terça-feira, 9 de dezembro de 2025

ISCA DA RAIVA: ENTRE A PALAVRA DO ANO, A VELHA TÉCNICA DE COZINHA E OS COZINHADOS DA CULTURA DIGITAL QUE TEMPERAM O MUNDO

 

Estava eu, nessa manhã tímida de luz — destas que se insinuam pela janela como um gato que exige colo — escrevendo para o blog. Buscava, com a atenção paciente de quem descasca lentamente uma fruta madura, ia a grafia correta de um termo em alemão, destinado a uma das minhas postagens natalinas. Era apenas um detalhe linguístico, uma pequena joia linguística que eu desejava polir antes de servir ao leitor — mas, como quase sempre acontece nas cozinhas digitais do nosso tempo, o destino tinha outros temperos preparados para mim. E foi exatamente nesse instante, quando a frase ainda se equilibrava na ponta dos meus dedos, que meu celular vibrou.

Era uma colega francesa — professora, naturalmente elegante como só os franceses sabem ser até quando enviam PDF pelo Facebook — com um material para leitura. Ia abrir o chat para a conversa. E então, como se uma mão invisível mexesse o caldo antes de mim, o algoritmo atualizou a tela: uma aberração política, daquelas sempre protagonizadas pela extrema direita, apareceu, grotesca, inflada, como um suflê de ódio que nunca deveria ter saído do forno.

Reagi no impulso — excluí o conteúdo e marquei como “fora dos meus interesses”. Por que fiz isso?

Porque, como qualquer cozinheiro sabe, há ingredientes com os quais não se negocia. E também porque, nos últimos tempos, percebo o algoritmo escondendo meus próprios conteúdos — como se tivesse prazer em fazer desaparecer aquilo que alimento com tanto cuidado.

Mas, como nos antigos truques de cozinha, após a frustração surgiu a surpresa: a tela, quase viva, se atualizou novamente, refletindo silenciosa a minha recente exclusão, percebida pelo algoritmo invisível. E então apareceu, cintilante e ágil, um vídeo — certeiro como um garçom que adivinha o pedido antes que seja pronunciado. Falava sobre a palavra do ano, e por um instante, toda a frustração se dissolveu na luz que tremeluzia na tela.

Sim, era exatamente essa. Uma expressão que chegava carregada de intenções e sombras: rage bait. Ou, se quisesse ouvir a poesia perversa do português, poderia chamá-la de “isca de raiva”, cada palavra pesada e sedutora, pronta para fisgar corações impacientes.

Diga-me você, que desliza pelo feed como quem vasculha uma geladeira à meia-noite: você também tem se irritado cada vez mais enquanto rola a tela?

Se sim, então caiu na armadilha dourada, na tática que se alimenta de nossa indignação como vampiro se alimenta de sangue fresco.

Rage bait (isca de raiva), foi esse termo que a Oxford University Press elegeu como palavra (ou expressão) do ano de 2025. E não à toa — seu uso triplicou nos últimos doze meses, como se o mundo inteiro tivesse decidido temperar a vida com pimenta demais.

AFINAL, O QUE É A TAL “ISCA DE RAIVA”?

Mesmo que o nome seja novo para muitos, quase todos já provaram desse prato — e eu mesmo fui servido logo ao amanhecer.

A Oxford University Press define rage bait como conteúdos publicados deliberadamente para provocar indignação: são chamativos, frustrantes, provocativos, ofensivos. Não por acaso, funcionam como o “clickbait”, só que com um tempero emocional mais ardente.

Clickbait — ou, para os íntimos, “isca de clique” — é aquela velha artimanha do mercado digital que se veste com o exagero de um ator decadente: títulos berrantes, imagens histéricas, vídeos que prometem mundos e fundos.

Tudo isso armado com o único propósito de arrastar o usuário pela curiosidade, como se puxasse um peixe inocente pelo anzol, conduzindo-o até uma página onde o tráfego vale mais do que a verdade. E, claro, uma vez lá, o leitor descobre que o banquete prometido não passa de farelo: conteúdo raso, promessas vazias, uma mesa posta para enganar — mas ainda assim lucrativa para quem o serviu.

Mas, no caso da isca de raiva, o objetivo não é apenas fisgar o clique — é cozinhar sua raiva, deixá-la bem suculenta, nutritiva para os algoritmos famintos.

E, veja só, a rage bait (isca de raiva) disputou seu trono com duas outras expressões do léxico contemporâneo: aura farming (cultivo de aura): a arte de cultivar uma persona carismática, elegante, misteriosa — como quem acende velas ao redor de si para parecer iluminado; e, biohack: o ritual moderno de tentar ajustar corpo e mente como quem regula o forno — suplementos, tecnologias, rotinas, tudo para produzir a melhor versão de si.

As três finalistas passaram por votação pública, mas foram os especialistas da Oxford que, ao final, decidiram. E faz sentido, já que o crescimento explosivo do termo demonstra que estamos mais atentos às manipulações emocionais que nos capturam.

E não poderia ser mais verdadeiro: antes a internet nos atraía pela curiosidade; agora, quer nossas emoções refogadas e servidas quentes.

O CICLO ENTRE 2024 E 2025: UM MENU DE EXAUSTÃO

Eu, que vivo em meio a bibliotecas, institutos de pesquisas, blogs, leituras em várias línguas e pesquisas por caminhos digitais tortuosos, já esperava que a isca da raiva vencera. Afinal, o ano de 2024 havia consagrado a expressão brain rot — “cérebro podre”, numa tradução tão literal quanto triste.

Esse termo descreve a deterioração mental causada pelo consumo excessivo de conteúdo trivial — rolagens infinitas, vídeos curtos, superficialidade mastigada como comida de micro-ondas.

Seu uso do “cérebro podre” cresceu 230% em 2024, o que talvez explique por que convivo diariamente com seus sintomas: comentários que dizem “seu texto é grande demais, não consigo ler até o final” ou, quando o cérebro podre chega ao ponto de ebulição, e surgem  insultos mais diretos. Pessoalmente, considero uma bênção: faço uma faxina, dou risada e bloqueio sem dó.

Mas o ponto é claro: brain rot (cérebro podre) e rage bait (isca de raiva) formam um ciclo perfeito — um caldo que ferve até transbordar. A indignação gera engajamento, o algoritmo amplifica, as mentes exaustas aceitam qualquer migalha de informação. As fake news se espalham como mofo em pão esquecido, e ninguém pesquisa, ninguém lê. Apenas compartilham, como reflexo.

Curiosamente, outras instituições também ofereceram suas palavras do ano: o Cambridge Dictionary escolheu parassocial, esse laço emocional que sentimos por celebridades que nunca nos deram bom-dia; já, o  Collins Dictionary preferiu vibe coding, sobre usar Inteligência Artificial para transformar intuição em código — algo entre alquimia digital e poesia programada.

No Brasil, há iniciativas como essas, sim, mas nenhuma com a profundidade das instituições citadas. Por aqui, os métodos são nebulosos, as escolhas variam, e às vezes parece que a palavra do ano serve mais para agradar interesses do que para revelar o espírito do tempo.

E enquanto eu ainda ruminava essa revelação linguística — a tal “isca de raiva”, pescada pelo algoritmo como quem joga um anzol na minha manhã —, percebi que havia ali uma coincidência mais saborosa do que eu esperava admitir. Porque, veja bem, toda isca, seja digital ou culinária, nasce do mesmo princípio ancestral: seduzir. Atrair. Enganar um pouco, se necessário. E, no fundo, conduzir o outro exatamente para onde queremos.

Foi então que algo quase poético (ou perversamente irônico) se insinuou na minha cabeça: como é curioso que a palavra do ano evoque justamente aquilo que a cozinha tradicional aprendeu muito antes das redes sociais — que uma boa isca pode mover mundos, das panelas aos feed infinitos.

Os algoritmos, afinal, não inventaram a manipulação; apenas a refogaram com tecnologia de ponta. Muito antes deles, os cozinheiros e cozinheiras já sabiam que um pedaço bem cortado, uma fritura bem calculada, uma crosta dourada no ponto exato eram suficientes para capturar qualquer atenção — fosse a de um comensal faminto ou a de um frango distraído.

E assim, ao lembrar das minhas próprias aventuras culinárias, a metáfora escorregou dos meus dedos como manteiga quente: talvez a melhor maneira de compreender a tal “isca de raiva” seja olhar para a mais humilde e deliciosa de todas as iscas — não a digital, mas a de frango. Sim, ela mesma, dourada, estalante, ancestral. Uma técnica simples e ainda assim poderosa o suficiente para atravessar gerações, cozinhas e agora, veja só, análises socioculturais sobre o comportamento humano – como essa que apresento.

Porque se há algo que une a fúria dos feeds e o perfume irresistível de uma fritura bem feita é exatamente isso: ambos sabem como nos capturar. Ambos sabem como nos impelir a um gesto rápido. Ambos dominam, com maestria quase cruel, a arte de despertar o que existe de mais instintivo em nós.

E é por esse caminho deliciosamente tortuoso que eu convido você a seguir: do léxico ao fogão, do algoritmo à panela. Deixemos por um instante a raiva digital repousar no canto da mesa, enquanto apresento a origem mais literal, mais saborosa e, quem diria, mais honesta dessa palavra que nos fisga — a verdadeira isca, aquela feita de frango, gordura quente e tradição. 

A GENEALOGIA SECRETA DAS ISCAS: QUANDO A COZINHA INVENTOU, SEM SABER, A SEDUÇÃO EM TIRAS

Se a tal isca de raiva moderna nasceu das engrenagens frias e maliciosas do algoritmo, suas ancestrais mais dignas — e, ouso dizer, mais honestas — vêm de um mundo muito anterior às telas. Um mundo de fogo, manteiga e mãos habilidosas. Um mundo onde a sedução não era digital, mas culinária. Pois, antes que o termo migrasse para o vocabulário febril das redes, a ideia de “iscas” já existia na cozinha, e sua história é um banquete que atravessa séculos.

E como toda comida verdadeiramente viva, as iscas de frango não têm pai, mãe ou certidão de nascimento. Não surgiram como uma invenção genial — aconteceram. Nasceram da necessidade, desse instinto primitivo e eterno que molda panelas e sociedades: a urgência de fazer mais com menos, de transformar sobras em refeições, de acelerar o cozimento sem sacrificar a alma do prato.

AS PRIMEIRAS SEDUÇÕES: EUROPA, SÉCULOS XVIII E XIX

Muito antes de receitas formais ou tratados de gastronomia industrial, nas cozinhas domésticas, mulheres — mulheres que eram ao mesmo tempo biblioteca, laboratório e templo da casa; e, invisíveis para os livros de história, mas essenciais à sobrevivência e à beleza da mesa — já sabiam, com instinto e paciência, que cortar em tiras não era mera conveniência: era um truque infalível, quase mágico. Tornava o cozimento mais rápido, multiplicava porções, harmonizava pedaços irregulares que sobravam da desossa, e transformava o comum em algo elegante, mesmo que ninguém registrasse em livros oficiais. Era uma técnica invisível, cotidiana, mas doméstica demais para figurar nas páginas da história — e, ainda assim, essencial para a sobrevivência, a economia e a beleza da mesa.

Na França do século XVIII, essa prática cotidiana começou a encontrar registro formal nas mãos de chefs como La Varenne e, mais tarde, Carême.

Surge então o termo émincé, aplicado a cortes finos, longos, elegantes, transformando um gesto doméstico em técnica profissional, e preparando o caminho para o que séculos depois seria chamado, sem alarde, de “iscas de frango”.

Só o fato de o émincé ser elevado à categoria de técnica pelos chefs de cozinha — quase todos homens naquele período — já lhe conferia um prestígio quase teatral. O termo, destinado a cortes finos, longos, elegantes, transformava o simples ato de cortar carne em um ritual de precisão. Cada tira, que nas cozinhas domésticas passaria despercebida, agora parecia pincelada pela mão de um artista, cada gesto calculado, cada movimento carregado de intenção.

Era a alta cozinha colocando sua assinatura sobre algo que, em essência, nasceu da prática cotidiana, da engenhosidade invisível das cozinheiras anônimas. A técnica masculina formalizava o gesto, mas a alma, como sempre, permanecia nas mãos daqueles que cozinhavam por necessidade, cuidado e amor — ainda que ninguém lhes atribuísse o crédito nos livros.

Daí, foi um pulo para o surgimento dos émincés de volaille. Essas tiras salteadas de carne de ave ainda não possuíam uma identidade própria, um nome que lhes desse personalidade, mas já eram uma declaração de técnica, precisão e cuidado.

Cada pedaço era conduzido à sua melhor versão, aquecido na manteiga no instante exato, envolvendo a cozinha com aromas sutis, quase secretos, como se cada fio de carne sussurrasse promessas de elegância e refinamento.

Era a arte da cozinha em gestos mínimos: simples, mas meticulosamente orquestrados, antecipando o que séculos depois chamaríamos de “iscas de frango”, com a diferença de que ali cada movimento carregava consciência, intenção e poesia.

Como toda boa técnica francesa, o émincé começou discreto, quase tímido, sussurrando pelos cantos das cozinhas de mansões e restaurantes aristocráticos. Mas, ao contrário de um segredo que se perde com o tempo, esses gestos silenciosos se tornaram indispensáveis, espalhando-se pelas panelas como uma melodia que ninguém quer esquecer.

Transformaram a prática cotidiana em tradição, moldando hábitos, refinando movimentos, e preparando o terreno para o que, séculos depois, chamaríamos de “iscas de frango” — a ponte perfeita entre a precisão calculada da haute cuisine e a sedução simples, quase instintiva, de um alimento cortado em tiras, capaz de encantar, saciar e, sobretudo, conquistar pelo gesto e pelo sabor.

SÉCULO XIX: OS EXÉRCITOS, AS FERROVIAS E A TIRANIA DO TEMPO

Se nas cozinhas aristocráticas o émincé era sinônimo de refinamento, precisão e elegância, nas cozinhas militares e ferroviárias ele se transformava em pura sobrevivência. Ali, o glamour e a manteiga francesa cediam lugar à urgência, à lógica dura da fome e do tempo contado: cada movimento precisava ser eficiente, cada pedaço de frango aproveitado até o último fio de carne.

Cortar em tiras significava muito mais do que estética — era a solução para três demandas fundamentais: alimentar multidões rapidamente, economizar proteínas escassas, e cozinhar sem luxo, mas com máxima eficiência.

Cadernos de campanha de exércitos alemães, franceses e ingleses registram receitas de frango em tiras com a mesma solenidade com que um poeta anotaria versos — não por vaidade, mas por necessidade. Essas tiras apareciam em refeitórios de soldados, em mesas de trabalhadores ferroviários e até em cozinhas de hospitais militares, cada uma adaptada à dureza do contexto: algumas salteadas rapidamente, outras fervidas em caldos ralos, todas obedientes à lei inexorável do tempo.

O fascinante é que essa técnica de simplicidade prática surgia quase simultaneamente em lugares distintos, como se o universo conspirasse para ensinar que a necessidade é a mãe da invenção.

Era, em sua essência, um gesto humano e universal: diante da pressão, homens e mulheres encontraram na tirinha de frango a resposta perfeita à tirania do relógio. Cada corte revelava, sem alarde, uma elegância utilitária — um refinamento forjado não pela pompa, mas pela exigência brutal do cotidiano.

Mais do que simples alimento, essas tiras simbolizavam a harmonia entre eficiência e economia, a tradução prática de que até o mais humilde pedaço de carne podia ser transformado em sustento digno, rápido e saboroso.

E, ironicamente, séculos depois, essa mesma ideia ressurgiria nos diners americanos e nos bares brasileiros como as modernas iscas de frango, ligando sem esforço a aristocracia invisível da técnica francesa à crueza pragmática das cozinhas de campanha. 

A VIRADA AMERICANA: QUANDO AS ISCAS GANHAM MARKETING

O século XX, sempre dramático, teatral e carregado de ambições industriais, trouxe um novo protagonista à história das tiras de frango: os Estados Unidos, país da velocidade, da produtividade obsessiva e da fome insaciável por eficiência e lucro. Aqui, o frango deixaria de ser apenas alimento e se tornaria instrumento de indústria, marketing e identidade cultural.

A carne de frango, antes delicadamente cortada em mansões parisienses ou cadernos de campanha europeus, agora era domada por este novo mundo de linhas de produção, dinheiros rápidos e consumidores apressados, ansiosos por sabor imediato.

Entre as décadas de 1930 e 1950, algo curioso e quase mágico aconteceu, como se a história da culinária tivesse decidido brincar de alquimia: três irmãos surgiram da mesma matriz, cada um com sua personalidade e função, e todos destinados a confundir cozinheiros, cardápios e clientes pelo mundo. Como em um espetáculo teatral, cada nome carregava uma promessa diferente, um marketing implícito, uma identidade cuidadosamente moldada para seduzir o olhar e o paladar: chicken tender, chicken strip e chicken finger.

Chicken tender: um corte anatômico autêntico, conhecido por tenderloin, ou o “filé mignon” do peito de frango. Sempre macio, sempre uniforme, sempre satisfeito de sua própria importância. Uma peça que se apresenta impecável, suculenta, exatamente como a natureza ou a engenharia industrial permitiu. No Brasil, conhecemos esse pedaço anatômico do frango por sasami ou filezinho.

Chicken strip: tiras feitas do peito, cortadas à mão, cada uma com personalidade própria — umas mais grossas, outras finas, algumas tímidas, outras audaciosas, todas com humor e textura variáveis. Não requerem o prestigioso tenderloin; a maioria se contenta com o peito inteiro, aceitando com elegância a imperfeição.

Chicken finger: o nome mais teatral da família, que privilegia o gesto e a forma sobre a anatomia. Um “dedo” dourado, alongado, sedutor, pronto para ser devorado. Pode ser feito tanto com tenderloin quanto com tiras de peito, pois, afinal, a aparência importa mais do que a origem. Um espetáculo comercial, digno de cartaz de neon, sem exigir nenhuma delicadeza técnica do cozinheiro.

Três variações de um mesmo conceito — tiras de frango — que transformariam a simplicidade do peito de ave em um símbolo da modernidade americana, conectando a eficiência industrial com a sedução do alimento pronto para consumo.



No fundo, todos compartilhavam a mesma essência: tirinhas de frango empanadas e fritas, prontas para satisfazer o apetite ansioso da modernidade, aquele impulso que confunde pressa com prazer. Não demorou para que os primeiros registros escritos surgissem no Condon’s Restaurant, em Manchester (New Hampshire), no início dos anos 1950, uma humilde epifania de marketing e sabor.

E como toda ideia que acerta o coração da gula e da eficiência, os chicken strips logo se espalharam pelos diners americanos dos anos 1960 — templos de néon, fritura e algodão doce — transformando-se no símbolo da comida rápida, uma espécie de poesia industrial: crocância, calor e conforto embalados em tiras, servidos com a velocidade que o novo mundo exigia.

Cada mordida era um manifesto da modernidade, um gesto simples que unia tradição francesa, pragmatismo militar e a voracidade da indústria americana. 

A CHEGADA AO BRASIL: ONDE A ISCA TE PEGA NO BAR

No crepúsculo de uma velha ordem agrária, o Brasil começava a se transformar. A avicultura, antes modesta e dispersa, ganhava tração: a criação intensiva de frangos se expandia, especialmente nas décadas de 1950 a 1970, impulsionada por tecnologias, melhoramento genético e uma nova economia de escala.

E, com ela, chegava silenciosa — mas irresistível — a possibilidade de tornar o frango tão comum quanto arroz e feijão, tão cotidiano quanto o pão de cada dia.

Foi nesse solo em mutação que as “iscas de frango” encontraram terreno fértil entre os anos 1970 e 1980: um Brasil em corrida pela urbanização, com novas classes sociais, com jovens que buscavam comer fora, com bares que precisavam oferecer petiscos fáceis, saborosos e baratos.

A esse contexto se unia um ingrediente essencial: o frango, cada vez mais abundante e acessível, pronto para assumir o protagonismo que, até então, cabia ao boi, ao porco, aos peixes, às “iscas de carne” ou “iscas de peixe”.

Nos bares e botequins — esses altares improvisados da sociabilidade brasileira — o nome “isca” já existia: discreto, modesto, quase paternal, evocando o gesto de petiscar, partilhar mesa com copo ao alcance e conversa alta. Mas faltava à mesa uma ave que suportasse o empanamento, a fritura intensa, o calor do óleo e a crocância necessária para saciar fome e desejo de maneira econômica. Foi aí que o frango — macio, neutro, acessível — se impôs como protagonista de uma nova tradição: escolha de bolso, gesto de afeto, petisco democrático.

Nas décadas de 1940 e 1950, surgem os primeiros indícios documentados — ainda que frágeis — de “frango à passarinho” em cardápios e anúncios de botecos: há quem aponte um anúncio de cantina em Curitiba (PR), datado de 1952, como uma das menções mais antigas do prato no país. Outras versões recordam que restaurantes da região de São Bernardo do Campo (SP) já serviam o prato desde 1949 — segundo relatos de botequeiros e donos de restaurantes.

Como prato, o frango à passarinho não segue a lógica austera de cortes precisos ou tiras uniformes. Em vez disso, é feito com pedaços pequenos — coxa, sobrecoxa, asa — geralmente cortados nas juntas, fritos em imersão de óleo quente. O resultado: carne suculenta, pele crocante, aroma de alho e óleo que invade o salão, um prato perfeito para dividir com cerveja gelada e conversas soltas.

O nome “à passarinho” evoca tanto o tamanho reduzido dos pedaços — lembrando aves pequenas — quanto uma tradição antiga de caças e “passarinhas” em festas rurais, adaptada com o tempo para o frango disponível nas cidades.

Como eu não me contento, fui pesquisar mais.  E os sussurros da história me levaram para Itália, onde possivelmente o tal do frango à passarinho se originou. Dizem que ele seria uma adaptação de um prato chamado pollo all'uccelletto — literalmente “frango/pássaro pequeno” ou “franguinho passarinho”.

Na tradição toscana — embora o nome “all’uccelletto” tenda a se aplicar a pratos de feijão, legumes ou carnes menores — havia a prática de cozinhar aves pequenas, miúdas, ou pedaços de carne em cortes simples, com azeite, alho e ervas, evocando a rusticidade rural e a simplicidade dos ingredientes disponíveis.

Nos anos de 1940 e 1950, Curitiba e São Bernardo do Campo não eram apenas cidades; eram redutos pulsantes de comunidades italianas consolidadas, territórios onde tradições, aromas e técnicas da península europeia conviviam com a vida cotidiana brasileira. É fácil imaginar que, em meio a essas colônias, a ideia de fritar pequenos pedaços de frango — inspirada em pratos como o pollo all’uccelletto (pequenos frangos assados ou cozidos com ervas, típico da Toscana) — tenha sido transportada por imigrantes ou seus descendentes.

No entanto, como toda boa adaptação, o prato sofreu mutações: o frango se tornou mais barato, os pedaços foram cortados nas juntas, mergulhados em óleo quente, perfumados com alho e limão, servidos para mãos ávidas em bares e botequins, transformando necessidade em celebração.

A geografia e a cultura desses lugares colaboraram: Curitiba e São Bernardo do Campo eram pontes entre a tradição italiana e os hábitos locais de feiras, cantinas e mesas compartilhadas. E assim, o nome “à passarinho”, lúdico e inventivo, nasceu talvez como tradução livre de “uccelletto”, capturando com humor e leveza o espírito de um prato que seria, ao mesmo tempo, homenagem e reinvenção popular.

Mas aqui mora a ambiguidade, a névoa da história: não existe hoje — ao menos publicamente — um documento concreto, um cardápio original, um artigo de jornal ou uma caderneta de receitas datada que comprove com certeza absoluta que aquele anúncio de 1952 ou o restaurante de 1949 foram de fato os “primeiros”. Todo o passado é tecido por relatos de botequins, lembranças familiares e tradições orais, tão vivas quanto inconstantes.

Assim, a origem italiana do frango à passarinho permanece como uma hipótese plausível, bela e simbólica — uma ponte entre a cozinha camponesa da Toscana e os bares calorosos do Brasil pós guerra —, mas não como fato certificado. A incerteza, aliás, dá à história um sabor extra: o sabor da memória coletiva, da adaptação, da reconstrução cultural.

Dessa forma, ao falarmos de “iscas de frango” no Brasil, convém distinguir com clareza:

        As iscas em tiras — herdeiras diretas da técnica refinada do corte fino (como no émincé francês) e adaptadas à lógica moderna dos “chicken strips” (dos EUA)

        O frango à passarinho — fruto da adaptação popular (de uma possível origem italiana), da pressa urbana, da fartura fácil e da sociabilidade de bar: pedaços de frango cortados nas juntas, fritos, servidos borbulhando, com sal, alho, limão, acompanhando copos e risadas.

Essa distinção não diminui a poesia do melhoramento dos pratos no âmbito nacional — antes, a valoriza. O frango à passarinho não é imitação servil de fast food estrangeiro nem mera cópia de técnica refinada; é criação popular, hibridismo de necessidade, sabor e convivência. Assado em óleo quente, o frango rústico renasce como símbolo de festa, comunidade e memória afetiva.

Esse petisco — simples, barato, imediato — tornou-se símbolo de conveniência urbana, de sociabilidade despretensiosa, de conforto rápido depois do trabalho, de cerveja gelada e conversa solta. Símbolo dos bares brasileiros. Era o frango que se transformava em ponte entre o rural e o urbano, entre a colheita e a mesa do boteco, entre a fome do operário e a gula festiva da noite.

Interessante notar que, no Brasil, o hábito de comer frango frito no balde — o ícone da globalização fast food — existia antes mesmo da chegada oficial da grande rede estrangeira que o popularizou. Estabelecimentos pioneiros já serviam “frango frito no balde” a partir de meados da década de 1960, com redes nacionais como a Chicken-In (fundada em 1967, em Campinas-SP), antes mesmo da chegada da KFC ao país.

Esses bares e lanchonetes nacionais “tropicalizaram” a ideia — adaptando a aos gostos locais, aos recursos disponíveis, às urgências brasileiras — e criaram um hábito que, por sua vez, preparou o terreno para a expansão de redes globais, décadas depois.

Ou seja: a “isca de frango” no Brasil não é cópia servil de fast food estrangeiro — é reinvenção, adaptação, apropriação criativa. É cultura popular em óleo quente, é o emprego da técnica para satisfazer o imediatismo urbano, é a tradição reinventada sob o mantra da praticidade.

E se me pedem uma origem mais poética e sociológica, digo: as iscas brasileiras são filhas de um Brasil em transição — da roça à cidade, do forno a lenha ao fogão elétrico, do almoço de família ao petisco de bar, da paciência à pressa, do luxo da haute cuisine ao gosto universal pelo sabor imediato.

Cada tira de frango empanada e frita carrega em si esse cruzamento de mundos — a herança da técnica refinada, o legado da necessidade, o sabor da improvisação, o calor da convivência. É a carne humilde que se ergueu para ser símbolo de festa, de amizade, de boemia, de sobrevivência cotidiana.

Aqui em Fortaleza o frango à passarinho e as iscas de frango (assim como iscas de peixe ou carne) são presença constante nos bares e botequins: petiscos de calor, riso e cerveja. Mas o que vemos realmente é uma bifurcação criativa da tradição: em algumas mesas simples, as iscas chegam não empanadas — apenas fritas na imersão no óleo quente, crocantes e sinceras; já nas barracas de praia ou restaurantes de hotel, o ritual muda de figura: o frango empanado encontra desde a farinha de rosca tradicional até a oriental farinha Panko, o calor da fritura torna-se refinamento, e o petisco busca status.

Em lugares assim, as iscas não vêm só com sal e limão — surgem acompanhadas de molhos que misturam maionese, ketchup e mostarda, rendendo — em versões populares — o tradicional “molho rosado” dos lanches e petiscos brasileiros; em versões mais sofisticadas, entram molho de mel e mostarda, barbecue ou cremes temperados, como a maionese de alho. Esta adaptação contemporânea ressignifica o petisco: de necessidade modesta ele vira elegância casual, um gesto de sabor com leveza e aspiração.

Por outro lado, o frango à passarinho verdadeiro — frito, simples, direto — mantém seu arrebatamento popular: pedaços pequenos, com osso ou não, alhos que viram ouro no óleo, o perfume se espalhando pelo ar abafado do bar, copos tilintando e conversa alta. Raramente ele aparece com molhos cremosos ou pretensões gourmet — e talvez por isso sobreviva como o sabor de casa, de infância, de encontro despretensioso.

Essa convivência de versões — a rústica, a empanada, a “requintada” — revela algo sobre nossa identidade de comer e pertencer: buscamos, ao mesmo tempo, conforto imediato e inovação; tradição popular e cosmopolitismo; o simples e o aspiracional. E, no fundo, cada isca, cada tira, cada pedaço de frango diz quem somos — um povo que transformou o simples em celebração, a pressa em convívio e o frango em memória coletiva.

MAS AFINAL, QUEM CRIOU AS ISCAS?

Ninguém, verdadeiramente. Ou, para ser mais franca — todos nós, em alguma cozinha, em algum momento. As iscas de frango são filhas da necessidade, do improviso, da inteligência doméstica, da urgência militar e, depois, da lógica industrial. São fruto natural da evolução culinária, uma espécie de herança coletiva que atravessou séculos, continentes e estilos de cozinha.

Mas, para mim, cada tira de frango é, portanto, um eco direto do émincé de volaille, da pressa das cozinhas ferroviárias e militares, e da engenhosidade americana do século XX.

Mas, se me pedem uma origem mais poética, histórica e técnica — se querem conhecer a primeira forma elegante reconhecível do que hoje chamamos “iscas” — então não hesito: tudo começa com o émincé de volaille, essas tiras finíssimas de frango salteadas, fruto da alta cozinha francesa do século XVIII.

É nele que encontramos a semente do gesto perfeito, o corte que equilibra rapidez, aproveitamento e elegância, transformando um simples pedaço de ave em símbolo de técnica, cuidado e sedução. 

O ÉMINCÉ DE VOLAILLE: A MÃE FRANCESA DE TODAS AS ISCAS

O século XVIII francês foi um momento de profunda transformação cultural e culinária. A cozinha, que até então se movia entre a opulência medieval e renascentista — caldos pesados, especiarias exageradas, apresentações barrocas — começava a buscar uma estética racional, leve e técnica. Nascia, então, a haute cuisine (alta cozinha), uma verdadeira revolução que unia precisão, estética e controle.

Nomes como La Varenne e Antonin Carême não apenas participaram dessa metamorfose: eles a moldaram, transformando a preparação de alimentos em uma linguagem sofisticada, quase musical, em que cada corte, cada redução e cada movimento na panela tinha seu lugar e significado.

Antes de existir como receita ou prato formal, havia a técnica. O verbo émincer, que significa “fatiar finamente”, surge nos registros do século XVII, aplicado inicialmente a legumes, ervas, carnes e aves. Mas foi no século XVIII que ele alcançou prestígio, tornando-se um dos pilares da cozinha francesa clássica.

Cortes uniformes, tiras delicadas de carne ou frango, precisão nos tempos de cocção: tudo se tornava uma extensão da mão do cozinheiro, uma dança silenciosa entre ingrediente e técnica.

O contexto histórico reforça essa evolução: La Varenne, em Le Cuisinier François (1651), já propunha cortes mais delicados, temperos equilibrados e uma leveza de execução que rompia com os exageros do passado. Décadas depois, Antonin Carême (1784–1833), o “rei dos chefs e chef dos reis”, consolidaria a sofisticação da cozinha francesa: molhos-mãe, reduções cuidadosas, técnicas de saltear e a padronização dos cortes transformavam qualquer preparação em um exercício de harmonia e refinamento.

O émincé nasce nesse ambiente como gesto técnico e estético — não apenas para cozinhar, mas para exercer poder e controle sobre o alimento. Cada tirinha de frango, cada fatia de carne, não era apenas parte de uma refeição: era manifestação de elegância, ciência e arte.

A delicadeza de um corte tornou-se símbolo de competência, refinamento e da própria modernidade da cozinha francesa, pavimentando, séculos depois, o caminho para o que chamaríamos de iscas de frango: um gesto antigo transformado em tradição universal.

O NASCIMENTO DO ÉMINCÉ DE VOLAILLE

O nascimento do émincé de volaille não foi apenas uma questão de cortar frango em tiras: foi a materialização da técnica francesa aplicada a uma carne ideal, clara, macia e dócil ao calor da manteiga. O frango tornou-se o modelo perfeito para expressar precisão, ritmo e elegância na cozinha, permitindo que cada tirinha fosse tratada como uma pequena obra-prima. A partir desse gesto surgiram preparos clássicos, cada um com sua personalidade, sua sofisticação e seu caráter definido:

        Émincé de volaille à la crème – tiras de frango salteadas, envoltas em um molho suave, geralmente à base de creme de leite, por vezes enriquecido com redução de caldo de ave, vinho branco e échalote. Um prato que revela a delicadeza da técnica: cremoso, equilibrado, sem elementos que distraiam do protagonismo da carne.

        Émincé de volaille aux champignons – o frango se une ao aroma terroso e profundo dos cogumelos paris, com ou sem creme de leite, dependendo da escola. Aqui, o vegetal não é coadjuvante: torna-se personagem principal, demonstrando a capacidade do émincé de adaptar-se à harmonia dos sabores.

        Émincé de volaille financière – uma expressão da haute cuisine em toda sua opulência e precisão. As tiras de frango são acompanhadas de guarnição financière, um elaborado conjunto de cogumelos, tournedos ou trufas picadas, pequenas quenelles de frango ou galinha e corações de alcachofra, tudo ligado a um molho profundo, geralmente demi-glace ou fundo escuro com vinho madeira. Um prato de densidade saborosa e sofisticação notável.

        Émincé de volaille à la suprême – tiras de frango finalizadas com molho suprême, velouté de volaille enriquecido com creme de leite e manteiga, claro, elegante e delicadamente estruturado. Um exemplo da leveza e precisão da cozinha clássica, onde o sabor brilha sem peso, e a textura das tiras se mantém impecável.

Cada uma dessas preparações, embora diversas, compartilha a mesma essência: cortes finos, salteados com rapidez e técnica, imersos em molhos que realçam a carne sem dominá-la.

O émincé de volaille não é apenas uma receita: é um gesto de refinamento, um elo entre a precisão da haute cuisine e a harmonia dos sabores, a base ancestral de todas as iscas de frango que surgiriam séculos depois.

Essa estrutura de cortes finos, rápidos e precisos aparece com clareza entre 1760 e 1820, período em que uniformidade, economia e velocidade tornaram-se virtudes tão valorizadas quanto o sabor e a apresentação. O primeiro registro formal do nome émincé de volaille surge no início do século XIX, mas a técnica já pulsava nas cozinhas muito antes, como um segredo silencioso, repassado de cozinheiro a cozinheiro, de mestre a aprendiz, quase como uma partitura culinária que ditava ritmo e cadência à manteiga quente e ao calor do fogão.

Com o surgimento dos primeiros restaurantes modernos — filhos diretos da Revolução Francesa, símbolos da democratização da refeição fora do lar — cresceu a necessidade de pratos rápidos, refinados, econômicos e repetíveis. O émincé encaixava-se como uma luva: tiras uniformes que cozinhavam rápido, aproveitando cada centímetro do frango, combinadas a molhos delicados, permitindo que a cozinha mantivesse excelência sem perder agilidade. Tornou-se clássico do almoço parisiense, símbolo da precisão francesa, e logo começou a cruzar fronteiras, carregando consigo a elegância do gesto técnico.

Quando a técnica francesa viajou pelo mundo, não levou apenas um método de corte — levou uma filosofia: cozinhar com rapidez, economia e elegância, respeitando o ingrediente e a harmonia do prato. Séculos depois, essa lógica renasceria em diferentes contextos: nos chicken breast strips americanos, nos chicken tenders, nos stir-fry de fusões europeias e asiáticas, e, inevitavelmente, nas iscas brasileiras. Cada tira, cada pedaço empanado ou salteado, é uma continuidade dessa tradição.

Hoje, ao fritarmos, saltearmos, empanarmos e devorarmos, quase sem perceber, repetimos um gesto milenar: aquele corte certeiro, a atenção ao tempo exato de cozimento, a busca pela textura perfeita. Um gesto nascido antes da fotografia, antes do telefone, antes da pressa moderna; um gesto que conecta mansões aristocráticas de Paris, diners americanos de néon e os bares e botequins de nossos dias. É a história da técnica transformada em prazer cotidiano, a elegância clássica disfarçada de simplicidade, a haute cuisine tocando, suavemente, o cotidiano de quem só queria uma boa isca de frango.

CONCLUSÃO: O ANCESTRAL QUE VIVE EM CADA ISCA

O émincé de volaille não nasceu como prato, mas como linguagem, como filosofia do corte e da cozinha, manifesto silencioso da precisão francesa do século XVIII. Ele era rapidez, elegância, uniformidade, economia — quase uma pedagogia do frango: cada tira tinha seu tempo exato no calor da manteiga, cada movimento de faca uma cadência, cada molho uma declaração de sutileza. Um gesto técnico que, séculos depois, se disfarçaria de simplicidade em restaurantes americanos e bares brasileiros, mas carregava consigo a alma da haute cuisine.

Hoje, ele é o ancestral direto de tudo o que chamamos “iscas de frango”. Dos chicken strips padronizados dos diners de Manchester às tiras empanadas nas barracas de hotel, das iscas de peixe e carne aos pedaços rústicos e dourados do frango à passarinho nos botequins de Curitiba, São Bernardo ou Fortaleza, cada fatia lembra que a técnica francesa e a improvisação popular, a aristocracia e o bar, a sofisticação e a pressa urbana podem conviver num mesmo prato.

E, se olharmos além da cozinha, percebemos que essa lógica de captura não é apenas culinária. A mesma tensão que nos leva a clicar em um título sensacionalista — a isca digital, a clickbait emocional — encontra paralelos na tradição do alimento em tiras: algo pequeno, rápido, acessível, irresistível. Seja na tela ou no prato, é o mesmo princípio: prender atenção, satisfazer desejos imediatos, gerar prazer quase instintivo. A comida e o algoritmo, portanto, não estão tão distantes quanto gostaríamos de pensar.

No final, cada isca que devoramos carrega memória, história e técnica: o passado francês, a engenhosidade dos exércitos, a pressa dos diners americanos, a criatividade dos botequins brasileiros. Cada pedaço é simultaneamente ferramenta, herança e poesia: uma história de mãos que cortam, frigideiras que tilintam, panelas que borbulham, pessoas que compartilham, risadas que se espalham. O émincé de ontem vive em cada tira de hoje, lembrando que até mesmo o gesto mais cotidiano pode ser ancestral, elegante e, sim, deliciosamente irônico.

Curiosamente, lembrem-se, foi justamente a palavra do ano, rage bait — a “isca da raiva” — que me arrastou por todo esse labirinto de história, cozinha e cultura. Ela prova, de forma quase fatal, que uma boa isca sempre funciona: seja para capturar cliques, provocar emoções digitais ou fisgar olhares famintos diante de um prato fumegante de frango em tiras.

O que começou como uma reflexão sobre títulos sensacionalistas se transformou numa viagem pelos séculos, das cozinhas aristocráticas francesas aos bares e botequins brasileiros, mostrando que, no fundo, toda isca — emocional ou culinária — compartilha o mesmo segredo: irresistibilidade combinada à promessa de recompensa imediata.

A culinária e o algoritmo, afinal, não são tão diferentes: ambos sabem que nada captura tão bem quanto uma boa isca.

EMINCÉ DE VOLAILLE À LA SUPRÊME

Ingredientes (para 2 pessoas — ajuste conforme necessidade)

2 peitos de frango (sem pele e osso),

50 g de manteiga sem sal

Sal e pimenta branca a gosto

Para o molho Suprême:

500ml de caldo de galinha

50 g de manteiga para o roux

50 g de farinha de trigo (para o roux)

Cream (creme de leite fresco ou creme pesado) ~150 ml

(Opcional) suco de limão, sal e pimenta branca a gosto

Modo de preparo: Tempere os peitos de frango com sal e pimenta. Aqueça uma mistura de manteiga e um pouco de óleo numa frigideira antiaderente. Doure bem os peitos de frango de ambos os lados — cerca de 5 minutos de cada lado. Retire o frango e reserve, mantendo o calor.

Para preparar o molho Suprême: Derreta os 50 g de manteiga em uma panela, junte a farinha e mexa até formar um roux claro; Aos poucos, adicione o caldo de galinha, mexendo bem para não empelotar — isso cria a velouté; Quando a velouté estiver cremosa e homogênea, incorpore o creme de leite, ajuste sal e pimenta e acrescente um fio de limão se quiser uma acidez sutil; mexa até encorpar.

Sirva os peitos de frango fatiado cobertos pelo molho Suprême, acompanhado de batatas, arroz, ou legumes — o clássico costuma pedir acompanhamento neutro para deixar brilhar a elegância do molho. 

ISCAS DE FRANGO DO BARÃO DE GOURMANDISE

400 g de peito de frango sem pele e osso, cortado em tiras (~2 cm de espessura)

Marinada de buttermilk

200 ml de leite integral

1 colher de sopa de suco de limão

1 colher de chá de sal — essa marinada rápida que mantém o frango suculento

Para empanar

60 g de farinha de trigo

10 g de amido de milho

¾ colher de chá de sal fino

½ colher de chá de pimenta preta (do reino)

½ colher de chá de páprica doce

¼ colher de chá de alho em pó

1 ovo + 1 colher de sopa de leite ou água

200 g de farinha de rosca ou panko — para cobertura crocante

Óleo neutro suficiente para fritura por imersão (~1 litro), aquecido a 175–180 °C (347–355 °F)

Preparo: Marinada – primeiro faça o buttermilk, misture o leite o suco de limão e sal numa tigela que depois caiba todo o frango cortado em tiras. Misture bem, e espere uns 3 minutos até a mistura dar uma talhada, não se assuste é isso mesmo o que se quer. Com o leite talhado, junte o frango e envolva bem nessa mistura de leite, cubra e deixe descansar 20–30 minutos. Isso ajuda a manter o frango suculento.  Preparar estação de empanado: em tigela 1 misture farinha + amido + sal + pimenta + páprica + alho; em tigela outra 2 bata o ovo com leite (ou água); em outra tigela coloque a farinha de rosca. Para empanar, escorra o frango da marinada, seque o excesso com papel toalha. Passe cada tira primeiro na mistura de farinha de trigo e amido temperado, sacudindo o excesso; depois mergulhe no ovo batido; por fim, cubra com farinha de rosca apertando levemente para aderir bem. Deixe as tiras empanadas descansarem 10–15 minutos — isso ajuda a crosta a firmar e não descolar durante a fritura.  Para fritar: Aqueça o óleo a 175–180 °C e frite as tiras em pequenas porções (cerca de 3–5 por vez), por 3–4 minutos ou até ficarem douradas e com temperatura interna segura. Retire com escumadeira e escorra sobre grade ou papel toalha. Sirva quente, com seu molho preferido (pode ser molho de mostarda, maionese temperada, barbecue, etc.).


sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

KRAMPUS: A SOMBRA DO NATAL

 

Hoje é cinco de dezembro, e nas encostas geladas das regiões alpinas — onde o vento desliza trazendo o perfume azedo da madeira úmida, da neve recém-pousada e de histórias tão antigas quanto os próprios pinheiros — o Natal parece sempre mais próximo, como se estivesse apenas atrás da próxima dobra de montanha, respirando em silêncio.

É nessa paisagem que o Krampus desperta com força: na Áustria, seu berço incontestável, onde o Tirol, Salzburgo, Estíria e Caríntia acendem tochas e assombros, e cidades como Salzburgo e Innsbruck se enchem de desfiles estrondosos, enquanto vilarejos como Bad Goisern e Öblarn preservam o antigo Krampusspiel, teatro folclórico que mistura medo e tradição. No sul da Alemanha, especialmente na Baviera alpina, ele caminha ao lado de parentes próximos, como o Strohbart e o Klaubauf, figuras de palha e demônios domésticos que também avisam às aldeias que o inverno exige respeito. No norte da Itália, sobretudo no Tirol do Sul e em Friuli-Venezia Giulia, o Krampus surge com vigor — em Toblach, inclusive, ocorre um dos maiores desfiles do mundo, um verdadeiro cortejo de chifres, peles e sinos. Na Eslovênia, ele se espalha por todo o país, tão natural às celebrações de inverno quanto a própria geada nos telhados. E versões suas, ou de seus ancestrais pagãos como os Perchten, ainda serpenteiam pelas tradições da Hungria, da República Tcheca e da Croácia, onde cada vilarejo molda, à sua maneira, um guardião do frio que instrui, ameaça e fascina.


E, no entanto, aqui para nós — no Ceará, nesse Nordeste onde o sol aparece tão fiel quanto os santos de procissão, onde o calor não se retira nem por misericórdia — o Krampus é quase um estrangeiro absoluto, uma criatura que o clima repele como quem fecha a porta para um viajante todo molhado de neve. Talvez seja justamente isso: a luz solar permanente funciona como um antídoto natural contra tais seres invernais. 

Aqui, onde dezembro nasce debaixo de um céu azul que nem conhece o conceito de inverno alpino, é raro alguém ter ouvido o nome “Krampus” sem que eu precise explicar. A escuridão profunda, a noite gelada, o medo ancestral do frio que pode matar — nada disso pertence ao nosso imaginário. E talvez por isso a figura chifruda não se instale: o calor, esse velho teimoso, derrete o mito antes que ele encontre um canto para se esconder. Ainda assim, gosto de pensar que, mesmo de longe, essas tradições nos alcançam como uma brisa curiosa, lembrando-nos de que o mundo é vasto, e que nem todo Natal precisa nascer sob o sol.

É neste 05 de dezembro que essa figura desperta — e, para grande parte das terras tropicais das Américas e até para o oriente luminoso e distante, continua quase inexistente, um rumor gelado vindo de montanhas que nunca vimos: Krampus, o companheiro sombrio de São Nicolau, meio lenda, meio sombra.

Esta é a sua noite — a Krampusnacht.

E é curioso pensar que uma celebração tão antiga e tão viva nos becos alpinos tenha passado ao largo da minha vida por tanto tempo. Não foi nos livros, nem nas aulas, nem nos natais ensolarados que o encontrei, mas graças a um gesto simples e repetido — aquele meu velho hábito de buscar cartões de Natal. Foi ali, nas bordas aparentemente inocentes de uma tradição pessoal, que tropecei nele como quem abre uma gaveta e encontra algo que jamais deveria ter sido esquecido.

Desde a adolescência eu cultivava um rito que me parecia nobre: já no final de novembro, comprava dezenas de cartões de Natal para entregar aos amigos. Quando o dinheiro era curto — e quase sempre era — eu os fabricava com as próprias mãos, como um pequeno artesão de boas intenções. Aprendia técnicas nas revistas, nos programas de TV, e me sentia delicado, gentil, quase sacerdotal ao colar fitas, dourar bordas, inventar ilustrações.

Mas com o passar dos anos percebi que, enquanto eu preparava trinta cartões, muitas vezes recebia três. Não que eu sofresse com isso — eu vinha de um tempo em que cartões eram enfeites da árvore de Natal, parte do brilho afetuoso do lar. Uma árvore sem cartões parecia uma sobremesa sem especiarias: faltava-lhe alma. Ainda assim, descobri, lentamente, que o carinho raramente era mútuo. Que certas relações vinham temperadas com interesse, conveniência, ou aquela indiferença polida que usamos para evitar conversas difíceis.

Hoje, se eu envio um cartão, entendam: quem o recebe tornou-se raro. Especial.

Foi em uma dessas buscas por cartões — quando o mercado já oferecia engenhocas musicais, luzes piscantes e imagens tridimensionais estalando como fogos — que decidi rebelar-me contra o excesso e voltar-me ao essencial. Escolhi os cartões vintage. Eles tinham algo do silêncio das velhas cozinhas: um desenho mais lento, mais detalhado, mais elegante; uma iconografia que respeitava o mistério.

E, então, aconteceu.

Em algum momento no início dos anos 2000, vasculhando imagens para imprimir, encontrei uma figura que não combinava com o açúcar visual do Natal moderno. Uma criatura monstruosa: grandes chifres curvos, língua pendente, dentes ferozes como os de um demônio medieval. Às vezes arrastava crianças travessas com correntes; noutras, carregava-as num saco como lenha humana ou num alforje de castigo ancestral. E tudo isso diante de um cenário natalino pacífico — neve brilhante, pinheiros iluminados, chalés silenciosos.

Acima da figura, em letras grandes e altivas, sempre o mesmo nome: KRAMPUS.



O impacto foi imediato. Como se tivesse aberto um armário esquecido da infância e encontrado dentro não presentes, mas histórias proibidas. Minha curiosidade, sempre inquieta, empurrou-me para a pesquisa -  como habitualmente faz comigo.

A descoberta, confesso, trouxe um daqueles choques silenciosos que não fazem barulho, mas reorganizam algo dentro de nós. Não foi apenas a criatura em si — seus chifres, sua língua pendente, seu olhar entre o grotesco e o cômico — que me desconcertou.

O que realmente me perturbou foi perceber como ele se ocultava tão habilmente entre as dobras da própria história do Natal, como um bordado antigo escondido no avesso de um pano festivo. Era um intruso e, ao mesmo tempo, um herdeiro legítimo dessa tradição.

Na época, é claro, eu não tive coragem de enviar a ninguém um cartão estampado com aquela figura demoníaca. Meu senso de delicadeza juvenil protestou; pensei que aquilo poderia espantar amigos, os chatos mais sensíveis, ou mesmo aquele colega que acreditava que Natal era exclusivamente feito de anjos e glacê. Hoje, porém — agora que a maturidade me emprestou certa ousadia e que a ironia e o humor se tornaram temperos essenciais da minha alma — talvez eu enviasse. Talvez até escolhesse o mais assustador deles, só para ver o brilho surpreso no rosto de quem o recebesse.

E não foi por acaso que, hoje de manhã, enquanto vasculhava novamente imagens de cartões natalinos, deparei-me outra vez com o velho Krampus. A visão me percorreu como um arrepio delicado: aquele sentimento de reencontrar um mistério que insiste em sobreviver, mesmo quando o mundo tenta varrê-lo para debaixo dos tapetes do costume.

Talvez vocês, amigas leitoras e leitores, nunca tenham ouvido falar dele. Talvez imaginem que o Natal é apenas luz, panetone e renas sorridentes. Mas há sempre algo mais — alguma sombra discreta atrás das guirlandas — e o Krampus, com seu passo de sinos metálicos, está lá para nos lembrar disso.

Repare bem. No Natal, também existe um canto escuro na sala iluminada. E lá, existe sempre um guardião de sombras observando o excesso de doçura.

Existe sempre um Krampus — encarando-nos com seus chifres tortuosos e perguntando, com ironia: “E então? Este ano você se comportou mesmo?”

Hoje, cinco de dezembro, quando a Europa alpina acende suas tochas e convoca o monstro para desfilar, eu penso em quantas tradições quase perdemos — e em quantas outras talvez ainda existam, escondidas em cartões antigos, esperando que alguém curioso as redescubra.

E por isso escrevo estas linhas para vocês. Vai que, assim como eu um dia, vocês também nunca ouviram falar dele.

Porque o Natal, meus caros, é muito mais que luz — é a negociação eterna entre o encanto e o temor. É o reino compartilhado de São Nicolau e seu companheiro bestial. É o suspiro de Odin passando sobre a neve.

É o cheiro do pão doce e o da fumaça de carvão queimado.

É luz.

É sombra.

É Krampus.

E quando sabemos disso, o Natal finalmente ganha profundidade.

 A SOMBRA QUE CAMINHA ANTES DA LUZ

(uma entrada para o reino de Krampus)

Há quem diga que o Natal nasceu do embrulho — embrulho de paciência, de açúcar dourado no fogo lento, de histórias reconstruídas geração após geração, como receitas que herdamos sem jamais questionar. Mas antes das renas aerodinâmicas, dos cartões cintilantes e das luzes elétricas que piscam como corações nervosos, existia um outro ser caminhando na contraluz da alegria.

Não era o bom velhinho de bochechas róseas, mas seu espelho invertido: Krampus, guardião das sombras decembrinas, criatura que mastiga travessuras e rumina medos com a mesma compostura de quem saboreia um vinho tinto, sabendo que a noite é longa e cheia de histórias ancestrais.

Para falar dele, porém, é preciso antes preparar a mesa — não apenas com o pão quente da imaginação, mas com as ervas da memória, as especiarias do folclore e um leve gole de malícia. Pois Krampus não é uma invenção passageira, nem um monstro de ocasião: ele é a nota grave escondida no acorde do Natal, o sussurro que antecede o canto, o frio que chega antes da lareira.

E talvez seja justamente por isso que seu retorno, ano após ano, exerce esse fascínio antigo: ele convoca em nós algo que não esquecemos, ainda que nunca tenhamos vivido. Ele abre uma fresta para um mundo onde o Natal não era apenas brilho — mas também rito, temor, purificação e encantamento. 

O NASCIMENTO ENTRE CHIFRES E SINOS

(onde a mitologia nórdica se mistura ao frio e o Natal encontra sua sombra)

Krampus emerge das montanhas alpinas como uma ressaca antiga da própria humanidade — o tipo de criatura que parece ter sido esquecida pela história oficial, mas lembrada pela memória profunda, aquela que vive sob a pele. Ele não nasce em um ponto fixo, nem pertence a uma única narrativa; é uma síntese, um eco de vários mundos que se roçaram ao longo dos séculos até se confundirem.

Há quem veja em Krampus um herdeiro de Hel, filha de Loki e soberana do reino dos mortos. Mas não se engane com o nome sombrio: Hel não é uma bruxa nem uma diaba de histórias infantis. Sua autoridade é fria, austera, silenciosa — um reinado onde repousam aqueles que não morreram com glória, observados sem raiva, lembrando que nem toda sombra exige castigo e que o medo pode ser, antes, um lembrete elegante da inevitabilidade.


Sua metade viva e metade cadavérica sempre funcionou como metáfora de transição. Assim, se imaginarmos Krampus ligado a Hel, ele herdaria naturalmente essa ambiguidade: parte guardião, parte ameaça; parte rito de passagem, parte lição através do medo — um espírito que ensina sem falar, que adverte sem punir, mas cuja presença impõe respeito.

Para compreender por que Krampus, por vezes, é chamado de filho de Hel, é preciso primeiro desfazer um equívoco moderno — aquele que, com ar de certeza, confunde o reino dela com o “inferno” cristão, como se ambos tivessem nascido das mesmas brasas furiosas.

E, confesso, adoro essa confusão: me transporta aos meus anos de devaneios e estudos sobre mitologias, quando cada deusa, cada criatura, parecia sussurrar segredos que eu sozinho tentava decifrar. Mas, na mitologia nórdica, nada poderia estar mais distante dessa lógica de fogo e punição. Para os povos do Norte, a morte não se dividia em luz e chamas; era antes uma geografia complexa, um mapa de destinos possíveis, onde cada alma encontrava seu caminho — nem necessariamente glorioso, nem eternamente castigado, apenas existente.

Helheim, o domínio de Hel, não é um caldeirão ardente, mas um lugar de frio contemplativo. Não há demônios com tridentes, nem pecadores em chamas, mas sim um campo silencioso onde repousam os que deixaram a vida por vias naturais: a febre lenta, a velhice digna, o suspiro final de uma existência comum. Lá, Hel reina não como carrasca, mas como zeladora do descanso, uma guardiã que recebe sem julgar — e talvez por isso mesmo tenha sido tão mal interpretada por olhares posteriores, acostumados a exigirem moral onde só havia constatação.

Os nórdicos, tão íntimos do gelo quanto nós somos do sol, imaginavam que a morte não obedecia a uma régua moral, mas ao tipo de partida. Os que tombavam em batalha eram levados por Odin para o Valhalla, onde o barulho das espadas ecoava como música; ou recebidos por Freyja em Fólkvangr, onde o campo eterno tinha mais perfume que sangue. Os virtuosos não-guerreiros encontravam abrigo no Helgafjell, a montanha sagrada que prometia uma quietude serena, longe dos gritos da guerra. Os que se afogavam eram recolhidos pela enigmática Ran, senhora dos mares profundos. E na camada mais remota e gélida de todos, Niflhel, repousavam aqueles destinados ao silêncio mais espesso, à escuridão primordial — não como castigo, mas como inevitabilidade.

Nada disso se parecia com a estrutura de céu e inferno. Era outro mundo, outra cosmologia: um universo que não punia pecados, mas reconhecia trajetórias.

Um universo em que o frio era o grande juiz, não o fogo.

Para deixar bem claro — especialmente para quem prefere atalhos cognitivos — vou resumir, simplificar, condensar. E confesso que odeio simplificar, porque todo detalhe que desaparece leva consigo nuances essenciais, e é justamente nos detalhes que os diabos gostam de se esconder. Mas vamos lá: a distinção entre o Inferno cristão e os reinos nórdicos precisa ser entendida.

O inferno cristão é quente, punitivo, moral e dualista: divide o mundo entre bem e mal, recompensa e castigo. A mitologia nórdica, ao contrário, não se prende a julgamentos morais: o pós-vida não pune pecados, não celebra virtudes; ele se organiza segundo o tipo de morte, não o caráter do indivíduo. E, acima de tudo, é o frio, não o fogo, que reina sobre esses reinos — lembrando que nem toda escuridão precisa queimar, mas ainda assim impõe respeito.


Talvez por isso Krampus se encaixe tão bem nessa tapeçaria de mitos: ele não nasce para punir moralmente, mas para lembrar — como lembravam os invernos — que toda escolha tem consequência, e que até a alegria precisa de sombra para ser completa. Ele é descendente simbólico dessa visão antiga do mundo, onde o medo educava, onde o gelo aconselhava, onde a morte era apenas mais uma paisagem.

É nesse ponto, entre deuses, neves e histórias sussurradas ao pé da lareira, que Krampus encontra sua essência: não como um demônio, mas como herdeiro de um imaginário que compreendia que a vida é sempre metade luz, metade noite.

Outros estudiosos, porém, sugerem que Krampus não desce diretamente dos deuses, mas é herdeiro de algo ainda mais antigo, mais obscuro e selvagem: as criaturas do inverno, espíritos que vagavam pelas florestas alpinas muito antes do cristianismo lançar suas sombras sobre aldeias e montanhas.

Claude Lecouteux, em seus estudos sobre as tradições sobrenaturais medievais da Europa, descreve essas figuras como remanescentes de rituais ancestrais, entidades que encarnavam o frio, o medo e a necessidade de purificação antes do novo ciclo anual.

Já Al Ridenour, em sua obra The Krampus and the Old, Dark Christmas: Roots and Rebirth of the Folkloric Devil (2016), investiga os ecos das antigas procissões da Wild Hunt nas regiões alpinas e apresenta Krampus como uma síntese viva dessas tradições fantasmagóricas. Nessa leitura, chifres, peles e sinos não são meros adornos, mas marcas do poder indomável e disciplinador do inverno, lembrando que a escuridão e o frio moldavam a vida humana com a mesma intensidade que a luz do sol, impondo respeito, cautela e admiração. Krampus, assim, não surge apenas como um monstro festivo, mas como herdeiro simbólico de um imaginário ancestral que ensinava, advertia e fascinava ao mesmo tempo.

Assim, Krampus surge não como invenção isolada de um folclore tardio, mas como herdeiro simbólico de séculos de rituais e crenças, uma criatura que transporta para os séculos modernos a voz de um inverno que castigava, educava e, acima de tudo, lembrava o homem da força indomável da natureza.

O inverno, vale lembrar, não era naquela época uma paisagem pitoresca — mas um inimigo legítimo. O frio matava – e ainda continua matando. A escuridão consumia. A fome rondava as aldeias. E a figura de Krampus, com seus chifres curvos, pelo espesso e língua serpenteada, funcionava como materialização desse temor ancestral. Ele era o inverno encarnado, a advertência ambulante de que a natureza não era apenas beleza — era ferocidade.

Seu corpo peludo, escuro como o lado não aceso das estrelas, lembra aos homens o que esquecem com facilidade confortável: o medo educa. Educa como educa o fogo ao lamber a lenha, mostrando que calor e destruição sempre dançam juntos. Educa como educa a neve, que exige cuidado, comunhão, ritual.

Com o tempo, conforme o cristianismo avançou pelos Alpes, a Igreja percebeu que apagar totalmente tais tradições seria como tentar varrer a própria montanha. Então, como fez tantas vezes, preferiu assimilar. Na figura de São Nicolau — o bispo generoso, distribuidor de moedas douradas, patrono das crianças — encontrou o oposto perfeito para domesticar o caos. Assim, enquanto o santo caminhava iluminando a noite com promessas brandas, Krampus seguia ao seu lado, carregando correntes, sacos, vassouras e sinos metálicos que ecoavam pelas vielas como lembretes rudes de responsabilidade.

Um era a luz de uma vela.

O outro, a sombra inevitável que ela projeta.

Juntos, davam ao povo o equilíbrio perfeito entre graça e disciplina.

Nas regiões alpinas, essa dupla não era vista como contradição, mas como necessária complementaridade: São Nicolau recompensava os bons; Krampus corrigia os maus. Uma pedagogia simbólica do inverno, compreensível numa época em que a sobrevivência dependia tanto da benevolência quanto da cautela.

Assim se formou o mito que conheci por uma imagem de cartão: não um monstro isolado, mas uma figura ancestral, bifronte e essencial, moldada por séculos de neve, medo, religião, adaptação e imaginação humana — uma criatura que acompanha o Natal não como intrusa, mas como guardiã daquilo que esquecemos quando pensamos apenas nas luzes, sem lembrar das sombras que permitem que elas brilhem. 

LUZ E SOMBRA: O PARADOXO NATALINO

Não é difícil imaginar — e rir com um certo espanto — que Papai Noel e Krampus compartilhem um vínculo antigo, quase fraternal. Afinal, ambos caminham lado a lado na mesma tradição, cada um desempenhando seu papel em um delicado equilíbrio de polaridades. Onde um entrega presentes, reforçando a esperança e a bondade, o outro ensina, com gestos dramáticos, que a vida possui limites, que há consequências mesmo sem punição real.

Krampus não sequestra crianças; não as devora nem as condena. Ele performa, dramatiza, encena. Seus chifres, correntes e sinos não são armas, mas instrumentos de memória e alerta. Ele dança com o medo, como um artista que transforma a inquietação em arte, e faz isso com a paciência austera de quem conhece os ciclos da natureza e da moralidade social. Ao mesmo tempo, Papai Noel distribui risos, doces e promessas; seu ofício é o brilho do sol sobre a neve, a certeza de que a bondade ainda é possível.

Ao longo dos séculos, a cristandade tentou separar os dois, preocupada que a sombra estragasse a fotografia oficial da festividade. Mas como se separa luz e sombra? Como se retira o sal de um chocolate, ou a acidez de uma fruta madura?

A verdade é que o Natal só funciona porque os dois coexistem, porque o prazer do presente se intensifica na consciência do que ocorre quando falhamos, mesmo que seja apenas na imaginação.

Historicamente, essa dupla simboliza uma pedagogia antiga: Krampus encarna a memória do inverno, da necessidade de disciplina e atenção, herdando ecos dos espíritos alpinos que precederam o cristianismo. Papai Noel, por sua vez, sintetiza a misericórdia, a recompensa e a esperança cristã, mas também carrega resquícios de São Nicolau e das divindades solares do norte europeu. Juntos, eles formam um casamento improvável, mas funcional, como a neve que realça o brilho do sol: um existe para que o outro faça sentido.

Assim, enquanto Papai Noel reina nas vitrines e propagandas, Krampus permanece discreto, sussurrando sua lição silenciosa: que a bondade e a indulgência só existem porque sabemos, em nosso íntimo, que há limites, que há riscos, que há sombras.

Há sempre um Krampus no Natal de cada um — não necessariamente em chifres ou correntes, mas em responsabilidades, escolhas e aquelas viagens ou tarefas que tentamos adiar.

A magia do Natal, afinal, floresce na tensão entre o prazer e o alerta, no abraço entre o riso e o calafrio, no contraste elegante que transforma simples datas em rituais vivos e memoráveis.

Se você é cearense, ou vive em qualquer canto do Nordeste, e talvez até em outros recantos do Brasil, certamente vai se lembrar de um personagem folclórico bastante popular, presente nas histórias que davam sustos e ensinavam disciplina às crianças: o Velho do Saco. Ele surge nas lembranças da infância como sombra e aviso, carregando consigo um saco misterioso, pronto para lembrar aos pequenos da importância de se comportarem.

Pois bem: se me permite uma ponte entre continentes e tradições, o Velho do Saco é, em essência, uma transformação desse Krampus ancestral dos Alpes. Aquela imagem de Krampus carregando crianças em sacos ou algibeiras, que tantas gravuras e cartões antigos registraram, não deve ser tomada ao pé da letra. Historicamente, trata-se de uma metáfora — uma dramatização do alerta moral: “Comporte-se, ou haverá consequências”. Nada de sequestros reais, nada de tragédia literal, apenas a dança da disciplina envolta em sombras e rituais teatrais.

O Velho do Saco brasileiro, então, é a mesma lição transposta, adaptada ao clima tropical, à cultura local, à imaginação das crianças que precisavam de limites. Ele carrega o mesmo aviso silencioso que Krampus carregava nas montanhas frias da Europa: o medo como instrumento de aprendizado, o suspense como mestre, e a sombra como lembrete de que a disciplina existe, mesmo quando o calor do sol parece afastar qualquer frio ou ameaça.

Talvez seja no Velho do Saco brasileiro que o espírito ancestral de Krampus tenha finalmente encontrado liberdade — liberdade para se afastar do rigor do inverno alpino, para deixar para trás a necessidade do frio, dos sinos e das correntes, das roupas pesadas e das máscaras elaboradas.

Aqui, sob o sol constante do Nordeste, ele pode se manifestar a qualquer hora, em qualquer dia, em qualquer época: basta que alguém o invoque. Não precisa de rituais complexos, de indumentárias pesadas ou da noite gelada; seu simbolismo se mantém vivo na imaginação, na disciplina sutil, no arrepio que percorre a espinha de uma criança distraída.

O rigor da tradição se transforma em liberdade performativa, e o antigo guardião do inverno se reinventa como sombra ambulante, leve, solar e ainda misteriosa, lembrando que o medo também pode ser poesia. 

ODIN, O VELHO PEREGRINO: A HERDANÇA SOMBRIA 

Muito antes de trenós voadores, renas sorridentes e listas de crianças comportadas, havia Odin — o deus supremo da mitologia nórdica, Pai de Thor, Senhor dos deuses e de todas as sagas que moldam o mundo. Velho, de um olho só, viajante incansável, ele cavalgava Sleipnir, o cavalo de oito patas, veloz como todos os anseios, medos e urgências que habitam o coração humano. Odin não era apenas um deus guerreiro ou feiticeiro: era juiz, guardião da sabedoria, senhor da morte e da vida, mestre dos destinos.

Durante o Yule, a antiga celebração do solstício de inverno, Odin percorria os céus, inspecionando lares, aceitando oferendas, observando cada gesto e cada decisão dos mortais.

O Yule não era apenas festa ou reunião familiar; era um rito cósmico, um momento em que a escuridão alcançava sua plenitude e o homem precisava observar, refletir e oferecer. Fogos eram acesos para iluminar a noite mais longa do ano, oferendas eram deixadas para os deuses e os espíritos da terra, e cada gesto humano era lido como um livro aberto pelo próprio Odin — severo e justo, generoso e sábio. Ele via tudo: cada ação, cada descuido, cada decisão; nada escapava à sua vigilância, como se o tempo e o espaço se curvassem diante de seu olhar único.

O Yule, com suas fogueiras, rituais e oferendas, era o coração do inverno nórdico, uma celebração de ciclos e de passagem, de luzes e sombras, de disciplina e generosidade. Com a expansão do cristianismo, muitos desses costumes foram absorvidos, apagados ou reformulados: os presentes, que antes eram oferendas simbólicas aos deuses e à comunidade, transformaram-se em mercadorias e agrados; o rigor e a avaliação de Odin foram suavizados na figura benevolente de São Nicolau; as fogueiras e os rituais se tornaram luzes piscando e ceias festivas.

Talvez você se surpreenda com o que vou te dizer agora – esse momento perfeito para usar aquela máxima moderna, “TRAGO VERDADES” –, os leitores amis assíduos e mais antigos do meu blog já ouviram falar de Yule muitas vezes, especialmente no Natal. Pois, já tratei no blog sobre duas origens que brotam diretamente do Yule, e que, hoje, se escondem nos símbolos mais familiares do Natal sem que percebamos.

A primeira é a árvore de Yule: antes de luzes elétricas e bolas coloridas, ela era erguida em silêncio, entre sombras e velas trêmulas, ramos verdes que suspiravam vida no meio da noite mais longa. Com o tempo, cresceu e se transformou na árvore de Natal que conhecemos, enfeite de casas e de memórias, portadora de uma promessa silenciosa: que a vida persiste, mesmo quando o frio aperta e o escuro parece engolir tudo. A segunda é o presunto ou pernil de Yule, prato de fartura e oferenda, preparado com mãos cuidadosas e corações atentos, que atravessou séculos até virar o pernil de Natal, estrela das ceias, lembrança de abundância e calor humano em noites frias.

Dois símbolos tão comuns, tão incorporados à nossa tradição, que muitos nem suspeitam que carregam ecos ancestrais — a respiração de povos que reverenciavam o solstício, que entendiam a noite como tempo sagrado, que conheciam o rigor do inverno e a beleza do rito. Para aqueles que desejam mergulhar ainda mais fundo, revelando cada camada dessas heranças, publiquei textos detalhados no blog AQUI e AQUI — mapas de memória, pistas de um passado que ainda pulsa silencioso entre as luzes do Natal moderno.

E ainda assim, mesmo oculto sob a neve da história cristã, o espírito do Yule persiste: o rigor escondido na bondade do Natal moderno, a sombra que lembra que há limites e consequências, a dança entre recompensa e advertência.


É essa tensão — entre a escuridão da noite mais longa e a promessa de luz — que mantém viva a memória de Odin, do Yule e, inevitavelmente, de Krampus, o guardião sombrio que insiste em sussurrar à humanidade que, mesmo na festa, o mundo é feito de equilíbrio: entre medo e prazer, disciplina e alegria, sombra e sol.

É nessa genealogia que se compreende a origem do Natal moderno. Papai Noel, com seu trenó, sua barba branca e sua benevolência, herdou de Odin o papel do viajante que avalia casas e recompensa o bem. Mas Krampus carrega a outra metade dessa herança: a selvageria ancestral, o aviso antigo de que os deuses nórdicos não são fabricantes de açúcar, mas senhores de ventos, tempestades e sombras que testam a coragem humana. Ele é o eco sombrio da “Caçada Selvagem” liderada por Odin — fantasmas, espíritos e lobos atravessando os céus em uma procissão que lembrava aos mortais que o frio, o perigo e o rigor fazem parte da vida.

Krampus, portanto, não é fruto de maldade, mas um resíduo de memória, um fragmento que ficou para trás quando Odin desceu dos mitos para habitar o imaginário alpino. Ele lembra que a disciplina, o medo e a sombra são tão essenciais quanto a luz, a recompensa e o calor. E se até mesmo o Pai de Todos, Odin, via a necessidade do equilíbrio entre severidade e misericórdia, por que não aceitar que o Natal também carregue seu lado escuro, sua dança entre a bondade e a advertência?

No fundo, Odin, Papai Noel e Krampus compartilham a mesma lição: a bondade existe porque entendemos o que ocorre na ausência dela, que a noite e o frio, o medo e a sombra, moldam o espírito humano tanto quanto a luz e o calor. E é nessa tensão — entre o rigor do deus supremo e a indulgência do presente — que nasce a magia do Natal.

E assim chego à mesa de Natal, esse altar temporário onde o tempo se dobra e a memória se senta à mesa junto com o aroma das especiarias. Entre velas tremeluzentes e ramos verdes, cada elemento — do pinheiro decorado ao pão recém-assado — é um símbolo, um fio invisível que conecta passado e presente, medo e alegria, rigor e indulgência.

É nesse espaço de encontros e conversas, entre risos e histórias murmuradas, que o Parkeljni encontra seu lugar: não apenas como um pão delicioso, mas como um pequeno guardião da tradição, capaz de iniciar diálogos sobre o passado, sobre o Krampus, sobre os antigos ritos de inverno.

Ele decora, adoça e provoca ao mesmo tempo, lembrando a todos que até a sombra pode ser acolhida, mastigada e transformada em narrativa compartilhada. E é assim, com um pedacinho de massa e uma pitada de mistério, que a magia antiga se reconecta com os convivas, como se o inverno das montanhas eslovenas tivesse atravessado séculos para pousar delicadamente em nossas mãos.



PARKELJNI, O PÃO DE KRAMPUS — DOÇURA E SOMBRA NAS MONTANHAS ESLOVENAS

Entre as neves permanentes e as florestas densas das montanhas centro europeias, onde o frio entalha silêncios longos e as noites se estendem como véus espessos, nasceu uma tradição delicada e estranha — o Parkeljni, o pão de Krampus. Não é um pão simplesmente para comer: é um fragmento de medo transformado em massa levedada; é a convergência entre a fantasia, o rito e a doçura humana.

Na Eslovênia — onde Krampus é chamado de “parkelj” (“parkeljni” no plural) — as famílias preparam, no tempo que antecede o dia de Dia de São Nicolau (5–6 de dezembro), pequenos pães moldados com formas que evocam chifres, pernas esguias, olhos de uvas-passas, até línguas pontiagudas de papel ou massa vermelha, os traços de um demônio-mitológico que veio das regiões alpinas.

A massa — rica, levedada, amanteigada — revela um cuidado que suaviza o horror simbólico; transforma o grotesco em aconchego, o medo em ritual familiar. Crianças, entre risos e nervosismos, participam da criação dos pãezinhos, decorando-os, experimentando — e, quem sabe, desacostumando-se do medo de Krampus pelo toque gentil do doce.

Essa prática, hoje associada ao Natal e ao Advento, é mais do que folclore — é uma ponte viva entre o paganismo antigo e a era moderna, onde o frio, a escuridão e o temor do inverno foram domesticados pela arte da cozinha. O Parkeljni funciona como um espelho simbólico: olhando para ele, lembramos que a tradição da surpresa, do estranhamento, da ambivalência moral (recompensa e perigo) não desapareceu — apenas foi remodelada.

Em algumas aldeias e regiões eslovenas, o preparo e o consumo do pão de Krampus coincide com os desfiles de parkeljni ou com os cortejos de máscaras e chifres, onde adultos vestidos como criaturas do mito percorrem vilas, arrastam correntes, batem sinos — evocando o demônio, mas ao mesmo tempo reafirmando a pertença comunitária, a memória ancestral, o medo compartilhado como lição coletiva.

Consumir Parkeljni — partir o pão, ver o vapor subir, sentir o cheiro quente de forno — é um ato de reconciliação com a sombra. É aceitar que o Natal não é só luz, neve e alegrias açucaradas. Que ele também guarda em si vestígios de frio, barro, máscaras, histórias contadas ao pé da lareira antes de dormir — histórias que avisam: “porte-se bem, ou a noite vem para lembrar”.


Portanto, se você decidir incluir a receita na mesa de Natal, faça-o com reverência: não é apenas farinha e açúcar. É tradição, é memória, é um pedaço de montanha velha, um suspiro de inverno, uma oferenda ao medo que nos formou. E, ao mesmo tempo, é doce — porque até a sombra tem direito a um pouco de ternura.

EPÍLOGO – Krampus à Mesa: Tradição, Medo e Doçura

Quando penso em Krampus, não consigo vê-lo como mero vilão; ele é, antes, o contraponto essencial que transforma o Natal em algo que pulsa, que respira, que nos lembra da profundidade da vida. Ele é o carvão na meia, a falha sutil na receita de bolo, o comentário irreverente que surge na mesa de família — pequenas rupturas que equilibram o excesso de doçura, trazendo sabor, contraste, realidade. Krampus é a sombra que dá corpo à luz, o frio que faz o calor parecer mais intenso, a lembrança de que todo prazer carrega consigo a consciência do limite.

Nos tempos modernos, surgiram personagens como o Grinch, criado por Dr. Seuss em 1957, o ser verde e mal-humorado que tenta roubar o Natal com sarcasmo e engenho. E, claro, Papai Noel — reinventado, polido, encantador, e consolidado como ícone global pelo marketing da Coca-Cola no início do século XX — espalhando generosidade artificial e alegria calculada. Mas enquanto o Grinch e o Papai Noel são criações literárias e mercadológicas, Krampus existe como uma memória viva, como um suspiro antigo do Yule, como o eco de montanhas geladas e sinos metálicos que alertam crianças e adultos sobre limites, consequências e disciplina. Ele é o medo ancestral transformado em arte performática, uma dança de sombras e chifres que atravessa séculos, que ensina sem punir, que vigia sem odiar.



Krampus nos lembra que a alegria não é apenas açúcar e luz; ela precisa de contraste, de tensão, de sombra para que possamos reconhecê-la plenamente. Ele é, em essência, o espírito do Natal que não se curva à conveniência, que não se rende à publicidade, que carrega em si a força crua do inverno, a disciplina dos deuses e a nostalgia dos antigos rituais.

Enquanto Papai Noel nos promete recompensa e o Grinch nos diverte com travessura, Krampus nos devolve à profundidade do mundo: à beleza da sombra, à magia do medo, à poesia do limite.

Se Papai Noel é o convite à esperança, Krampus é o lembrete de que nem toda promessa de luz vem sem o trabalho de enfrentar a escuridão. E se Odin sussurra ao fundo, é para nos dizer que a vida — como as grandes ceias — exige tanto banquetes quanto jejuns, tanto o sorriso acolhedor quanto o silêncio inquietante.

Por isso, quando dezembro chega com seus sinos, prefiro imaginá-lo assim: caminhando lado a lado com o bom velhinho, trocando comentários sobre a humanidade, sorvendo o frio como quem prova um vinho muito velho, muito raro.

E rindo, claro — rindo baixo, com aquele humor ferino que só os seres antigos dominam — ao ver que nós ainda acreditamos que o Natal pertence apenas à luz.

Por isso, quando dezembro chega com seus sinos, prefiro imaginá-lo assim: Krampus caminhando lado a lado com o bom velhinho, trocando comentários sobre a humanidade, sorvendo o frio como quem prova um vinho muito velho, muito raro. E enquanto eles percorrem ruas cobertas de neve, dentro das casas outro ritual acontece: o aroma quente da massa levedada invade a cozinha, o Parkeljni dourando no forno como se guardasse o sopro da montanha eslovena em cada miolo.

O pão de Krampus não é apenas alimento — é memória que se toca, é história que se compartilha, é a ancestralidade do Natal traduzida em sabor e forma. Cada pedacinho modelado em chifres, pernas ou olhos de uva-passas carrega séculos de noites longas, de florestas geladas e de histórias sussurradas junto ao fogo. À volta da mesa, os convidados observam, comentam, sorriem, e sem perceber entram em contato com a tensão delicada que faz o Natal ser completo: a coexistência de sombra e luz, de rigor e doçura, de medo e alegria.

Comer Parkeljni é aceitar que o Natal não é só brilho e açúcar: é disciplina que se transforma em afeto, frio que se transforma em calor, medo que se transforma em riso. É a magia de um Krampus que não pune, mas lembra, que não aterroriza, mas ensina. E rindo, claro — rindo baixo, com aquele humor ferino que só os seres antigos dominam — ao perceber que nós ainda acreditamos que o Natal pertence apenas à luz.

Pois todo Natal, inevitavelmente, tem seu Krampus – nem que seja na forma de seu Parkeljni.

E ainda bem. 

REFERÊNCIAS

RIDENOUR, Al. The Krampus and the Old, Dark Christmas: Roots and Rebirth of the Folkloric Devil. Port Townsend (WA, EUA): Feral House, 2016.

LECOUTEUX, Claude. Phantom Armies of the Night: The Wild Hunt and the Ghostly Processions of the Undead. Rochester, VT: Inner Traditions / Bear & Company, 2013.

LECOUTEUX, Claude. Witches, Werewolves, and Fairies: Shapeshifters and Astral Doubles in the Middle Ages. Rochester, VT: Inner Traditions / Bear & Company, 2003.

LECOUTEUX, Claude. Encyclopedia of Norse and Germanic Folklore, Mythology, and Magic. Rochester, VT: Inner Traditions / Bear & Company, 2019. 

PARKELJNI – PÃO DE KRAMPUS

Massa:

3 Xícaras de farinha de trigo

1 pacotinho de fermento biológico seco instantâneo

6 colheres de sopa de manteiga

¼ de xícara de açúcar

2 gemas de ovo

2/3 de xícara de leite morno (aprox. 170 ml)

1 colher de sopa de rum

Raspas de 1 limão

1 colher de chá de pasta de baunilha (ou essência de baunilha)

Uma pitada de sal

Para pincelar:

1 ovo batido

Decoração:

Uvas-passas

Um pouco da massa tingida com corante comestível vermelho (ou, Papel vermelho ou cartolina para fazer as línguas e colocar depois de assado)

Modo de preparo: massa - Em uma tigela grande, misture a farinha com o fermento. Em uma panela, aqueça o leite, o açúcar e a manteiga até que a manteiga derreta completamente. Acrescente as raspas de limão, o rum e a baunilha à mistura de leite e mexa bem. Espere a mistura esfriar até ficar morna e adicione as gemas, misturando bem. Adicione a mistura de leite à farinha e sove à mão ou com batedeira até obter uma massa macia, elástica e que não grude nas mãos. Cubra com plástico filme e deixe descansar em local morno até dobrar de tamanho (aproximadamente 60 minutos).

Modelar os Parkeljni: Pré-aqueça o forno a 180 °C. Divida a massa em 5–6 partes (dependendo do tamanho que você deseja para cada pão). Pegue uma parte e divida em duas tiras. Torça as tiras algumas vezes. Modele duas pontas para formar as pernas e duas pontas para os chifres. Decore com uvas-passas para os olhos. Faça um corte onde será a boca e insira a língua feita de papel vermelho ou cartolina triangular. Coloque os parkeljni em uma assadeira e deixe descansar em local morno por cerca de 30 minutos. 


Finalizar e assar: Pincele os parkeljni com o ovo batido. Leve ao forno preaquecido e asse por aproximadamente 20 minutos ou até dourarem levemente. Retire do forno e deixe esfriar levemente antes de servir. 

Esses pãezinhos podem ser servidos como decoração da mesa de Natal ou consumidos como um delicioso pão doce, carregado de tradição e magia. Cada Parkeljni é uma pequena história viva, lembrança da sombra e da luz que formam o espírito do Natal.