terça-feira, 23 de setembro de 2025

 

DO FOGO DO AMOR AO PRATO DA VIDA — 80 ANOS DE GONZAGUINHA EM ALTA TEMPERATURA

Nasci em uma serra cearense farta, onde os feijões vinham em muitas peles e perfumes — feijão macassa, feijão branco, feijão fradinho, feijão verde, feijão rosado, rajado, catador, carioca, mulatinho, jalo, bolinha, andu, etc... O preto, curioso e espesso, era guardado quase com cerimônia para os dias de feijoada, como quem reserva um vinho raro para quando o mundo estiver menos áspero.

Minha relação com o feijão de corda — esse personagem cearense de tantas encarnações — é, confesso, uma história de amor e desavenças. Quando verde, recém-tirado do campo, servido com nata espessa, bastante coentro e queijo coalho derretendo sem pressa, ele me seduz, me abraça, me devolve à infância com colheradas de ternura. Mas, seco... ah, seco ele me trai. Traz consigo um gosto terroso, áspero, quase mineral, que me afasta como um perfume em desacordo com a pele. Ainda que o feijão de corda seja um dos protagonistas do tradicional baião de dois — prato que tem nome de música e cheiro de festa —, se não estiver verde, nem torço o nariz: viro o rosto com leve mágoa.

Lá em casa também havia na mesa os ‘feijões grandes’, quase míticos, aqueles que meu pai — com seu humor cearense sem filtros — chama de ‘rasga-cu’, nome que diz tudo sem precisar de metáforas: causadores de gases profundos, expansivos, e nada civilizados. Mas hoje, peço que fiquem comigo até o final. Porque, entre memórias, gargalhadas e canções, vocês vão descobrir como um feijão pode se tornar algo absolutamente surpreendente. Um segredo de colher, de forno e de festa.

Naquela mesa da infância, o feijão era plural — variado como os humores da terra e os modos de amar. Anos depois, numa conversa com meu pai, me dei conta de que no Rio de Janeiro — onde ele viveu e se fez homem — o feijão preto era (e ainda é) rei cotidiano.

Ali, ele não era exceção: era regra, devoção, hábito, saudade no prato. Essa revelação me atravessou como uma melodia inesperada, daquelas que a gente pensa que nunca ouviu, mas canta junto já na segunda estrofe. E me dei conta, com um sorriso lento, que Gonzaguinha — esse outro filho do Rio — também tinha o preto no centro da sua mesa, do seu canto, da sua luta. E que talvez, como eu, ele também visse no feijão algo mais do que alimento: um símbolo do que somos, do que resistimos, do que celebramos.

Por um instante, feche os olhos.

Sinta o cheiro do feijão cozinhando em fogo brando.

Ele dança no vapor — dança como o corpo de um Brasil que pulsa mesmo na dor, que ama mesmo ferido, que canta porque é urgente viver. Gonzaguinha faria 80 anos ontem. Se estivesse entre nós, talvez risse alto ao ver a ousadia de transformar seu "pretão maravilha" em brownie. Mas, se tivesse tempo para provar, riria mais ainda, e com a boca cheia.

Esse ensaio é um convite à mesa — não apenas àquela feita de madeira, pratos e cadeiras. Mas à mesa da memória, do corpo, da música, da política e da doçura. É uma oração em voz alta, como ele cantou: "Quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda... é apenas o meu jeito de viver o que é amar."

A FOME QUE NÃO É SÓ DE COMIDA

Gonzaguinha não fazia música, fazia oferendas.

Seu cantar não era só nota — era mordida. Era dente no caroço da vida. Era colher raspando o fundo da panela. Um compositor que transformou a pobreza, a opressão, o afeto e a rebeldia em iguarias que hoje ainda alimentam.

E quantas formas tem a fome?

Há a fome de justiça que sangra em "Comportamento Geral", com o sabor irônico de um país que serve migalhas e exige gratidão: "Você merece, você merece... tudo vai bem, tudo legal. Cerveja, samba e amanhã, seu Zé, se acabarem teu carnaval?"

Há a fome do amor maduro, aquele que conhece o fel, o mel, o depois, como em Grito de Alerta: "Veja bem, nosso caso é uma porta entreaberta..."

E há também a fome de viver, que arde como pimenta malagueta na boca, queimando e rindo ao mesmo tempo, na pureza quase infantil de O Que É, O Que É?: "Viver... e não ter a vergonha de ser feliz..."

Gonzaguinha cozinhava palavras como quem tempera com a alma — e deixava queimar, se fosse preciso. Porque o sabor da vida não se aprende nos livros de receita, mas no improviso da sobrevivência. No Brasil real, onde a panela às vezes canta mais que o rádio.

QUANDO A MÚSICA TEM GOSTO

Há canções que nos confortam como um arroz com feijão recém-feito. Outras, nos acordam como café forte demais. Mas algumas são doces. Ardentes, sensuais, quase licorosas, como Começaria Tudo Outra Vez. Um bolero que se despe como amante desesperado, sem pudor, pedindo mais uma dança, mais um beijo, mais um copo: "A Cuba libre dá coragem em minhas mãos..."

O lirismo dessa canção não é apenas erótico — é existencial. É sobre recomeçar, mesmo sabendo tudo o que pode doer. É como amar de novo o mesmo prato que já queimou a boca. Mas amar, ainda assim.

Há músicas que soam como receitas de família: repetidas, sagradas, com seus tempos certos de fervura e silêncio. Para mim, nenhuma soa assim tão perfeitamente quanto Lindo Lago do Amor. É um prato para ser comido devagar, de olhos fechados, como se a primeira colherada dissolvesse o mundo em água morna. Há ali uma geografia úmida que lembra os fundos das casas rurais nordestinas, onde a água de lavar pratos escorre pro quintal e alimenta as ervas nascidas entre pedras.

"Ele tomou um banho d’água fresca / no lindo lago do amor" — e a imagem se mistura à lembrança de banhos de rio após a lida, quando o corpo cansado se deixava purificar. É uma música que hidrata. Que cozinha o peito em fogo brando, sem pressa, até amolecer tudo por dentro. E, no prato da memória, ela vem acompanhada de uma paz delicada — a que só o amor calmo, que não exige nada, sabe oferecer. Gonzaguinha não canta apenas o lago: ele serve o lago à mesa, nos convida a mergulhar com o paladar e os olhos, feito ritual de ternura.

E há outras canções que, como entradas ou sobremesas que desafiam o convencional, merecem ser lembradas pela potência de seus sabores. Semente do Amanhã tem gosto de esperança em casca dura: como uma castanha ainda verde, que só o tempo adoça. É alimento da fé, do “não se desespere não, nem pare de sonhar”, cozido no caldo da luta cotidiana.

Eu Apenas Queria Que Você Soubesse vem com o sabor agridoce das coisas que quase esquecemos, mas que resistem feito perfume antigo guardado entre roupas limpas. Ela fala de recomeço como quem fala de fermento natural — aquele que se guarda, se alimenta, se respeita, e que nos faz crescer por dentro.

Explode Coração é pimenta malagueta: vermelha, inevitável, intensa. Não há como ouvir e não arder. Rasga, perfuma, acorda. Em Explode Coração, há a libertação do corpo — que também é alimento, também é oferenda:

"Eu quero mais é me abrir... e que essa vida entre assim, como se fosse o sol desvirginando a madrugada..." Esse verso é uma receita de vida, com o calor de um forno aceso em noite chuvosa.

Já Grito de Alerta tem gosto de prato interrompido: aquele que começa doce, mas azeda no meio, entre silêncios e acidez. São canções que alimentam, mas não acomodam. Não se contentam com o trivial. Têm o poder de transformar nosso apetite — pela vida, pela verdade, pelo amor — em algo mais exigente, mais inteiro, mais humano.

FEIJÃO: O HINO COMESTÍVEL DA BRASILIDADE

E então chegamos ao feijão.

Ah, o feijão.

Gonzaguinha não teria escrito um tratado acadêmico sobre identidade brasileira — não precisava. Ele já havia escrito O Preto Que Satisfaz, onde o feijão é elevado à categoria de símbolo nacional. Mas não como abstração. Como algo que se cheira, se come, se festeja.

"Feijão, pretinho básico, sabor bem Brasil, que satisfaz dez entre dez brasileiros..."

O feijão de Gonzaguinha é mais que comida. É gente. É velho amigo do peito. É pai e mãe e filho sentados à mesa, dividindo silêncio, risada, lágrima e sustança.

Na música, ele diz que, à mesa do feijão, esquecemos os preconceitos. Porque o alimento é um lugar onde a democracia ainda sobrevive: cada colherada é um manifesto. Cada grão é resistência.

E se Gonzaguinha foi a voz de uma geração, o feijão é sua trilha sonora culinária.

DO FEIJÃO DA LUTA AO FEIJÃO DA SOBREMESA

Agora, imagine:

O mesmo grão que acalentou gerações em panelas de barro, agora transformado em brownie.

Sim, brownie. Uma dança delicada entre o doce e o amargo, entre o ancestral e o moderno, entre o que se espera e o que surpreende.

Transformar o feijão em sobremesa é um ato de amor e ousadia — como foram as músicas de Gonzaguinha. É subversão, mas também ternura. É dizer: não há limites para o que o povo pode criar com o que tem.

Assim como suas letras faziam da dor poesia, fazemos do feijão um doce.

Porque, como ele nos ensinou: "A atitude de recomeçar é todo dia, toda hora."

E se é para celebrar os 80 anos de Gonzaguinha, que seja com algo que ecoe sua alma. Algo bonito. Algo valente. Algo que abrace.

Algo com feijão.

Porque viver, no fundo, é isso:

É levar a panela ao fogo como quem acende uma esperança.

É cantar com a boca cheia, sem medo de parecer brega ou faminto.

É provar do feijão, mesmo aquele que a gente jurou não amar.

É saber que Gonzaguinha não morreu: ele segue ali — no caldo grosso das manhãs, na colher que acaricia o prato, no amor que insiste, mesmo depois do gosto amargo.

Viver é aceitar o gosto inesperado, permitir que a vida ferva devagar, até caramelizar as memórias.

É servir o coração em pedaços — quentes, doces, contraditórios.

Como quem canta de olhos fechados.

Como quem ama sem receita.

Como quem, mesmo depois de tudo, ainda acredita no fogo da transformação...

🍫BROWNIE DE FEIJÃO PRETO — O PRETÃO QUE DERRETE NA BOCA

Ingredientes:

300g de feijão cozido e sem o caldo (sem tempero algum)

30g de aveia em flocos finos

55g de óleo vegetal

15g de cacau em pó 100%

40g de achocolatado (tipo Nescau ou Toddy)

160g de açúcar mascavo

1 ovo

1 colher de sopa de vinagre de maçã (se não tiver use apenas vinagre de álcool)

1/2 colher de sopa de bicarbonato de sódio

50g gramas de chocolate meio amargo picado para a massa

150g de chocolate meio amargo picado decorar

100g de castanha de caju torrada picada (opcional, mas faz diferença)

Obs.: Use aveia em flocos bem finos e bata bem!!!

Preparo: importante ressaltar que para essa receita, cozinhe o feijão preto apenas com água até que esteja macio. Depois de frio, escorra a água do cozimento e lave bem para ficar apenas com os grãos. No processador, bata o feijão cozido escorrido com o açúcar, o ovo, o óleo de coco, o extrato de baunilha e bata por três minutos. Junte o cacau, o achocolatado, a aveia em flocos finos, o bicarbonato e uma colher de vinagre e bata por mais três minutos. Acrescente 50 gramas do chocolate em barra quebrado e bata por mais um minuto. Junte as castanhas picadas, misture com uma colher e despeje a mistura numa forma pequena untada com manteiga e forrada com papel manteiga. Espalhem bem a massa, coloque as 100g restantes do chocolate picado distribuído por cima da massa e leve para assar por 30 minutos a 180 graus. Deixe esfriar, retire da forma e sirva como desejar.

Sirva com café forte, uma lágrima nos olhos, e um disco de Gonzaguinha tocando baixo ao fundo.


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