terça-feira, 11 de novembro de 2025

O PÃO DE SÃO MARTINHO: O 11 DE OUTONO COM HISTÓRIAS QUE AQUECEM

 

Ontem, véspera do dia de São Martinho, compartilhei aqui a receita de um bolo sueco em homenagem ao santo (se perdeu, veja AQUI. Mais do que um simples doce, ele é um gesto que atravessa fronteiras e séculos — um modo de lembrar que a cultura também se assenta à mesa, com suas histórias silenciosas e seus símbolos de partilha. Há algo de profundamente humano nesse gesto antigo: medir o açúcar, acender o forno, esperar que o calor transforme a massa em lembrança. O aroma que se espalha pela casa não é apenas o de um bolo — é o perfume do tempo em repouso, a tradução doce daquilo que não sabemos dizer. Cozinhar é, talvez, a forma mais silenciosa de oração: um diálogo entre o corpo e o passado, entre o desejo e a memória.

Um bolo, afinal, nunca é só alimento. É uma pequena tentativa de deter o instante — de provar, com o sabor e o calor, que ainda existe ternura no mundo, mesmo quando lá fora as estações se confundem e a vida nos sopra com seus ventos frios.

Tentei, assim, oferecer não apenas uma receita, mas um convite: que cada leitor e leitora permitisse que a doçura aquecesse também sua própria mesa, reacendendo lembranças e sabores que sobrevivem ao passar das estações.

Agora, com o fim do ano se aproximando, o outono no Norte Global se faz sentir como um suspiro antigo — o frio se instala com mãos invisíveis, delicadas e impiedosas ao mesmo tempo. Ele acaricia e fere os campos, pinta de cinza as manhãs e deixa o ar saturado de uma beleza melancólica, quase espiritual. É uma época em que o tempo parece caminhar mais lentamente, como se o mundo se recolhesse para ouvir o próprio coração.

E para ver como é irônico o destino — nesses giros lentos e precisos com que a Terra desenha as estações —, aqui, nestes lados do Sul Global, o Brasil floresce em plena primavera. Mas somos um país de dimensões continentais, e até as estações se confundem, como se o tempo, ao atravessar nossas fronteiras, perdesse a rigidez e se tornasse sonho, miragem ou febre.

Ontem mesmo, enquanto o Norte do mundo se recolhia sob o outono, parte do Sul brasileiro experimentava a fúria da natureza — uma fúria tão intensa que se aproximava do sagrado. Três tornados devastadores rasgaram o céu e a terra brasileira, levando consigo não apenas o que era visível, mas também aquilo que se constrói em silêncio: a esperança, o trabalho, o repouso das pequenas vidas.

Uma das cidades mais atingidas foi Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná. O tornado, classificado como F3 na escala Fujita, varreu mais de oitenta por cento da área urbana, deixando atrás de si um rastro de ruínas, seis mortos e uma comunidade mergulhada no espanto.

Tudo o que parecia sólido — casas, árvores, caminhos — foi arrancado em minutos, como se o próprio céu tivesse decidido lembrar-nos da sua antiga linguagem, aquela que fala em ventos e trovões. Resta-nos o silêncio depois da tormenta, e essa certeza desconcertante de que a natureza, em sua grandeza e desatino, ainda é a narradora mais eloquente das nossas fragilidades.

E, ainda assim, há uma espécie de harmonia sombria nisso tudo: como se o mundo, em sua coreografia de luz e sombra, lembrasse a cada um de nós que nenhuma estação é estática, que a serenidade e a destruição são irmãs que dançam juntas desde o princípio dos tempos. Entre o doce e o devastado, entre o lar e a tormenta, seguimos procurando o sentido — talvez no sabor morno de um bolo, talvez apenas na capacidade humana de continuar acendendo o forno, mesmo quando lá fora o vento parece querer apagar todas as chamas.

Ontem, o bolo sueco trouxe calor e doçura — o consolo morno que só a casa conhece, o perfume que se espalha como lembrança e se entranha nas horas. Mas hoje, neste dia de São Martinho, é o pão que nos chama.

Não um pão qualquer, mas o Pão de São Martinho: redondo, antigo, carregado de símbolos, onde o trigo se mistura à lenda e o fermento parece guardar algo da respiração do próprio santo.

Cada fatia é uma oferenda — um pequeno sacramento de partilha, memória e permanência. No pão repousam ecos de antigas histórias murmuradas à beira do fogo, quando o frio pedia abrigo e a palavra ainda era consolo. Há lembranças de gentileza, gestos que atravessam os séculos e se tornam milagre pela simples coragem de existir.

E há, sobretudo, uma magia discreta — dessas que não resplandecem, mas sustentam. A alquimia silenciosa entre a fé e a fome, entre o corpo que implora por alimento e a alma que, sem saber, busca redenção. Em cada migalha há uma promessa: a de que o humano persiste, mesmo quando o mundo parece desabar — e que o pão, humilde e morno, é ainda a forma mais antiga de esperança.

Mas antes de conhecer o pão e compreender o mistério que o habita, é preciso conhecer o homem — aquele que o tempo, em sua lenta e reverente alquimia, consagrou santo. Porque antes do milagre veio a compaixão; antes da lenda, um gesto humano — simples, ardente e desarmado.

Sua história, feita de coragem e ternura, atravessa os séculos como uma chama que se recusa a apagar. E ainda hoje, se ouvirmos com atenção, é possível perceber sua voz — não um clamor, mas um sussurro — lembrando-nos de que toda santidade começa no gesto anônimo de cuidar do outro. 

SÃO MARTINHO DE TOURS: LUZ E GENEROSIDADE NO OUTONO DA VIDA

                             Representação de São Martinho de Tours

Martinho de Tours — em latim, Martinus Turonensis — nasceu em 316 d.C., na cidade de Sabária (Savaria), na província romana da Panônia, hoje Szombathely, na Hungria moderna. Filho de um centurião, cresceu entre o rigor da disciplina militar e o pulsar delicado de uma fé ainda jovem, tímida e muitas vezes perseguida. A família em que nasceu não era cristã; sua educação seguia os caminhos da religião de seus antepassados, a fé politeísta romana, com seus deuses mitológicos, rituais e templos que perfumavam o ar com incenso e devoção.

Mas a curiosidade infantil de Martinho o conduziu a lugares diferentes. Ainda menino, começou a frequentar uma igreja cristã, onde era introduzido aos mistérios da doutrina, mesmo sem ter recebido o batismo. Aos dez anos (326 d.C.), entrou para o grupo dos catecúmenos — aqueles que se preparam para a imersão na fé — e ali sua alma começou a despertar para uma fé que pulsava como um segredo guardado no coração. Foi nesse ponto que Martinho começou a sentir os primeiros chamados silenciosos de compaixão e luz, ainda criança, mas já com a força de um espírito que buscava algo além do mundo visível.

Desde cedo, a tensão entre espada e oração moldou seu espírito: de um lado, aprendia os ofícios do império, a hierarquia da guerra, o frio da ordem; do outro, sentia o chamado silencioso de um mundo mais compassivo, mais humano, onde a ternura podia florescer em pequenos gestos.

A vida de Martinho se desenrolava como um duelo contínuo entre luz e sombra — o frio das campanhas militares e o calor da fé, a brutalidade da espada e a suavidade de um gesto generoso. Ainda jovem, converteu-se ao cristianismo na antiga Gália, a vasta província romana que corresponde, hoje, à França moderna, um ato que exigia coragem quase heroica, pois abraçar a fé ainda era desafiar os poderes do mundo.



Sua ação missionária e pedagógica, em conjunto com outros homens e mulheres de fé, foi decisiva para a cristianização da Gália — tanto que lhe surgiu o título de “Apóstolo da Gália” ou “Pai das Gálias”. Mas sua influência não se limitou a esta província: espalhou-se por outras regiões ocidentais do Império, plantando sementes de cultura, caridade e espiritualidade que sobreviveriam à própria queda do Império Romano do Ocidente, em 476.

Martinho ajudou a fundar as bases do monaquismo na Europa Ocidental, e seu exemplo de vida — corajoso, compassivo e disciplinado — inspirou reverência ainda em vida. Para aqueles que não sabem do que falo, o monaquismo é, antes de tudo, uma busca de silêncio e intensidade interior. Surgido nos primeiros séculos do cristianismo, é a vida de homens e mulheres que decidem afastar-se do ruído do mundo para se entregar a uma disciplina espiritual profunda, vivendo em mosteiros ou em solidão, dedicando cada gesto, cada palavra e cada silêncio à oração, à meditação e à caridade.

Não se trata apenas de renunciar aos bens materiais ou às distrações do cotidiano; trata-se de ouvir o tempo e o sopro da própria alma, de transformar o simples ato de levantar, cozinhar ou caminhar em um ritual de presença e contemplação. Cada pedra de um mosteiro, cada caminho pelo jardim, cada manto usado com modéstia, se torna testemunha de uma vida dedicada à espiritualidade e à disciplina.

No coração do monaquismo está a ideia de que o espírito se fortalece no isolamento e na repetição, mas também na comunhão com os outros, na oração compartilhada e nos pequenos gestos de caridade. É uma vida que busca equilibrar o silêncio com o serviço, a solidão com a humanidade, a renúncia com a compaixão.

Martinho de Tours foi um dos pioneiros desse modo de vida na Europa Ocidental, mostrando que o monaquismo não é apenas retiro, mas um caminho de grandeza interior, generosidade e memória duradoura. Cada gesto, cada ato de cuidado ou ensino, deixava um eco duradouro, um legado que moldaria a formação da civilização cristã europeia, lembrando-nos de que a verdadeira grandeza não se mede em conquistas militares, mas na generosidade do espírito humano.

Ao atingir a adolescência, aos quinze anos (331 d.C.), Martinho foi alistado pelo pai na cavalaria do exército imperial — uma tentativa de mantê-lo próximo e, talvez, afastá-lo da Igreja nascente. Mas a intenção paterna revelou-se inútil: o jovem Martinho continuava fiel aos ensinamentos cristãos, especialmente à prática da caridade, como se sua alma tivesse feito um pacto silencioso com a compaixão, intocado pela disciplina militar.

Na Gália, a vasta província romana que hoje conhecemos como França, Martinho serviu como soldado, percorrendo caminhos frios e cidades ruidosas, mas nunca abandonando a luz que o cristianismo acendera dentro dele. Foi nesse período que se desenrolou o episódio que atravessaria os séculos: o repartir do manto.

Conta-se que, por volta de 337, aos 21 anos, próximo da cidade de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens, capital da Picardia), aconteceu o milagre da capa, que logo mais apresentarei em detalhes para vocês.

Durante as décadas seguintes, Martinho dedicou-se a cultivar a fé, a caridade e o monaquismo, ensinando, ajudando os pobres e vivendo entre mosteiros e comunidades cristãs, mesmo enquanto a Europa ainda fervilhava com crenças antigas. Cada dia parecia forjar seu espírito, equilibrando o rigor da disciplina e a suavidade da compaixão, preparando-o para o papel que o destino lhe reservava.

Em 371, já reconhecido por sua sabedoria e generosidade, Martinho tornou-se bispo de Tours, em um período em que a Europa fervilhava com crenças antigas e a cristandade tentava consolidar-se em meio a ritos pagãos. Sob sua liderança, construiu igrejas, fundou mosteiros e, sobretudo, tornou-se um farol de caridade e humildade. Diz-se que suas mãos curavam os doentes, que suas palavras consolavam os aflitos, mas que era na partilha do pão e no acolhimento dos pobres que residia sua maior magia. Cada gesto seu parecia carregar o eco das antigas tradições celtas, em que a solidariedade era ritual sagrado e o calor do fogo, da capa ou do pão, representava a luta contra o inverno implacável da alma e da natureza.

E, ainda hoje, a trajetória de Martinho nos chama. Não apenas como santo ou cavaleiro, mas como lembrança viva de que coragem e compaixão são inseparáveis. Ele cavalga por nossas memórias, por nossas mesas de outono, pelo aroma do pão quente que nos convida a continuar seu legado — a partilhar calor, a dividir vida, a transformar o gesto mais simples em eternidade.

O MILAGRE DA CAPA: QUANDO A GENEROSIDADE TRANSFORMOU O OUTONO NUM PEQUENO VERÃO

Saint Martin Dividing his Cloak, by Anthony van Dyck (1618)

São Martinho de Tours, cavaleiro de capa rubra, gesto generoso e olhar que atravessa séculos, ainda cavalga pelas nossas imaginações como uma sombra calorosa contra o frio do outono. A capa vermelha não era mero adorno — era o manto do soldado romano, tecido espesso contra os ventos da campanha, estampado com o rigor da ordem militar, o peso da disciplina e a luz dos estandartes. Martinho vestia esse manto porque, como filho de um tribuno, foi alistado na cavalaria imperial aos quinze anos, enviado a servir nas alas blindadas da Gália.

Ele chegava à estrada próxima de Samarobriva/Ambiano (a atual Amiens, na França, antiga Gália) montado no seu cavalo, a crina solta e os cascos ecoando sobre a pedra fria. A névoa envolvia os portões da cidade como um véu pesado, e as folhas despencavam em suspiros amarelos e ocre, anunciando o inverno que se aproximava com mãos de gelo.

A presença do jovem cavaleiro ali não parecia fora do lugar — a Gália romana estava pontilhada de limitanei, tropas de fronteira que patrulhavam as estradas; estandartes e símbolos da autoridade imperial, os signa militaria, ondulavam ao vento, lembrando a todos da ordem do império; e as unidades montadas, os equites, moviam-se com a disciplina silenciosa de quem garantia a paz e mantinha a tessitura da vida urbana intacta.

Martinho, cavaleiro de capa rubra, trajava o paludamentum, manto militar geralmente preso por um broche no ombro, que balançava suavemente ao ritmo dos cascos do cavalo. O vermelho não era apenas cor, mas símbolo: coragem, força e prontidão para o combate, um sinal de distinção que destacava o oficial no campo de batalha. Ao mesmo tempo, o tecido tinha uma função prática — disfarçava o sangue, lembrança silenciosa da fragilidade da vida que se desenrolava entre guerras e fronteiras.

Ainda assim, Martinho se movia com uma naturalidade rara: jovem cavaleiro, membro da cavalaria, detentor de disciplina e autoridade, carregava no peito a semente da compaixão. Sob aquele manto de poder, pulsava um coração capaz de aquecer o frio do outono e estender calor humano mesmo aos que nada tinham. A capa vermelha, que marcava sua posição no mundo, tornava-se ao mesmo tempo instrumento de bondade, promessa silenciosa de misericórdia que iria atravessar séculos.

Martinho usava a capa não por vaidade, mas por dever; nele estavam os símbolos da autoridade, da proteção e da tradição militar. Aquele tecido vermelho era arma silenciosa contra o frio, armadura contra o desespero, identidade que o império havia lhe conferido. E, no entanto, dentro dele, no íntimo de seu coração, vibrava uma outra veste — a da compaixão, a da partilha, a da fé emergente que recusava calar-se.

Preciso dizer que aprendi um pouco de latim, não por vaidade, mas para ouvir os ecos das palavras antigas, para compreender textos que atravessaram séculos, testemunhos de mundos que já não existem. Na minha época de estudos mitológicos, cada frase em latim era uma porta que se abria para os deuses, para os homens e para os gestos que moldaram a história. E, pro conat disso, resolvi incluir estas palavras de Sulpicius Severus não apenas como registro histórico, mas como encantamento: recitá-las é tocar o passado, perceber o presente e, talvez, semear uma centelha que alcançará o futuro. O gesto de Martinho, congelado na memória das palavras, continua a aquecer corações, lembrando-nos da compaixão e da generosidade que atravessam eras.

«Quodam itaque tempore, cum iam nihil praeter arma et simplicem militiae vestem haberet, media hieme, quae solito asperior inhorruerat, adeo ut plerosque vis algoris exstinxeret, obvium habet inporta Ambianensiumcivitatis pauperem nudum: qui cum praetereuntes ut sui misererentur oraret omnesque miserum praeterirent, intellexit vir Deoplenus sibi illum, aliis misericordiam non praestantibus, reservari. Arrepto itaque ferro, quo accinctus erat, mediam dividit partemque eius pauperi tribuit, reliqua rursus induitur.» Fonte: SEVERUS, Sulpicius. Vita sancti Martini. In: HALM, Karl (ed.). SulpiciiSeveri libri qui supersunt. Wien: CSEL1, 1866. 

“Num certo tempo, portanto, quando já não possuía nada além das armas e das vestes simples da milícia, no meio do inverno, que mais severo que o habitual se tornara, de modo que a força do frio extinguira a maioria, encontrou à porta da cidade dos Ambianos um pobre nu. E, quando os que passavam por ele não cessavam de rogar que se compadecessem dele e todos continuavam a passar adiante, aquele homem cheio de Deus compreendeu que aquele homem, por quem outros não demonstravam misericórdia, era guardado para si. … E então, tendo agarrado a espada com que estava cingido, dividiu ao meio aquela capa, e a parte dela concedeu ao pobre, e a outra voltou a vestir.” 

Essas palavras em latim não são meramente história: são um portal, uma introdução, um sussurro que atravessa os séculos. Elas nos preparam para o instante que se desdobra à nossa frente, para o gesto que Martinho realizou naquela manhã fria, à porta de Amiens.

O latim, com sua cadência ancestral, carrega o peso e a solenidade do passado, como se cada termo trouxesse consigo o sopro do vento gelado, o relincho do cavalo e o calor da compaixão prestes a se revelar. Agora, adentro o coração da narrativa, aquele instante que, ao longo dos séculos, continua a nos tocar e a aquecer nossas almas.

Numa manhã em que o vento parecia arrancar da terra cada gota de calor, Martinho viu o mendigo: carne e ossos, tremendo à porta de Amiens (na Gália), quase dissolvendo-se no ar gelado. A cidade bloqueava-se na rotina e passava, mas Martinho parou. Desmontou, a espada reluzindo um instante contra o céu encoberto. A lâmina cortou a capa ao meio. Ele envolveu o pobre homem não apenas com lã, mas com dignidade e ternura. Uma metade da capa compartilhada — um gesto que rasga o tecido e abre o coração, dividindo calor, esperança e humanidade. A outra metade permaneceu com Martinho, como lembrete de que a verdadeira generosidade não anula o próprio ser, mas o expande, tornando o mundo inteiro um pouco mais quente.

Naquele instante, a capa rubra deixou de ser símbolo de poder para se tornar sinal de misericórdia. O frio recuou, o sol se fez presente e o outono hesitou. Martinho mostrou-nos que nem todo cavaleiro monta por glória — alguns montam para ousar a ternura, para resgatar o calor humano, para vestir o invisível.

E então, como se o universo tivesse guardado seu olhar para esse gesto de bondade, algo extraordinário aconteceu: a neblina recuou, os ventos cessaram, e a chuva deu lugar a um sol tímido, dourado como um pássaro recém-desperto. As pedras, banhadas de orvalho, brilharam como se reconhecessem a justiça do gesto. Por três dias, uma luz suave dominou o outono, aquecendo a terra e o coração das pessoas — um fenômeno que passou a ser lembrado como o “Verão de São Martinho”, breve e milagroso, tão luminoso quanto a generosidade que o provocou.

Naquela noite, Martinho teve um sonho — ou talvez estivesse desperto em um limiar entre o real e o sagrado. Viu Cristo vestido com a metade da capa que havia dado ao pobre, e ouviu entre os anjos: “Aqui está Martinho, ainda catecúmeno, que me vestiu com este manto.” A partir desse instante, seu coração se incendiou. A indiferença desapareceu, e surgiu uma vida inteira dedicada à caridade, ao acolhimento e à construção de um reino feito não de espadas, mas de misericórdia.

O milagre da capa não foi apenas o calor físico que aqueceu um homem ao frio; foi o acontecimento que moldou uma alma, o instante em que Martinho se tornou farol para aqueles que ainda buscariam consolo e compaixão em um mundo áspero. O gesto, simples e extraordinário, continua a ecoar: cada capa dividida, cada pão compartilhado, cada mão estendida ainda é um eco daquele cavaleiro de capa rubra, atravessando os séculos com ternura e coragem.

Mas é preciso lembrar que a Gália era então domínio dos deuses do império romano, um panteão herdado dos gregos, fértil em figuras e rituais, politeísta e majestoso. Mesmo sob essa ordem e disciplina, a terra ainda guardava os sussurros antigos dos druidas, o perfume das florestas sagradas e o murmúrio dos rios que percorriam vales secretos.

Nas aldeias rurais, entre carvalhos venerados e círculos de pedra esquecidos pelo tempo, ecoavam os ritos celtas: celebrações do sol, do fogo, da colheita, memórias de um mundo que respeitava o ritmo da natureza e reverenciava cada mudança de estação.

Martinho cavalgava por essas terras onde a autoridade do império e a disciplina militar se entrelaçavam com a memória viva dos deuses romanos e dos ancestrais celtas, que sentiam o frio do outono como prenúncio e o calor do sol como bênção. Foi nesse entrelaçar de mundos — o concreto do império e o sagrado do bosque — que o milagre da capa encontrou seu cenário perfeito, como se cada folha soprada pelo vento carregasse consigo um convite silencioso à generosidade e à compaixão.

Antes de a espada de Martinho riscar o céu da Gália e de a capa rubra se rasgar em bondade, o solo em que ele cavalgava já carregava o eco antigo dos celtas — aqueles que chamavam a terra de Gallia Celtica, onde as tribos percorriam florestas densas, celebravam os ciclos do ano em ritos ao redor do fogo e sentiam os ventos assoprarem não só entre as árvores, mas também no coração do mundo.

Assim, quando Martinho apareceu em seu paludamentum vermelho, ele encontrou um solo que já conhecia o ritual da partilha, o fogo que salvava e o manto que aquecia mais que o corpo — aquecia a alma. E o milagre que ele protagonizou não rasgou apenas o tecido da capa, mas lembrou àquela terra antiga que a compaixão se assemelha ao sol que inesperadamente rompe a neblina de novembro, exatamente como nas antigas feiras celtas em que a luz retornava entre as estações.

Curiosidades abundam, e a figura de São Martinho se confunde com a memória viva dos deuses cavaleiros da tradição celta, guardiões das colheitas e protetores da generosidade; pois, embora na Gália romana não houvesse cavaleiros como os medievais, os deuses e heróis celtas montavam simbolicamente sobre os corcéis da força, do poder e da sabedoria, atravessando o mundo humano e o espiritual.

É preciso lembra: na tradição celta, não existia exatamente o “cavaleiro” como no mundo romano ou medieval, mas muitos deuses e heróis galopavam nas correntes invisíveis entre os mundos, carregando em seus corcéis a energia da guerra simbólica, da fertilidade e da transformação.

O cavalo, sagrado, era ponte entre o visível e o invisível, entre o humano e o divino, entre o palpável e o sussurro do vento nos bosques antigos, e aqueles que o montavam — homens ou divindades — carregavam nas rédeas não apenas velocidade e coragem, mas a própria energia da vida e da fertilidade.

 O cavalo e seu cavaleiro eram mais que força e velocidade; eram a encarnação do poder sagrado, da liberdade que atravessa mundos, e da audácia que só a coragem guiada pelo coração desperta.

Entre essas divindades celta, Epona, senhora dos cavalos, guardiã das viagens e da fecundidade, move-se silenciosa, como sombra protetora sobre cada estrada e cada campo, inspira a confiança silenciosa de quem parte e de quem retorna; Macha, deusa da guerra e da soberania, corre veloz sobre os rios e planícies, lembrando que a força da coragem pode rasgar o frio da indiferença, que a coragem é também a arte de enfrentar o inevitável; Nuada Airgetlám, rei guerreiro da Tuatha Dé Danann, empunha sua espada reluzente e cavalga entre céus e terras, oferecendo autoridade e justiça àqueles que ousam enfrentar o destino.

                                                  A deusa celta macha

                         Epona e seus cavalos, de Köngen, Alemanha, cerca de 200 a.C.

o deus Nuada Airgetlám tinha um braço de prata, e seu epíteto "Airgetlám" significa "braço de prata"

E assim, depois de galoparmos pelos bosques e rios sagrados da tradição celta, onde deuses e heróis cavalgam entre mundos invisíveis, a paisagem se abre para outra presença antiga e poderosa: a Gália de Martinho não era apenas terra de druidas e florestas encantadas, mas também chão onde o politeísmo greco-romano reinava lado a lado com os cultos celtas.

Ali, deuses que conhecemos de épicos e templos, cavalos sagrados e heróis divinos cruzavam simbolicamente com os corcéis e cavaleiros humanos, mostrando que o mesmo sopro de sacralidade podia habitar o mundo visível e invisível, do bosque à planície romana, da aldeia celta ao templo de mármore. É nesse encontro de mitologias, nesse entrelaçar de tradições e poderes, que se abre o caminho para os corcéis de Poseidon, o Hippios, e a memória dos deuses que carregam força e mistério sobre suas crinas.

Na tradição greco-romana, os cavalos também eram guardiões sagrados, animais que carregavam deuses sobre suas crinas, transportando poder, força e mistério. Poseidon, em sua forma mais profunda e ancestral, era chamado Ἵππιος – Hippios, o “Senhor dos Cavalos”, e em cada relincho sentia-se o eco das ondas do mar, da terra tremendo e das tempestades que só ele podia dominar. Os corcéis eram sua extensão, velozes como ventos, fortes como rochedos, e os cavalos sagrados tornavam-se pontes entre o humano e o divino, ligando campos e mares, guerreiros e deuses.

Quando Roma absorveu os deuses gregos, Poseidon se fez Netuno, e embora seu vínculo com os mares permanecesse mais central, a sacralidade dos cavalos não desapareceu; eles continuavam a carregar a autoridade e a força do deus, como símbolos silenciosos de disciplina, fertilidade e movimento entre mundos visíveis e invisíveis.

Ao mesmo tempo, há vínculos que ligam a deusa da agricultura com a relação com os cavalos e ao surgimento das estações:  Ceres, como os romanos a chamavam, era a terra generosa e os grãos da colheita, mas também o silêncio e a sombra da ausência. Quando sua filha, Perséfone, conhecida em Roma como Proserpina, foi raptada por Hades e levada para o reino das sombras, Ceres iniciou uma busca incansável, vasculhando cada canto do mundo, cada bosque e cada rio, em desespero que fazia a terra murchar e o céu tremer. Nem mesmo a deusa Hécate, guardiã das encruzilhadas e da magia, nem Hélio, que tudo via do alto do sol, puderam conter sua dor, embora lhe mostrassem o paradeiro da filha; a ausência de Proserpina congelava a terra, e a fome e o inverno se abatiam sobre os campos.


Durante essa busca, a deusa encontrou-se perseguida por Poseidon Hippios, seu irmão e Senhor dos Cavalos, que a desejava. Para escapar de sua insistência, Ceres transformou-se em égua, galopando entre os cavalos de Oncius, buscando refúgio na Arcádia. Poseidon, porém, assumiu a forma de um garanhão e, rompendo sua fuga, a violou. Dessa união nasceu Arion, o corcel imortal, espírito veloz que encarnava a união entre cavalos e divindades, tornando-se ponte viva entre o céu e a terra, entre o humano e o divino, entre a semente enterrada e o pão que brota nas mãos do homem.

Marcada pela ira e pelo luto, Ceres assumiu a forma de Deméter Erinys, a Furiosa, e de Deméter Melaina, a Negra, vestida de sombras, recusando-se a comer, beber ou interagir com o mundo, enquanto os campos secavam e a vida parecia suspensa. Quando finalmente se purificou no rio Ladon, recebeu também o epíteto de Deméter Lusia, a Purificadora, mostrando que até na dor e na humilhação há renovação e ritual, e que cada estação, cada seca e cada abundância são parte de um ciclo sagrado que atravessa tempo, memória e alimento.

O mito, espalhado entre Phigalia e Thelpusa na Arcádia, entre Tilphusa na Beócia e outros santuários, celebra não apenas a fertilidade da terra, mas também a força das águas, do cavalo e da divindade, e a dança eterna entre dor e esperança, entre perda e regeneração. Arion, nascido da fúria e da fuga, é testemunho de que a vida pulsa mesmo através da violência e da sombra, lembrando que cada gesto, cada grão, cada pão partilhado carrega consigo a memória dos deuses e a coragem de quem os serve.

Foi da angústia de Ceres, da busca incansável por sua filha Proserpina, que o ritmo das estações se fez visível aos homens. Enquanto a deusa percorria os campos secos e os bosques silenciosos, a terra murchava, os rios diminuíam e o pão desaparecia das mesas; o inverno se alongava como sombra persistente sobre o mundo. Cada passo de Ceres era uma nota no lamento da natureza, cada vestígio de sua dor, uma marca de aridez e ausência. Somente quando Zeus, movido pelo equilíbrio entre deuses e mortais, interveio, ordenando que Proserpina passasse parte do ano com a mãe e parte com Hades, a vida voltou a fluir: as sementes germinaram, os ramos se ergueram e a fertilidade regressou aos campos. Assim, a alternância de presença e ausência da deusa, de calor e frio, de seca e abundância, transformou-se no ciclo sagrado das estações — memória viva de que a perda e a reunião, a dor e a alegria, são fios invisíveis que tecem o tempo, conectando o divino ao humano, a mãe à filha, o campo ao pão, e lembrando que cada estação, cada colheita e cada fome, nasce da dança eterna entre amor, saudade e generosidade.

Com a vida das estações, veio o ciclo dos grãos, que voltaram a oferecer alimento ao mundo, como se a simples felicidade da mãe por ter sua filha de volta — ainda que por apenas seis meses do ano — pudesse restaurar a terra inteira. Assim, nos mitos, nos corcéis e cavaleiros sagrados, cada cavalo, cada rédea segurada por mortal ou divindade, era mais que transporte: era linguagem do sagrado, pulsação entre céu e terra, lembrete de que coragem, poder e liberdade caminham sempre juntos, entrelaçados.

Cada um deles galopa na memória da terra e no sopro dos ventos de outono, revelando que coragem e compaixão podem se unir, que generosidade é poder que se oferece, e que até o mais simples gesto — como compartilhar o calor de uma capa vermelha — ecoa com a força de um milênio, conectando cavaleiros, deuses e homens numa dança eterna entre sombra e luz, lembrando-nos que cada passo, cada relincho, cada estação, é parte de um pacto invisível que atravessa o tempo e a memória.

É nesse imaginário que Martinho se insere: romano e cavaleiro, jovem militar, mas com o coração já incendiado por uma compaixão que transcende ordens e insígnias. Cada passo de seu cavalo sobre a terra galesa ou galorromana ressoa como eco antigo do sagrado, do bosque e da chama que nunca se apaga, lembrança viva de que o humano e o divino se entrelaçam sempre que a generosidade se manifesta, e que coragem, poder e bondade caminham juntos, entre relinchos, vento e memória.

E assim, da memória dos cavalos sagrados, das estações que surgem e se recolhem, e do gesto generoso de um homem que se tornou lenda, ergue-se a ponte para o mundo visível: a compaixão concreta, que se manifesta em calor, alimento e cuidado. Martinho, cavaleiro antigo e símbolo de generosidade, ainda carrega consigo a aura de divindades ancestrais, um resíduo do sagrado que o cristianismo, de alguma forma, jamais conseguiu apagar por completo. O frio do outono, as folhas que caem e o vento que anuncia mudança tornam-se testemunhas desse encontro entre mito e cotidiano, lembrando que a dádiva e a bondade não se limitam à memória: prolongam-se no toque das mãos, no calor compartilhado, no alimento que nutre mais que o corpo — nutre a alma.

E é desse mesmo fio que liga cavalos sagrados, deuses, estações e gestos humanos que, séculos depois, nasce um símbolo concreto de generosidade: o pão de São Martinho. Como o gesto do cavaleiro que estende sua capa ao pobre, o pão surge como lembrança palpável da compaixão que atravessa tempo e memória, traduzindo o calor do coração em alimento compartilhado. Não é coincidência que, em regiões onde as tradições celtas, romanas e cristãs se entrelaçaram, esse pão se transforme em ritual: ele carrega o eco das estações que Deméter/Ceres rege, o sopro do outono que anuncia mudança, e a lembrança de que a bondade, quando se torna gesto, atravessa eras, une mundos e continua a pulsar na mesa de quem se dispõe a partilhar.

O PÃO DE SÃO MARTINHO: UM RITUAL DE OUTONO NA ÚMBRIA

Nas tradições populares, sobretudo nas derivações celtas e rurais, o gesto de Martinho converteu-se em rito e símbolo: o cavaleiro generoso que enfrenta o frio, a mudança repentina do clima como resposta ao ato humano, o pão que nasce da partilha, a capa que aquece e se transforma em memória. Martinho, assim, passa a ser mais do que homem: torna-se ponte entre as estações, entre sombra e luz, entre o frio que comprime e o fogo que liberta.

Cada pão assado em seu nome, cada mesa de novembro, carrega essa aura — o desejo de que o calor não seja apenas físico, mas também espiritual, que o alimento seja gesto, o pão seja promessa, a capa seja símbolo. Mas por que pão? Por que o gesto de Martinho, dividido entre ele e o pobre, se transforma em massa para o forno?

Porque o pão, alimento ancestral e universal, é a metáfora perfeita do que o santo nos ensinou: partilhar, dar calor, oferecer sustento e conforto. No tempo das aldeias medievais, o pão era riqueza, segurança, vida. Preparar pão em sua homenagem é refazer aquele gesto: transformar ingredientes simples em sustento compartilhado, como Martinho transformou sua capa em calor, e a indiferença em humanidade.

Assar pão para São Martinho é, então, muito mais do que tradição: é ritual. Cada mistura de farinha, água e fermento carrega a intenção de generosidade. Cada dobra da massa, cada pincelada de ovo na crosta, é metáfora da capa aberta, do calor estendido. O aroma que se espalha pela cozinha, invadindo a casa, é quase um feitiço de outono — lembrança do “verão de São Martinho”, quando o sol surge após a tempestade, aquecendo a terra e os corações. Nesse gesto simples, sentimos o toque do passado: a mão generosa do cavaleiro ainda percorre nossas mesas, aquece nossas mãos, nos lembra que cada ato de partilha cria calor que vai muito além do corpo.

Cada pão assado em sua homenagem carrega essa memória como um pequeno milagre cotidiano. A massa leveda com paciência, cresce lentamente, dourando na crosta macia que guarda calor e histórias. Ao partir a primeira fatia, sentimos algo além do sabor: o encontro de eras, a mão generosa do cavaleiro que ainda nos toca, o sopro do passado que se mistura com o presente — o outono do Norte e as tempestades do Sul parecem convergir no aroma que se espalha pela cozinha.

O pão, nesse contexto, torna-se metáfora viva: promessa e lembrança de que até nos dias mais cinzentos, um gesto de calor pode transformar a vida de alguém. O cavaleiro antigo, a capa vermelha, o pão compartilhado e o fogo do bosque — todos entrelaçam passado e presente, Romano e Celta, humano e divino. Ainda hoje, na crosta dourada e perfumada de um pão recém-saído do forno ou no vento que sopra folhas pelo outono, sentimos o sopro daquela manhã em Amiens, quando Martinho ensinou que coragem e compaixão não são inimigas, mas irmãs, que montam juntas pelo mundo, atravessando séculos e corações, como eco daquilo que foi e do que ainda pode ser.

Assim, entre brumas suaves e folhas que caem, quando o frio se insinua nas cidades do Norte Global ou as tempestades surpreendem o Sul Global, a tradição da Úmbria nos recorda que a memória não se conserva apenas em textos ou lendas, mas também em sabores e gestos, e que cada pão compartilhado renova o calor da generosidade, conectando o passado e o presente em um ritual vivo.

 É neste cenário que o Pão de São Martinho, conhecido como Pan Nociato ou Pan Caciato, se revela — um pão que não é apenas alimento, mas ritual, símbolo e memória viva.

A história escrita deste pão remonta a um antigo livro da culinária popular de Fabriano (AA. VV.; Angelini, P.; Balilla Beltrame, A.C.; Lipparoni, N.; Picchi, G.; Trecciola, A. Antologia della cucina popolare. Fabriano: Comunità Montana dell’Esino-Frasassi, 1993, reeditado em 1993, p.44), que preserva receitas tradicionais com variantes doces e salgadas, algumas já preparadas nas regiões de Sassoferrato e Matelica. No entanto, na Úmbria, o pão toma uma forma própria: um pequeno pão rústico, aromático, recheado de nozes recém-colhidas, coberto com queijo pecorino e perfumado com pimenta preta (pimenta do reino), às vezes enriquecido com passas ou um toque de vinho, que o torna simultaneamente simples e complexo, humilde e generoso — exatamente como o cavaleiro Martinho de Tours que lhe empresta o nome.

Este pão nasce como celebração da época da colheita, do outono pleno, do chamado “Verão de São Martinho” — aqueles dias inesperadamente amenos ao redor de 11 de novembro, quando, segundo a lenda, após São Martinho dividir sua capa com um mendigo congelado, o céu se abriu e o sol devolveu calor aos ossos e à alma. A Úmbria, com suas vilas de Assis, Perugia, Todi e San Martino in Campo, preserva esta tradição não apenas em mesas familiares, mas também em pequenos santuários culinários, como a Santino Panetteria, onde cada pão é moldado com reverência e atenção aos detalhes.

Cada ingrediente do Pan Nociato tem sua história. As nozes, frutos da terra recém-colhida, representam a generosidade da estação; o pecorino, sólido e pungente, dá força e sabor, lembrando que a bondade exige substância; a pimenta, sutil e inesperada, desperta os sentidos, tal como o gesto de Martinho desperta corações adormecidos. Moldar a massa é um ato de contemplação; esperar que cresça, sentir o aroma se espalhando pela cozinha, é uma meditação sobre o tempo, a paciência e a ligação entre passado e presente. Cada pão que sai do forno é ao mesmo tempo ritual e alquimia: a transformação do simples em extraordinário, do pão em símbolo, da massa em memória viva.

Historicamente, este pão não existe apenas na cozinha: ele permeia a cultura local, figurando até em poesias e tradições populares.

Guido Discepoli, poeta umbriense, evoca em seus versos o Pan Nociato como parte da celebração de novembro, inserindo-o no ciclo de memórias e climas peculiares da estação. Assim, o pão se torna ponte entre eras: a lenda do legionário romano que se converteu em bispo e padroeiro dos viajantes e viticultores, e o viajante moderno que, ao partir a primeira fatia, sente calor humano e memória ancestral se fundirem no instante presente.

Antes disso, o Anuário da cidade de Todi, datado de 1927, registra o ritual de preparo do “pan pepato”, um pão enriquecido com nozes e, às vezes, com uvas passas, consumido tradicionalmente durante o outono, especialmente pelos trabalhadores nos campos. Um pão que carregava em si o esforço e a energia da colheita, mas também o aconchego das memórias de família e comunidade.

A receita, conforme descrita no anuário, diz: “Pegue um punhado de nozes picadas, um punhado de uvas passas, um punhado de queijo pecorino em cubos pequenos, uma pitada do mesmo queijo ralado, uma pitada de pimenta, um pouco de sal, cinco ou seis cravos-da-índia, meio copo de vinho tinto, banha e azeite de oliva a gosto, e misture tudo, deixando a massa descansar por cerca de dez horas. Em seguida, junte um quilo e meio de massa de pão, formando uma mistura que deve ser dividida em três partes, como pães separados. Em cada pão, faça um corte profundo em forma de cruz. Quando a massa estiver fermentada, asse em forno de tijolos.”

Este pão, rico em sabor e energia, era o companheiro fiel dos dias de trabalho nos olivais de novembro, sustentando homens e mulheres durante a colheita. Seu tamanho modesto permitia ser saboreado sem pesar, um pequeno sustento que aquecia corpo e espírito. Embora existam variações doces e salgadas, a receita de Todi permanece clássica: a maciez da banha contrasta com o agridoce das uvas passas e o sal do queijo pecorino, criando uma experiência que atravessa séculos.

De fato, preparações semelhantes já eram conhecidas no mundo clássico: o patriarca Sofrônio, no século VI, mencionava um pão de queijo para crianças, enquanto em Roma antiga existiam múltiplas variantes de pães enriquecidos, que evoluíram ao longo do tempo até chegar à tradição atual.

O “pan nociato”, também chamado “pan caciato”, tornou-se assim uma verdadeira iguaria, preservando-se nas mesas da Úmbria e difundindo-se de Todi para toda a região. Sua importância cultural e afetiva é tal que mereceu lugar de destaque no poema Novembro de Guido Discepoli, incluído na obra Coletânea de poemas e canções populares religiosas de algumas cidades da Úmbria, editada por Oreste Grifoni – hoje, infelizmente, fora de catálogo. Um pão que é, ao mesmo tempo, sustento, memória e celebração da estação.

No ápice desta experiência, quando o pão se revela dourado, crocante por fora e macio por dentro, percebemos que cada fatia oferecida é um ato de partilha e compaixão. Não é o pão sozinho que importa, mas o gesto: dividir é transcender, como Martinho transcendeu o seu tempo com um simples corte de capa. É um momento em que o sagrado encontra o cotidiano, a lenda se mistura ao aroma do forno, e o outono, com sua luz dourada e dias instáveis, se torna palco para pequenos milagres comestíveis — e eternos.

O GRAN FINALE: O PÃO, A CAPA E O SOL DE SÃO MARTINHO

E, assim, quando o Pão de São Martinho emerge do forno, dourado, aromático, pleno de calor e memória, sentimos algo que transcende o paladar: uma ponte entre séculos, entre mãos que moldaram massa e mãos que cortaram capas, entre as neblinas frias do Norte e o sol fugaz que aqueceu a Úmbria. Cada pedaço partilhado carrega o gesto antigo do cavaleiro de capa rubra — generosidade que se torna alimento, coragem que se torna conforto. O aroma se espalha, quase sagrado, como se cada grão de farinha, cada noz triturada, cada fio de queijo pecorino contivesse a própria alma do santo e o sopro das estações.

Martinho, o legionário que abandonou a espada pelo abraço da misericórdia, cavalga invisível ainda, seus passos ecoando entre vilas e colinas, entre igrejas silenciosas e cozinhas cheias de risos e calor. O pão, com sua crosta macia e interior cheio de vida, é a tradução comestível de um milagre que se repete: a luz inesperada de um sol de outono, o calor que nasce do coração humano, o instante em que o gesto mais simples se torna eterno. É a Úmbria inteira, sua terra generosa, seu outono dourado, suas histórias guardadas em afrescos e mesas, que nos envolve — um abraço invisível que atravessa os séculos.

E, então, ao oferecer a primeira fatia, sentimos a plenitude: não há mais passado nem presente, apenas o instante sagrado da partilha, a alquimia da generosidade e do alimento. O Pão de São Martinho é mais que pão, mais que tradição: é poema, é história, é magia palpável, e cada mordida nos lembra que a vida, como o outono, é feita de contrastes — do frio e do calor, da sombra e da luz, da fome e da doçura. E nesse instante, sob o sol que rompeu a neblina, entendemos que o milagre não está apenas no gesto do santo, mas em cada coração que escolhe aquecer outro coração, em cada mesa onde o pão se torna promessa, em cada lembrança que se torna eterno.

O pão termina, mas o encanto permanece. Como Martinho, atravessamos o tempo com coragem, partilhamos calor, e descobrimos que o outono, a Úmbria, e até mesmo nossas cozinhas, podem ser templos de compaixão, poesia e magia. E assim, ao fechar os olhos e respirar profundamente o aroma do pão, sentimos: o mundo inteiro se ilumina com o gesto mais simples, e a história, a lenda e o sabor se tornam um só — perfeito, apoteótico, infinito.

E então o pão repousa, dourado e perfumado, mas a magia não termina. Como Martinho, seguimos viajando pelo tempo, dividindo não apenas calor, mas vida, histórias e memórias. Cada fatia é um gesto de generosidade, cada aroma que se espalha pela cozinha é um sussurro do passado que se curva ao presente. No fulgor do forno, no estalar da crosta, no toque macio da massa, sentimos a Úmbria inteira — suas colinas, suas vinhas, suas igrejas silenciosas e suas aldeias escondidas — pulsando em harmonia com o outono do Norte e os ventos tempestuosos do Sul.

O gesto do cavaleiro, a capa compartilhada, o milagre do sol de novembro, a paciência da massa levedando: tudo se funde em um instante sagrado, quase místico. O pão de São Martinho deixa de ser alimento e se torna oração, poema, pintura viva — um altar efêmero de calor humano. Respiramos profundamente, e no perfume de nozes, queijo e especiarias, o mundo inteiro se ilumina com a simplicidade de um ato de amor.

Assim, ao partir a última fatia, sabemos: não é o pão que termina, mas o encantamento que permanece, eterno e silencioso. Cada mesa, cada lar que acolhe esta tradição, se transforma em templo — onde a história, a lenda e a vida se entrelaçam, e onde o simples gesto de partilhar se eleva ao sublime. O Pão de São Martinho não é apenas receita: é memória, é luz, é eternidade em forma de alimento, e é, sobretudo, a promessa de que o calor da bondade humana pode atravessar séculos, atravessar ventos frios, atravessar vidas. 

PÃO CACIATO DI SAN MARTINO (versão salgada)

500 g de farinha de trigo

20 g de fermento biológico fresco (ou use 1 pacotinho de fermento pra pão seco, 13g)

220 ml de água morna

10 g de sal fino

25 g de azeite de oliva

250 g de passas

100 g de nozes picadas

250 g de queijo pecorino cortado em cubos

1/4 de colher de chá de pimenta-do-reino moída

Modo de preparo: Deixe as passas de molho em água morna por 10–15 minutos. Escorra e seque-as. Pique o queijo pecorino em cubos e as nozes. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Peneire a farinha na batedeira, adicione o sal e a pimenta, e uma parte do fermento dissolvido. Ligue a batedeira e adicione o restante do fermento, depois a água restante e o azeite. Se a massa parecer seca, adicione um pouco mais de água. Transfira a massa para uma superfície enfarinhada, sove um pouco, abra e incorpore as passas, nozes e queijo pecorino no centro, misturando bem. Modele a massa em bola e deixe crescer por 15 minutos coberta com pano. Divida a massa em 9 porções, modele em bolas, disponha 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas cada. Deixe crescer 45–60 minutos. Pré-aqueça o forno a 180°C (com ventilador), coloque os pães e asse 5 minutos a 180°C, depois reduza para 160°C e asse mais 35–40 minutos até dourar. Retire do forno e deixe esfriar antes de servir.

Observação: A adição de pimenta-do-reino dá apenas um leve toque aromático que realça o sabor do queijo e das nozes sem sobrepujar os demais ingredientes.

Pan Nociato (doce)

500 g de farinha de trigo

20 g de fermento biológico fresco (ou 1 pacotinho, 13 g, seco)

220 ml de água morna

10 g de sal fino

25 g de azeite de oliva

300 g de passas (mais doces, podem ser sultanas)

150 g de nozes picadas

100 g de açúcar mascavo ou cristal

1/2 colher de chá de canela em pó

1/4 colher de chá de pimenta-do-reino (opcional, apenas para aroma)

Raspas de 1 limão (opcional, para aroma fresco)

Modo de preparo: Deixe as passas de molho 10–15 min em água morna, escorra e seque. Pique as nozes e reserve. Misture o açúcar, a canela e as raspas de limão. Dissolva o fermento em 1/3 da água morna. Na batedeira, peneire a farinha, adicione o sal, a pimenta (se usar) e parte do fermento dissolvido. Ligue a batedeira, adicione o restante do fermento, a água e o azeite. Ajuste a consistência com um pouco mais de água, se necessário. Transfira para superfície enfarinhada, sove levemente e abra a massa. Incorpore passas, nozes e a mistura de açúcar/canela/raspas de limão. Modele em bola, cubra e deixe crescer 15 minutos. Divida em 9 porções, modele em bolas, organize 3 por assadeira, formando 3 pães com 3 bolas cada. Cresça 45–60 min. Pré-aqueça o forno a 180 °C (ventilado). Asse 5 min a 180 °C, depois reduza para 160 °C e asse 35–40 min até dourar.

 

 

sábado, 8 de novembro de 2025

BUFFET DE AFETOS: PROVE, MAS NÃO SE ENGANE

 

Depois de um relacionamento longo — quase dez anos — há um certo tipo de silêncio que se instala na casa e na cabeça. Não é só a ausência da outra pessoa que pesa. É a abundância de nós mesmos, ocupando cada canto, cada talher, cada pensamento que antes era dividido. O que era par, volta a ser prato único. E então, depois de tanto tempo, eu me peguei me observando — como quem olha dentro do forno esperando o bolo crescer, mas sem saber se usou o fermento!

Eu me sinto mais maduro agora, pronto para digerir coisas que, antes, passavam direto pelo meu paladar afetivo. Talvez por isso, nesses dias estranhamente silenciosos, tenho escutado muito uma música de Joyce Alane, que me pareceu cruel à primeira vez que ouvi, mas se revelou intensa, direta, honesta — daquelas que te acertam em cheio no estômago, mesmo quando o coração acha que está anestesiado. A letra é assim:

O meu amor você não é – Joyce Alane 

“O meu amor você não é, mas deve ser amor de alguém

Então pra que pegar pra me usar sem devolver?

Isso é pra quem tem tempo pra perder

Meu coração você não tem, mas não que não mereça alguém

Eu só tenho comigo o que dá pra saber

O amor da gente a milhas de distância

E você já olhei, eu distorci, observei

Mas não acho que não dá pra escolher você

É só que tem mais tanta gente

Não acho que não dá pra escolher você

É só que tem mais tanta gente

Tanto sonho, tanta coisa e tanta boca, tanta coxa

Não acho que não dá pra escolher você...

[...]

Mas não acho que não dá pra escolher você

É só que tem mais tanta gente

Tanto sonho, tanta boca, tanta coisa, tanta coxa

Não acho que não dá pra escolher você...”

Para alguém que talvez não esteja maduro afetivamente, essa letra soe dura — duríssima até — e, nesse caso, a rejeição seja vista como o centro da música. Mas ela vai além disso. O que há ali não é o golpe do “não”, e sim o requinte de quem aprendeu a reconhecer o próprio limite. É a recusa transformada em gesto de ternura: a escolha de não aceitar o que não alimenta, de não permanecer onde o amor chega raso.

Há uma doçura ácida nesse tipo de sabedoria — o mesmo sabor que fica na boca depois de um vinho bom, quando o corpo já entendeu que não precisa de mais um gole. Joyce canta esse “não” com uma calma que é quase cruel, mas também profundamente humana: o descanso de quem já amou demais e agora só quer se preservar inteiro. Porque, no fundo, a canção não fala de rejeição — fala de autocuidado, de amor-próprio, de uma fome que deixou de ser desespero pra virar critério. E é aí que mora sua beleza: na serenidade de quem escolhe a si mesmo, mesmo que isso signifique ficar só à mesa, com o prato vazio, mas, o coração em paz.



Nas últimas semanas, venho acompanhando no Instagram um psicólogo jovem e bonito. Ele tem se derramado noturnamente em textos sobre o amor entre iguais — e mesmo que ele tente explicar tudo com muita clareza, há camadas que a gente só entende com o coração meio partido e uma taça de vinho do lado.

Muitos dos seus textos deslizam noite adentro como vapores que escapam de uma panela repousando sobre o fogo baixo — suaves e densos, com um calor que parece íntimo o bastante para se tocar. Mas ele sempre escapa antes de se revelar por completo. Esse psicólogo escreve sobre a insegurança que se esconde nas entrelinhas da independência, sobre vínculos que se formam e evaporam com a mesma rapidez de um suspiro. E, embora tudo venha embalado em uma prosa meticulosa, quase clínica, há sempre um traço de angústia sutil — como quem prepara algo com capricho e cuidado, mas nunca vê os convidados chegar.

Talvez eu não esteja lendo demais — talvez apenas esteja lendo com atenção, percebendo nos textos dele a fome que ele disfarça, o desejo que se oculta sob descuido. Cada palavra dele carrega um peso quase físico, cada silêncio uma textura que meu olhar traduz, transformando a ausência dele em algo quase tangível, quase consumível, mesmo que eu não precise desse alimento para mim.

É o perigo da fome: transforma migalhas em banquete, e qualquer olhar em presságio. Mas há algo nesses textos que me lembra as madrugadas em que se come direto da panela: comida simples, tirada da geladeira, sem talher bonito ou mesa posta — e ainda assim saboreada como se fosse um banquete. Um ritual só para si, feito com cuidado.

E depois de publicar seus textos longos — aquelas narrativas de letra miúda sobre insegurança, solidão e pequenas angústias — ele sempre acrescenta uma imagem nos stories. Como se fosse uma assinatura silenciosa, quase automática. Às vezes, uma taça de vinho tinto solitária repousa sobre a mesa de madeira com marcas do tempo; outras, a mesma taça aparece com um cachorro deitado aos pés ou um gato se espreguiçando no canto da sala. E há dias em que não há nada além da taça, perfeitamente enquadrada, acompanhada de uma legenda breve: "A companhia do fim do dia."

É uma solidão decorada, como um jantar servido com louça bonita mesmo quando não se espera ninguém. E isso me comove mais do que qualquer confissão explícita. Porque há uma beleza quase triste em continuar colocando flores na mesa, mesmo quando ninguém vem.

E aí pensei: eu também quero escrever sobre isso. Mas à minha maneira — com os ingredientes que conheço, com os aromas que me salvam, com o estômago que sempre esteve mais lúcido do que a cabeça. Não sei falar de amor sem pensar em comida. Afinal, a mesa é um lugar onde todos os afetos se revelam — e talvez, também, onde alguns morrem.

É assim que nasce este ensaio. Primeiro veio a música — direta, intensa, cruel e honesta, daquelas que acertam o estômago mesmo quando o coração acha que está anestesiado. Depois, vieram os textos do psicólogo do Instagram: longos, minuciosos, carregados de solidão e pequenos dramas, publicados noite após noite sob a luz azul do celular.

E eu me vi lendo com olhos atentos, captando nos gestos, nos silêncios, e nas taças de vinho solitárias postadas nos stories, o rastro de fome emocional que ele deixa escapar. A partir dali, nasceu esse ensaio, um prato que começa com a fome emocional de um fim, atravessa buffets de possibilidades, rejeita receitas desandadas, e termina com um aperitivo delicado — tão belo quanto efêmero — porque nem todos os amores são refeições completas. Alguns são só degustações.

PARTE 1 – TANTA GENTE, TANTA COISA, TANTAS BOCAS: UM BUFFET EMOCIONAL NO AMOR CONTEMPORÂNEO

Vivemos tempos de abundância — mas, paradoxalmente, o amor se serve com tanta parcimônia que quase se tornou um sabor raro. Nunca se comeu tanto, e nunca se amou tão pouco.

O amor contemporâneo, como uma ceia de hotel all inclusive, oferece um universo de escolhas que, à primeira vista, parecem libertadoras: aplicativos onde corpos deslizam como entradas frias; vitrines digitais recheadas de sorrisos; biografias cuidadosamente temperadas com pitadas de humor e inteligência artificial. Há de tudo: veganos e carnívoros, sensíveis e sarcásticos, poliamorosos e monogâmicos convictos — como se o amor tivesse virado um cardápio em que tudo é possível, mas quase nada é profundo.

O problema do buffet não é o excesso. É o esvaziamento.

Quando tudo está disponível, nada parece essencial. Quando todos estão acessíveis, ninguém é escolhido de verdade. A seleção vira ansiedade, e o prazer da descoberta vira comparação constante. A gente não saboreia, a gente prova. Com medo de perder o “prato ideal”, seguimos beliscando pessoas como quem circula entre bandejas quentes e saladas exóticas: pegamos um pouquinho, mastigamos rápido, e já estamos de olho no próximo.

A música de Joyce Alane capta esse espírito com precisão crua: “É só que tem mais tanta gente / Tanto sonho, tanta coisa e tanta boca, tanta coxa…”

É quase irônico — o que deveria ser abundância de possibilidade se transforma em carência de presença. “Tanta coisa” e tão pouca entrega. “Tanta boca” e tão pouco beijo que dure até o café da manhã. É um cenário de fartura que, paradoxalmente, produz fome crônica — emocional, afetiva, sexual.

Oscar Wilde escreveu, com aquele seu veneno elegante, que “nada é tão perigoso quanto ser tentado com tudo e não escolher nada” (WILDE, 1890). Ele falava de moral e desejo, mas bem poderia estar descrevendo nossos relacionamentos digitais: um desfile de tentações em que ninguém permanece tempo suficiente no prato principal. A cada deslizar de dedo, uma nova opção se apresenta, sempre mais fresca, mais colorida, mais temperada. O prazer da escolha se dissolve na abundância, e a promessa de intimidade se perde no cardápio interminável de rostos, perfis e sorrisos cuidadosamente filtrados. No final, ficamos com a sensação de ter provado tudo — e, ao mesmo tempo, nada.

O amor virou finger food. Pequenos pedaços cuidadosamente preparados: coloridos, aromáticos, irresistíveis à primeira mordida. E, muitas vezes, é só isso que se quer — algo rápido, gostoso, sem bagunça, que se consome com os olhos antes mesmo da boca. Mas o que acontece quando o coração — ou o estômago — deseja mais? Quando a fome insiste e o paladar anseia por profundidade, calor, consistência?

Talvez estejamos todos cansados de porções que só passam pelo sentido, que não preenchem. Por isso, mesmo diante de um prato cheio, mesmo rodeados de sabores e cores, voltamos para casa vazios. A mesa continua posta, as bandejas continuam cheias, mas o coração sabe: nenhuma receita instantânea consegue substituir o alimento que sacia de verdade. E, no silêncio que sobra, a saudade de um prato completo se mistura à memória de quem já saboreou demais sem nunca se fartar.

PARTE 2 – O AMOR QUE NÃO DÁ LIGA: QUANDO O PRATO PARECE PROMISSOR, MAS DESANDA

Há relações que, no começo, têm tudo para dar certo. Os ingredientes estão lá: a química do toque, o tempero da conversa, o ponto ideal de desejo e leveza. Parece receita de sucesso. Mas então, ao primeiro baque — um olhar que esfria, um silêncio que cresce, um ingrediente que falta — tudo desanda.

Na cozinha, diz-se que certas massas “não deram liga”. É quando o ovo não encontra a farinha, ou a manteiga se recusa a se incorporar ao açúcar. O movimento foi feito, a intenção existiu, mas a mistura... não funcionou. Faltou algo invisível, algo que não se ensina. Amor também é assim.

E é exatamente essa dissonância que ecoa na canção:

“Meu coração você não tem, mas não que não mereça alguém

Eu só tenho comigo o que dá pra saber

O amor da gente a milhas de distância”

Essa consciência de que o outro poderia ser, mas não é, é uma das mais amargas para se engolir. Porque não é culpa, nem erro — é ausência de ponto. E às vezes, quando a massa não liga, o que resta é reconhecer que não vale a pena assar.

Quantos de nós não tentamos forçar o fogo? Redobramos a dose de afeto, ajustamos o tom, temperamos com paciência. Mas se a conexão não acontece, o prato final será sempre frustrante. Como escreveu Fernando Pessoa, em um de seus lampejos tristes e exatos: “Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto deixei de pensar e de sonhar... tudo isto me ficou entre os dedos.” (PESSOA, 1929)

O rapto de Psiquê (Le ravissement de Psyché), pintura de William-Adolphe Bouguereau (1895) 

Migalha afetiva: o amor existe, mas ele depende de condições, testes, intermediações — há distância, segredo, fragilidade (“cuidado ou a união se desfaz”).

“Migalhas de amor: confiança, promessa, olhar que não pode ver demasiado…”

Ficamos, muitas vezes, com as migalhas emocionais do que quase foi. Com os farelos de um bolo que nunca assou por completo. Como aquele pão de queijo que cheira divinamente, mas afunda no meio. A aparência prometia festa; o sabor entrega decepção.

E mesmo assim, tentamos. Porque a possibilidade de sabor nos ilude. Porque o outro parecia ter o que procurávamos. E porque, no fundo, ainda acreditamos que algum dia, alguém, dará liga com a gente — sem que a gente precise mexer tanto a colher, alguém que seja a tampa perfeita da nossa panela.

Venus e Marte, de Sandro Botticelli (1483)

Migalha afetiva: desejo e prazer momentâneo — mas falta sustentabilidade, parceria plena, profundidade ou reciprocidade verdadeira. Amor sensual, breve, talvez consumido.

“Migalhas de amor: o fogo curto, o instante de êxtase… mas e o depois?”

Mas até lá, quantas receitas a gente vai seguir? Quantos fornos vamos abrir antes da hora, só para descobrir que ainda não está pronto? Quantas vezes vamos provar o que parecia saboroso, mastigar devagar e perceber que faltava sal, que faltava calor, que faltava companhia à mesa? E, mesmo assim, seguimos mexendo, temperando, misturando, na esperança de que um dia a massa se unirá, que algum prato nos saciará por completo, e que enfim poderemos sentar à mesa sem pressa, com o coração e o estômago cheios, sabendo que o que se serve é exatamente o que deveríamos provar.

Parte 3 – Amores como Aperitivos: Servidos, Mas Nunca Saciados

Nem todo amor chega para ser banquete. Alguns aparecem como aperitivos delicados: pequenos, irresistíveis, bem apresentados. São aqueles encontros rápidos, intensos, cheios de sabor inicial — mas que somem antes da segunda taça de vinho. Amores que mais provocam o paladar do que alimentam o coração.

Há beleza neles, sem dúvida. Assim como há beleza em um canapé bem feito, em uma tâmara recheada com queijo de cabra e nozes, em uma gyosa dourada com molho picante. Mas o que todos eles têm em comum? São porções pequenas. Pensadas para o instante, não para a permanência.

Apollo e Daphne, de Piero del Pollaiuolo (c. 1470‑1480)

Migalha afetiva: amor que não pode se concretizar — perseguição, fuga, transformação; a união escapa às mãos, fica como lembrança ou símbolo.

“Migalhas de amor: o querer sem o ser, o toque que vira folhagem…”

O mundo moderno está repleto desses afetos-serviço. Nos bares da vida, somos bandejas ambulantes: oferecemos partes de nós, deixamos que nos provem, e seguimos — sem saber se estamos sendo saboreados ou apenas beliscados. O outro sorri, mas já olha para o lado. Nos tornamos relacionamentos de degustação.

Como disse Caio Fernando Abreu, em um de seus textos mais cravados na epiderme da solidão moderna: “A gente se acostuma a gostar pelas beiradas, e quando vê, já está inteiro. Mas o outro nem percebeu que a gente chegou.” (ABREU, s.d.)

Leda e o Cisne, de Antonio da Correggio (c. 1531‑32)

Migalha afetiva: desejo + invasão + fragmento de poder — amor que não é sobre igualdade ou permanência, mas sobre dominação, sedução rápida, transformação.

“Migalhas de amor: o encontro forçado, o corpo que se reduz à forma de cisne, a memória que resta”.

E aí ficamos ali: na mesa de festa, olhando ao redor, esperando que alguém volte para repetir o prato. Mas ninguém volta. Porque tudo hoje é fast-love. Porque o amor virou shot. E quem quer digestão quando se tem pressa de provar tudo?

Esses amores-aperitivos têm características inconfundíveis:

·         Sedutores: causam impacto à primeira vista. Como um amuse-bouche no restaurante francês — pequeno, caro, lindo.

·         Intensos, mas breves: o sabor é real, mas a duração é pífia. Como aquele encontro de uma noite que pareceu ter a alma de um mês.

·         Inacabados por natureza: deixam um gosto de “era só isso?” — como uma história que termina antes do segundo capítulo.

·         Fáceis de compartilhar ou de largar: como os petiscos em uma festa, que circulam por todos os lábios, mas não pertencem a ninguém.

Eles deixam rastros sutis — lembranças que coçam como o calor de um forno ainda ligado, suspiros que se repetem sem motivo, um vazio saboroso que você não consegue colocar no prato. Cada experiência é um convite, uma provocação, mas raramente uma saciedade. É nesse eco que a música de Joyce Alane parece dialogar, repetindo o refrão inevitável: “Não acho que não dá pra escolher você / É só que tem mais tanta gente…”

O problema não é a falta de conexão. É o excesso de distração. Quando há tanta boca, tanta coxa, tanto sonho — o que era especial vira ordinário. E o que era íntimo vira... porção.

Apolo e Jacinto – A morte de Jacincto (The Death of Hyacinthos), de Jean Broc (1801). 

Migalha afetiva: amor interrompido por morte ou acidente — o que sobra é dor, memória, transformação (como a flor que nasce do sangue).

“Migalhas de amor: pedaço de presença que se foi.”

A literatura nos alerta para isso desde sempre. Clarice Lispector, com seu modo quase gastronômico de dissecar a alma, escreveu: “Amanheci com vontade de saber o gosto de um amor inteiro. Não essa coisa aos pedaços.” (LISPECTOR, s.d.)

Orfeu e Eurídice (Orpheus and Eurydice), de Peter Paul Rubens, c. 1636 38.

Migalha afetiva: a promessa (“não olhar para trás”), a falha, a perda — amor que quase se concretiza, mas se desfaz por um deslize, por insegurança.

“Migalhas de amor: confiança quebrada, passo em falso que desfaz o laço. Amor que não se sustenta, que se perde facilmente.”

Talvez o que falte seja isso: fome de inteireza. Vontade de sentar, de servir-se, de repetir, de não precisar escolher outro prato. De sentir cada sabor até o fim, de permitir que a saciedade venha antes da pressa de provar tudo. Mas como manter isso em um mundo onde o amor virou finger food emocional? Onde cada gesto é degustação, cada beijo é amuse-bouche, e a promessa de um prato completo parece sempre escapar por entre os dedos?

O Rapto de Ganimedes (The Rape of Ganymede), de Damiano Mazza (c. 1575) mostra Zeus em forma de águia levando Ganimedes. 

Migalha afetiva: amor unilateral ou desigual — poder + mortal, prazer momentâneo, o outro como objeto ou troféu; não há reciprocidade ou continuidade digna.

“Migalhas de amor: o desejo alheio, o encontro breve, a promessa não correspondente.” 

E ainda assim, mesmo nesse cardápio fragmentado, a vontade de provar um banquete inteiro persiste — teimosa, silenciosa, insistente, como o aroma que escapa da cozinha e faz a gente voltar, noite após noite, em busca de algo que nos complete de verdade.

CONCLUSÃO – CUIDADO: MIGALHAS NÃO SUSTENTAM, MAS ALIMENTAM A ESPERANÇA

E então, é chegado ao fim da mesa. O paladar cansado, o coração entrebeliscado. Mas ainda com apetite — vendo que, saboreamos migalhas que não sustentam, mas que, paradoxalmente, mantêm acesa a chama da esperança. Entre os beliscos de afetos e pensamentos, percebo que a fome não é apenas de comida, mas de presença, atenção e verdade. E mesmo que a mesa nunca se sirva de plenitude completa, ainda há algo de vital na experiência de provar, compartilhar e desejar — pois é nesse gesto, por mais humilde que pareça, que se reconstrói a promessa de saciar-se, nem que seja por instantes.

Há um trecho de “Maior Abandonado”, do Barão Vermelho, que sempre me pegou, sobretudo quando Cazuza o cantava com aquela intensidade quase crua, arrancando cada palavra da garganta:

“Eu tô pedindo

A tua mão

E um pouquinho do braço

Migalhas dormidas do teu pão

Raspas e restos

Me interessam

Pequenas poções de ilusão

Mentiras sinceras me interessam

(Me interessam, me interessam)

Eu tô pedindo

A tua mão

Me leve para qualquer lado

Só um pouquinho

De proteção

Ao maior abandonado”

Não é a letra em si que importa, mas o modo como ela me atravessa: a fome de afeto, o desejo por gestos mínimos, migalhas de atenção que se tornam banquetes para a alma. Essa urgência discreta, essa mistura de abandono e desejo, já estava presente na voz de Cazuza em 1984, lembrando-nos de que tais sensações não são novidade.

É curioso perceber como duas vozes tão distintas pode me atravessar com a mesma intensidade. Cazuza me sussurra da fome que aceita migalhas — do prazer que se esconde em restos de atenção, no calor de um gesto mínimo, na doçura de migalhas que se tornam banquetes para a alma. É a vulnerabilidade que se permite saciar, mesmo que só por instantes, mesmo que o prato inteiro jamais chegue à mesa. Cada fragmento de afeto, cada raspinha de cuidado, é saboreada com uma mistura de desejo e abandono, uma urgência discreta que faz a pele se arrepia e o coração bater mais rápido.

Joyce Alane, com a sua música, por outro lado, surge como um contraponto luminoso e firme. Ela recusa-se a ser mais uma boca faminta a provar sobras alheias, a contentar-se com migalhas que não sustentam. Seu canto é uma lembrança da integridade que se protege, do amor-próprio que se coloca à frente do apetite por companhia. É um gesto de coragem silenciosa: olhar nos olhos do outro e dizer que não, que não vale qualquer resto de atenção, que estar só pode ser mais completo do que engolir o que não alimenta.

Colocadas lado a lado, essas vozes não apenas coexistem — elas dialogam. Uma nos mostra a beleza da fome que se entrega, mesmo que incompleta; a outra, a força de quem sabe que a fome merece respeito e que certos pratos não devem ser aceitos, ainda que relutemos. Entre uma e outra, aprendo que a vida afetiva moderna é feita de escolhas tênues, de apetites que se equilibram entre entrega e proteção, entre arrepio e cautela.

É nesse balanço delicado, nesse espaço onde o desejo e a prudência se tocam, que se revela a experiência de amar hoje: um instante em que cada gesto, por menor que seja, carrega toda a intensidade de um banquete ou toda a clareza de uma recusa consciente.

Ao longo deste ensaio, fui (fomos?) beliscando ideias, emoções e metáforas como se percorressem uma grande mesa posta de sentimentos — uma travessia entre fartura aparente e carência profunda. Iniciando com a constatação amarga de que, na modernidade afetiva, há muita oferta e pouca entrega. Como num buffet emocional, vivemos cercados de possibilidades e, ainda assim, passamos fome.

Na música de Joyce Alane, encontrei a lucidez de quem olha nos olhos do outro e recusa ser só mais uma opção em meio ao rodízio do afeto: “O meu amor você não é, mas deve ser amor de alguém / Então pra que pegar pra me usar sem devolver?”

Essa recusa não é frieza — é autocuidado. É entender que estar só, às vezes, é melhor do que aceitar migalhas que não sustentam.

Em cada parte deste ensaio, usei a cultura gastronômica como linguagem para falar de sentimentos: o buffet emocional, onde tudo é possível, mas nada é profundo; o prato promissor que desanda, mesmo com os melhores ingredientes; e, os amores como aperitivos, que encantam, mas nunca saciam.

Foi um percurso por sabores conhecidos: o agridoce da esperança, o amargor da desilusão, a acidez do desejo frustrado, o calor breve de uma conexão intensa que não sobrevive ao café da manhã.

Mas entendi que, o que nos alimenta de verdade não são grandes banquetes compartilhados, mas a qualidade daquilo que escolhemos servir a nós mesmos. Nem todo amor vai ser prato principal. E tudo bem. Há beleza, intensidade e aprendizado também nos aperitivos — especialmente quando nos lembramos de que nós mesmos podemos preparar algo bonito, mesmo quando estamos sós à mesa.

É por isso que, para fechar este ensaio, compartilho uma receita. Não é um grande jantar. É um mimo. Um gesto. Um lembrete de que o cuidado pode começar no prato — e que uma porção pequena, feita com presença e beleza, pode ser mais nutritiva do que um banquete apressado com quem não sabe ficar.

Mesmo os gestos mais pequenos — um olhar demorado, uma palavra sussurrada, um instante de cuidado — podem ser devorados com avidez. As migalhas emocionais, como Cazuza nos lembra, têm o poder de atravessar a pele, de provocar calor e sustentar a esperança. São pedaços fugazes, delicados e muitas vezes imperfeitos, que despertam o paladar da alma e nos lembram de que ainda sentimos, ainda desejamos, ainda respiramos. Valorizar esses fragmentos não é fraqueza; é reconhecer que a vida, por mais apressada ou fragmentada, sempre oferece pontos de luz que nos atravessam.

Mas valorizar a força das migalhas emocionais não significa se prender a elas. Joyce Alane nos lembra que não é preciso aceitar qualquer resto que se ofereça; há dignidade em exigir presença plena, atenção que se ofereça inteira, gestos que sustentem mais do que um instante. Escolher não se contentar com pedaços insuficientes é, na verdade, um ato profundo de autocuidado — uma receita de integridade que tempera o desejo com discernimento.

E assim, ao fim da mesa e da noite, resta o murmúrio morno do que foi servido — e o silêncio de tudo o que ainda se deseja. A fome já não é de comida, nem de amor: é de presença. É o apetite por algo que não se consome, que apenas se reconhece — como a respiração do outro ao nosso lado, como o sabor que persiste na língua muito depois de engolir.

Aprendo, enfim, que a verdadeira nutrição é um ato de lucidez: não está na quantidade do prato, mas na coragem de escolher o que se come e o que se recusa. Há dignidade em deixar o banquete inacabado, em abandonar a mesa quando o sabor já não sustenta. Comer — amar — é um gesto de fé, mas também de fronteira: a entrega só é inteira quando se sabe o próprio limite.

Podemos saborear migalhas, sim, mas sem nos reduzir a elas, sem permitir que se tornem o limite do nosso apetite— e, se isso acontecer, se por amor ou cansaço nos reduzirmos a isso, que elas sejam nossas, escolhidas com ternura, e não os restos que alguém largou por descuido. Podemos preparar para nós mesmos pequenas porções de beleza e silêncio: um olhar que demora, uma palavra dita com doçura, um vinho que respira antes de ser bebido. Cada gesto, um tempero; cada instante, um banquete em miniatura.

Amar, talvez, seja isso: compreender que, antes de acender o fogo do amor, é preciso transformar a ideia de solidão em solitude — aprender a habitar a própria presença com atenção, cuidado e desejo, como quem prepara uma receita rara, devagar, com mãos que conhecem cada gesto e cada aroma.

Compreender o amor como um cozimento delicado, que exige tempo, fogo brando e entrega, e reconhecer o ingrediente mais raro de todos: a própria solitude. Pois, eu entendo assim: “solidão” carrega o peso da carência, da ausência; já a solitude é presença plena de si, o instante em que nos bastamos e, ainda assim, nos descobrimos desejantes.

Se o amor nasce na cozinha da solidão, muitas vezes nos contentamos com as migalhas que o outro nos oferece, restos de afeto largados, descuidados; mas se nasce na solitude, na plenitude da presença de si, conhecemos o que nos basta, e entendemos que a própria felicidade reside dentro de nós, enquanto o outro é apenas complemento — como os acompanhamentos, ou guarnições, que podem realçar ou obscurecer o prato principal, dependendo da escolha de quem cozinha. Podem enriquecer seus sabores, mas jamais definir sua essência.

A solitude é talvez o primeiro grande ingrediente da receita do amor, pois é nela que se aprende a amar a si mesmo, a ouvir os próprios desejos, a temperar cada gesto com paciência e ternura, e a provar o sabor da própria companhia sem pressa nem culpa.

Quando o amor pelo outro surge daí — dessa cozinha íntima, onde o coração repousa e ferve — deixa de ser pedido e se torna oferenda: um aroma doce que se espalha, o perfume de quem aprendeu a estar consigo, pronto para tocar o outro sem se perder, partilhando o que transborda, não o que falta, oferecendo plenitude, não necessidade, e transformando cada encontro em banquete, cada gesto em tempero, cada instante em celebração do afeto vivido e escolhido.

E quando enfim o prato completo chegar — se chegar — que ele nos encontre prontos, não famintos. Que sejamos mesa posta, corpo desperto, alma aberta. Que saibamos receber o outro não como quem busca saciar carências, mas como quem convida a se sentar à mesa do desejo, onde cada gesto, cada olhar, cada toque se oferece e se saboreia em igual medida.

Quando o amor amadurece, deixa de ser urgência; transforma-se em ritual. E nesse ritual sagrado — entre o mel e o sal, entre o toque e a espera — percebemos que o verdadeiro banquete nunca esteve no outro, mas na mesa que aprendemos a preparar para nós mesmos.

No fim, aprender a comer com consciência é também aprender a viver com plenitude.

TÂMARAS RECHEADAS COM QUEIJO DE CABRA E NOZES

Ingredientes (rende 10 unidades)

10 tâmaras secas, tipo Medjool (quanto mais carnudas, melhor)

100g de queijo de cabra cremoso (ou cream cheese com um toque de limão, se preferir algo mais suave)

5 nozes inteiras, ou 10 metades (se preferir, use castanha de caju picada grosseiramente e torradinha)

Mel (opcional, mas altamente recomendado)

Pimenta-do-reino moída na hora

Folhas de tomilho fresco (ou hortelã, se quiser algo mais refrescante – é a que mais uso, embora o tomilho aparente ser mais chique!)

Sal (apenas se o queijo for muito neutro)

Preparo:  Comece pelas tâmaras – Com uma faca pequena, faça um corte longitudinal em cada tâmara e retire o caroço com cuidado, sem rasgar a fruta. Reserve. Com uma colher de chá (ou saco de confeitar para os mais chegados à confeitaria), recheie o interior de cada tâmara com o queijo de cabra, nivelando bem. Coloque metade de uma noz sobre o recheio, pressionando levemente para fixar. Isso trará textura e um leve amargor que equilibra o doce da tâmara. Finalize com o toque de chef - Regue cada tâmara com um fio de mel. Salpique pimenta-do-reino moída na hora e decore com folhinhas de tomilho ou hortelã. Disponha em uma tábua bonita (ou em colheres individuais se quiser impressionar e servir para alguém). Pode ser servida fria ou levemente aquecida – neste caso, leve ao forno a 180°C por 5 a 7 minutos.

Harmonização (opcional) – Vinho branco seco (Sauvignon Blanc, por exemplo) para contrastar o doce; ou, um espumante brut rosé, que reforça o tom de festa & desapego.

Nota simbólica:

Essas tâmaras são como aquelas pessoas que aparecem e, num instante, te tiram do chão com um gesto doce, um olhar quente e uma promessa de sabor. Só que logo você percebe: não é prato principal. É petisco. É ilusão. E ainda assim... irresistível.

DICAS DE LEITURA:

ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Lisboa: Ática, 1929.

WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Londres: Lippincott's Monthly Magazine, 1890.