DO FOGO DO AMOR AO PRATO DA
VIDA — 80 ANOS DE GONZAGUINHA EM ALTA TEMPERATURA
Nasci em uma serra cearense
farta, onde os feijões vinham em muitas peles e perfumes — feijão macassa,
feijão branco, feijão fradinho, feijão verde, feijão rosado, rajado, catador,
carioca, mulatinho, jalo, bolinha, andu, etc... O preto, curioso e espesso, era
guardado quase com cerimônia para os dias de feijoada, como quem reserva um
vinho raro para quando o mundo estiver menos áspero.
Minha relação com o feijão
de corda — esse personagem cearense de tantas encarnações — é, confesso, uma
história de amor e desavenças. Quando verde, recém-tirado do campo, servido com
nata espessa, bastante coentro e queijo coalho derretendo sem pressa, ele me
seduz, me abraça, me devolve à infância com colheradas de ternura. Mas, seco...
ah, seco ele me trai. Traz consigo um gosto terroso, áspero, quase mineral, que
me afasta como um perfume em desacordo com a pele. Ainda que o feijão de corda
seja um dos protagonistas do tradicional baião de dois — prato que tem nome de
música e cheiro de festa —, se não estiver verde, nem torço o nariz: viro o
rosto com leve mágoa.
Lá em casa também havia na
mesa os ‘feijões grandes’, quase míticos, aqueles que meu pai — com seu humor
cearense sem filtros — chama de ‘rasga-cu’, nome que diz tudo sem precisar de
metáforas: causadores de gases profundos, expansivos, e nada civilizados. Mas
hoje, peço que fiquem comigo até o final. Porque, entre memórias, gargalhadas e
canções, vocês vão descobrir como um feijão pode se tornar algo absolutamente
surpreendente. Um segredo de colher, de forno e de festa.
Naquela mesa da infância, o
feijão era plural — variado como os humores da terra e os modos de amar. Anos
depois, numa conversa com meu pai, me dei conta de que no Rio de Janeiro — onde
ele viveu e se fez homem — o feijão preto era (e ainda é) rei cotidiano.
Ali, ele não era exceção:
era regra, devoção, hábito, saudade no prato. Essa revelação me atravessou como
uma melodia inesperada, daquelas que a gente pensa que nunca ouviu, mas canta
junto já na segunda estrofe. E me dei conta, com um sorriso lento, que
Gonzaguinha — esse outro filho do Rio — também tinha o preto no centro da sua
mesa, do seu canto, da sua luta. E que talvez, como eu, ele também visse no
feijão algo mais do que alimento: um símbolo do que somos, do que resistimos,
do que celebramos.
Por um instante, feche os
olhos.
Sinta o cheiro do feijão
cozinhando em fogo brando.
Ele dança no vapor — dança
como o corpo de um Brasil que pulsa mesmo na dor, que ama mesmo ferido, que
canta porque é urgente viver. Gonzaguinha faria 80 anos ontem. Se estivesse
entre nós, talvez risse alto ao ver a ousadia de transformar seu "pretão
maravilha" em brownie. Mas, se tivesse tempo para provar, riria mais
ainda, e com a boca cheia.
Esse ensaio é um convite à
mesa — não apenas àquela feita de madeira, pratos e cadeiras. Mas à mesa da
memória, do corpo, da música, da política e da doçura. É uma oração em voz
alta, como ele cantou: "Quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda...
é apenas o meu jeito de viver o que é amar."
A FOME QUE NÃO É SÓ DE
COMIDA
Gonzaguinha não fazia
música, fazia oferendas.
Seu cantar não era só nota —
era mordida. Era dente no caroço da vida. Era colher raspando o fundo da
panela. Um compositor que transformou a pobreza, a opressão, o afeto e a
rebeldia em iguarias que hoje ainda alimentam.
E quantas formas tem a fome?
Há a fome de justiça que
sangra em "Comportamento Geral", com o sabor irônico de um país que
serve migalhas e exige gratidão: "Você merece, você merece... tudo vai
bem, tudo legal. Cerveja, samba e amanhã, seu Zé, se acabarem teu carnaval?"
Há a fome do amor maduro,
aquele que conhece o fel, o mel, o depois, como em Grito de Alerta: "Veja
bem, nosso caso é uma porta entreaberta..."
E há também a fome de viver,
que arde como pimenta malagueta na boca, queimando e rindo ao mesmo tempo, na
pureza quase infantil de O Que É, O Que É?: "Viver... e não ter a vergonha
de ser feliz..."
Gonzaguinha cozinhava
palavras como quem tempera com a alma — e deixava queimar, se fosse preciso.
Porque o sabor da vida não se aprende nos livros de receita, mas no improviso
da sobrevivência. No Brasil real, onde a panela às vezes canta mais que o rádio.
QUANDO A MÚSICA TEM GOSTO
Há canções que nos confortam
como um arroz com feijão recém-feito. Outras, nos acordam como café forte
demais. Mas algumas são doces. Ardentes, sensuais, quase licorosas, como
Começaria Tudo Outra Vez. Um bolero que se despe como amante desesperado, sem pudor,
pedindo mais uma dança, mais um beijo, mais um copo: "A Cuba libre dá
coragem em minhas mãos..."
O lirismo dessa canção não é
apenas erótico — é existencial. É sobre recomeçar, mesmo sabendo tudo o que
pode doer. É como amar de novo o mesmo prato que já queimou a boca. Mas amar,
ainda assim.
Há músicas que soam como
receitas de família: repetidas, sagradas, com seus tempos certos de fervura e
silêncio. Para mim, nenhuma soa assim tão perfeitamente quanto Lindo Lago do
Amor. É um prato para ser comido devagar, de olhos fechados, como se a primeira
colherada dissolvesse o mundo em água morna. Há ali uma geografia úmida que
lembra os fundos das casas rurais nordestinas, onde a água de lavar pratos
escorre pro quintal e alimenta as ervas nascidas entre pedras.
"Ele tomou um banho
d’água fresca / no lindo lago do amor" — e a imagem se mistura à lembrança
de banhos de rio após a lida, quando o corpo cansado se deixava purificar. É
uma música que hidrata. Que cozinha o peito em fogo brando, sem pressa, até
amolecer tudo por dentro. E, no prato da memória, ela vem acompanhada de uma
paz delicada — a que só o amor calmo, que não exige nada, sabe oferecer.
Gonzaguinha não canta apenas o lago: ele serve o lago à mesa, nos convida a
mergulhar com o paladar e os olhos, feito ritual de ternura.
E há outras canções que,
como entradas ou sobremesas que desafiam o convencional, merecem ser lembradas
pela potência de seus sabores. Semente do Amanhã tem gosto de esperança em
casca dura: como uma castanha ainda verde, que só o tempo adoça. É alimento da
fé, do “não se desespere não, nem pare de sonhar”, cozido no caldo da luta
cotidiana.
Eu Apenas Queria Que Você
Soubesse vem com o sabor agridoce das coisas que quase esquecemos, mas que
resistem feito perfume antigo guardado entre roupas limpas. Ela fala de
recomeço como quem fala de fermento natural — aquele que se guarda, se
alimenta, se respeita, e que nos faz crescer por dentro.
Explode Coração é pimenta
malagueta: vermelha, inevitável, intensa. Não há como ouvir e não arder. Rasga,
perfuma, acorda. Em Explode Coração, há a libertação do corpo — que também é
alimento, também é oferenda:
"Eu quero mais é me
abrir... e que essa vida entre assim, como se fosse o sol desvirginando a
madrugada..." Esse verso é uma receita de vida, com o calor de um forno
aceso em noite chuvosa.
Já Grito de Alerta tem gosto
de prato interrompido: aquele que começa doce, mas azeda no meio, entre
silêncios e acidez. São canções que alimentam, mas não acomodam. Não se
contentam com o trivial. Têm o poder de transformar nosso apetite — pela vida,
pela verdade, pelo amor — em algo mais exigente, mais inteiro, mais humano.
FEIJÃO: O HINO COMESTÍVEL DA
BRASILIDADE
E então chegamos ao feijão.
Ah, o feijão.
Gonzaguinha não teria
escrito um tratado acadêmico sobre identidade brasileira — não precisava. Ele
já havia escrito O Preto Que Satisfaz, onde o feijão é elevado à categoria de
símbolo nacional. Mas não como abstração. Como algo que se cheira, se come, se
festeja.
"Feijão, pretinho
básico, sabor bem Brasil, que satisfaz dez entre dez brasileiros..."
O feijão de Gonzaguinha é
mais que comida. É gente. É velho amigo do peito. É pai e mãe e filho sentados
à mesa, dividindo silêncio, risada, lágrima e sustança.
Na música, ele diz que, à
mesa do feijão, esquecemos os preconceitos. Porque o alimento é um lugar onde a
democracia ainda sobrevive: cada colherada é um manifesto. Cada grão é
resistência.
E se Gonzaguinha foi a voz
de uma geração, o feijão é sua trilha sonora culinária.
DO FEIJÃO DA LUTA AO FEIJÃO
DA SOBREMESA
Agora, imagine:
O mesmo grão que acalentou
gerações em panelas de barro, agora transformado em brownie.
Sim, brownie. Uma dança
delicada entre o doce e o amargo, entre o ancestral e o moderno, entre o que se
espera e o que surpreende.
Transformar o feijão em
sobremesa é um ato de amor e ousadia — como foram as músicas de Gonzaguinha. É
subversão, mas também ternura. É dizer: não há limites para o que o povo pode
criar com o que tem.
Assim como suas letras
faziam da dor poesia, fazemos do feijão um doce.
Porque, como ele nos
ensinou: "A atitude de recomeçar é todo dia, toda hora."
E se é para celebrar os 80
anos de Gonzaguinha, que seja com algo que ecoe sua alma. Algo bonito. Algo
valente. Algo que abrace.
Algo com feijão.
Porque viver, no fundo, é
isso:
É levar a panela ao fogo
como quem acende uma esperança.
É cantar com a boca cheia,
sem medo de parecer brega ou faminto.
É provar do feijão, mesmo
aquele que a gente jurou não amar.
É saber que Gonzaguinha não
morreu: ele segue ali — no caldo grosso das manhãs, na colher que acaricia o
prato, no amor que insiste, mesmo depois do gosto amargo.
Viver é aceitar o gosto
inesperado, permitir que a vida ferva devagar, até caramelizar as memórias.
É servir o coração em
pedaços — quentes, doces, contraditórios.
Como quem canta de olhos
fechados.
Como quem ama sem receita.
Como quem, mesmo depois de
tudo, ainda acredita no fogo da transformação...
BROWNIE DE FEIJÃO PRETO — O PRETÃO QUE
DERRETE NA BOCA
300g de feijão cozido e sem o caldo (sem
tempero algum)
30g de aveia em flocos finos
55g de óleo vegetal
15g de cacau em pó 100%
40g de achocolatado (tipo Nescau ou
Toddy)
160g de açúcar mascavo
1 ovo
1 colher de sopa de vinagre de maçã (se
não tiver use apenas vinagre de álcool)
1/2 colher de sopa de bicarbonato de
sódio
50g gramas de chocolate meio amargo
picado para a massa
150g de chocolate meio amargo picado
decorar
100g de castanha de caju torrada picada
(opcional, mas faz diferença)
Obs.: Use aveia em flocos bem finos e
bata bem!!!
Preparo: importante ressaltar que para
essa receita, cozinhe o feijão preto apenas com água até que esteja macio.
Depois de frio, escorra a água do cozimento e lave bem para ficar apenas com os
grãos. No processador, bata o feijão cozido escorrido com o açúcar, o ovo, o
óleo de coco, o extrato de baunilha e bata por três minutos. Junte o cacau, o
achocolatado, a aveia em flocos finos, o bicarbonato e uma colher de vinagre e
bata por mais três minutos. Acrescente 50 gramas do chocolate em barra quebrado
e bata por mais um minuto. Junte as castanhas picadas, misture com uma colher e
despeje a mistura numa forma pequena untada com manteiga e forrada com papel
manteiga. Espalhem bem a massa, coloque as 100g restantes do chocolate picado
distribuído por cima da massa e leve para assar por 30 minutos a 180 graus.
Deixe esfriar, retire da forma e sirva como desejar.
Sirva com café forte, uma lágrima nos
olhos, e um disco de Gonzaguinha tocando baixo ao fundo.
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