Escrevo estas linhas como
quem risca fósforos na penumbra e desperta uma chama que conhece segredos
antigos. É uma vela acesa na catedral íntima da memória, onde cada sopro de luz
presta reverência aos duzentos anos de A Fisiologia do Gosto. E ao voltar a
Brillat-Savarin neste aniversário, sinto que não abro apenas um livro, mas
deslizo as mãos sobre um corpo adormecido que respira sob a pele do tempo — um
corpo cuja carne é feita de palavras, cujo sangue é feito de desejo.
Dois séculos se recolhem ao
nosso redor como cortinas pesadas, e ainda assim sua obra pulsa — oh, como
pulsa — como um vinho maduro que repousou demasiado tempo na escuridão,
esperando o instante de libertar seus perfumes mais profundos. Perfumes que não
pertencem a nenhum calendário, mas a uma linhagem de prazeres que se recusa a
morrer. É nesse perfume que me deixo submergir; é por ele que chamo o leitor a
seguir-me, como quem segue um rastro quente deixado por uma taça abandonada
sobre a mesa.
Este ensaio nasce, então,
não apenas como tributo, mas como oferenda — um pequeno sacramento sensorial
depositado aos pés do mestre que nos ensinou que comer é muito mais do que
nutrir-se: é pensar com o corpo, lembrar com a língua, sentir com todas as sombras
e claridades da alma. É pertencer ao mundo como pertencem os verdadeiramente
vivos: famintos, sensíveis, entregues ao milagre de existir diante de um prato
que exala, silenciosamente, a eternidade.
“DIS-MOI CE QUE TU MANGES, JE TE DIRAI CE QUE
TU ES”
“Diz-me o que comes, e eu te
direi quem és.”
Já perdi a conta de quantas
vezes ouvi essa frase deslizar por salas de aula, ecoar em palestras ou
cintilar em programas de televisão — sempre dita com aquela reverência
estudada, como se fosse um talismã antigo recitado por chefs, pesquisadores ou
jovens aprendizes da arte de comer.
O que me comove, porém, é
perceber que muitos dos que a entoam com tanta fervilhação mal conhecem sua
verdadeira nascente; repetem-na como quem veste um broche elegante, sem nunca
ter percorrido, de olhos atentos, as páginas que a deram ao mundo. E quando se
tenta, por delicadeza, conduzir a conversa para mais fundo, ela se desfaz como
vapor sobre taça quente; é uma dessas máximas que revelam mais sobre quem as
pronuncia do que sobre o pensamento que, em silêncio, as concebeu.
É no Aforismo IV, logo à
soleira da obra-prima de Jean Anthelme Brillat-Savarin, que a frase enfim
repousa em sua verdadeira morada. La Physiologie du Goût, ou Méditations de
Gastronomie Transcendante — título que já anuncia, como incenso aceso, a ambição
quase mística que envolve cada linha — ergue-se não como simples tratado
teórico ou historiográfico, mas como um cântico consagrado à experiência humana
de comer. Ali, o gesto ancestral de levar algo à boca transforma-se em metáfora
do conhecimento inteiro: mastigar é pensar, saborear é recordar, e o prazer —
quando atingido em sua mais profunda plenitude — roça a fronteira da revelação.
Com o tempo, o livro passou
a ser conhecido por sua forma abreviada, A Fisiologia do Gosto. O nome se
encurta, é verdade, mas o espírito permanece imenso — uma vastidão onde a
inteligência se oferece como iguaria, o hedonismo se transfigura em filosofia,
e a poesia se alimenta tanto do corpo quanto da alma. Cada aforismo é um
banquete posto à luz de velas; cada página, uma meditação íntima sobre aquilo
que nos torna humanos — a fome que nos move, o desejo que nos inflama, o
intervalo secreto que existe entre um prato e outro, onde o tempo parece se
deitar para respirar.
Por isso, mesmo depois de
dois séculos, ainda o abro com a mesma reverência com que se abre um relicário.
A Fisiologia do Gosto nunca foi apenas um livro sobre gastronomia; é um espelho
antigo no qual o homem civilizado se contempla e percebe, com certo assombro,
que continua a ser animal, pensante e faminto — criatura de carne e espírito,
sempre à procura de sentido e sabor.
Brillat-Savarin permanece,
duzentos anos depois, como o arauto de um hedonismo lúcido, onde inteligência e
prazer se entrelaçam como amantes à mesa. Cada frase, cada aforismo, cada
receita — ainda que discreta — é um convite para saborear a vida em sua inteireza:
não apenas a comida, mas os sentidos, o espírito humano, a cultura que nos
molda e nos revela em cada gesto. Este não é um livro sobre o que se come; é um
banquete literário, um tratado de filosofia íntima, uma celebração do existir
através do sabor e da reflexão.
A edição original, impressa
em Paris pela A. Sautelet & Cie, conserva ainda hoje o selo de sua época —
uma época em que os livros nasciam com o rigor de obras artesanais, divididos
em dois volumes que respiram a elegância do início do século XIX. Há, em cada
página, uma materialidade que testemunha a vida francesa daquele tempo: o
silêncio das tipografias, o perfume do papel recém-curado, a gravidade serena
de um mundo que começava a se descobrir moderno.
Muitos registros afirmam que
o livro escapou das prensas em dezembro de 1825, embora tenha recebido, por uma
convenção editorial quase cerimoniosa, a data de 1826 — como se lhe concedessem
um instante de repouso antes de enviá-lo ao tempo. É essa pequena nuance, tão
delicada quanto o fio de aroma que antecede um prato quente, que nos permite,
em dezembro de 2026, celebrar os duzentos anos de uma obra que atravessa
séculos despertando sentidos, iluminando reflexões, fascinando leitores e
estudiosos como um banquete literário sempre servido, sempre renovado.
A omelete da cura - gravação em "La Physiologie du gout" de Jean Anthelme Brillat-Savarin
Assim, hoje me permito
iniciar as celebrações desses dois séculos de existência, reconhecendo em
Brillat-Savarin muito mais do que um simples gastrônomo ou filósofo da comida.
Vejo nele um dos meus mestres — desses que não pedem juramentos nem rituais, mas
nos acompanham silenciosos pelas margens da vida —, um nome que ressoa através
das eras como símbolo de sabedoria, prazer e reflexão. Sua obra permanece como
um convite eterno a pensar, a sentir, a saborear; e cada vez que volto a ela,
tenho a impressão de reviver, em mim, o mesmo deleite que ele próprio
experimentou ao escrever cada palavra.
Quantas vezes, ao reler La
Physiologie du Goût, fiquei absorvido na tentativa de compreender a enigmática
entidade mitológica Gastérèa, que Brillat Savarin evoca não apenas como figura
mitológica tradicional, mas como símbolo do prazer que se descobre à mesa.
Gastérèa não possui templos
antigos nem lendas transmitidas em sussurros: ela é criatura literária, tecida
de poesia, luz e vapor, quase etérea em sua natureza. No limiar da obra,
Savarin a apresenta com um sorriso lúdico e uma reverência discreta, oferecendo
ao ato de comer uma aura de sacralidade, um brilho filosófico e profundamente
humano. Sob seu olhar, comer deixa de ser mera necessidade; transforma-se em
rito, celebração e arte secreta.
Mas antes de permitir que
Gastérèa surja inteira, no Aforismo IV, Brillat-Savarin faz uma pausa — dessas
pausas que pairam no ar como o perfume persistente de vinho derramado sobre a
madeira antiga da mesa. E então formula a pergunta que atravessa séculos com a
serenidade de uma verdade primordial, tão antiga quanto o gesto de levar
alimento aos lábios: de onde vem o prazer que sentimos ao comer?
Não se trata do prazer
simples da fome saciada, nem do conforto quase doméstico de um corpo
alimentado, mas daquele instante suspenso em silêncio — quando o sabor toca a
alma como um dedo invisível, quando o paladar parece pensar e o pensamento, de
súbito, adquire a textura e o peso de um corpo. É essa inquietação luminosa que
move Brillat-Savarin.
Nele, o jurista, o filósofo
e o amante do gosto entrelaçam suas vozes como fios de uma mesma chama,
buscando decifrar a origem desse deleite tão antigo quanto a própria vida.
Seria o gosto apenas o reflexo dos sentidos? Um impulso natural, uma centelha ocasional
da carne? Ou guardaria, por trás de sua doçura ou intensidade, algo do divino —
uma inteligência secreta que habita cada gesto de comer?
É então que Brillat-Savarin,
com a solenidade tranquila de um sacerdote que abre o véu de um mistério,
anuncia sua resposta — e o faz com a gravidade de quem está prestes a revelar
uma nova divindade ao mundo.
« Je vais répondre à cette question. Recueillez vous, lecteurs, et prêtez attention :
c’est Gastérèa, c’est la plus jolie des Muses qui m’inspire ; je serai plus clair qu’un
oracle, et mes préceptes traverseront les siècles.
GASTÉRÉA est la dixième Muse : elle préside aux jouissances du goût. Elle pourrait prétendre à l’empire de l’univers ; car l’univers n’est rien sans la vie, et tout ce qui vit se nourrit. Elle se plaît particulièrement sur les coteaux où la vigne fleurit, sur ceux que l’oranger parfume, dans les bosquets où la truffe s’élabore, dans les pays abondants en gibier et en fruits. Quand elle daigne se montrer, elle apparaît sous la figure d’une jeune fille : sa ceinture est couleur de feu ; ses cheveux sont noirs, ses yeux bleu d’azur, et ses formes pleines de grâces ; belle comme Vénus, elle est surtout souverainement jolie. »
Vou
responder a esta pergunta. Reúnam-se, leitores, e prestem atenção: é Gastérèa,
é a mais bonita das Musas que me inspira; serei mais claro que um oráculo, e
meus preceitos atravessarão os séculos.
GASTÉRÉA é a décima Musa: ela preside aos deleites do gosto. Poderia reivindicar o império do universo; pois o universo nada é sem vida, e tudo o que vive se nutre. Ela se deleita especialmente nos taludes onde a vinha floresce, naqueles que perfuma a laranjeira, nos bosques onde a trufa se elabora, nas terras abundantes em caça e frutas. Quando ela se compadece em aparecer, surge sob a figura de uma jovem mulher: seu cinto é da cor do fogo; seus cabelos são negros, seus olhos azul-céu, e suas formas repletas de graça; bela como Vênus, ela é sobretudo soberanamente linda.”
Ao introduzir Gastérèa —
essa musa nascida do banquete, que paira sobre a mesa como um sopro divino —
Brillat-Savarin não ergue uma deusa de pedra, fria e marinha, tampouco a
encerra em templos severos. Ele convoca, antes, um espírito vivo do deleite, uma
presença que exalta a sensorialidade como quem acende um lume dentro do próprio
corpo.
Confesso: foi nesse instante
que ele me cativou por inteiro. Décadas dedicadas ao estudo das mitologias, dos
deuses e seus caprichos, dos rituais que moldam e assombram a história humana,
jamais haviam preparado meu espírito para algo assim. Misturar alimento e mito
— transformar o gesto ancestral de nutrir-se em liturgia, poesia e filosofia —
despertou em mim uma fascinação que só posso chamar de visceral. Havia na
ousadia dessa criação, e na leveza com que Brillat-Savarin tratava o prazer,
algo que dialogava com minha própria essência, atraindo-me como o aroma quente
de uma receita esquecida, mas viva, esperando ser reencontrada.
E há mais: Gastérèa não
exige sacrifícios, não reivindica oferendas; ela somente inspira — com
suavidade, com poder — o rito humano de sustentar-se. Quando Brillat-Savarin
nos convoca, “leitores, prestem atenção”, e chama a musa que preside aos
“deleites do gosto”, a mesa transfigura-se em altar, a refeição em liturgia, e
o simples ato de mastigar torna-se um convite claro à transcendência.
Essa figura mitológica
personifica tudo aquilo que a gastronomia de Brillat-Savarin deseja exaltar: a
vida que pulsa, o alimento que sustenta, o prazer que ilumina, a cultura que
nos molda. Gastérèa habita os vinhedos maduros, as trufas ocultas sob a terra
escura, as frutas de perfume cálido, a carne selvagem — enfim, os domínios da
abundância, do sabor compartilhado, da convivência que se faz corpo e memória.
Quando ele escreve que ela
“poderia reivindicar o império do universo”, afirma, com a precisão de quem
conhece a alma humana, que comer não é remate nem detalhe: é centro, origem,
fundamento. E quando descreve sua aparência — o cinto incendiado, os cabelos
negros como breu, os olhos da cor do céu — cria uma iconografia ardente,
sensual, que faz da musa o próprio emblema da vitalidade.
Mas não foi apenas Gastérèa
que me capturou; ela foi o primeiro clarão, o sopro divino que me abriu os
olhos para um mundo onde comer transcende a nutrição e se aproxima do êxtase.
Revisitar La Physiologie du Goût é reencontrar não um tratado sobre comida, mas
um cântico — uma ode à vida que se alimenta, um convite a estar inteiro no gozo
dos sentidos.
Gastérèa permanece ali como
testemunha e guia: não uma doutrina rígida, mas uma presença luminosa, pousada
sobre cada prato, cada taça, cada conversa, recordando-nos que comer é também
rito, experiência estética, gesto amoroso e, sobretudo, um abraço profundo ao
humano.
Aprendi com La Physiologie
du Goût palavras que se tornaram quase bússolas da minha vida — e entre elas,
nenhuma se mostrou tão reveladora quanto a distinção entre gourmet e gourmand.
Brillat-Savarin jamais se
proclamou gourmet; essa palavra, tão moderna em seu verniz, jamais lhe
serviria. Ele se reconhecia como gourmand, no sentido nobre, quase
cavalheiresco, que ele próprio concede ao termo.
No Aforismo I, ele escreve
com a precisão de quem compreende a alma humana: « Le mot gourmandise exprime
une passion honnête, un plaisir raisonnable. » — “A palavra gourmandise exprime
uma paixão honesta, um prazer razoável.”
E, indo ainda mais fundo,
ele define com a clareza de um oráculo doméstico: « Le gourmand n’est pas celui
qui mange beaucoup, mais celui qui aime à bien manger. » — “O gourmand não é
aquele que come muito, mas aquele que gosta de comer bem.”
O termo gourmet, nascido em
tempos posteriores, ressoa frio, cerebral, quase técnico — pertence aos
especialistas que medem sabores como quem pesa vinhos em taças idênticas,
distantes do apetite vivo da existência. Brillat-Savarin, por sua vez, era
gourmand: aquele que come com o corpo inteiro, que saboreia com o pensamento e
pensa com o paladar; aquele que reconhece o alimento como ponte sutil entre o
sensível e o espiritual.
Essa distinção reverberou
profundamente em mim. Em setembro de 2010, ao lançar meu blog, a Confraria do
Barão de Gourmandise, percebi que o conceito de gourmand seria a pedra
fundamental da filosofia e do espírito do baronato que eu desejava erigir — não
como título, mas como modo de vida.
E não se tratava apenas de
poesia ou sensorialidade: senti também a urgência de preservar a precisão
conceitual, especialmente no campo científico e acadêmico. Assim, em 2012,
publiquei o artigo intitulado “Turismo Gourmand: o luxo e a gastronomia como vetores
para o apetite de viajar”, na Revista Turismo e Sociedade, da Universidade
Federal do Paraná, buscando honrar e perpetuar a integridade do legado que
Brillat-Savarin nos confiou.
Hoje, porém, observo o termo
gourmet sequestrado pelo marketing, transformando luxo em gosto, aparência em
essência. Nas vitrines e nas redes sociais, qualquer alimento, enobrecido por
ingredientes caros, proclama-se “gourmet” — até o humilde brigadeiro, ou um
simples sacolé, elevado pelo toque de um chocolate sofisticado, mas despido de
alma.
O que se perde nessa
vulgarização é precisamente o que Brillat-Savarin tanto exaltou: o prazer
honesto, a paixão razoável, a sabedoria que brota do ato consciente de comer.
Ser gourmand, portanto, não é apenas apreciar um prato — é reconhecer, em cada
sabor, o elo secreto entre o corpo e o mundo, a ponte que nos liga à vida.
Para Brillat-Savarin, o
gourmand é o verdadeiro filósofo da mesa — alguém que entrelaça corpo e
pensamento pelo gosto, transformando cada refeição em reflexão, rito e poesia
viva. É essa filosofia do paladar que dá forma à obra que temos em mãos: um
livro que não se limita a ensinar técnicas, mas que nos convida a pensar, a
sentir, a existir plenamente no ato de comer.
A Fisiologia do Gosto não se
propõe a ser um manual de receitas no sentido moderno, meticuloso e passo a
passo, como os livros de culinária contemporâneos. Brillat-Savarin não nos
conduz pela sequência exata de preparações, mas nos oferece algo mais raro e
profundo: uma obra híbrida, entre meditações filosóficas, ensaio gastronômico,
reflexões sociológicas e aproximações quase científicas sobre o ato de comer.
Entre aforismos, anedotas e digressões, pequenas receitas surgem aqui e ali,
mas mais como lampejos poéticos, ilustrações sutis, do que como instruções a
serem seguidas. A verdadeira essência da obra reside nas ideias que florescem
entre aromas e sabores, na poesia que perfuma as páginas, na filosofia que se
esconde entre o mastigar e o paladar atento.
O que torna La Physiologie
du Goût genial é, precisamente, essa elevação do simples ato de comer ao
patamar do intelecto, da contemplação e da reflexão social. Brillat-Savarin nos
ensina que não importa apenas o que se come, mas como se come, por que se come
e, sobretudo, o que cada gesto revela sobre nós mesmos.
Ele define gastronomia como
“o conhecimento razoado de tudo aquilo que toca ao homem enquanto se nutre” — e
sintetiza em sua frase mais célebre, frequentemente citada fora de contexto:
“Diz-me o que comes, e eu te direi quem és.” Assim, a alimentação deixa de ser
mera função biológica e transforma-se em ponte sensível entre sociologia,
psicologia, cultura e prazer sensorial, uma experiência em que o corpo, a mente
e a alma se encontram à mesa.
Além disso, Brillat-Savarin
traça uma delicada e profunda conexão entre alimentação, saúde e civilização.
Antecipando conceitos que hoje reconhecemos como modernos em nutrição, discute
peso, digestão, os alimentos apropriados, os perigos dos excessos e a sutileza
que separa apetite de hábito. Ao ler suas páginas, compreendemos que o destino
das nações, de algum modo, repousa sobre a qualidade de sua alimentação; comer
deixa de ser ato puramente individual para tornar-se reflexo e espelho de uma
civilização inteira.
O estilo literário e
contemplativo do livro é outro de seus méritos incomparáveis. Brillat-Savarin
não apenas nos instrui a cozinhar, mas nos ensina a saborear, a conviver, a
fruir o ritual da mesa, a contemplar a fartura, a apreciar a estética do prato,
os aromas e a plenitude sensorial.
Seus aforismos, sempre
pontuados por humor sutil — como quando compara uma sobremesa sem queijo a “uma
bela mulher a quem falta um olho” —, embora algumas observações reflitam visões
de gênero do século XIX e nos pareçam hoje ultrapassadas ou problemáticas, não
diminuem o encanto da obra. Ao contrário, inauguram uma nova maneira de pensar
a gastronomia: não apenas como técnica, mas como expressão cultural, social e
intelectual, um convite a refletir sobre o prazer à mesa, o convívio e a arte
de comer bem.
Brillat-Savarin, com olhar
atento à trama da vida, reconhece que o ato de comer não se encerra na mera
necessidade do corpo, mas se insere num palco social vasto e pulsante.
Publicado numa França em efervescência, seu livro surge num momento em que a
mesa, antes confinada aos salões da nobreza ou aos silenciosos conventos —
guardiães de receitas e técnicas quase sagradas —, começava a libertar-se.
A Revolução, e o florescer
da burguesia, abriram novas portas: restaurantes surgiam como flores
inesperadas, oferecendo experiências refinadas àqueles que buscavam sabor,
convívio e distinção. Comer deixou de ser ato solitário ou privilégio de um
círculo fechado; transformou-se em acontecimento público, em ritual de
encontros e de trocas, onde o humano se revela na linguagem dos sentidos.
Nesse cenário,
Brillat-Savarin percebe que a refeição transcende a mera função biológica. Cada
prato, cada gesto à mesa, é manifestação de identidade, prazer e estética. A
mesa torna-se um teatro de vínculos, onde aromas, sabores e movimentos se
entrelaçam à etiqueta, e onde o diálogo se faz inseparável do deleite. Ele
antecipa, com clareza quase profética, que o prazer à mesa se multiplica quando
compartilhado, tornando-se fio invisível que liga indivíduos, sentidos e
gerações.
O restaurante, nesse
contexto, deixa de ser apenas abrigo contra a fome: transforma-se em espaço
simbólico, arena onde o ato de comer se eleva a ritual, a arte, a poesia. Ali,
corpo e mente se encontram, e o sabor escapa da dimensão do individual, expandindo-se
para o social, o cultural, o profundo e o sublime — onde cada refeição é uma
dança delicada de prazer e consciência, e a vida se insinua entre talheres,
aromas e silêncios compartilhados.
Entre suas ideias
inovadoras, surge a célebre “teoria da fritura” — à primeira vista simples,
quase trivial, mas revelando uma precisão quase obsessiva e uma sensibilidade
rara. Temperatura, tipo de gordura, ponto exato da cocção: cada detalhe é
observado com um olhar que antecipa a ciência moderna do sabor, uma alquimia
quase profética.
Para Brillat-Savarin,
cozinhar não é apenas transformar ingredientes; é compreender processos,
respeitar a matéria, tocar, com consciência e reverência, a essência que
converte o alimento em prazer e sustento, numa dança delicada entre técnica e
sensibilidade.
Ele vai além, conectando
cada tipo de vinho ao prato adequado, sugerindo o papel sutil da “eau-de-vie”,
a água da vida — para nós brasileiros, seria a nossa aguardente, e nisso
estaria o que hoje entendemos como o digestivo servido ao final da refeição —
ele não fala apenas de uma bebida alcoólica; fala de um rito que encerra o
banquete, um sopro que auxilia a digestão, acalma o corpo e celebra o término
do ato de comer, e delineando princípios de harmonização que hoje nos parecem
naturais, mas que, em sua época, surgiam como invenções quase poéticas, fruto
de observação, experiência e raciocínio.
Mais ainda, Brillat-Savarin
traça linhas invisíveis entre alimentação, sono, sonho, digestão e anatomia do
apetite, antecipando conceitos modernos de nutrição e fisiologia. Cada refeição
torna-se assim um laboratório do corpo e da mente, um mapa em que prazer, saúde
e sensação se entrelaçam, e onde o alimento não apenas nutre, mas ensina,
inspira e seduz. É o instante em que o comer se transforma em conhecimento
sensível, quase místico, e cada mesa se torna um território onde a vida, a arte
e o prazer se encontram, sutilmente, na cadência do tempo e do gosto.
Em suas páginas, cada gesto
culinário, cada escolha de sabor, cada detalhe da mesa revela-se um ato de
inteligência sensível — um convite a perceber o comer como ciência, poesia e
filosofia entrelaçadas. Mais que sabores, Brillat-Savarin descortina a intrincada
dança entre alimentação, sono, sonho e anatomia do apetite.
Cada refeição é um
microcosmo: o corpo reage, o espírito se eleva, e a mente registra impressões
que ultrapassam a mera nutrição. Ao relacionar comida e bebida com digestão,
descanso e sonhos, ele antecipa conceitos hoje reconhecidos na fisiologia e na
ciência da nutrição, mas sempre com poesia e um humor delicado, lembrando-nos
que comer bem é também conhecer-se, observar-se e, acima de tudo, deleitar-se
com plenitude.
Finalmente, Brillat-Savarin
eleva a alimentação a um objeto de estudo múltiplo: não apenas fisiológico, mas
também psicológico, social e cultural — um território vasto onde cada gesto à
mesa revela algo profundo sobre o ser humano. Confere dignidade ao prazer
gastronômico, transformando o ato aparentemente simples de comer em celebração
da vida, em ritual sagrado dos sentidos. Ensina que “comer bem” não se limita a
ingredientes ou técnicas: envolve a harmonia da mesa, a cadência da conversa, o
aroma que flutua no ar, o toque da louça, o brilho do vinho na taça — todos
elementos que se combinam para criar uma experiência em que corpo, mente e
espírito se encontram, delicadamente, à mesa.
Assim, para mim, a
influência de La Physiologie du Goût transcende cozinhas e panelas: atravessa
fronteiras disciplinares, tocando escritores, filósofos, nutricionistas e
estudiosos do gosto, todos convidados a perceber o alimento como experiência
integral, onde corpo e espírito se entrelaçam. Sob o olhar atento de
Brillat-Savarin, a refeição deixa de ser mero sustento e transforma-se em
memória, encanto e reflexão — instante em que cada aroma evoca lembranças, cada
textura desperta pensamento, e cada sabor se converte em ponte entre o sensível
e o intelectual.
Cada prato servido, cada gole apreciado, cada gesto à mesa revela-se lição de vida: uma meditação sobre a delicadeza do gosto, a importância do prazer e a celebração do existir. Comer, assim, torna-se arte e filosofia; o ato de nutrir-se eleva-se a rito, poesia e diálogo com o mundo — um convite a saborear não apenas os alimentos, mas a própria existência, consciente de que o prazer é tão essencial quanto o pensamento, e que a mesa, enfim, é lugar sagrado onde o humano se encontra com o humano, com o presente e com a eternidade.
BRILLAT-SAVARIN: AQUELE QUE FEZ O MUNDO
PENSAR O PRAZER À MESA
Jean Anthelme
Brillat-Savarin nasceu em Belley, na região de Ain, em abril de 1755, entre colinas
suaves e vinhedos que exalavam promessas e aromas de terroir. Desde cedo,
entregou-se aos estudos de direito, química e medicina em Dijon — uma tríade de
disciplinas que esculpiu sua visão do mundo, capaz de compreender tanto as leis
humanas quanto os mistérios do corpo e os segredos da natureza. É possível que,
nesse caldeirão de saberes, tenha germinado a ideia de uma “fisiologia do
gosto”: um olhar simultaneamente científico, filosófico e sensorial sobre o
prazer de comer.
Jurista, magistrado, músico
de violino e poliglota, Brillat-Savarin era homem do Iluminismo tardio,
daqueles que acreditavam que o mundo podia ser analisado, compreendido e, ao
mesmo tempo, degustado. Quando a Revolução Francesa irrompeu em 1789, foi nomeado
deputado da Assembleia Nacional Constituinte, destacando-se por sua defesa da
pena capital. Adoptaria o apelido “Savarin” após a morte de uma tia, que lhe
deixou toda a fortuna sob a condição de que incorporasse seu último nome —
gesto que uniu destino, memória familiar e identidade numa só assinatura de
vida.
A instabilidade da época
obrigou-o a buscar refúgio político. Sua cabeça chegou a estar a prêmio, e
Brillat-Savarin partiu para a Suíça, depois para a Holanda e, finalmente, para
os Estados Unidos. Durante três anos, viveu entre aulas de francês e violino, e
aventuras singulares, como caçar perus selvagens, sobre os quais anotava com
atenção curiosa: “charming to behold, pleasing to smell, and delicious to
taste” — “encantadores de se ver, agradáveis de sentir e deliciosos de provar”.
Cada experiência, cada aroma, cada sabor, cada gesto, acumulou-se em sua
memória sensorial e intelectual — amadurecendo o apetite físico, psicológico e
espiritual que definirá La Physiologie du Goût.
Ao regressar à França, em
1797, Brillat-Savarin conquistou a magistratura, função que exerceu no Supremo
Tribunal até o fim de sua vida. Publicou diversos ensaios de direito e
economia, mas nenhum deles deixaria marca tão profunda quanto sua obra-prima: La
Physiologie du Goût, ou Méditations de Gastronomie Transcendante. Lançada nos
últimos dias de 1825, apenas dois meses antes de sua morte, a obra trazia a
data de 1826 — promessa silenciosa de eternidade, que se cumpriu, como se o
tempo em si tivesse cedido à força duradoura de seu pensamento e de seu gosto.
Além de jurista e filósofo
do gosto, Brillat-Savarin foi pioneiro ao integrar observações da química e da
medicina à gastronomia. Não apenas descrevia alimentos, mas refletia sobre
digestão, metabolismo, composição química dos pratos e a relação entre alimentação,
saúde e civilização. Sua escrita combina rigor científico e sensibilidade
poética, transformando o ato de comer em um estudo multidimensional — um
mergulho que atravessa corpo, mente e sociedade.
Em suas páginas, encontramos
frases que ecoam através dos séculos, mas que soam menos como máximas isoladas
do que como partes vivas de uma filosofia do prazer:
“Diga-me o que você come, e
direi quem você é.” Aqui, ele nos lembra que a mesa é espelho da identidade;
“A descoberta de um novo
prato traz mais felicidade à humanidade do que a descoberta de uma estrela.” —
uma celebração do prazer sensível sobre o abstrato;
“Quem recebe amigos e não
participa do preparo da refeição não merece ter amigos.” — o ato de cozinhar
como vínculo, ritual de amizade;
“Uma sobremesa sem queijo é
como uma beleza com apenas um olho.” — sexismo, humor e estética se entrelaçam;
“Receber hóspedes é cuidar
da felicidade deles durante todo o tempo em que estiverem sob seu teto.” —
hospitalidade elevada a arte;
“Cozinhar é uma das artes
mais antigas e que nos prestou o serviço mais importante na vida cívica.” — a
cozinha como coração da civilização;
“A qualificação mais
indispensável de um cozinheiro é a pontualidade; deve ser também a do hóspede.”
— atenção ao detalhe e respeito pelo outro;
“O prazer da mesa pertence a
todas as idades, a todas as condições, a todos os países e a todas as áreas;
ele se mistura com todos os outros prazeres e permanece, por fim, para nos
consolar de sua partida.” — o prazer, universal e eterno, como consolação da
vida.
Cada aforismo, mais do que
frase pronta, é uma lente para enxergar a mesa, o alimento e a convivência
humana, e juntos formam uma sinfonia de pensamento, sabor e vida.
Em Brillat-Savarin percebo
um homem cujo apetite transcende a fome: é desejo de vida, curiosidade
intelectual, sensibilidade estética e espírito de observação. Sua biografia e
obra nos lembram que a mesa é muito mais do que alimento: é palco de cultura, filosofia,
sociabilidade e prazer consciente. Cada aroma, cada sabor, cada gesto de
partilhar revela uma reflexão sobre quem somos, sobre como vivemos e sobre o
mundo que nos cerca.
Não por acaso,
Brillat-Savarin viveu na mesma época de Carême. Mas eles não apenas
compartilharam o tempo: habitaram uma era em que a gastronomia carregava peso
quase político, e a mesa podia tornar-se palco de glória ou de ruína. Ali,
cozinhar e servir não era mero ofício: era ato de poder, expressão de
refinamento e arena de escolhas que refletiam valores, ambições e o espírito de
uma sociedade em transformação. Cada receita, cada banquete, cada gesto à mesa
tornava-se, assim, manifesto silencioso de civilização, lembrando que o prazer
à mesa nunca é trivial — é elo entre a estética, a ética e o humano.
Na França do pós-Revolução e
do Império, os banquetes não eram meros jantares: eram demonstrações de poder,
refinamento e persuasão. Um prato mal concebido podia comprometer alianças,
enquanto uma sobremesa bem elaborada consolidava prestígio e influenciava
decisões.
Nesse contexto, Carême
encarnava o artesão supremo, capaz de transformar a cozinha em instrumento
diplomático, enquanto Brillat-Savarin se erguia como intérprete da experiência
do comer, filósofo que via na sensorialidade, no ritual e no prazer refinado uma
forma de civilidade e estabilidade. Sua contemporaneidade não era casual:
situava ambos no epicentro de uma época em que o talento à mesa tinha o poder
de seduzir ministros, encantar reis e, de certa forma, “salvar ou destruir
impérios” — uma responsabilidade que ultrapassava o sabor, envolvendo política,
cultura e a própria alma do gosto.
Carême e Brillat-Savarin —
dois astros na constelação da gastronomia do século XIX — giravam em órbitas
que se cruzavam apenas nos salões dourados de Charles Maurice de Talleyrand
Périgord, o “príncipe da mesa” do Império. Nos banquetes esplendorosos da Rue
de Varennes, cada gesto carregava peso, cada prato se transformava em
espetáculo. Carême reinava absoluto sobre entrées, sobremesas, serviço e mise
en scène; cada detalhe, do corte da carne à doçura da glace, era coreografia
meticulosa, sinfonia de formas e sabores, onde técnica e arte se entrelaçavam
em perfeita harmonia.
Brillat-Savarin, ao
contrário, ocupava o lugar de pensador da mesa, magistrado do Tribunal de
Cassação, filósofo do paladar e estudioso do prazer. Enquanto Carême manipulava
a cozinha como um teatro, Brillat-Savarin transformava a refeição em reflexão,
convertendo cada garfada em aforismo, cada gole em meditação.
E é nesse mesmo salão, entre
candelabros cintilantes e fragrâncias de trufas e vinhos raros, que a tensão se
fazia sentir como uma corrente elétrica quase invisível. Carême, perfeccionista
da técnica, via na gula deliberada de Brillat-Savarin — o seu modo de “encher o
estômago” — um deslize, uma falta de disciplina, quase uma blasfêmia diante da
arte culinária que tanto venerava. Brillat-Savarin, por sua vez, podia olhar
para Carême com uma leve condescendência intelectual, percebendo no mestre dos
banquetes uma obsessão pelo ritual que, aos olhos do filósofo, se afastava do
verdadeiro prazer do comer.
Os relatos sugerem cenas
quase teatrais: Carême observando o magistrado saborear sem atenção, franzindo
o cenho, cada movimento de garfo e colher avaliado com o rigor de um escultor
sobre sua obra; Brillat-Savarin absorvendo cada sabor e aroma, perdido em
pensamentos sobre digestão, sonho e prazer, alheio à teatralidade que o
cercava. Era como se dois mundos distintos colidissem à mesa: de um lado, a
cozinha como ofício supremo, técnica e disciplina; do outro, a refeição como
filosofia e sensorialidade, onde o alimento se torna ponte entre corpo, mente e
cultura.
E talvez seja aí que reside
a beleza e a intensidade desse encontro: o leitor é convidado a sentir o
contraste, a escolher, mesmo que involuntariamente, seu lado. A mão firme do
chef, que exige perfeição, ou a mente contemplativa do gourmet, que transforma
a refeição em experiência de vida?
Entre o tilintar das taças,
os aromas de manteiga e vinho, e o murmúrio dos convidados, surge uma narrativa
viva, carregada de nuances e conflitos humanos, onde a culinária deixa de ser
apenas sustento e se torna palco de personalidade, ego e sensibilidade.
É nesse limiar — entre o
rigor e o deleite, a técnica e a reflexão — que Carême e Brillat-Savarin se
enfrentam e se completam. A tensão que se percebia não era apenas animosidade:
era o embate entre dois tipos de excelência, entre duas ideias de como a mesa
pode ou deve ser habitada. E, ao acompanhar esses encontros, o leitor sente o
peso de cada garfada, o silêncio entre os pratos, a energia contida que brota
do confronto entre o feito e o pensado, entre a arte de cozinhar e a arte de
comer.
Num trecho que se tornou
célebre, Carême teria descrito Brillat-Savarin da seguinte forma:
« Ni M. de Cambacérès, ni M. Brillat Savarin n’ont jamais su manger. Ils aimaient tous deux les choses fortes et vulgaires, et remplissaient tout simplement leur estomac ; c’est à la lettre. M. de Savarin était gros mangeur, et causait fort peu et sans subtilité, ce me semble ; il avait l’air lourd et ressemblait à un curé. À la fin du repas, sa digestion l’absorbait ; je l’ai vu dormir. »
“Nem o Sr. de Cambacérès, nem o Sr. Brillat Savarin jamais souberam comer. Gostavam ambos das coisas fortes e vulgares, e simplesmente enchiam o estômago; à risca. O Sr. de Savarin era um grande comedor, e falava muito pouco e sem sutileza, ao que me parece; tinha ar pesado e parecia um padre. Ao fim da refeição, a digestão o absorvia; eu o vi dormir.”
Este retrato — ríspido,
quase cruel — revela mais do que uma crítica pessoal: expõe o embate entre dois
universos. De um lado, Carême, mestre da técnica, da elegância, da apresentação
e do serviço impecável; do outro, Brillat-Savarin, que transformava a refeição
em reflexão, o prato em aforismo, o vinho em filosofia. Carême acusava o
filósofo de “encher o estômago”, enquanto Brillat-Savarin buscava que o homem
“saboreasse o saber” — que cada garfada fosse ato consciente, civilizado,
profundo, encontro entre prazer, mente e corpo.
É importante notar o
contexto: Carême, como arquiteto dos banquetes diplomáticos de Talleyrand,
lidava com serviço, ostentação, corte e protocolo; Brillat-Savarin, magistrado
e estudioso, via o alimento como metáfora e o ato de comer como matéria de sociologia,
psicologia e fisiologia.
A citação de Carême pode,
portanto, ser interpretada como resistência ao discurso teórico do comer —
talvez menos uma crítica pessoal e mais uma exigência da mesa real: visível,
tátil, audível. Ele não negava que Brillat-Savarin comia, mas dizia que ele não
“sabia comer” nos termos de um chef ou gourmet prático, aquele que entende o
ritmo do serviço, a cadência da apresentação, a dança do sabor como espetáculo
e controle.
Essa crítica nos força a ver
Brillat-Savarin não apenas como autor de La Physiologie du Goût, mas como
figura que provocou, que dividiu, que instigou. Ele moderava o sabor com a
consciência, pedindo que a mesa se tornasse espaço de pensamento, meditação e
deleite reflexivo — enquanto Carême, no salão de Talleyrand, lembrava-lhe que a
mesa também era palco de serviço, de disciplina, de espetáculo, onde cada gesto
contava e cada detalhe falava.
A tensão entre esses dois
mundos — o da técnica e o da reflexão — não é mera curiosidade histórica: é
parte essencial da história da gastronomia moderna. Ela revela que a arte de
cozinhar e a filosofia do comer, embora distintas, são faces de uma mesma busca
pelo sublime.
Carême ensinava que a
perfeição se mede na execução; Brillat-Savarin, que o prazer e o conhecimento
se medem no sabor consciente, no aroma percebido, na cadência do ritual. Entre
eles, o leitor sente o tilintar das taças, o perfume das manteigas, a quietude
pensativa de um magistrado e o rigor calculado de um mestre da cozinha: duas
energias que se confrontam e se completam, mostrando que a mesa é, ao mesmo
tempo, palco, laboratório, templo e arena do humano.
A POÉTICA DO COMER
Nas noites parisienses de
Brillat-Savarin, os salões de Belley ou sua residência em Paris
transformavam-se em templos da gula e da inteligência, onde cada luz de vela
parecia dançar sobre o cristal, e cada taça aprisionava a claridade como se
guardasse segredos líquidos.
Ele próprio, magistrado do
Tribunal de Cassação e filósofo do sabor, erguia-se como maestro desse ritual
sagrado: um filé de boi selado na manteiga com trufas, cuja fragrância —
mistura de floresta úmida e sangue quente — se espalhava pelo ar como um incenso
terrestre, anunciando a comunhão iminente. O vinho, escolhido com devoção quase
litúrgica, serpenteava pelos sentidos: ora Bourgogne, ora Clos-Vougeot,
lembrando que cada gole era também um gesto de contemplação, um instante de
meditação líquida.
Ali, o alimento deixava de
ser mero sustento. Cada garfada, cada aroma, cada murmúrio de conversa sobre
música, política, ciência ou filosofia transformava-se em liturgia. Savarin
compreendia que a mesa era um altar: mastigar era celebrar a vida; degustar,
consagrar a própria mortalidade. Entre amigos, notáveis e gourmets,
instaurava-se uma pequena eternidade, um espaço onde prazer, reflexão e
companhia se entrelaçavam em fios invisíveis, delicados e profundos.
Talvez por isso, mesmo nos
últimos dias, Savarin se demorava nos gestos minuciosos que transformavam cada
refeição em rito: o arranjo delicado das louças, o brilho sutil das taças de
cristal refletindo a luz das velas, o corte preciso da carne, a harmonização
meticulosa do vinho com cada aroma do prato.
Ele não apenas comia — ele
contemplava o alimento, como se cada sabor fosse uma página de um livro
secreto, escrito em texturas, perfumes e cores. Cada garfada tornava-se diálogo
silencioso entre memória, intelecto e corpo, reverência à alquimia que transforma
ingredientes simples em prazer sublime. Nesse exercício de atenção e deleite,
Savarin ensinava que o comer é um ato de consciência, uma poesia que se lê na
boca e se sente nos sentidos.
Brillat-Savarin, que
transformou o ato de jantar em meditação profunda sobre o paladar, via no
queijo uma presença quase litúrgica à mesa: não apenas alimento, mas símbolo,
ritual e final de festa. Com leve irreverência e ternura, escreveu que “Uma
sobremesa sem queijo é como uma bela mulher a quem falta um olho” — mais do que
humor, há aqui reverência: o queijo fechava o banquete, coroava o prazer,
selava a refeição com graça e elegância.
Décadas depois, esse
espírito tomou forma concreta. Em meados do século XX, alguém, ao olhar para
aquele magistrado do sabor — filósofo e gourmet — disse: “Crio-lhe o nome de um
queijo”. Assim nasceu o Brillat-Savarin: homenagem ao homem que enxergava na
mesa um campo de reflexão, prazer e sedução.
Por volta de 1890, na região
de Forges-les-Eaux, perto de Dieppe, a família Dubuc criou um queijo de creme
rico e sedoso, batizado inicialmente de Excelsior ou Délice des gourmets. Mais
tarde, na década de 1930, o affineur parisiense Henri Androuët decidiu
renomeá-lo em homenagem ao magistrado-filósofo, perpetuando seu nome e seu
espírito à mesa: Brillat-Savarin.
Como nas páginas de sua
obra, onde celebrava o prazer sensorial e a sofisticação do convívio, o queijo
traduz em textura o que Savarin expressava em palavras: cada mordida é uma
liturgia, cada nuance de sabor uma experiência de luxo e delicadeza, um convite
à contemplação da vida e à comunhão entre os presentes, onde o alimento se
transforma em poesia e a mesa em altar.
Ele se apresenta como disco
de creme, rico, sedoso, quase translúcido na sua opulência. Sua consistência
aveludada, quase untuosa, lhe valeu o epíteto de “foie gras dos queijos”,
refletindo a predileção do autor pelas notas delicadas, pelo sabor pleno, pela
intensidade do leite fresco e pela riqueza do creme. Mais do que homenagem, é a
materialização da paixão que Brillat-Savarin nutria pelo queijo, alimento que
considerava indispensável à sobremesa e ao ritual da mesa, transformando cada
refeição em celebração, reflexão e deleite sensorial.
Hoje, ao cortar uma fatia
daquele triple crème e sentir a suavidade quase voluptuosa se desfazendo no
paladar, podemos imaginar Brillat-Savarin à sua mesa: velas acesas, taças de
vinho cintilando, aquele silêncio de deleite interrompido apenas pelo murmúrio
da conversa. O queijo transforma-se então em algo mais do que sabor: torna-se
ponte entre passado e presente, entre o filósofo que refletiu sobre o comer e o
aficionado que hoje ergue a taça em sua homenagem. E se o homem amava o queijo?
Talvez não haja registro definitivo — mas o queijo que leva seu nome mostra que
o mundo acreditou nessa paixão, convertendo-a em sabor, textura e memória,
perpetuando o prazer e a poesia que ele tão magistralmente celebrou à mesa.
A IMORTALIDADE DO GOSTO
Quase dois séculos se
passaram desde que Brillat-Savarin escreveu A Fisiologia do Gosto, e ainda hoje
o livro pulsa com vida própria. Não é um manual de cozinha no sentido estrito —
não dita regras frias nem métodos mecânicos. Fala de nós, de nossos desejos
mais sutis, do encanto pelo prazer, do temor do excesso, da arte delicada de
equilibrar gula e graça. Comer, para Savarin, é também pensar; saborear é
filosofar; e o prazer consciente se eleva à categoria de sabedoria.
Dentro dessas páginas,
surgem receitas, mas não como instruções rígidas — elas são imagens sensoriais,
pequenas janelas para um universo onde sabor e intelecto se entrelaçam. Cada
prato, cada combinação, é uma lição sobre atenção, harmonia e delicadeza: uma
música sutil que dança entre os sentidos, vibrando nos aromas, nas texturas e
nos gestos de quem prepara e de quem degusta.
No reino das carnes e aves,
Savarin nos conduz com a mão de maestro. O filé de boi com trufas e manteiga
exala aromas terrosos e densos, selado em vinho, espalhando pela cozinha uma
fragrância quase ritual — como incenso que anuncia o prazer iminente. O coelho
à la jardinière, com a frescura dos legumes e o perfume das ervas, transforma a
simplicidade em arte delicada. Os patês e terrines, harmonias de carne e
especiarias, revelam a música escondida nos sabores, enquanto os peixes
delicados, tratados com manteiga e limão, preservam a pureza do ingrediente,
como notas únicas em uma sinfonia.
O final da refeição, para
Savarin, é quase um sacramento. Nas sobremesas, cada gesto é celebração. Frutas
frescas com creme — maçãs, peras, frutos silvestres servidos com redução de
vinho — oferecem um ritual de cores e texturas. As sobremesas com queijo não
são meros alimentos, mas poesia em textura, lembrando-nos da célebre (e
irreverente) frase do autor: «Une dessert sans fromage est comme une belle
femme à qui il manque un œil» (“Uma sobremesa sem queijo é como uma beleza a
quem falta um olho”). Tartes e pudins simples respeitam a doçura natural,
deixando que o açúcar seja apenas um sussurro, não um grito, e elevando cada
refeição a experiência de contemplação e prazer consciente.
Molhos e temperos, para
Savarin, são alquimia poética. Cada gota, cada folha, é escolhida com cuidado —
como se participasse de um rito sagrado. Molhos à base de manteiga e ervas
elevam pratos comuns a experiências sublimes, enquanto reduções de vinho e vinagres
equilibram ácido e doce com delicadeza, antecipando conceitos modernos de
harmonização, dois séculos antes de serem formalmente reconhecidos.
Entre reflexões e aforismos,
Savarin nos ensina a cozinhar com atenção e reverência. “Uma boa sopa é um
prelúdio, mas a atenção ao fogo é tão importante quanto a qualidade do
ingrediente.” Cada gesto, cada corte, cada textura ganha valor. A atenção aos detalhes
transforma o ato de cozinhar em filosofia, e o ato de comer em celebração — uma
celebração que une memória, prazer e inteligência sensorial, elevando a
experiência da mesa à dimensão do espírito.
E é justamente essa atenção
ao prazer consciente que fez sua obra transcender o papel. La Physiologie du
Goût não permaneceu confinado às páginas de livros ou às mesas parisienses:
suas ideias flutuaram no ar, inspirando gestos, aromas e criações que buscavam
traduzir em matéria aquilo que ele descrevia em palavras.
Pouco depois, a memória de Savarin encontrou expressão em formas doces e untuosas, uma homenagem concreta à filosofia do sabor que ele tão apaixonadamente cultivou — uma celebração que, mais de duzentos anos depois, ainda nos convida a sentir, refletir e deleitar-nos.
SAVARIN - O DOCE SABOR DA ETERNIDADE
Anos após a morte de
Brillat-Savarin, sua memória ainda pairava sobre os salões e cozinhas de Paris,
como um perfume sutil que recusa desaparecer. Foi então que dois irmãos
confeiteiros, Auguste e Arthur Julien, inspirados pelo magistrado do sabor,
decidiram eternizar sua filosofia do paladar em forma de açúcar e farinha.
Por volta de 1845, nasceu o
Savarin: um anel dourado de massa levedada, úmido e sedoso, embebido em licor e
coroado por frutas frescas e creme chantilly. Uma pequena obra-prima que
traduzia, em gesto culinário, tudo aquilo que Savarin dissera em palavras —
atenção, harmonia e celebração do prazer consciente.
O bolo não era apenas
sobremesa; era símbolo do homem que via no ato de comer um rito quase
religioso. Redondo como o ciclo da vida, embebido de deleite como um corpo que
se entrega ao prazer, leve e etéreo como o pensamento que flutua entre uma taça
de vinho e o aroma de trufas na cozinha. Cada mordida evocava a mesma atenção
aos detalhes, a mesma reverência pelo sabor que Savarin defendia em La
Physiologie du Goût.
Comparado ao baba au rhum —
seu parente mais alegre e próximo — o Savarin é distinto: parisiense, comedido,
contemplativo. Enquanto o baba sorri com o rum que embebe sua massa, o Savarin
convida à reflexão e à apreciação cuidadosa. O perfume de kirsch e baunilha
eleva o prazer a uma experiência quase intelectual: não se devora, mas se
degusta, respeitando cada nuance, cada vapor que sobe da massa embebida, como
quem contempla uma obra de arte viva, efêmera, mas eternamente memorável.
Durante a Belle Époque, o
Savarin consolidou-se como presença obrigatória nas mesas dos grandes salões
parisienses. Servido com frutas vermelhas e chantilly, coroava banquetes cuja
elegância beirava o teatral — a sobremesa assumia o papel de gran finale numa
sinfonia de sabores, cores e texturas. Mas, acima de tudo, o bolo carregava
consigo a memória viva de Jean Anthelme Brillat Savarin: não apenas o homem,
mas a ideia de que a mesa pode ser eternidade.
Em cada proporção de massa
levedada, cada mergulho em xarope aromatizado e cada guarnição de frutas e
creme chantilly, o Savarin incorporava a filosofia de Savarin: que o comer
consciente é rito, que o sabor é ponte entre corpo, mente e sociedade. A preparação
deixava de ser mero alimento e tornava-se metáfora — um anel dourado que
simboliza o ciclo do tempo, do prazer e da memória, uma circunferência onde
passado e presente se encontram.
Quando o Savarin surgia nos
brindes e nas sobremesas finais das grandes mesas de Paris, era mais que um
bolo: era epígrafe. Um epílogo doce que proclamava: aqui está o instante que
permanece, o sabor que perdura, a mesa que transcende o efêmero. Cada fatia,
cada gole, cada aroma que sobe do molde embebido transformava-se em convite a
desacelerar, a refletir, a saborear o passageiro como parte do eterno —
lembrando-nos de que, na arte de comer, o prazer consciente é, por si só, um
ato de imortalidade.
E assim, o legado de
Brillat-Savarin não se confinou às páginas ou aos aforismos: tornou-se carne e
alma, massa que cresce e se ilumina, calda que perfuma o ar, creme que se
desmancha como nuvem sobre o paladar — e, sobretudo, momento suspenso no tempo.
O Savarin, “o doce da eternidade”, oferece a quem o prova não apenas o deleite
sensorial, mas a promessa de que o sabor pode atravessar séculos, permanecendo
intacto na memória.
À mesa, cada fatia
transforma-se em ritual: não se trata apenas de comer, mas de participar de um
instante que une passado e presente, corpo e espírito. Cada gole de xarope,
cada toque de chantilly, cada aroma que se eleva é convite a refletir sobre a
vida, a arte e o prazer consciente. O Savarin é, assim, metáfora viva:
lembrança de Savarin, celebração da inteligência do paladar, poesia
materializada em açúcar e creme, testemunho de que à mesa encontramos não só
alimento, mas cultura, pensamento e transcendência.
E, no fim, Brillat-Savarin
permanece vivo não apenas em palavras, mas em experiências, gestos e sabores. O
filósofo do paladar nos ensinou que comer é mais do que nutrir o corpo: é
meditar, celebrar, contemplar, partilhar. Cada refeição torna-se, sob seu
olhar, um microcosmo — uma conjunção de prazer, inteligência e delicadeza.
O Savarin, o queijo que leva
seu nome, as receitas e aforismos, são ecos materiais de sua visão: lembranças
tangíveis de que o sabor é ponte entre épocas, entre sentidos e entre almas. À
mesa, percebemos que o ato de comer consciente é rito e poesia, memória e
criação, experiência íntima e social, fugaz e eterna ao mesmo tempo.
E assim, ao erguer a taça, provar uma fatia de bolo embebido, sentir a textura cremosa do queijo, reconhecemos o homem que transformou o simples ato de alimentar-se em arte, filosofia e liturgia. Brillat-Savarin nos deixou, em cada aroma, em cada sabor, a certeza de que o prazer à mesa é, acima de tudo, celebração da vida — e que, ao saborear, tocamos o eterno.
EPÍLOGO: O GOSTO COMO
DESTINO
Quando a primeira colher
rompe o chantilly e mergulha na massa embebida, percebe-se que o prazer é
também pensamento — e que o pensamento se faz sabor. Cada migalha do Savarin
carrega a filosofia de Brillat-Savarin: consciência do comer, respeito pelos aromas,
celebração da vida em cada instante. Não é apenas sobremesa; é rito, meditação,
memória e deleite fundidos em um único gesto.
O licor que umedece a massa
desliza como ouro líquido sobre o paladar; o perfume da baunilha se mistura ao
frescor do kirsch; o creme chantilly derrete suave, envolvendo cada sentido,
convidando o corpo a desacelerar, e a mente a refletir. Degustar o Savarin é
sentir o tempo suspenso: cada instante se alonga, cada aroma se revela, cada
sabor desperta lembranças e imaginários — como se cada fatia fosse ponte entre
ontem e agora, entre humano e sublime.
O Savarin não é mero
alimento: é memória cristalizada, ritual em forma de massa, círculo perfeito
que simboliza eternidade. Cada detalhe — o brilho da calda, o formato do molde,
a disposição das frutas — é cuidadosamente pensado, lembrando que Brillat-Savarin
via a mesa como território sagrado, onde prazer, inteligência e consciência se
encontram. É nesse cuidado que o ato de comer se transforma em filosofia, e o
simples deleite, em arte.
Ao fechar os olhos,
percebe-se que a felicidade não habita apenas no que se come, mas na forma como
se saboreia: a lentidão da degustação, o êxtase do aroma, a contemplação da cor
e da textura. Cada fatia do Savarin é convite a mergulhar no instante, a flutuar
na poesia do paladar, a honrar a vida com sensibilidade e atenção plena.
E ao erguer a última colher,
entende-se que o bolo é mais do que sobremesa: é epígrafe, lembrança viva,
testemunho de um homem que nos ensinou que o sabor, quando consciente, se torna
eternidade. O Savarin — massa, licor, frutas, creme e memória — permanece,
assim, não apenas nos sentidos, mas na alma, como um pequeno milagre dourado
que une passado, presente e desejo.
Dicas de leitura:
BRILLAT-SAVARIN, Jean
Anthelme. La Physiologie du Goût, ou Méditations de Gastronomie Transcendante.
Paris: Charpentier, 1848 [1ª ed. 1825].
COSTA, E. R. C. Turismo
Gourmand: o luxo e a gastronomia como vetores para o apetite de viajar. Turismo
e Sociedade, v. 5, n. 1, p. 310–339, 2012. Disponível em: < https://revistas.ufpr.br/turismo/article/view/26584 >.
CANAL ACADÉMIES. Jean Anthelme Brillat Savarin : conseiller à la Cour de Cassation et théoricien de la gastronomie. Em: Les Chroniques Histoire & Gastronomie. Éditeur: Canal Académies, chr585, [s.l.], 2024. Disponível em: < https://www.canalacademies.com/emissions/les-chroniques/histoire-et-gastronomie/jean-anthelme-brillat-savarin-conseiller-a-la-cour-de-cassation-et-theoricien-de-la-gastronomie >. Acesso em: 05 nov. 2025 .
SAVARIN
Massa (pâte à savarin)
250 g de farinha de trigo (de força
média, tipo 1 ou 00), peneirada
4 ovos inteiros (aproximadamente 200 g),
em temperatura ambiente
60 ml de leite morno (35–38 °C)
15 g de açúcar refinado (aproximadamente
1 colher de sopa)
5 g de sal fino (1 colher de chá)
75 g de manteiga sem sal, amolecida
Fermento (escolher uma das opções
abaixo):
Fermento biológico fresco:
25 g
Fermento biológico seco
ativo: 8 g, dissolvido no leite morno com o açúcar
Levedura de cerveja seca:
8g, misture direto na farinha, ou dissolva em parte do leite morno com o
açúcar, e siga o restante da receita normalmente.
Preparo da massa: comece pelo fermento: Se usar fermento
fresco: dissolva-o no leite morno com o açúcar. Se usar fermento seco: faça o
mesmo e espere espumar cerca de 10 minutos. Se for fermento instantâneo:
misture diretamente à farinha. Se usar levedura de cerveja: misture-a ao leite
e peneire se necessário para remover resíduos. Misturar a massa: Numa tigela
grande, junte a farinha e o sal. Adicione os ovos, um a um, depois o leite com
fermento. Misture até formar uma massa elástica. Incorpore a manteiga amolecida
em pedaços, sovando até a massa ficar lisa e brilhante. A textura deve ficar
entre massa de pão e massa de bolo — maleável, mas não líquida. Primeira
fermentação: Cubra a massa com um pano úmido e deixe crescer por 1h30 a 2h, até
dobrar de volume, em local morno (25–30 °C). Molde e segunda fermentação: Unte
uma forma de anel (moule à savarin) com manteiga. Desinfle levemente a massa e
coloque-a na forma, preenchendo até metade da altura. Cubra e deixe crescer
novamente até atingir quase a borda da forma (cerca de 45 min a 1 h). Leve ao
forno pré-aquecido a 180 °C por 25–30 minutos, até dourar bem. Desenforme morno
sobre uma grade e deixe esfriar antes de embebê-lo com licor ou finalizar com
frutas e chantilly.
GUARNIÇÃO TRADICIONAL
Chantilly Clássico (Crème
Chantilly)
250g de creme de leite
fresco (mín. 35 % gordura)
2 colheres de sopa de açúcar
de confeiteiro
Gotas de baunilha
Bata tudo até formar picos
firmes. Coloque o chantilly no centro do Savarin.
FRUTAS PARA O SAVARIN
Tradicionais: morangos, framboesas, groselhas,
cerejas em calda, pêssegos em compota
Cítricas: laranjas, tangerinas, cascas
cristalizadas
Modernas/Tropicais: kiwi, manga, abacaxi, figo fresco,
amoras
Montagem: Monte as frutas no centro e em volta do
Savarin, sobre o chantilly.
Serviço e conservação: Servir à temperatura ambiente, regado
com um pouco mais de calda no momento de servir. Pode ser preparado no dia
anterior; mantenha coberto na geladeira.
Dura até 3 dias se mantido
úmido e refrigerado.
Notas históricas
A forma de anel do Savarin é mais do que estética: simboliza o “anel da boa mesa” (la couronne de la gastronomie), representando o ciclo do prazer, do tempo e da convivialidade. Cada curva da massa levedada lembra que a refeição é contínua, um ritual sem começo ou fim, onde o sabor, a conversa e o riso se entrelaçam em perfeita harmonia. Esse círculo perfeito também reflete a visão de Brillat-Savarin de que o ato de comer consciente é um gesto quase sagrado, em que cada participante da mesa se torna parte de uma celebração coletiva do prazer.
As formas tradicionais para o preparo do Savarin - são redondas e baixasO uso de kirsch e frutas
vermelhas é a mais fiel homenagem às versões originais criadas entre 1845 e
1860. O kirsch, destilado de cereja, não apenas embebe a massa, mas perfuma o
ar ao redor, criando uma aura que prepara os sentidos para a experiência sensorial
completa. As frutas vermelhas — morangos, framboesas e cerejas — adicionam cor,
frescor e acidez delicada, equilibrando a riqueza da massa e do creme
chantilly. Cada elemento é pensado como se cada sabor fosse uma palavra,
compondo uma frase poética que se lê com o paladar.
Em menus da Belle Époque, o
Savarin era descrito com precisão quase litúrgica: “Savarin au kirsch garni de
crème Chantilly et fruits confits.” Não se tratava apenas de uma sobremesa: era
a assinatura final de um banquete, a lembrança cristalizada do cuidado e da
arte do cozinheiro. Servido em grandes salões, entre candelabros e talheres de
prata, cada Savarin era esperado com ansiedade, saboreado com reverência e
celebrado como epílogo de uma experiência de luxo, inteligência e prazer
refinado.
O bolo, ao longo do século
XIX, atravessou salões privados e restaurantes de prestígio, mantendo-se fiel à
tradição, mas também inspirando variações: alguns pâtissiers adicionavam licor
de laranja, outros finalizavam com glacê delicado ou frutas cristalizadas,
sempre respeitando a elegância do original. Essa adaptabilidade mostra que o
Savarin não era apenas receita, mas filosofia transformada em massa: conceito,
memória e deleite em forma tangível.
Assim, cada Savarin que
chegava à mesa carregava em si histórias do passado — da França de
Brillat-Savarin e dos irmãos Julien, aos salões da Belle Époque — lembrando aos
presentes que a sobremesa é também narrativa, memória, ritual e celebração, um
elo entre prazer, arte e humanidade.


























