sábado, 11 de outubro de 2025

ENTRE O CORVO E O ASSUM-PRETO: QUANDO ENCONTRO POE(TICA) E BELCHIOR NO MESMO PRATO

 

Não sei o que seria de mim sem a música do mundo.

Ontem — 8 de outubro — celebrou-se o Dia do Nordestino. Ah, meu país Nordeste... esse território sagrado onde o sol castiga e beija, onde o barro tem alma e o vento canta em cordas de sanfona. Um lugar que, antes de qualquer coisa, pulsa — e pulsa em mim. Passei o dia à caça de sons que carregassem essa parte da minha herança. Mergulhei no YouTube como quem desce a um poço antigo, e de lá tirei vozes empoeiradas, melodias frescas, joias enterradas nos confins do Ceará.


Num desses momentos — enquanto a vida exigia suas tarefas e eu deixava a música em segundo plano — fui subitamente fisgado. A canção era “Velha Roupa Colorida”, do Belchior, esse profeta desafinado do nosso tempo. Ele cantava como quem sussurra verdades cortantes com a lâmina de uma navalha afetiva: “Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo / Que uma nova mudança em breve vai acontecer / E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo / E precisamos todos rejuvenescer...”.

                               Só eu acho que o Belchior lembra o Poe?

Parecia que ele falava comigo. E então veio o estalo. As estrofes seguintes me jogaram noutro universo — ou talvez noutro século. Dizia assim:

“Como Poe, poeta louco americano

Eu pergunto ao passarinho

Black bird, assum-preto, o que se faz?

E raven, never, raven, never, raven

Never, raven, never, raven

Assum-preto, pássaro-preto, black bird, me responde

Tudo já ficou atrás

E raven, never, raven, never, raven

Never, raven, never, raven

Black bird, assum-preto, pássaro-preto, me responde

O passado nunca mais”

E ali estava ele, o assum-preto — nosso pássaro nordestino, nosso presságio. A canção de Belchior ecoava as dores de Poe com uma naturalidade quase assustadora. O blackbird de lá, o assum-preto de cá. O raven (o corvo), o nevermore, traduzido com simplicidade brutal em um verso que arrepia como a lâmina fria da verdade: “Tudo já ficou atrás.”

                                         A elegância do Assum Preto

O Corvo dos assombros de muitos...

Foi nesse momento que tudo se alinhou, como se o tempo tivesse dado um nó. O dia anterior fora 7 de outubro, data exata da morte de Edgar Allan Poe em 1849 – o  mesmo Poe que do qual o belchior fala na música. E ali, no dia seguinte, 8 de outubro de 2025, completavam-se exatos 176 anos desde seu último suspiro — aquele estranho e obscuro adeus sussurrado nos becos molhados de Baltimore.

Seria coincidência? Ou o passado vinha mesmo cantar para mim — não com harpas celestiais, mas com um canto agourento e sincopado, vindo da boca de um pássaro negro que atravessa continentes e culturas?

Sim, porque há algo profundamente simbólico na figura do pássaro negro. O corvo, para Poe, era mais que um animal: era mensageiro do além, arauto da saudade, a própria sombra feita carne e pena. Ele pousa no busto de Palas Atena — deusa da sabedoria — e dali proclama, repetidamente, a sentença que nenhum coração apaixonado deseja ouvir:

Nevermore. Nunca mais.

Mas e o assum-preto?

No sertão, na caatinga, ele canta outro luto. Nas canções populares, o assum-preto é símbolo de dor e injustiça. É o pássaro que, após ter os olhos furados pelo patrão, ainda canta — e seu canto é ainda mais bonito. A crueldade humana tenta silenciá-lo, mas ele responde com melodia. Onde o corvo de Poe traz a loucura do luto, o assum-preto nos entrega a beleza trágica da resistência. Ambos são sombras aladas, sim — mas o corvo é espectro; o assum-preto é ferida viva.

E se outubro, o mês das bruxas, tem no hemisfério Norte seu Corvo noturno e seu céu de folhas mortas, por que não haveríamos nós, tropicais e quentes, de ter também nosso pássaro de presságios? Nosso símbolo do sombrio, da dor que canta?

O assum-preto pode muito bem ser o corvo das bruxas brasileiras — menos fantasmagórico, mais terreno. Não vem do submundo, mas do mato seco, do sertão em brasa. Ele não repete "nevermore", mas canta a dor com doçura que desafia a morte.

É por isso que essa crítica ao Halloween como “coisa de gringo” soa, tantas vezes, como pura miopia cultural. Esquecem que a celebração do 31 de outubro vem das tradições celtas — o Samhain, onde se acreditava que o véu entre os mundos se afinava, e que os mortos podiam caminhar entre os vivos – e ocorria em todo o mundo. Um tempo de transição, de colheita, de reflexão. Não é só fantasia importada — é ancestralidade mascarada.

E, como em um ritual previsível, levantam-se vozes puristas, indignadas com as abóboras e os esqueletos nas vitrines, acusando um suposto complô cultural: “Estamos sendo colonizados!” — dizem, sem nem saber que a festa que criticam é muito mais ancestral do que supõem.

O Halloween, afinal, nasceu nas brumas dos campos celtas, quando os antigos druidas celebravam o Samhain — um festival pagão que marcava o fim do verão e a chegada da estação escura, um tempo liminar em que os mortos retornavam para visitar os vivos. Muito antes de se cristianizar como o “Dia de Todos os Santos”, essa era uma noite de respeito ao invisível. De reverência aos ciclos da terra e da morte.

Então, que colonização é essa, senão a da própria ignorância?

E não deixa de ser irônico que muitos dos que acusam o Halloween de ser “importado” também não façam questão de lembrar — ao longo do ano — dos personagens do nosso próprio folclore. Onde estão o Saci, a Cuca, a Iara, o Curupira, o Caipora, o Boitatá, a Matinta Pereira, o Boto fora do 31 de outubro? A hipocrisia é deslavada. O que se teme, no fundo, não é a influência externa — mas o próprio espelho cultural que o sobrenatural nos obriga a encarar.

Assim, entre Poe e Belchior, entre corvo e assum-preto, descubro que a travessia do Halloween também é nossa. Não por ser americana — mas por ser humana. Porque todo povo tem seus fantasmas. E todo coração, seu pássaro sombrio. 

OUTUBRO: O MÊS ONDE OS FANTASMAS DANÇAM 

Estamos em outubro — o mês em que os mortos passeiam entre nós, em que os lençóis das casas antigas parecem se mover sozinhos e as abóboras sorriem com dentes afiados e luzes intrigantes nos olhos.

Tudo bem levantar bandeiras contra imposições culturais — elas existem. Mas é curioso como muitos dos que gritam contra bruxas e monstros ‘importados’ não se lembram sequer de acender uma vela pra velha bruxa Cuca. Nenhum tuíte para o Bicho Papão. Nenhuma festa pro danado do Mapinguari, Cobra-Norato, Corpo Seco, Velho do saco, Mãe da mata –  que podem ser tão fortes e assustadores quantos as monstruosidades de fora.

Essa hipocrisia deslavada, que dorme em berço esplêndido o ano inteiro, só desperta para esbravejar em outubro — quando o mundo se pinta de sombra e memória, e as crianças saem para buscar doces que, em outras culturas, já foram oferendas aos mortos.

Não se trata de escolher entre um ou outro — entre o folclore nacional ou as tradições estrangeiras. Trata-se de lembrar que o respeito pelos mortos, pelo mistério e pelo medo é universal. E que outubro, com suas noites longas e vento estranho, é um convite para todos os tipos de travessia.

Nada mais justo, então, do que invocar Edgar Allan Poe, esse patrono das noites enevoadas. E lembrar algumas de suas histórias que mais me assombraram — não no susto, mas na permanência. Naquele tipo de terror que sussurra em vez de gritar. Que gruda na alma.

POE: O CORVO QUE NUNCA PARTIU

Li O Corvo ainda jovem, numa tradução que mal podia conter o peso gótico e a melancolia das palavras originais. Publicado em 1845, o poema narra a história de um homem só, afogado em seu próprio luto, numa noite que parecia não ter fim, quando o impossível lhe visita: um corvo negro, símbolo da morte e do mistério, que pousa em seu quarto, repetindo com voz rouca e fatal a única palavra que ecoará para sempre — Nevermore.

A perda da amada Lenore, tão pura e inalcançável, transforma-se numa espiral de desespero e insanidade, um lamento que não encontra consolo, mas nos lança direto ao abismo da alma. Poe não oferece abrigo; ele nos entrega à vastidão escura do nada, onde as sombras são feitas de dor e memória.

Depois vieram os contos, cada um soa como portal para terrores antigos e humanos, onde a psique se expõe em suas feridas mais profundas e indizíveis:

O Gato Preto (The Black Cat), escrito em 1843, é uma narrativa que se infiltra nas frestas da culpa e do remorso. Um homem, dominado pelo alcoolismo e pela violência, confessa a lenta e aterradora queda para a perversidade — ele mata seu gato de estimação, mas não escapa ao castigo que o destino lhe reserva. O animal retorna, fantasmagórico, como um espelho dos seus próprios pecados, observando com olhos abissais o que há de mais sombrio dentro da alma humana. Para um amante de gatos como eu, a identificação é inquietante — pois este não é um gato para afagar, mas para encarar o lado obscuro que preferimos negar.

A Queda da Casa de Usher (The Fall of the House of Usher), de 1839, é o arquétipo do horror gótico, onde a casa é quase um personagem vivo, respirando decadência e loucura. Um visitante chega à mansão dos Usher e se depara com um cenário de decrepitude física e mental: Roderick Usher, o último da linhagem, está consumido por uma doença nebulosa que parece refletir o estado da própria casa. A presença do incesto, a atmosfera opressiva e o colapso final — tanto dos habitantes quanto do lar ancestral — evocam um terror atemporal, uma metáfora do fim inevitável, do desmoronar da sanidade e da linhagem.

Em Os Assassinatos da Rua Morgue (The Murders in the Rue Morgue), publicado em 1841, Poe nos apresenta o primeiro detetive da literatura moderna, Auguste Dupin, que quebra a lógica do crime com raciocínio brilhante e rigoroso. Um assassinato brutal em Paris desafia a polícia, até que Dupin revela uma verdade absurda e perturbadora: o responsável não é humano, mas um orangotango, um animal selvagem e incompreendido. A narrativa é uma combinação engenhosa de suspense, lógica e humor sombrio — um convite para pensar que o horror nem sempre está na escuridão sobrenatural, mas nas ambiguidades do real.

Por fim, O Poço e o Pêndulo (The Pit and the Pendulum), escrito em 1842, mergulha no terror psicológico e físico da tortura durante a Inquisição Espanhola. Um prisioneiro está amarrado em uma cela escura, onde o tempo se transforma no maior dos algozes: um pêndulo afiado desce lentamente em direção ao seu corpo, numa espera cruel e matemática, uma morte iminente e sem rosto que parece zombar da esperança. Aqui, não há fantasmas nem demônios; o inimigo é o próprio tempo, frio, impiedoso e inexorável. A tensão é sufocante, a angústia palpável — um mergulho no terror da espera e do desconhecido.

Essas histórias, com seus temas de loucura, culpa, decadência, lógica e tortura, formam um mosaico onde o humano é exposto em seus extremos, um espelho negro onde refletimos nossas sombras mais profundas. Poe não é apenas um contador de histórias; ele é um explorador das cavernas mais escuras da mente, um maestro do suspense e do horror que ressoa até hoje. 

A MORTE DE POE: UMA HISTÓRIA À ALTURA DE SEUS CONTOS

A morte de Edgar Allan Poe é, por si só, uma narrativa que parece saída das páginas de um de seus próprios contos macabros — um mistério que desafia o tempo, um enigma que permanece envolto em sombras e perguntas sem resposta. Em setembro de 1849, Poe partiu de Richmond, Virgínia, com planos aparentemente simples: seguir para Nova York, fazendo uma escala na Filadélfia para revisar um manuscrito. Mas ele jamais chegou a esse destino.

Na manhã de 3 de outubro de 1849, nas ruas úmidas e sombrias de Baltimore, foi encontrado em estado crítico, um homem desorientado e cambaleante, vestindo roupas que não lhe pertenciam, sujas e amassadas, como se tivessem sido colhidas ao acaso de um cenário urbano caótico. Ele murmurava palavras desconexas, repetindo incessantemente o nome “Reynolds” — um nome que até hoje permanece um espectro, uma incógnita que não revelou seu significado ou sua conexão com o poeta.

Foi levado às pressas ao Washington College Hospital, onde passou quatro dias em delírio, incapaz de articular sua própria história, incapaz de explicar o que havia lhe acontecido nos últimos dias antes do encontro fatídico nas ruas de Baltimore. O homem que outrora dera voz às mais profundas angústias e terrores da alma humana estava agora prisioneiro de um corpo e uma mente que se desfaziam, uma vítima silenciosa e vulnerável de forças que permanecem desconhecidas até hoje.

Washington Medical College, onde Poe passou seus últimos dias. Mais tarde, tornou-se o Lar e Hospital da Igreja, e o prédio atualmente faz parte do complexo do Hospital Johns Hopkins. Washington Medical College, c. 1838, Obras em Papel, MB3089, Coleção do Museu Baltimore City Life, MdHS.

Suas últimas palavras, ditas com um suspiro quase inaudível, ecoam como um lamento eterno: “Lord, help my poor soul” — “Senhor, ajuda minha pobre alma.” Uma súplica final, carregada de resignação e de uma dor que talvez tenha sido tão profunda quanto os mais sombrios versos que escreveu.

Desde então, a causa da morte de Poe tornou-se uma das maiores especulações da literatura americana. Seria o alcoolismo, um inimigo silencioso e destrutivo, que corroía seu corpo e sua sanidade? É sabido que Poe tinha uma relação conturbada com a bebida — frágil, susceptível ao álcool, talvez um refúgio e uma maldição ao mesmo tempo. Alguns biógrafos sugerem que o poeta pode ter sofrido delírios por abstinência, tratados com métodos médicos rudimentares e até cruéis, como sangrias e confinamento, que poderiam ter agravado seu estado.

O esboço do livro de registro da Igreja de Westminster. Para aumentar o mistério, os registros de sepultamento da igreja estão incompletos, e esta pode ser a única cópia da página que indica o local do sepultamento de Poe.  MS1016 First Church Records (copy) 1872. Plot book Page 27.

Outras hipóteses incluem envenenamento — acidental ou proposital — com substâncias como ópio, mercúrio ou remédios comuns da época, cuja toxicidade ainda assombra os relatos. Há quem acredite que ele tenha sido vítima de uma infecção neurológica, como meningite, encefalite ou até mesmo um tumor cerebral, como indicariam análises feitas décadas depois em seu crânio exumado, onde se notou um possível endurecimento, um sinal de doença silenciosa e cruel.

Entre as teorias mais bizarras, surge o “cooping” — um esquema eleitoral macabro e ilegal, em que vítimas eram sequestradas, drogadas e forçadas a votar diversas vezes em diferentes locais, trocando de roupas e identidades, para fraudar eleições. Essa hipótese explica as roupas estranhas e o estado mental confuso em que Poe foi encontrado, transformando-o, quase, em um fantasma perdido entre os vivos e os mortos, entre o direito e o caos.

Ainda há a sombra do suicídio, alimentada pela dor da perda da esposa Virginia Clemm, pelas dificuldades financeiras e pela tormenta emocional que o atormentava. Porém, a esperança de recomeço, com planos de um novo casamento, lança dúvidas sobre essa possibilidade.

O que permanece é a sensação inquietante de que Poe sempre habitou o limiar entre o real e o sobrenatural, entre a sanidade e a loucura, entre a vida e a morte. Sua própria existência e seu fim parecem um eco de seus contos — misteriosos, sombrios, impossíveis de decifrar por completo.

Na noite que levou Edgar Allan Poe, o véu entre os mundos parecia estar mais tênue, e talvez ele tenha cruzado, finalmente, para um território onde só os poetas-loucos e os corvos voam. 

LITERATURA QUE SE COME: UM BANQUETE QUASE SOBRIO

Embora muitos mistérios cercam os últimos dias de Poe, há um consenso quase unânime: seu maior demônio foi a bebida. Sussurram que ele nutria um amor sombrio pelo brandy, enquanto outras vozes, talvez mais conspiratórias, sugerem que ele também consumia laudano — aquela mistura nefasta de álcool e ópio que arrasta almas para um limiar tênue entre o sonho e o pesadelo.

Diz-se ainda que era adicto em eggnog, uma gemada alcoólica que perfuma as festas de fim de ano nos países de língua inglesa — um detalhe curioso que já rendeu algumas linhas no meu blog (LEIA AQUI).

Quanto à comida, o retrato é outro: Poe, por sua própria natureza, comia pouco. Sobre suas preferências, escutei histórias — rumores, na verdade — que ele adorava lasanha. Mas, como pesquisador que sou, recebo tais relatos com a cautela de quem sabe que a verdade nem sempre se esconde à vista, e que o tempo pode encobrir detalhes com véus de anacronismo.

A lasanha, prato tão amado hoje, é um fenômeno que só ganhou forma e fama nos Estados Unidos muito depois da partida trágica de Poe. Surgiu, como uma flor tímida, entre as massas de imigrantes italianos que, entre 1880 e 1920, trouxeram consigo não só suas histórias, mas também os sabores intensos do sul da Itália. Eles se aninharam nas “Little Italies” — bairros onde o aroma de alho e tomate se entrelaçava às vozes e tradições italianas — e foi lá, nesses redutos culturais, que a lasanha se consolidou como um alimento caseiro, um abraço culinário reservado às famílias.

Somente nas décadas de 1940 e 1950, após a Segunda Guerra Mundial, o destino fez com que soldados americanos retornassem da Itália trazendo mais do que memórias: trouxeram o gosto da cozinha italiana para além das fronteiras étnicas, abrindo caminho para a entrada da lasanha em restaurantes “americanizados” que buscavam satisfazer um paladar que se expandia.

Nas décadas seguintes, entre 1960 e 1970, a revolução das lasanhas congeladas, capitaneada por empresas como a Stouffer’s, fez do prato um item popular e acessível ao americano médio, um símbolo do conforto e da praticidade que conquistaria o cardápio nacional.

Edgar Allan Poe, entretanto, morreu em 1849 — décadas antes de que a lasanha cruzasse verdadeiramente as fronteiras dos bairros italianos para se tornar um fenômeno de massas nos EUA. Naquela época, a imigração italiana ainda era um murmúrio distante, um fluxo tímido e esparso que só se transformaria em onda cultural anos depois. Portanto, a ideia de que Poe teria se deleitado com uma lasanha, muito menos que esta fosse sua favorita, pertence mais ao reino do mito do que ao dos fatos.

Definitivamente, não. Poe não comia lasanha. Ele se alimentava de angústia e absinto, de brandies escuros e noites insones, de versos góticos e ruínas interiores.

Assim, quando me deparo com essas histórias, sou lembrado da fragilidade do tempo e das narrativas que ele tece. Poe, tão imerso em sua própria escuridão, provavelmente jamais conheceu as camadas saborosas desse prato. Mas, talvez, o verdadeiro alimento que ele buscava estivesse justamente naquilo que só a literatura, a dor e o mistério podem oferecer.

Foi então que, no fio tênue entre o real e o imaginário, recordei um livro peculiar e fascinante, que parecia ter sido feito sob encomenda para este momento de reverência e melancolia: A Ravenous Feast: Spellbinding Recipes Inspired by the Literary Works of Edgar Allan Poe, da talentosa Veronica Hinke. Uma obra onde o macabro e o sublime se entrelaçam numa dança de sabores e sombras, um banquete voraz que celebra não só a literatura, mas a essência da própria alma poética de Poe.

Dentro dessas páginas, descobri um prato que se revelou como uma ode culinária à noite, ao mistério e à beleza obscura: a “Massa com Olhos de Abutre”. Imagine uma massa negra como a própria tinta da lua nova, feita com a profunda e viscosa tinta de lula — um convite a mergulhar nas profundezas do oceano e da mente. Sobre ela, vieiras douradas, cujas formas lembram os olhos grandes e enigmáticos do abutre, essas criaturas que povoam os pesadelos e as lendas góticas, observando com calma predatória – outro pássaro preto. E, por fim, uma única framboesa, rubra e vívida, pousada como uma gota de sangue derramada em um altar de silêncio e segredo. Ao redor, ervas dispersas com a delicadeza de penas negras, espalhadas pelo sopro de um vento ancestral, o mesmo que sussurra os versos esquecidos de Poe.

Este não é um prato para simplesmente ser degustado — é uma invocação sensorial, um ritual que convoca a atmosfera das histórias, a aura do próprio poeta. Porque Poe, afinal, não se lê com os olhos apenas, não se entende com a razão simples — ele se sente, se respira, se encarna em cada sombra, em cada suspiro da noite.

E aqui, neste banquete onde o gótico encontra a gastronomia, a elegância se transforma em mistério, o sabor em poema, e o alimento em memória. Uma última oferenda a um homem que viveu e morreu nas margens do abismo, que nos deixou o legado de suas palavras como um eco que nunca se cala.

Assim como o corvo que retorna, sempre repetindo seu “Nunca mais”, este prato é um convite para que, entre uma garfada e outra, também nós nos permitamos um momento de entrega — à escuridão, à beleza e à eterna dança entre a vida e a morte. Que este banquete seja, então, a última cortina do teatro sombrio onde Edgar Allan Poe eternamente habita, um tributo que perdurará, tão imortal quanto as sombras que ele tão magistralmente desenhou.

Por que este prato?

Porque a cozinha é, antes de tudo, um teatro de sentidos, onde cada gesto é um rito e cada aroma, uma invocação. Porque a comida não se limita a nutrir o corpo — ela alimenta a alma, constrói pontes invisíveis entre passado e presente, entre o palpável e o etéreo. E em outubro, mês onde as sombras se alongam e os véus entre mundos se afinam, até o simples ato de jantar deve carregar o peso do mistério e o perfume da noite.

Esta receita é uma oferenda — uma homenagem profunda e reverente: ao poeta dos mortos e dos silêncios infinitos, que sussurrou para nós em versos sombrios e eternos. Ao corvo que jamais partiu, guardião das palavras proibidas e dos segredos do abismo.

À voz de Belchior, que em seu canto nos alerta e nos consola, como quem descobre a beleza na melancolia e a esperança na escuridão. Ao Nordeste que pulsa, que canta e que resiste, mesmo quando a noite parece engolir tudo. À música que nos abraça quando a vida parece desabar, e à literatura que, com seu espectro, nos assombra e nos salva — porque há beleza na dor, e é ela que nos mantém vivos, apesar de tudo.

Este prato, enfim, não é apenas alimento — é rito, é celebração, é lamento e festa ao mesmo tempo. É o banquete onde o gótico encontra o cotidiano, onde a sombra se faz sabor, e onde o impossível se torna tangível.

Segue a receita, transcrita ao meu modo e vestida para a ocasião

 Massa com Olhos de Abutre

(Massa com tinta de lula, vieiras douradas e framboesas rubras)



Manteiga de Limão

½ xícara de manteiga sem sal, amolecida à perfeição, pronta para se tornar suave como um sussurro.

¼ de colher de chá de suco de limão fresco, o toque cítrico que desperta os sentidos.

Misture lentamente a manteiga e o limão em um processador de alimentos, pulsando até que se tornem um uníssono cremoso e aromático. Modele delicadamente a manteiga — seja em formas que lembram penas de abutre ou numa apresentação mais rústica, à sua maneira. Reserve na geladeira, onde a magia se solidifica. 

Vieiras e Massa

6 vieiras jumbo, majestosas e delicadas, como olhos brilhantes de um corvo.

Suco de 1 limão, para marinada, capaz de infundir vida e frescor.

350 gramas de massa com tinta de lula, negra como a noite onde Poe se esconde.

Pimenta-do-reino moída na hora, para um leve toque de fogo e mistério.

6 framboesas frescas, rubras e intensas, como gotas de sangue em meio à escuridão.

Ervas frescas: tomilho, endro, folhas de limão — a dança verde que desperta aromas secretos.

1 limão cortado em 6 fatias, para o toque final de luz e acidez.

Preparo: Marine as vieiras no suco de limão, envolvendo-as em um abraço cítrico e delicado. Enquanto isso, cozinhe a massa de tinta de lula conforme as instruções da embalagem — cada fio escuro se tornando uma linha de poesia em seu prato.

Em uma frigideira aquecida com azeite, grelhe as vieiras cuidadosamente por 5 a 7 minutos de cada lado, até que ganhem uma douração perfeita, que lembra o brilho lúgubre dos olhos de um abutre vigilante.

Para montar, enrole delicadamente porções da massa no centro de cada prato, formando pequenos ninhos negros. Sobre cada ninho, repousa uma vieira dourada, coroada por uma framboesa vibrante, como o rubor do sangue em um poema sombrio.

Decore com as ervas frescas e uma fatia de limão, compondo uma paleta de cores e aromas que evocam o mistério e a beleza da noite. Finalize o prato com pedacinhos da manteiga de limão, que lentamente derreterão, espalhando seu aroma e brilho, como as últimas palavras de um canto esquecido.

 

 

 

sábado, 27 de setembro de 2025

O CARURU DOS SANTOS MENINOS: ENTRE IBEJIS E COSME E DAMIÃO

 

No princípio, dizem, o mundo estremeceu com uma gargalhada dupla. Não era de homem, nem de mulher, nem de deus severo — mas dos Ibejis, gêmeos divinos que nasceram como faíscas de uma alegria primordial. Nos mitos iorubás, são crianças eternas, travessas e luminosas, capazes de adoçar a boca mais amarga. É deles que brota a promessa de que a vida, mesmo em meio à dor, precisa ser celebrada com riso, doçura e comida partilhada.

O riso das crianças é mais antigo do que o ferro, mais forte que o sal, mais persistente que o próprio tempo. Entre os povos iorubás, esse riso sagrado tem nome: Ibejis, os gêmeos divinos, filhos de Xangô e Oxum, protetores da infância e senhores da alegria. A eles se oferece a doçura do mel, a maciez das frutas, o brilho dos brinquedos e a fartura das panelas, porque o que se dá aos Ibejis retorna em abundância — prosperidade, fertilidade, proteção.

Os Ibejis não são um orixá único, mas a própria manifestação da dualidade: dois corpos, uma alma espelhada. “Ìbejì” significa literalmente “nascidos dois”. Cada gêmeo recebe um nome que carrega em si uma inversão curiosa e delicada: o primeiro que nasce chama-se Taiwo — “aquele que prova o mundo primeiro” —, mas, paradoxalmente, é considerado o mais novo, pois teria sido enviado pelo irmão para experimentar a vida. Já o segundo, que vem depois, chama-se Kehinde, e é tido como o mais velho, pois esperou no útero, comandando o desbravamento do irmão. Essa inversão revela o jogo de forças entre eles: juventude e maturidade, impulso e sabedoria.

Na tradição afro-brasileira, essa dupla ganhou um terceiro companheiro: o Doum. Na língua iorubá, esse filho que nasce depois dos gêmeos é chamado Idowu. Seu nascimento é visto como tão extraordinário que, ao chegar, não apenas equilibra a balança dos dois, mas a amplia, formando uma tríade.

No Brasil, pela força do sincretismo e da imaginação popular, esse Idowu transformou-se em Doum, o “irmãozinho mais novo”, inseparável dos Ibejis. Assim, quando se fala de Cosme e Damião nas festas de caruru, fala-se também de Doum: juntos, eles formam não apenas a imagem da infância divina, mas também a promessa de continuidade, um eco que se abre depois do espelho.

Doum não é apenas o "caçula": ele é o resíduo do excesso, o sabor que sobra no fundo da panela, aquilo que não pode ser descartado porque é justamente o que dá sentido ao banquete.

Falar de Doum é como falar daquilo que as tradições cozinham em fogo baixo: um irmão invisível que, sem estar nomeado, faz o caldo engrossar. Ele é lembrado quando a panela de caruru ferve em setembro, quando os quiabos se tornam viscosos como um feitiço infantil. Ali, entre o tempero que gruda nos dedos, está o lugar dele: o fio de continuidade, o terceiro ritmo que impede a música de se encerrar em dualidade.

É por isso que, nos terreiros e nas ruas, a oferenda não se destina apenas aos dois santos-meninos, mas ao trio. A infância sagrada, no imaginário afro-brasileiro, não se limita a pares: ela é movimento, expansão, multiplicação da alegria. Taiwo, Kehinde e Doum são, assim, três rostos de uma mesma energia — gêmeos e irmão — que alimentam a mesa do sagrado com risos, doces e quiabos.

Onde chegam, espalham doçura como se fosse uma oferenda inevitável — não apenas o açúcar em forma de balas e cocadas, mas a doçura selvagem de quem ainda não conhece o peso do tempo.

Quando chegaram ao Brasil, arrastados na corrente escura da diáspora, esses meninos sagrados encontraram outros nomes: Cosme e Damião, santos-meninos da devoção católica, médicos de almas e corpos. A máscara cristã não apagou a essência africana; pelo contrário, ampliou-a, criando uma fusão rara. Assim, os gêmeos sorridentes tornaram-se guardiões da infância, do excesso alegre, da mesa farta.

O ritual permaneceu vivo, transformado, mas jamais corrompido: doces distribuídos às crianças, saquinhos de balas, cocadas brancas e marrons, mariolas que derretem nos dedos — cada um desses presentes é mais que açúcar, é memória. É oferenda travestida de guloseima, um pacto entre o sagrado e a carne pequena dos meninos que correm pelas ruas.

E no centro desse rito, há um prato que não se oferece apenas à fome, mas à eternidade: o caruru.

O caruru é um feitiço de baba e óleo, de dendê que brilha como ouro líquido e quiabo que se dissolve em viscosidade sensual. É o ventre da terra cozinhado em panela escura, temperado com camarão seco, castanhas, amendoim, gengibre e fogo lento. Em cada colherada, há uma alquimia de contrastes: viscoso e crocante, salgado e doce, pungente e terroso. É um prato que exige devoção, porque não se prepara depressa — ele se revela aos poucos, como uma confidência.


No Recôncavo, no sertão, em casas de porta aberta, a tradição manda preparar sete pratos iguais. Sete, como os meninos encantados que acompanham Cosme e Damião. Sete, como os caminhos que se abrem diante de quem oferece. Sete, como promessa de fartura e alegria multiplicada. E ali, adultos e crianças se sentam lado a lado, colheres na mão, partilhando o mesmo destino de sabor.

Comer esse prato é como recordar o gosto de uma infância que nunca morre, um gosto que não está apenas na boca, mas no gesto de oferecer. Há um pacto ancestral que se alimenta de nossas memórias e nos devolve à carne jovem, risonha, eterna. Entre a luz e a sombra, entre o mito africano e o santo católico, o caruru é rito e é banquete.

Na festa de Cosme e Damião, o Brasil que comemora se faz criança. O açúcar corre como bênção, mas é o dendê que unge, que sela o pacto. Comer caruru nesse dia é saborear o riso dos Ibejis, é aceitar que a vida é feita de dualidades: doce e salgado, santo e orixá, infância e eternidade.

O caruru de Cosme e Damião nunca chega sozinho à mesa. Ele vem acompanhado, como se soubesse que sozinho não conteria a magia do dia. Ao seu lado repousam o vatapá, cremoso e amanteigado, que se desmancha nos dedos como um segredo guardado em panela de barro; a farofa de dendê, crocante, que estala com uma promessa de infância; o feijão fradinho, discreto mas persistente, lembrando que nem tudo deve ser doce; e o arroz branco, que acolhe cada sabor sem disputar atenção, como o pano limpo de um altar doméstico.

Se houver acarajés miúdos, eles dançam na borda do prato, redondos e dourados, pequenos sóis com casca crocante e coração macio, oferecendo à boca o prazer do contraste — crocância e calor, óleo e ar. Cada elemento, embora distinto, é cúmplice do outro. Misturar, provar, repetir: é assim que o caruru se transforma em rito, em celebração, em memória compartilhada. Comer é participar da história, sentir a infância dos santos-meninos e a travessura dos Ibejis nos dedos manchados de dendê, nos aromas que flutuam e entram no corpo como prece, como riso que insiste em se tornar sabor.

No fundo, a mesa não é apenas uma mesa: é um mapa da tradição, um convite à percepção de que a comida é também mitologia, e que cada colher, cada mordida, pode ser um instante de contato com o divino.

No fim, o caruru explode em cores e sabores como uma festa que nunca termina. Comer com os Ibejis, com Doum, com Cosme e Damião, é dançar com o sol, sentir a alegria que não se mede, a doçura que não envelhece, a vida que insiste em florescer.

Não há limites entre o divino e o mundano: cada mordida é oração, cada risada, oferenda. O caruru não é apenas comida: é riso cristalizado, é luz líquida, é uma torrente que atravessa a boca e explode no peito.

E assim, quando provamos, somos invadidos pela alegria que não se mede, pela doçura que não envelhece, pela vida que insiste em florescer. É a infância eterna, a travessura sagrada, o canto solar que os Ibejis sopram sobre nós — uma experiência que não se esquece, um abraço do cosmos, que nos lembra que a festa nunca termina e que, enquanto houver dendê, risos e quiabos, estaremos todos dançando com os gêmeos divinos.

Comer com os Ibejis é aceitar que, no fundo de cada panela, ainda escutamos o eco do riso primordial.

Receita de Caruru

1 kg de quiabo fresco, cortado miúdo

200 g de camarão seco, limpo e socado

100 g de castanha de caju torrada

100 g de amendoim torrado sem pele

2 cebolas grandes picadas

3 dentes de alho amassados

1 pedaço de gengibre ralado

200 ml de azeite de dendê

500 ml de caldo de peixe ou camarão

Sal e pimenta a gosto

Suco de 1 limão

Preparo: Lave e seque os quiabos. Corte-os em rodelas finas. No pilão, triture o camarão, a castanha e o amendoim até formar uma pasta. Refogue cebola, alho e gengibre em um pouco de dendê até dourar. Acrescente o quiabo e mexa até começar a amaciar. Junte a pasta de camarão e castanhas, misture bem. Despeje o caldo e cozinhe lentamente até engrossar. Finalize com dendê, limão, pimenta e sal. Sirva em pequenas porções, lembrando que comer é também oferecer.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

GAL COSTA ME SERVIU UM BANQUETE: 80 ANOS E UM PRATO FUNDO DE SAUDADES.

Há vozes que não se calam. Mesmo quando o corpo parte, mesmo quando o palco se fecha, mesmo quando a respiração que soprava a canção cessa — há vozes que permanecem pairando sobre nós como incenso. Há vozes que não obedecem ao tempo. E nisso, há cantoras que não precisam da eternidade porque já nasceram eternas. Gal Costa é uma dessas.

No dia em que completaria oitenta anos, descubro-me em saudade: a falta de alguém que nunca conheci de perto, mas que me atravessou pela boca e pelo ouvido, como perfume de dendê invadindo a casa antes mesmo da panela ferver.

Desde que comecei a organizar minhas listas de músicas no celular, o danadinho insiste em me dizer quais são as mais ouvidas. Gal está sempre lá. É como se ela risse de mim, como se dissesse: "você não consegue se livrar de mim, menino." E não consigo. Foi com ela que descobri que se pode amar uma versão de música como quem ama uma fruta madura: primeiro pelo estranhamento da casca, depois pelo vício doce da polpa.

Ouvi-a primeiro na estranheza de Dando um rolê — estranheza que me atravessou como quem prova, pela primeira vez, um prato picante, sem saber se gosta, mas fascinado pela intensidade. Depois veio a fartura alegre de Festa no Interior, que me faz sentir ao mesmo tempo o cheiro do milho verde assando, o balançar das bandeirinhas coloridas, o calor das fogueiras de São João — com a vibração e o colorido de um carnaval onde cabem o amor inteiro e o sol do Nordeste, dentro de um refrão.

Quando Gal cantava Vapor Barato, não era apenas uma canção: era uma travessia. Ela cozinhava o desalento como quem faz redução de vinho tinto: em fogo baixo, até restar só o perfume escuro e espesso da saudade. Eu a ouvia como quem prova um vinho forte, que primeiro arde e depois aquece. Aquelas calças vermelhas, o casaco de general, os anéis que brilhavam como especiarias raras — tudo era mais que imagem: era sabor de rebeldia, era cheiro de rua molhada depois da chuva, era o corpo inteiro atravessado por um cansaço que não se rende.

Na sua voz, o desalento se tornava beleza: a exaustão virava dança, a obsessão era temperada em melodia até se fazer banquete.

Quando penso em Gal, penso na boca. Não só por vaidade estética — mas porque ali morava um feitiço. Era a boca do gato de Alice, sim: que sorria antes da fala, e permanecia mesmo depois do silêncio. Era também uma boca de Iemanjá, feita de mar e magia, que nos oferecia frutas que ninguém sabia nomear. Fruta gogoia, dizia ela. Seria um nome ou um aviso? Um fruto proibido ou uma oferenda? Seja como for, era vermelho. Vermelho como a urgência de um beijo, como o fogo da panela de barro, como o sangue que corre depois de uma saudade. Gal não falava — ela mordia o mundo com doçura.

 Gal, com seu cristal indomável, que era a voz, transformava o abandono em erotismo, e o adeus em promessa de retorno. Escutá-la era como entrar num navio antigo sem saber o destino, confiando apenas no balanço do mar — e aceitando, grato, que às vezes é preciso perder-se para um dia voltar.

Quando criança, sempre que eu ouvia Gal cantando Azul, achava que havia nela alguma espécie de desajuste secreto. Como se aquele “não sei se vem de Deus / do céu ficar azul” fosse uma confissão de quem não se encaixava no mundo. E, na minha cabeça infantil, Gal era solar demais para duvidar do céu. Ao mesmo tempo, parecia anunciar que a beleza poderia se quebrar.

Mais tarde, entendi que era só o jeito dela de cantar o mistério — e que talvez, como ela mesma dizia na música, fosse preciso assumir o risco de “anoitecer” para poder voltar a ser “amarelinho”, queimando mansinho.

Em Azul, Gal parecia destilar a própria luz do dia em sua voz. Havia algo de oceânico no modo como ela cantava, como se a maresia entrasse pela janela e se assentasse na pele, deixando um rastro de frescor e desejo. O azul, na boca dela, não era apenas cor — era tempero secreto, aroma marinho que se misturava ao amarelinho do sol nascente, queimando mansinho, cedinho, como o cheiro de pão recém-assado ou de fruta cortada ao amanhecer. Escutá-la era sentir o mundo inteiro se tingir de azulzinho, como se o amor tivesse gosto de água doce e sal ao mesmo tempo.

Gal transformava Djavan em alquimia: fazia do céu um prato de cores, do mar uma taça, e da vida um banquete onde a simplicidade — dizer que o amor é “azulzinho” — tornava-se revelação absoluta.

Mas foi em Baby que ela me embalou de forma íntima. A canção parecia um manual de vida ao mesmo tempo simples e profundo: tome um sorvete, aprenda inglês, veja o mundo, veja-me. Era como se a doçura de uma sobremesa gelada se misturasse com a lição da existência. Ali, ela se tornava conselheira, amante, amiga.

Não me atrevo a “Caetanear” com a leveza que ele tem, nem a “Djavanear” com o sol que sua voz derrama sobre as palavras. Não domino o mistério que só eles vestem com naturalidade, nem sou dono das cores que eles pintam nas melodias. Mas, para você, Gal, ouso tecer palavras — mesmo que simples, ainda que imperfeitas — como quem borda um véu delicado para cobrir a ausência e dar forma ao silêncio. Não é canção que escrevo, mas um sussurro em forma de carta, um convite para que você, no seu eterno azul, me escute. Porque falar contigo é atravessar o tempo, é dançar na margem do que fica, é cantar a saudade com a única voz que me resta: a do coração.

🌎 Minha carta à Gal

Baby,

se você pudesse voltar um instante, eu lhe contaria o que aconteceu depois que você partiu.

Você precisa saber que o Brasil ainda dança, mesmo quando chora. Que as ruas continuam cheias de cores, mas o país se despedaça em discursos — e mesmo assim, ainda há quem plante ipês-amarelos para acreditar na primavera.

Você precisa saber que o mundo correu mais rápido, que inventaram novas formas de amar e odiar através de telas luminosas que não dormem nunca. Até criaram modos de reencontrar os mortos em vozes gravadas — e isso me assusta.

Baby, você precisa experimentar café com leite de aveia —
só pra lembrar como o leite da vaca, profano e denso, ainda faz diferença. Precisa ver a Marginal de patinete, ouvir o barulho das máquinas que escutam a gente mesmo quando a gente não diz nada.

Baby, estão me dizendo que é preciso reaprender a amar

sem recibo,

sem Wi-Fi,

sem performance.

Já pensou?

A beleza agora vem com hashtag, há poesia nos memes, e a Carolina agora virou empreendedora: vende marmita fitness e faz reels com receitas em 15 segundos.

Você não sabe, mas criaram um app pra meditar e outro pra lembrar de respirar. A Bahia segue lavando escadarias, mas agora com drone filmando de cima, e cada moqueca servida em barro ainda é uma oferenda pra sua voz.

Baby, baby, você partiu, mas o mundo, teimoso, segue lhe citando em silêncio.

Quis parar por aqui. Mas você sussurrou: 'Menino, continua, me conta mais... Eu mesmo aprendi a viver dizendo seu nome baixinho, como quem aprende inglês numa música dos Beatles, ou como quem aprende amor ouvindo você cantar Coração Vagabundo.

E no fim, Gal, eu só queria que soubesse: ainda está tudo azul comigo,
mesmo que às vezes o azul seja melancolia. E ainda está tudo em paz contigo,
porque a sua paz é o fogo eterno da sua voz.

Baby,

você ainda é tudo isso, mesmo que o mundo tenha virado stories de 24 horas.

E no fundo, entre um like e uma solidão digital, todo mundo ainda quer ouvir: “Baby, eu sei que é cafona, mas I love you.

Depois que escrevi isso, senti um sopro no ouvido. Era como se Gal me dissesse: "Menino, o azul, mesmo triste, ainda é céu."

Fiquei comovido. Mas lembrei do início de Vaca Profana: “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada.”  Por isso, eu deveria sentir tudo isso sem me colocar numa caixa, nem numa vitrine, nem na medida estreita dos caretas.

E não posso sair sem falar do êxtase maduro de Sexo e Luz. Gal me arrebatou outra vez. Sua voz, cristalina e indomável, era como vinho branco servido gelado em taça fina: fazia o corpo suspirar, fazia a alma querer transbordar.

Em Sexo e Luz, Gal não canta — ela se despe. Cada palavra desliza como lençol de linho depois do amor, e sua voz, embriagada de revelação, pulsa como carne que se reconhece divina por um instante. Ali, o prazer não é só toque — é sussurro que abre portais. E quando ela diz que “se banhou” e “se lavou”, é como se o próprio corpo se tornasse templo, e o gozo, um batismo de volta ao que é essencial.

Gal não interpreta o êxtase — ela o canaliza, o atravessa.
E ouvindo-a, a gente entende que há um tipo de entrega que não cabe em palavras: apenas em gemidos, silêncios acesos, gritos que se lançam não para fora, mas para dentro do outro. É música feita com a carne, com o suor, com o fogo — e com a paz que vem depois dele. Ela canta como quem acaba de amar e, ainda ofegante, sussurra para o universo: “Eu estive lá — e era luz.”

Gal era como comida rara: não se repetia, não se substituía, apenas se celebrava. Talvez por isso, quando soube que certa vez ela escolheu uma moqueca como prato para partilhar num show que envolvia gastronomia, em São Paulo, compreendi tudo.

Quem escolhe moqueca escolhe o abraço coletivo,
a partilha do fogo, a alquimia entre peixe, leite de coco e o vermelho intenso do dendê. Gal serviu sua própria voz assim: quente, luminosa, compartilhada.

Eu a conheci tarde. Mas aproveito muito, até hoje.  Mas aproveito suas músicas como quem raspa a panela para não perder nenhum traço de sabor.

Hoje, celebro seus oitenta anos que não se completam neste mundo.
Só me resta escrever-lhe, como quem escreve para uma santa pagã, uma deusa profana, uma mulher que me ensinou que música e comida são a mesma coisa: uma fome que nunca se sacia.

Vou derramar estas palavras no papel como quem derrama vinho raro numa taça de cristal, deixando que cada letra seja um sopro quente de desejo e memória. Depois, envolvo tudo em fumaça de incenso — para que o céu, essa imensa catedral de estrelas e silêncio, receba este delicado ritual de saudade e reverência.

Que você, Gal, possa saborear cada gesto, cada cor, cada aroma escondido nestas linhas — como um beijo que transborda da boca vermelha para o infinito, e volta, eterno, em ondas de luz e calor.

Que este escrito seja festa e mistério, alimento e abraço, convite e promessa: que a sua voz nunca se cale, que o seu fogo nunca se apague, que o seu sorriso continue a brilhar, gato enigmático, no coração da noite e no desabrochar do dia.

E se um dia me perguntarem quem foi Gal Costa, direi: foi o prato mais quente que o Brasil já serviu. E eu, menino diante da panela, só queria mais... 

🍲 MOQUECA BAIANA À TROPICÁLIA

(receita da Chef Ana Célia, prato escolhido por Gal Costa para o show no Zanzibar, em São Paulo)

Ingredientes

1 kg de peixe fresco (badejo ou pescada amarela)

2 tomates

1 pimentão vermelho

2 cebolas

2 colheres de coentro picado

1½ copo de leite de coco fresco

50 ml de azeite de dendê

Alho, limão e sal a gosto

Preparo: Limpe as postas de peixe e tempere com alho, sal e limão. Reserve. Em um recipiente, macere metade dos ingredientes (1 cebola, 1 tomate, ½ pimentão, 1 colher de coentro picado). Misture os ingredientes macerados ao peixe. Disponha numa frigideira, em fogo alto, o peixe já temperado. Cozinhe por 15 minutos, acrescentando o restante dos ingredientes (cortados em rodelas). Finalize com o azeite de dendê. Sirva quente, acompanhado de arroz branco, pirão ou farofa.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

 

DO FOGO DO AMOR AO PRATO DA VIDA — 80 ANOS DE GONZAGUINHA EM ALTA TEMPERATURA

Nasci em uma serra cearense farta, onde os feijões vinham em muitas peles e perfumes — feijão macassa, feijão branco, feijão fradinho, feijão verde, feijão rosado, rajado, catador, carioca, mulatinho, jalo, bolinha, andu, etc... O preto, curioso e espesso, era guardado quase com cerimônia para os dias de feijoada, como quem reserva um vinho raro para quando o mundo estiver menos áspero.

Minha relação com o feijão de corda — esse personagem cearense de tantas encarnações — é, confesso, uma história de amor e desavenças. Quando verde, recém-tirado do campo, servido com nata espessa, bastante coentro e queijo coalho derretendo sem pressa, ele me seduz, me abraça, me devolve à infância com colheradas de ternura. Mas, seco... ah, seco ele me trai. Traz consigo um gosto terroso, áspero, quase mineral, que me afasta como um perfume em desacordo com a pele. Ainda que o feijão de corda seja um dos protagonistas do tradicional baião de dois — prato que tem nome de música e cheiro de festa —, se não estiver verde, nem torço o nariz: viro o rosto com leve mágoa.

Lá em casa também havia na mesa os ‘feijões grandes’, quase míticos, aqueles que meu pai — com seu humor cearense sem filtros — chama de ‘rasga-cu’, nome que diz tudo sem precisar de metáforas: causadores de gases profundos, expansivos, e nada civilizados. Mas hoje, peço que fiquem comigo até o final. Porque, entre memórias, gargalhadas e canções, vocês vão descobrir como um feijão pode se tornar algo absolutamente surpreendente. Um segredo de colher, de forno e de festa.

Naquela mesa da infância, o feijão era plural — variado como os humores da terra e os modos de amar. Anos depois, numa conversa com meu pai, me dei conta de que no Rio de Janeiro — onde ele viveu e se fez homem — o feijão preto era (e ainda é) rei cotidiano.

Ali, ele não era exceção: era regra, devoção, hábito, saudade no prato. Essa revelação me atravessou como uma melodia inesperada, daquelas que a gente pensa que nunca ouviu, mas canta junto já na segunda estrofe. E me dei conta, com um sorriso lento, que Gonzaguinha — esse outro filho do Rio — também tinha o preto no centro da sua mesa, do seu canto, da sua luta. E que talvez, como eu, ele também visse no feijão algo mais do que alimento: um símbolo do que somos, do que resistimos, do que celebramos.

Por um instante, feche os olhos.

Sinta o cheiro do feijão cozinhando em fogo brando.

Ele dança no vapor — dança como o corpo de um Brasil que pulsa mesmo na dor, que ama mesmo ferido, que canta porque é urgente viver. Gonzaguinha faria 80 anos ontem. Se estivesse entre nós, talvez risse alto ao ver a ousadia de transformar seu "pretão maravilha" em brownie. Mas, se tivesse tempo para provar, riria mais ainda, e com a boca cheia.

Esse ensaio é um convite à mesa — não apenas àquela feita de madeira, pratos e cadeiras. Mas à mesa da memória, do corpo, da música, da política e da doçura. É uma oração em voz alta, como ele cantou: "Quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda... é apenas o meu jeito de viver o que é amar."

A FOME QUE NÃO É SÓ DE COMIDA

Gonzaguinha não fazia música, fazia oferendas.

Seu cantar não era só nota — era mordida. Era dente no caroço da vida. Era colher raspando o fundo da panela. Um compositor que transformou a pobreza, a opressão, o afeto e a rebeldia em iguarias que hoje ainda alimentam.

E quantas formas tem a fome?

Há a fome de justiça que sangra em "Comportamento Geral", com o sabor irônico de um país que serve migalhas e exige gratidão: "Você merece, você merece... tudo vai bem, tudo legal. Cerveja, samba e amanhã, seu Zé, se acabarem teu carnaval?"

Há a fome do amor maduro, aquele que conhece o fel, o mel, o depois, como em Grito de Alerta: "Veja bem, nosso caso é uma porta entreaberta..."

E há também a fome de viver, que arde como pimenta malagueta na boca, queimando e rindo ao mesmo tempo, na pureza quase infantil de O Que É, O Que É?: "Viver... e não ter a vergonha de ser feliz..."

Gonzaguinha cozinhava palavras como quem tempera com a alma — e deixava queimar, se fosse preciso. Porque o sabor da vida não se aprende nos livros de receita, mas no improviso da sobrevivência. No Brasil real, onde a panela às vezes canta mais que o rádio.

QUANDO A MÚSICA TEM GOSTO

Há canções que nos confortam como um arroz com feijão recém-feito. Outras, nos acordam como café forte demais. Mas algumas são doces. Ardentes, sensuais, quase licorosas, como Começaria Tudo Outra Vez. Um bolero que se despe como amante desesperado, sem pudor, pedindo mais uma dança, mais um beijo, mais um copo: "A Cuba libre dá coragem em minhas mãos..."

O lirismo dessa canção não é apenas erótico — é existencial. É sobre recomeçar, mesmo sabendo tudo o que pode doer. É como amar de novo o mesmo prato que já queimou a boca. Mas amar, ainda assim.

Há músicas que soam como receitas de família: repetidas, sagradas, com seus tempos certos de fervura e silêncio. Para mim, nenhuma soa assim tão perfeitamente quanto Lindo Lago do Amor. É um prato para ser comido devagar, de olhos fechados, como se a primeira colherada dissolvesse o mundo em água morna. Há ali uma geografia úmida que lembra os fundos das casas rurais nordestinas, onde a água de lavar pratos escorre pro quintal e alimenta as ervas nascidas entre pedras.

"Ele tomou um banho d’água fresca / no lindo lago do amor" — e a imagem se mistura à lembrança de banhos de rio após a lida, quando o corpo cansado se deixava purificar. É uma música que hidrata. Que cozinha o peito em fogo brando, sem pressa, até amolecer tudo por dentro. E, no prato da memória, ela vem acompanhada de uma paz delicada — a que só o amor calmo, que não exige nada, sabe oferecer. Gonzaguinha não canta apenas o lago: ele serve o lago à mesa, nos convida a mergulhar com o paladar e os olhos, feito ritual de ternura.

E há outras canções que, como entradas ou sobremesas que desafiam o convencional, merecem ser lembradas pela potência de seus sabores. Semente do Amanhã tem gosto de esperança em casca dura: como uma castanha ainda verde, que só o tempo adoça. É alimento da fé, do “não se desespere não, nem pare de sonhar”, cozido no caldo da luta cotidiana.

Eu Apenas Queria Que Você Soubesse vem com o sabor agridoce das coisas que quase esquecemos, mas que resistem feito perfume antigo guardado entre roupas limpas. Ela fala de recomeço como quem fala de fermento natural — aquele que se guarda, se alimenta, se respeita, e que nos faz crescer por dentro.

Explode Coração é pimenta malagueta: vermelha, inevitável, intensa. Não há como ouvir e não arder. Rasga, perfuma, acorda. Em Explode Coração, há a libertação do corpo — que também é alimento, também é oferenda:

"Eu quero mais é me abrir... e que essa vida entre assim, como se fosse o sol desvirginando a madrugada..." Esse verso é uma receita de vida, com o calor de um forno aceso em noite chuvosa.

Já Grito de Alerta tem gosto de prato interrompido: aquele que começa doce, mas azeda no meio, entre silêncios e acidez. São canções que alimentam, mas não acomodam. Não se contentam com o trivial. Têm o poder de transformar nosso apetite — pela vida, pela verdade, pelo amor — em algo mais exigente, mais inteiro, mais humano.

FEIJÃO: O HINO COMESTÍVEL DA BRASILIDADE

E então chegamos ao feijão.

Ah, o feijão.

Gonzaguinha não teria escrito um tratado acadêmico sobre identidade brasileira — não precisava. Ele já havia escrito O Preto Que Satisfaz, onde o feijão é elevado à categoria de símbolo nacional. Mas não como abstração. Como algo que se cheira, se come, se festeja.

"Feijão, pretinho básico, sabor bem Brasil, que satisfaz dez entre dez brasileiros..."

O feijão de Gonzaguinha é mais que comida. É gente. É velho amigo do peito. É pai e mãe e filho sentados à mesa, dividindo silêncio, risada, lágrima e sustança.

Na música, ele diz que, à mesa do feijão, esquecemos os preconceitos. Porque o alimento é um lugar onde a democracia ainda sobrevive: cada colherada é um manifesto. Cada grão é resistência.

E se Gonzaguinha foi a voz de uma geração, o feijão é sua trilha sonora culinária.

DO FEIJÃO DA LUTA AO FEIJÃO DA SOBREMESA

Agora, imagine:

O mesmo grão que acalentou gerações em panelas de barro, agora transformado em brownie.

Sim, brownie. Uma dança delicada entre o doce e o amargo, entre o ancestral e o moderno, entre o que se espera e o que surpreende.

Transformar o feijão em sobremesa é um ato de amor e ousadia — como foram as músicas de Gonzaguinha. É subversão, mas também ternura. É dizer: não há limites para o que o povo pode criar com o que tem.

Assim como suas letras faziam da dor poesia, fazemos do feijão um doce.

Porque, como ele nos ensinou: "A atitude de recomeçar é todo dia, toda hora."

E se é para celebrar os 80 anos de Gonzaguinha, que seja com algo que ecoe sua alma. Algo bonito. Algo valente. Algo que abrace.

Algo com feijão.

Porque viver, no fundo, é isso:

É levar a panela ao fogo como quem acende uma esperança.

É cantar com a boca cheia, sem medo de parecer brega ou faminto.

É provar do feijão, mesmo aquele que a gente jurou não amar.

É saber que Gonzaguinha não morreu: ele segue ali — no caldo grosso das manhãs, na colher que acaricia o prato, no amor que insiste, mesmo depois do gosto amargo.

Viver é aceitar o gosto inesperado, permitir que a vida ferva devagar, até caramelizar as memórias.

É servir o coração em pedaços — quentes, doces, contraditórios.

Como quem canta de olhos fechados.

Como quem ama sem receita.

Como quem, mesmo depois de tudo, ainda acredita no fogo da transformação...

🍫BROWNIE DE FEIJÃO PRETO — O PRETÃO QUE DERRETE NA BOCA

Ingredientes:

300g de feijão cozido e sem o caldo (sem tempero algum)

30g de aveia em flocos finos

55g de óleo vegetal

15g de cacau em pó 100%

40g de achocolatado (tipo Nescau ou Toddy)

160g de açúcar mascavo

1 ovo

1 colher de sopa de vinagre de maçã (se não tiver use apenas vinagre de álcool)

1/2 colher de sopa de bicarbonato de sódio

50g gramas de chocolate meio amargo picado para a massa

150g de chocolate meio amargo picado decorar

100g de castanha de caju torrada picada (opcional, mas faz diferença)

Obs.: Use aveia em flocos bem finos e bata bem!!!

Preparo: importante ressaltar que para essa receita, cozinhe o feijão preto apenas com água até que esteja macio. Depois de frio, escorra a água do cozimento e lave bem para ficar apenas com os grãos. No processador, bata o feijão cozido escorrido com o açúcar, o ovo, o óleo de coco, o extrato de baunilha e bata por três minutos. Junte o cacau, o achocolatado, a aveia em flocos finos, o bicarbonato e uma colher de vinagre e bata por mais três minutos. Acrescente 50 gramas do chocolate em barra quebrado e bata por mais um minuto. Junte as castanhas picadas, misture com uma colher e despeje a mistura numa forma pequena untada com manteiga e forrada com papel manteiga. Espalhem bem a massa, coloque as 100g restantes do chocolate picado distribuído por cima da massa e leve para assar por 30 minutos a 180 graus. Deixe esfriar, retire da forma e sirva como desejar.

Sirva com café forte, uma lágrima nos olhos, e um disco de Gonzaguinha tocando baixo ao fundo.