Há mulheres que não
pertencem apenas ao cinema: pertencem ao mito. Claudia Cardinale foi uma delas.
Carregava em si aquela ambiguidade mediterrânea: era o sul árabe que fervilha
de especiarias e, ao mesmo tempo, a península itálica, com sua mesa coberta de
massas, azeite e vinhos rubros. Quem a via, acreditava na fantasia de
celulóide; quem a escutava, sabia que havia nela uma doçura irônica, uma fome
de vida que ia além dos refletores.
A notícia da sua partida
hoje reabre as imagens que ela deixou — Angelica em Il Gattopardo, a menina dos
sonhos em 8½, a mulher feita de pó e pólvora em Once Upon a Time in the West —
e lembra que a vida das grandes atrizes tem sempre um sabor próprio, um tempero
que não cabe em críticas nem em cartazes. (Morreu aos 87 anos.)
Claudia nasceu entre o sal e
o sol do Mediterrâneo: tunisina de origem, italiana por destino, francesa por
laços. Estrela de uma era dourada em que as telas europeias se curvavam a vozes
e a feições que sabiam conjugar desejo e dignidade, ela dividiu tempo e
prestígio com outras deusas do cinema — Sophia Loren, Brigitte Bardot, Gina
Lollobrigida — e aceitou papéis que a fizeram símbolo e mistério. Seus melhores
papéis se inscreveram na arquitetura lenta de Visconti e no delírio polifônico
de Fellini, e isso a colocou no cânone do que chamamos cinema europeu dos anos
1960.
É quase íntimo pensar que,
por baixo da pellicula, havia uma mulher que também se movia por prazeres
simples e sensoriais: Martinis bem secos antes do jantar, um caviar para
começar, mariscos e um bife florentino para prolongar a noite — e vinhos
tintos, sempre encorpados. Esse detalhe, citado em perfis e entrevistas, nos
aproxima da ideia de um paladar sofisticado e direto ao mesmo tempo: luxo que
não se envergonha do básico.
A receita que hoje chamamos,
com carinho e certo arrojo, de Spaghetti alla Claudia Cardinale está escrita
num pedaço de papel italiano pautado, à tinta azul — caligrafia que parece ser
de uma tia, de uma irmã, de uma mulher que colecionava recortes de revista e
memórias de celebridades. A folha aparece amarrotada entre arquivos de família:
é a história íntima de como a fama chega às cozinhas comuns, por caminhos de
fofoca, de recorte e de afeto.
Não sabemos — e não é
necessário saber com certeza — se a receita saiu da boca de Claudia ou da
coluna de uma revista; sabemos, isso sim, que ela viajou nas páginas e nas mãos
até encontrar a panela certa, a manteiga perfeita, o presunto que derrete. (Uma
versão dessa trajetória e da receita circula em blogs culinários que
recuperaram a anedota familiar — o arquivo de receita da mãe, a tia Gilda que
copiava as páginas).
Permita-me, então, cozinhar
essa história. A Itália doméstica — aquela que mais nos interessa quando
falamos de alimentos e de memória — é feita de simplicidade elevada: cacio e
pepe, aglio e olio, pasta burro e parmigiano.
O Spaghetti alla Claudia
encaixa-se nessa liturgia: poucos ingredientes, mão leve, resultado que parece
inesperadamente opulento. A manteiga, ao invés do azeite, dá um hálito de sala
aquecida; o presunto cozido (prosciutto cotto) traz sal e maciez, em contraponto
com o parmesão, que chove sobre tudo como neve antiga; as ervas frescas lembram
que, mesmo entre as estrelas, é a frugalidade que sustenta o sabor.
Quando se cozinha um prato
assim para homenagear uma atriz do calibre de Cardinale, não se trata apenas de
imitar — trata-se de recuperar uma cena: ela, ao fundo, rindo; uma taça sendo
preenchida; o fio de massa brilhando sob a luz quente da cozinha. (Há
fotografias antigas que a mostram com garfo e prato, imagens que viraram
iconografia de uma era; a foto em que ela parece servir ou provar um spaghetti
tornou-se praticamente um emblema dessa ligação entre atriz e alimento).
Sentir a mão dela na receita
é acreditar num cinema comestível: o gesto do cortar o presunto em juliennes é
praticamente um close; a manteiga que crepita é o som da trilha; a concha da
água de cozedura traz a suspensão entre cena e cena. E o vinho — sempre o vinho
encorpado, que ela preferia — é o que transforma o ato de comer em rito:
brinda, apaga a câmera, e devolve a plateia ao silêncio feliz do estômago.
Abaixo segue a receita em
português, fiel ao modo tradicional descrito no arquivo que circulou pela
família e em reproduções contemporâneas — uma receita que é, simultaneamente,
objeto de memória e convite à mesa.
Feito assim, o prato
funciona como epitáfio comestível: breve, ardente, memorável. É uma homenagem
que não deposita a atriz numa vitrine inatingível; antes, coloca-a à mesa —
onde sempre esteve, nos instantes quietos entre um take e outro, entre um copo e
outro, entre um riso e um arfar de fronha.
Que se cozinhe este
spaghetti com a mesma insolência com que Claudia ocupava a cena: sem pedido de
permissão, mas com profunda reverência. Que se coma devagar, com as mãos que
lembram aplausos, e que se reparta; porque a melhor maneira de honrar uma vida
de cinema é transformá-la em alimento que prossegue em outros corpos.
Comer este spaghetti é
aceitar que a vida é breve, mas cheia de momentos voluptuosos. É saborear
Claudia Cardinale não como estrela distante, mas como mulher que soube fazer da
simplicidade um luxo.
Ao final, resta apenas uma
taça de vinho tinto encorpado e a lembrança de que — como no cinema — o prato
se acaba, mas o mito permanece.
Spaghetti alla Claudia Cardinale
(rende 4 porções)
Água e sal para cozinhar a massa
100 g de manteiga
100 g de presunto cozido (prosciutto
cotto), fatiado fino e cortado em julienne (tiras finas) — se não encontrar,
use um presunto de boa qualidade do açougue/deli
Um punhado de salsa fresca (aprox. 1/4
de xícara) — picada finamente
5–6 folhas de manjericão fresco —
rasgadas ou picadas grosseiramente
500 g de spaghetti
Parmigiano-Reggiano ralado na hora, à
vontade para cobrir e acompanhar
Preparo: Leve uma panela grande com água
ao fogo até ferver. Tempere generosamente com sal. Enquanto a água esquenta,
prepare o molho: em uma frigideira larga, em fogo baixo, derreta a manteiga até
que comece a borbulhar levemente e cheire a noz. Acrescente o presunto cortado
e as ervas. Desligue o fogo e tampe para manter aquecido. Cozinhe o spaghetti
conforme as instruções do fabricante, porém deixando-o bem al dente
(ligeiramente mais firme do que o tempo indicado). Quando a massa estiver quase
no ponto, acenda novamente o fogo sob a frigideira e, com um pegador de massa
ou um garfo de macarrão, transfira o spaghetti direto para a frigideira. Junte
uma concha da água do cozimento — esse líquido é ouro: emulsiona a manteiga e
dá brilho à massa. Misture vigorosamente até que os fios fiquem sedosos e bem
envolvidos pelo molho. Transfira para uma travessa aquecida, polvilhe
generosamente com Parmigiano, mexa mais uma vez e sirva imediatamente. Ainda à
mesa, ofereça mais queijo e uma taça de vinho tinto encorpado.
Dica sensorial: use manteiga de boa qualidade e um
presunto com um leve toque defumado, se possível — o contraste entre a
untuosidade da manteiga e a delicadeza salgada do presunto é o que transforma a
frugalidade em sedução.
/
Nenhum comentário:
Postar um comentário