terça-feira, 23 de setembro de 2025

SPAGHETTI ALLA CLAUDIA CARDINALE — UMA RECEITA PARA A ETERNIDADE

 

Há mulheres que não pertencem apenas ao cinema: pertencem ao mito. Claudia Cardinale foi uma delas. Carregava em si aquela ambiguidade mediterrânea: era o sul árabe que fervilha de especiarias e, ao mesmo tempo, a península itálica, com sua mesa coberta de massas, azeite e vinhos rubros. Quem a via, acreditava na fantasia de celulóide; quem a escutava, sabia que havia nela uma doçura irônica, uma fome de vida que ia além dos refletores.

A notícia da sua partida hoje reabre as imagens que ela deixou — Angelica em Il Gattopardo, a menina dos sonhos em 8½, a mulher feita de pó e pólvora em Once Upon a Time in the West — e lembra que a vida das grandes atrizes tem sempre um sabor próprio, um tempero que não cabe em críticas nem em cartazes. (Morreu aos 87 anos.)

Claudia nasceu entre o sal e o sol do Mediterrâneo: tunisina de origem, italiana por destino, francesa por laços. Estrela de uma era dourada em que as telas europeias se curvavam a vozes e a feições que sabiam conjugar desejo e dignidade, ela dividiu tempo e prestígio com outras deusas do cinema — Sophia Loren, Brigitte Bardot, Gina Lollobrigida — e aceitou papéis que a fizeram símbolo e mistério. Seus melhores papéis se inscreveram na arquitetura lenta de Visconti e no delírio polifônico de Fellini, e isso a colocou no cânone do que chamamos cinema europeu dos anos 1960.

É quase íntimo pensar que, por baixo da pellicula, havia uma mulher que também se movia por prazeres simples e sensoriais: Martinis bem secos antes do jantar, um caviar para começar, mariscos e um bife florentino para prolongar a noite — e vinhos tintos, sempre encorpados. Esse detalhe, citado em perfis e entrevistas, nos aproxima da ideia de um paladar sofisticado e direto ao mesmo tempo: luxo que não se envergonha do básico.

A receita que hoje chamamos, com carinho e certo arrojo, de Spaghetti alla Claudia Cardinale está escrita num pedaço de papel italiano pautado, à tinta azul — caligrafia que parece ser de uma tia, de uma irmã, de uma mulher que colecionava recortes de revista e memórias de celebridades. A folha aparece amarrotada entre arquivos de família: é a história íntima de como a fama chega às cozinhas comuns, por caminhos de fofoca, de recorte e de afeto.

Não sabemos — e não é necessário saber com certeza — se a receita saiu da boca de Claudia ou da coluna de uma revista; sabemos, isso sim, que ela viajou nas páginas e nas mãos até encontrar a panela certa, a manteiga perfeita, o presunto que derrete. (Uma versão dessa trajetória e da receita circula em blogs culinários que recuperaram a anedota familiar — o arquivo de receita da mãe, a tia Gilda que copiava as páginas).

Permita-me, então, cozinhar essa história. A Itália doméstica — aquela que mais nos interessa quando falamos de alimentos e de memória — é feita de simplicidade elevada: cacio e pepe, aglio e olio, pasta burro e parmigiano.

O Spaghetti alla Claudia encaixa-se nessa liturgia: poucos ingredientes, mão leve, resultado que parece inesperadamente opulento. A manteiga, ao invés do azeite, dá um hálito de sala aquecida; o presunto cozido (prosciutto cotto) traz sal e maciez, em contraponto com o parmesão, que chove sobre tudo como neve antiga; as ervas frescas lembram que, mesmo entre as estrelas, é a frugalidade que sustenta o sabor.

Quando se cozinha um prato assim para homenagear uma atriz do calibre de Cardinale, não se trata apenas de imitar — trata-se de recuperar uma cena: ela, ao fundo, rindo; uma taça sendo preenchida; o fio de massa brilhando sob a luz quente da cozinha. (Há fotografias antigas que a mostram com garfo e prato, imagens que viraram iconografia de uma era; a foto em que ela parece servir ou provar um spaghetti tornou-se praticamente um emblema dessa ligação entre atriz e alimento).

Sentir a mão dela na receita é acreditar num cinema comestível: o gesto do cortar o presunto em juliennes é praticamente um close; a manteiga que crepita é o som da trilha; a concha da água de cozedura traz a suspensão entre cena e cena. E o vinho — sempre o vinho encorpado, que ela preferia — é o que transforma o ato de comer em rito: brinda, apaga a câmera, e devolve a plateia ao silêncio feliz do estômago.

Abaixo segue a receita em português, fiel ao modo tradicional descrito no arquivo que circulou pela família e em reproduções contemporâneas — uma receita que é, simultaneamente, objeto de memória e convite à mesa.

Feito assim, o prato funciona como epitáfio comestível: breve, ardente, memorável. É uma homenagem que não deposita a atriz numa vitrine inatingível; antes, coloca-a à mesa — onde sempre esteve, nos instantes quietos entre um take e outro, entre um copo e outro, entre um riso e um arfar de fronha.

Que se cozinhe este spaghetti com a mesma insolência com que Claudia ocupava a cena: sem pedido de permissão, mas com profunda reverência. Que se coma devagar, com as mãos que lembram aplausos, e que se reparta; porque a melhor maneira de honrar uma vida de cinema é transformá-la em alimento que prossegue em outros corpos.

Comer este spaghetti é aceitar que a vida é breve, mas cheia de momentos voluptuosos. É saborear Claudia Cardinale não como estrela distante, mas como mulher que soube fazer da simplicidade um luxo.

Ao final, resta apenas uma taça de vinho tinto encorpado e a lembrança de que — como no cinema — o prato se acaba, mas o mito permanece.

 

Spaghetti alla Claudia Cardinale

(rende 4 porções)

Ingredientes

Água e sal para cozinhar a massa

100 g de manteiga

100 g de presunto cozido (prosciutto cotto), fatiado fino e cortado em julienne (tiras finas) — se não encontrar, use um presunto de boa qualidade do açougue/deli

Um punhado de salsa fresca (aprox. 1/4 de xícara) — picada finamente

5–6 folhas de manjericão fresco — rasgadas ou picadas grosseiramente

500 g de spaghetti

Parmigiano-Reggiano ralado na hora, à vontade para cobrir e acompanhar

Preparo: Leve uma panela grande com água ao fogo até ferver. Tempere generosamente com sal. Enquanto a água esquenta, prepare o molho: em uma frigideira larga, em fogo baixo, derreta a manteiga até que comece a borbulhar levemente e cheire a noz. Acrescente o presunto cortado e as ervas. Desligue o fogo e tampe para manter aquecido. Cozinhe o spaghetti conforme as instruções do fabricante, porém deixando-o bem al dente (ligeiramente mais firme do que o tempo indicado). Quando a massa estiver quase no ponto, acenda novamente o fogo sob a frigideira e, com um pegador de massa ou um garfo de macarrão, transfira o spaghetti direto para a frigideira. Junte uma concha da água do cozimento — esse líquido é ouro: emulsiona a manteiga e dá brilho à massa. Misture vigorosamente até que os fios fiquem sedosos e bem envolvidos pelo molho. Transfira para uma travessa aquecida, polvilhe generosamente com Parmigiano, mexa mais uma vez e sirva imediatamente. Ainda à mesa, ofereça mais queijo e uma taça de vinho tinto encorpado.

Dica sensorial: use manteiga de boa qualidade e um presunto com um leve toque defumado, se possível — o contraste entre a untuosidade da manteiga e a delicadeza salgada do presunto é o que transforma a frugalidade em sedução.

/

Nenhum comentário:

Postar um comentário