Há vozes que não se calam.
Mesmo quando o corpo parte, mesmo quando o palco se fecha, mesmo quando a
respiração que soprava a canção cessa — há vozes que permanecem pairando sobre
nós como incenso. Há vozes que não obedecem ao tempo. E nisso, há cantoras que
não precisam da eternidade porque já nasceram eternas. Gal Costa é uma dessas.
No dia em que completaria
oitenta anos, descubro-me em saudade: a falta de alguém que nunca conheci de
perto, mas que me atravessou pela boca e pelo ouvido, como perfume de dendê
invadindo a casa antes mesmo da panela ferver.
Desde que comecei a
organizar minhas listas de músicas no celular, o danadinho insiste em me dizer
quais são as mais ouvidas. Gal está sempre lá. É como se ela risse de mim, como
se dissesse: "você não consegue se livrar de mim, menino." E
não consigo. Foi com ela que descobri que se pode amar uma versão de música
como quem ama uma fruta madura: primeiro pelo estranhamento da casca, depois
pelo vício doce da polpa.
Ouvi-a primeiro na
estranheza de Dando um rolê — estranheza que me atravessou como quem
prova, pela primeira vez, um prato picante, sem saber se gosta, mas fascinado
pela intensidade. Depois veio a fartura alegre de Festa no Interior, que
me faz sentir ao mesmo tempo o cheiro do milho verde assando, o balançar das
bandeirinhas coloridas, o calor das fogueiras de São João — com a vibração e o
colorido de um carnaval onde cabem o amor inteiro e o sol do Nordeste, dentro
de um refrão.
Quando Gal cantava Vapor
Barato, não era apenas uma canção: era uma travessia. Ela cozinhava o
desalento como quem faz redução de vinho tinto: em fogo baixo, até restar só o
perfume escuro e espesso da saudade. Eu a ouvia como quem prova um vinho forte,
que primeiro arde e depois aquece. Aquelas calças vermelhas, o casaco de
general, os anéis que brilhavam como especiarias raras — tudo era mais que
imagem: era sabor de rebeldia, era cheiro de rua molhada depois da chuva, era o
corpo inteiro atravessado por um cansaço que não se rende.
Na sua voz, o desalento se
tornava beleza: a exaustão virava dança, a obsessão era temperada em melodia
até se fazer banquete.
Quando penso em Gal, penso
na boca. Não só por vaidade estética — mas porque ali morava um feitiço. Era a
boca do gato de Alice, sim: que sorria antes da fala, e permanecia mesmo depois
do silêncio. Era também uma boca de Iemanjá, feita de mar e magia, que nos
oferecia frutas que ninguém sabia nomear. Fruta gogoia, dizia ela. Seria um
nome ou um aviso? Um fruto proibido ou uma oferenda? Seja como for, era
vermelho. Vermelho como a urgência de um beijo, como o fogo da panela de barro,
como o sangue que corre depois de uma saudade. Gal não falava — ela mordia o
mundo com doçura.
Gal, com seu cristal indomável, que era a voz,
transformava o abandono em erotismo, e o adeus em promessa de retorno.
Escutá-la era como entrar num navio antigo sem saber o destino, confiando
apenas no balanço do mar — e aceitando, grato, que às vezes é preciso perder-se
para um dia voltar.
Quando criança, sempre que
eu ouvia Gal cantando Azul, achava que havia nela alguma espécie de
desajuste secreto. Como se aquele “não sei se vem de Deus / do céu ficar azul”
fosse uma confissão de quem não se encaixava no mundo. E, na minha cabeça
infantil, Gal era solar demais para duvidar do céu. Ao mesmo tempo, parecia
anunciar que a beleza poderia se quebrar.
Mais tarde, entendi que era
só o jeito dela de cantar o mistério — e que talvez, como ela mesma dizia na
música, fosse preciso assumir o risco de “anoitecer” para poder voltar a ser
“amarelinho”, queimando mansinho.
Em Azul, Gal parecia
destilar a própria luz do dia em sua voz. Havia algo de oceânico no modo como
ela cantava, como se a maresia entrasse pela janela e se assentasse na pele,
deixando um rastro de frescor e desejo. O azul, na boca dela, não era apenas
cor — era tempero secreto, aroma marinho que se misturava ao amarelinho do sol
nascente, queimando mansinho, cedinho, como o cheiro de pão recém-assado ou de
fruta cortada ao amanhecer. Escutá-la era sentir o mundo inteiro se tingir de
azulzinho, como se o amor tivesse gosto de água doce e sal ao mesmo tempo.
Gal transformava Djavan em
alquimia: fazia do céu um prato de cores, do mar uma taça, e da vida um
banquete onde a simplicidade — dizer que o amor é “azulzinho” — tornava-se
revelação absoluta.
Mas foi em Baby que
ela me embalou de forma íntima. A canção parecia um manual de vida ao mesmo
tempo simples e profundo: tome um sorvete, aprenda inglês, veja o mundo,
veja-me. Era como se a doçura de uma sobremesa gelada se misturasse com a lição
da existência. Ali, ela se tornava conselheira, amante, amiga.
Não me atrevo a “Caetanear”
com a leveza que ele tem, nem a “Djavanear” com o sol que sua voz derrama sobre
as palavras. Não domino o mistério que só eles vestem com naturalidade, nem sou
dono das cores que eles pintam nas melodias. Mas, para você, Gal, ouso tecer
palavras — mesmo que simples, ainda que imperfeitas — como quem borda um véu
delicado para cobrir a ausência e dar forma ao silêncio. Não é canção que
escrevo, mas um sussurro em forma de carta, um convite para que você, no seu
eterno azul, me escute. Porque falar contigo é atravessar o tempo, é dançar na
margem do que fica, é cantar a saudade com a única voz que me resta: a do
coração.
🌎
Minha carta à Gal
Baby,
se você pudesse voltar um
instante, eu lhe contaria o que aconteceu depois que você partiu.
Você precisa saber que o
Brasil ainda dança, mesmo quando chora. Que as ruas continuam cheias de cores, mas
o país se despedaça em discursos — e mesmo assim, ainda há quem plante
ipês-amarelos para acreditar na primavera.
Você precisa saber que o
mundo correu mais rápido, que inventaram novas formas de amar e odiar através
de telas luminosas que não dormem nunca. Até criaram modos de reencontrar os
mortos em vozes gravadas — e isso me assusta.
Baby, você precisa
experimentar café com leite de aveia —
só pra lembrar como o leite da vaca, profano e denso, ainda faz diferença. Precisa
ver a Marginal de patinete, ouvir o barulho das máquinas que escutam a gente mesmo
quando a gente não diz nada.
Baby, estão me dizendo que é
preciso reaprender a amar
sem recibo,
sem Wi-Fi,
sem performance.
Já pensou?
A beleza agora vem com
hashtag, há poesia nos memes, e a Carolina agora virou empreendedora: vende
marmita fitness e faz reels com receitas em 15 segundos.
Você não sabe, mas criaram
um app pra meditar e outro pra lembrar de respirar. A Bahia segue lavando
escadarias, mas agora com drone filmando de cima, e cada moqueca servida em
barro ainda é uma oferenda pra sua voz.
Baby, baby, você partiu, mas
o mundo, teimoso, segue lhe citando em silêncio.
Quis parar por aqui. Mas
você sussurrou: 'Menino, continua, me conta mais... Eu mesmo aprendi a
viver dizendo seu nome baixinho, como quem aprende inglês numa música dos
Beatles, ou como quem aprende amor ouvindo você cantar Coração Vagabundo.
E no fim, Gal, eu só queria
que soubesse: ainda está tudo azul comigo,
mesmo que às vezes o azul seja melancolia. E ainda está tudo em paz contigo,
porque a sua paz é o fogo eterno da sua voz.
Baby,
você ainda é tudo isso, mesmo
que o mundo tenha virado stories de 24 horas.
E no fundo, entre um like e
uma solidão digital, todo mundo ainda quer ouvir: “Baby, eu sei que é
cafona, mas I love you.”
Depois que escrevi isso,
senti um sopro no ouvido. Era como se Gal me dissesse: "Menino, o azul,
mesmo triste, ainda é céu."
Fiquei comovido. Mas lembrei
do início de Vaca Profana: “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda
mais minha risada.” Por isso, eu deveria
sentir tudo isso sem me colocar numa caixa, nem numa vitrine, nem na medida
estreita dos caretas.
E não posso sair sem falar
do êxtase maduro de Sexo e Luz. Gal me arrebatou outra vez. Sua voz,
cristalina e indomável, era como vinho branco servido gelado em taça fina:
fazia o corpo suspirar, fazia a alma querer transbordar.
Em Sexo e Luz, Gal
não canta — ela se despe. Cada palavra desliza como lençol de linho depois do
amor, e sua voz, embriagada de revelação, pulsa como carne que se reconhece
divina por um instante. Ali, o prazer não é só toque — é sussurro que abre
portais. E quando ela diz que “se banhou” e “se lavou”, é como se o próprio
corpo se tornasse templo, e o gozo, um batismo de volta ao que é essencial.
Gal não interpreta o êxtase
— ela o canaliza, o atravessa.
E ouvindo-a, a gente entende que há um tipo de entrega que não cabe em
palavras: apenas em gemidos, silêncios acesos, gritos que se lançam não para
fora, mas para dentro do outro. É música feita com a carne, com o suor, com o
fogo — e com a paz que vem depois dele. Ela canta como quem acaba de amar e,
ainda ofegante, sussurra para o universo: “Eu estive lá — e era luz.”
Gal era como comida rara:
não se repetia, não se substituía, apenas se celebrava. Talvez por isso, quando
soube que certa vez ela escolheu uma moqueca como prato para partilhar num show
que envolvia gastronomia, em São Paulo, compreendi tudo.
Quem escolhe moqueca escolhe
o abraço coletivo,
a partilha do fogo, a alquimia entre peixe, leite de coco e o vermelho intenso
do dendê. Gal serviu sua própria voz assim: quente, luminosa, compartilhada.
Eu a conheci tarde. Mas
aproveito muito, até hoje. Mas aproveito
suas músicas como quem raspa a panela para não perder nenhum traço de sabor.
Hoje, celebro seus oitenta
anos que não se completam neste mundo.
Só me resta escrever-lhe, como quem escreve para uma santa pagã, uma deusa
profana, uma mulher que me ensinou que música e comida são a mesma coisa: uma
fome que nunca se sacia.
Vou derramar estas palavras
no papel como quem derrama vinho raro numa taça de cristal, deixando que cada
letra seja um sopro quente de desejo e memória. Depois, envolvo tudo em fumaça
de incenso — para que o céu, essa imensa catedral de estrelas e silêncio,
receba este delicado ritual de saudade e reverência.
Que você, Gal, possa
saborear cada gesto, cada cor, cada aroma escondido nestas linhas — como um
beijo que transborda da boca vermelha para o infinito, e volta, eterno, em
ondas de luz e calor.
Que este escrito seja festa
e mistério, alimento e abraço, convite e promessa: que a sua voz nunca se cale,
que o seu fogo nunca se apague, que o seu sorriso continue a brilhar, gato
enigmático, no coração da noite e no desabrochar do dia.
E se um dia me perguntarem quem foi Gal Costa, direi: foi o prato mais quente que o Brasil já serviu. E eu, menino diante da panela, só queria mais...
🍲 MOQUECA BAIANA À TROPICÁLIA
(receita da Chef Ana Célia, prato
escolhido por Gal Costa para o show no Zanzibar, em São Paulo)
Ingredientes
1 kg de peixe fresco (badejo ou pescada
amarela)
2 tomates
1 pimentão vermelho
2 cebolas
2 colheres de coentro picado
1½ copo de leite de coco fresco
50 ml de azeite de dendê
Alho, limão e sal a gosto
Preparo: Limpe as postas de peixe e
tempere com alho, sal e limão. Reserve. Em um recipiente, macere metade dos
ingredientes (1 cebola, 1 tomate, ½ pimentão, 1 colher de coentro picado). Misture
os ingredientes macerados ao peixe. Disponha numa frigideira, em fogo alto, o
peixe já temperado. Cozinhe por 15 minutos, acrescentando o restante dos
ingredientes (cortados em rodelas). Finalize com o azeite de dendê. Sirva
quente, acompanhado de arroz branco, pirão ou farofa.
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