatia é um convite para tocar, ver e saborear as montanhas, unindo memória, geografia e prazer.

Os Cárpatos poloneses, assim, deixam de ser apenas montanhas: tornam-se território de experiências, de histórias sussurradas e de mitos vivos, onde se sente a magnitude da natureza e a magia das alturas. Nesse espaço, as lendas da Transilvânia, o frio da neblina e os ecos dos contos de vampiros encontram um diálogo inesperado com a rusticidade e a doçura do Karpatka, permitindo que o leitor-saboreador viva, em cada mordida, o encontro entre geografia, mito e gastronomia.

KARPATKA: O BOLO/TORTA QUE TRANSFORMOU AS MONTANHAS EM DOÇURA

O Karpatka (pronuncia-se car-pat-kah) é muito mais que um bolo polonês popular; é uma experiência sensorial que leva à mesa a majestade e a rusticidade dos Cárpatos. Composto por duas camadas de massa choux — a mesma delicada massa usada em éclairs e bombas de creme — e recheado com creme mousseline, o Karpatka conquista tanto o olhar quanto o paladar. A superfície irregular, polvilhada com açúcar de confeiteiro, evoca perfeitamente os cumes nevados das montanhas, tornando cada fatia uma reprodução comestível da paisagem.

Mais do que uma simples sobremesa, o Karpatka transforma o rústico em sublime. Ele nasceu inspirado na Kremówka, o clássico “Bolo de Creme Papal” (Kremówka Papieska), originária de Wadowice, na Polônia, que conquistou o jovem Karol Wojtyła — futuro Papa João Paulo II. Conta-se que, após os exames escolares, ele devorava dezenas de fatias com os amigos, experimentando o prazer da sobremesa sem qualquer vestígio de arrependimento.

A Kremówka, originária de Wadowice, já era apreciada pelo jovem Karol Wojtyła no início do século XX, décadas antes de surgir o Karpatka, que só foi desenvolvido como versão robusta do doce nos anos posteriores, inspirando-se tanto na tradição da Kremówka quanto na aparência irregular das montanhas dos Cárpatos.


A Kremówka, feita com delicadas camadas de massa folhada intercaladas por creme de confeiteiro e polvilhada com açúcar, carrega consigo a memória da juventude do Papa e a tradição de uma cidade que respira história a cada fatia. Décadas mais tarde, inspirados por essa herança e pelas montanhas que atravessam a Polônia, confeiteiros criaram o Karpatka: uma versão robusta, feita de massa choux ondulada e creme generoso, cuja superfície irregular lembra os picos nevados dos Cárpatos.

Enquanto a Kremówka evoca doçura, nostalgia e simplicidade, o Karpatka propõe uma experiência tátil e gustativa distinta — firmeza e cremosidade combinam-se como encostas irregulares e vales nevados, transformando cada mordida em uma travessia sensorial. Assim, a tradição se reinventa, mantendo viva a conexão entre memória, território e sabor, unindo a história de Wadowice ao imaginário das montanhas polonesas.

O Karpatka pode ser assado em formato retangular, cortado em quadrados perfeitos, ou em formato redondo, em fatias que convidam a dividir o prazer. Mais do que sabor, oferece uma experiência emocional: cada camada de creme, cada ondulação da massa, cada nuvem de açúcar de confeiteiro transporta quem degusta para o território das montanhas, para o diálogo entre natureza e cultura, mito e cotidiano, frio das alturas e calor da doçura.


O Karpatka, assim, não é apenas um bolo: é geografia, história e poesia comestível, uma ponte que transforma o imaginário em sabor, e as montanhas, em experiência viva e palpável.

Há rumores de que a forma atual do Karpatka tenha surgido por acidente, quando um confeiteiro uniu inadvertidamente várias folhas de massa folhada. Para corrigir o problema, cortou a massa ao meio e recheou com creme. Ao polvilhar açúcar de confeiteiro sobre o topo, o resultado evocava imediatamente as colinas nevadas dos Cárpatos, transformando um erro em uma assinatura visual e sensorial que permanece até hoje.

Segundo livros didáticos de gastronomia, o Karpatka pertence à família dos ciasta parzone (ptysiowe), massas cozidas que formam a base de muitos doces tradicionais poloneses: Konarzewska, M. Technologia gastronomiczna z towaroznawstwem: podręcznik do nauki zawodu kucharz w technikum i szkole policealnej. T. 2. Warszawa: Wydawnictwa Szkolne i Pedagogiczne, 2011, p. 116; e, Flis, K.; Procner, A. Technologia gastronomiczna z towaroznawstwem: podręcznik dla technikum. Część 2. Warszawa: Wyd. XVIII.

O primeiro produto pré-fabricado que facilitou a produção doméstica do Karpatka surgiu em 1986 pela Kujawskie Zakłady Koncentratów Spożywcze w Włocławek, atualmente conhecida como Delecta SA. Em 1995, mesmo ano em que a internet se abriu ao público no Brasil, a marca Karpatka foi registrada oficialmente no Escritório de Patentes da Polônia. Um produto similar lançado em 1996 pela Dr. Oetker deu origem a uma disputa judicial que se estendeu por 12 anos, sendo finalmente resolvida em 2011 a favor da Delecta SA.

Como o Bolo Karpatka é Preparado

Para quem já tentou fazer massa choux em casa, sabe que a técnica exige atenção. O segredo está em preparar corretamente a massa e garantir a consistência ideal, para que o resultado seja leve, aerado e firme. O recheio é um creme mousseline, feito com creme de confeiteiro misturado à manteiga batida, garantindo maciez e cremosidade.

             De repente, esse bolo pode ser uma das suas sobremesas pro Natal!

A Karpatka tradicionalmente tem duas camadas de massa choux, sendo a inferior coberta com geleia e recheio, e a superior colocada por cima, polvilhada com açúcar de confeiteiro. Conforme as referências gastronômicas, a camada inferior poderia ser massa quebrada, e a superior, massa choux, mas a versão mais popular utiliza massa choux em ambas as camadas.

O nome Karpatka reflete diretamente a aparência: o relevo ondulado da massa choux polvilhada de açúcar lembra os picos nevados dos Montes Cárpatos — Karpaty em polonês. Dizem, que primeira menção do nome "karpatka" encontra-se em um livro didático de 1972, publicado por estudantes de filologia polonesa, onde a palavra designava biscoitos, mas não encontrei vestígios reais nem fonte confiáveis sobre isso.

A popularidade da sobremesa se consolidou entre as décadas de 1970 e 1980, e hoje existem misturas prontas para prepará-la em toda a Polônia. Tradicionalmente, uma fatia generosa é servida com café ou chá.

CONCLUSÃO – ENTRE SOMBRAS, MONTANHAS E DOCE MISTÉRIO

Desde os primeiros momentos em que cartas cruzavam continentes, transportando segredos e desejos, até a explosão silenciosa da internet, capaz de atravessar fronteiras com um clique, o mundo parece sempre buscar maneiras de entrelaçar histórias, culturas e sabores. Cada linha escrita, cada página lida, cada gesto de memória tornou-se um fio invisível que me conecta ao passado distante das cordilheiras e às lembranças que elas carregam. É nesse fio delicado que os Cárpatos surgem, não apenas como montanhas, mas como guardiões de mistérios, testemunhas de lendas e palcos silenciosos de narrativas que desafiam o tempo.

Ao folhear as páginas impressas de Drácula, senti a sombra do Conde pairando sobre vales nevados, ouvi o eco de passos nas florestas densas, o sussurro de ventos que carregam mitos antigos. Entre essas lendas, cada pico, cada vale e cada floresta se tornam quase vivos: lar de lobos, linces e ursos-pardos, palco de assombrações e encantamentos, onde o sobrenatural se insinua na vida cotidiana. As histórias se entrelaçam com o ritmo das aldeias, onde tradições folclóricas preservam pedaços da alma das montanhas e do imaginário coletivo.

E, surpreendentemente, é nesse mesmo território que a memória se transforma em sabor: o Karpatka, com sua massa ondulada e creme generoso, traduz as encostas nevadas em experiência sensorial, permitindo que o visitante-saboreador toque, ainda que brevemente, a essência das cordilheiras. Assim, os Cárpatos não são apenas geografia; são território de memórias, de resistência, de sonhos e de sabores que atravessam gerações, unindo o mito à vida cotidiana, a sombra à doçura, o passado ao presente, em uma dança silenciosa entre realidade e imaginação.

E, como se a própria geografia quisesse se traduzir em doçura, surge a Karpatka. Não é apenas um bolo: é território em forma de sobremesa, memória em cada camada de massa choux ondulada, irregular, que imita os picos nevados e os vales profundos dos Cárpatos. O creme mousseline que se esconde entre as ondulações é como a neblina que envolve os cumes — suave, inesperada, impossível de ignorar. Ao provar a Karpatka, sentimos não apenas açúcar e creme, mas o frio da montanha, o silêncio das florestas e a rusticidade transformada em arte pela tradição polonesa. Cada mordida é um pequeno portal que nos leva a caminhar pelas encostas geladas, ouvir o vento entre árvores antigas e imaginar os mistérios guardados pelas alturas.

Assim como os contos góticos atravessam séculos, a Karpatka carrega sua própria história de lendas e acasos criativos. Um confeiteiro distraído, reorganizando massas folhadas, deu origem a uma sobremesa que, sem querer, recriava em açúcar e creme a grandiosidade dos picos. Décadas depois, estudantes de filologia registrariam seu nome, “karpatka”, e a marca se tornaria célebre, atravessando disputas judiciais e fronteiras, mostrando que mesmo a doçura pode ser palco de drama humano.

Cartas, livros, internet, lendas e bolo convergem em uma linha invisível que une imaginação, memória, sabor e história. Não se trata apenas de comer: é sentir os Cárpatos em cada fatia, tocar a neblina, ouvir os ventos antigos e experimentar o mistério que percorre cada curva da massa e cada nuvem de creme. A Karpatka é convite para atravessar o desconhecido, para transformar a sobremesa em experiência, a memória em presença, o simples ato de provar em ritual.

E, como toda história que preserva sua aura de mistério, a promessa permanece: a viagem não termina aqui. Os Cárpatos esperam, escondidos entre camadas de massa e creme, prontos para serem explorados em sua própria cozinha. Prepare-se para sentir o frio da neve, o silêncio das florestas e o encanto das lendas — tudo em uma única mordida. Os mistérios das montanhas, as sombras dos contos góticos e a doçura que atravessou séculos e continentes estão prestes a se revelar… à sua mesa.

KARPATKA

Para a massa choux (suficiente para 2 camadas):

1 xícara (250 ml) de leite

1 tablete (113 g) de manteiga

1 xícara (150 g) de farinha de trigo

5 ovos (médios)

Para o creme do recheio:

3 xícaras (750 ml) de leite

10 colheres de sopa (130 g) de açúcar refinado

1 colher de sopa (1 sachê, 16 g) de açúcar de baunilha, pode substituir por 1 fava de baunilha (sementes) ou 3 colheres de chá de extrato de baunilha

1 ovo

4 gemas

4 colheres de sopa (40 g) de fécula de batata

2 a 2,5 colheres de sopa (20 g) de farinha de trigo

350 g de manteiga, em temperatura ambiente (não pode ser margarina)

2 colheres de sopa (25 g) de açúcar refinado

Para polvilhar: Açúcar de confeiteiro

Preparo: Para a massa choux – Coloque o leite e a manteiga em uma panela. Aqueça em fogo médio-baixo, deixando a manteiga derreter no leite. Leve a mistura para ferver. Adicione 1 xícara de farinha e reduza o fogo. Mexa com um batedor de arame por alguns instantes até formar uma massa espessa e homogênea. Ela deve se soltar das laterais da panela com relativa facilidade. Retire do fogo e deixe esfriar. Depois de completamente fria, incorpore os ovos, um a um, misturando bem após cada adição. A massa deve ficar lisa, um pouco pegajosa e sem grumos. Divida a massa em duas partes. Use uma forma retangular grande (idealmente 23 x 33cm, mas pode preparar numa forma redonda média). Unte-a generosamente com manteiga e polvilhe com farinha. Coloque uma das partes da massa na forma e alise a superfície com uma faca de manteiga ou espátula. Se a massa estiver pegajosa, não se preocupe, isso é normal. Asse a 200 °C por 25 a 30 minutos, ou até que o bolo fique levemente dourado. Não abra o forno enquanto assa! Retire para esfriar numa gradinha e repita com outra porção da massa. Deixe esfriar completamente. Prepare o Creme – coloque para ferver, duas xícaras de leite (meio litro) com açúcar refinado e a baunilha que você vai usar. Numa tigela grande misture muito bem, a xícara restante de leite frio (250 ml) e adicione um ovo, 4 gemas, fécula de batata e farinha de trigo bem, se preferir passe por uma peneira para garantir que não ficou resíduos. Depois, acrescente o leite fervente aos poucos nessa mistura método conteúdo pra panela e continue mexendo até engrossar, depois que ferver, cozinhe bem por uns 5 minutos, mexendo sempre, até formar um creme homogêneo. Quando estiver satisfeito com a textura, retire do fogo. Cubra com filme plástico e deixe esfriar completamente. Na tigela da batedeira, coloque as 350 g de manteiga e duas colheres de sopa de açúcar refinado na tigela da batedeira. Bata até formar uma massa de manteiga leve e fofa (você pode fazer tudo na mão, mas vai demorar um pouco mais). Aos poucos, comece a adicionar o creme, algumas colheradas de cada vez, batendo continuamente. Depois de todo o creme misturado como a mistura de manteiga estiver bem incorporado, estará pronto. Montagem: Coloque uma camada de massa choux assada em um prato de servir para rechear com o creme e depois cobrir com a outra massa e levar para gelar por pelo menos duas horas. Ou, como alternativa, você pode forrar a mesma forma que assou o bolo com filme plástico, colocar a primeira camada de massa, rechear cobrir com outra camada de massa e levar para a geladeira por pelo menos duas pro recheio firmar, e só na hora de servir você desenforma, retira o filme plástico e coloca no prato de servir. E só então, polvilhe generosamente com açúcar de confeiteiro. Corte em porções com uma faca bem afiada.