sexta-feira, 26 de setembro de 2025

GAL COSTA ME SERVIU UM BANQUETE: 80 ANOS E UM PRATO FUNDO DE SAUDADES.

Há vozes que não se calam. Mesmo quando o corpo parte, mesmo quando o palco se fecha, mesmo quando a respiração que soprava a canção cessa — há vozes que permanecem pairando sobre nós como incenso. Há vozes que não obedecem ao tempo. E nisso, há cantoras que não precisam da eternidade porque já nasceram eternas. Gal Costa é uma dessas.

No dia em que completaria oitenta anos, descubro-me em saudade: a falta de alguém que nunca conheci de perto, mas que me atravessou pela boca e pelo ouvido, como perfume de dendê invadindo a casa antes mesmo da panela ferver.

Desde que comecei a organizar minhas listas de músicas no celular, o danadinho insiste em me dizer quais são as mais ouvidas. Gal está sempre lá. É como se ela risse de mim, como se dissesse: "você não consegue se livrar de mim, menino." E não consigo. Foi com ela que descobri que se pode amar uma versão de música como quem ama uma fruta madura: primeiro pelo estranhamento da casca, depois pelo vício doce da polpa.

Ouvi-a primeiro na estranheza de Dando um rolê — estranheza que me atravessou como quem prova, pela primeira vez, um prato picante, sem saber se gosta, mas fascinado pela intensidade. Depois veio a fartura alegre de Festa no Interior, que me faz sentir ao mesmo tempo o cheiro do milho verde assando, o balançar das bandeirinhas coloridas, o calor das fogueiras de São João — com a vibração e o colorido de um carnaval onde cabem o amor inteiro e o sol do Nordeste, dentro de um refrão.

Quando Gal cantava Vapor Barato, não era apenas uma canção: era uma travessia. Ela cozinhava o desalento como quem faz redução de vinho tinto: em fogo baixo, até restar só o perfume escuro e espesso da saudade. Eu a ouvia como quem prova um vinho forte, que primeiro arde e depois aquece. Aquelas calças vermelhas, o casaco de general, os anéis que brilhavam como especiarias raras — tudo era mais que imagem: era sabor de rebeldia, era cheiro de rua molhada depois da chuva, era o corpo inteiro atravessado por um cansaço que não se rende.

Na sua voz, o desalento se tornava beleza: a exaustão virava dança, a obsessão era temperada em melodia até se fazer banquete.

Quando penso em Gal, penso na boca. Não só por vaidade estética — mas porque ali morava um feitiço. Era a boca do gato de Alice, sim: que sorria antes da fala, e permanecia mesmo depois do silêncio. Era também uma boca de Iemanjá, feita de mar e magia, que nos oferecia frutas que ninguém sabia nomear. Fruta gogoia, dizia ela. Seria um nome ou um aviso? Um fruto proibido ou uma oferenda? Seja como for, era vermelho. Vermelho como a urgência de um beijo, como o fogo da panela de barro, como o sangue que corre depois de uma saudade. Gal não falava — ela mordia o mundo com doçura.

 Gal, com seu cristal indomável, que era a voz, transformava o abandono em erotismo, e o adeus em promessa de retorno. Escutá-la era como entrar num navio antigo sem saber o destino, confiando apenas no balanço do mar — e aceitando, grato, que às vezes é preciso perder-se para um dia voltar.

Quando criança, sempre que eu ouvia Gal cantando Azul, achava que havia nela alguma espécie de desajuste secreto. Como se aquele “não sei se vem de Deus / do céu ficar azul” fosse uma confissão de quem não se encaixava no mundo. E, na minha cabeça infantil, Gal era solar demais para duvidar do céu. Ao mesmo tempo, parecia anunciar que a beleza poderia se quebrar.

Mais tarde, entendi que era só o jeito dela de cantar o mistério — e que talvez, como ela mesma dizia na música, fosse preciso assumir o risco de “anoitecer” para poder voltar a ser “amarelinho”, queimando mansinho.

Em Azul, Gal parecia destilar a própria luz do dia em sua voz. Havia algo de oceânico no modo como ela cantava, como se a maresia entrasse pela janela e se assentasse na pele, deixando um rastro de frescor e desejo. O azul, na boca dela, não era apenas cor — era tempero secreto, aroma marinho que se misturava ao amarelinho do sol nascente, queimando mansinho, cedinho, como o cheiro de pão recém-assado ou de fruta cortada ao amanhecer. Escutá-la era sentir o mundo inteiro se tingir de azulzinho, como se o amor tivesse gosto de água doce e sal ao mesmo tempo.

Gal transformava Djavan em alquimia: fazia do céu um prato de cores, do mar uma taça, e da vida um banquete onde a simplicidade — dizer que o amor é “azulzinho” — tornava-se revelação absoluta.

Mas foi em Baby que ela me embalou de forma íntima. A canção parecia um manual de vida ao mesmo tempo simples e profundo: tome um sorvete, aprenda inglês, veja o mundo, veja-me. Era como se a doçura de uma sobremesa gelada se misturasse com a lição da existência. Ali, ela se tornava conselheira, amante, amiga.

Não me atrevo a “Caetanear” com a leveza que ele tem, nem a “Djavanear” com o sol que sua voz derrama sobre as palavras. Não domino o mistério que só eles vestem com naturalidade, nem sou dono das cores que eles pintam nas melodias. Mas, para você, Gal, ouso tecer palavras — mesmo que simples, ainda que imperfeitas — como quem borda um véu delicado para cobrir a ausência e dar forma ao silêncio. Não é canção que escrevo, mas um sussurro em forma de carta, um convite para que você, no seu eterno azul, me escute. Porque falar contigo é atravessar o tempo, é dançar na margem do que fica, é cantar a saudade com a única voz que me resta: a do coração.

🌎 Minha carta à Gal

Baby,

se você pudesse voltar um instante, eu lhe contaria o que aconteceu depois que você partiu.

Você precisa saber que o Brasil ainda dança, mesmo quando chora. Que as ruas continuam cheias de cores, mas o país se despedaça em discursos — e mesmo assim, ainda há quem plante ipês-amarelos para acreditar na primavera.

Você precisa saber que o mundo correu mais rápido, que inventaram novas formas de amar e odiar através de telas luminosas que não dormem nunca. Até criaram modos de reencontrar os mortos em vozes gravadas — e isso me assusta.

Baby, você precisa experimentar café com leite de aveia —
só pra lembrar como o leite da vaca, profano e denso, ainda faz diferença. Precisa ver a Marginal de patinete, ouvir o barulho das máquinas que escutam a gente mesmo quando a gente não diz nada.

Baby, estão me dizendo que é preciso reaprender a amar

sem recibo,

sem Wi-Fi,

sem performance.

Já pensou?

A beleza agora vem com hashtag, há poesia nos memes, e a Carolina agora virou empreendedora: vende marmita fitness e faz reels com receitas em 15 segundos.

Você não sabe, mas criaram um app pra meditar e outro pra lembrar de respirar. A Bahia segue lavando escadarias, mas agora com drone filmando de cima, e cada moqueca servida em barro ainda é uma oferenda pra sua voz.

Baby, baby, você partiu, mas o mundo, teimoso, segue lhe citando em silêncio.

Quis parar por aqui. Mas você sussurrou: 'Menino, continua, me conta mais... Eu mesmo aprendi a viver dizendo seu nome baixinho, como quem aprende inglês numa música dos Beatles, ou como quem aprende amor ouvindo você cantar Coração Vagabundo.

E no fim, Gal, eu só queria que soubesse: ainda está tudo azul comigo,
mesmo que às vezes o azul seja melancolia. E ainda está tudo em paz contigo,
porque a sua paz é o fogo eterno da sua voz.

Baby,

você ainda é tudo isso, mesmo que o mundo tenha virado stories de 24 horas.

E no fundo, entre um like e uma solidão digital, todo mundo ainda quer ouvir: “Baby, eu sei que é cafona, mas I love you.

Depois que escrevi isso, senti um sopro no ouvido. Era como se Gal me dissesse: "Menino, o azul, mesmo triste, ainda é céu."

Fiquei comovido. Mas lembrei do início de Vaca Profana: “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada.”  Por isso, eu deveria sentir tudo isso sem me colocar numa caixa, nem numa vitrine, nem na medida estreita dos caretas.

E não posso sair sem falar do êxtase maduro de Sexo e Luz. Gal me arrebatou outra vez. Sua voz, cristalina e indomável, era como vinho branco servido gelado em taça fina: fazia o corpo suspirar, fazia a alma querer transbordar.

Em Sexo e Luz, Gal não canta — ela se despe. Cada palavra desliza como lençol de linho depois do amor, e sua voz, embriagada de revelação, pulsa como carne que se reconhece divina por um instante. Ali, o prazer não é só toque — é sussurro que abre portais. E quando ela diz que “se banhou” e “se lavou”, é como se o próprio corpo se tornasse templo, e o gozo, um batismo de volta ao que é essencial.

Gal não interpreta o êxtase — ela o canaliza, o atravessa.
E ouvindo-a, a gente entende que há um tipo de entrega que não cabe em palavras: apenas em gemidos, silêncios acesos, gritos que se lançam não para fora, mas para dentro do outro. É música feita com a carne, com o suor, com o fogo — e com a paz que vem depois dele. Ela canta como quem acaba de amar e, ainda ofegante, sussurra para o universo: “Eu estive lá — e era luz.”

Gal era como comida rara: não se repetia, não se substituía, apenas se celebrava. Talvez por isso, quando soube que certa vez ela escolheu uma moqueca como prato para partilhar num show que envolvia gastronomia, em São Paulo, compreendi tudo.

Quem escolhe moqueca escolhe o abraço coletivo,
a partilha do fogo, a alquimia entre peixe, leite de coco e o vermelho intenso do dendê. Gal serviu sua própria voz assim: quente, luminosa, compartilhada.

Eu a conheci tarde. Mas aproveito muito, até hoje.  Mas aproveito suas músicas como quem raspa a panela para não perder nenhum traço de sabor.

Hoje, celebro seus oitenta anos que não se completam neste mundo.
Só me resta escrever-lhe, como quem escreve para uma santa pagã, uma deusa profana, uma mulher que me ensinou que música e comida são a mesma coisa: uma fome que nunca se sacia.

Vou derramar estas palavras no papel como quem derrama vinho raro numa taça de cristal, deixando que cada letra seja um sopro quente de desejo e memória. Depois, envolvo tudo em fumaça de incenso — para que o céu, essa imensa catedral de estrelas e silêncio, receba este delicado ritual de saudade e reverência.

Que você, Gal, possa saborear cada gesto, cada cor, cada aroma escondido nestas linhas — como um beijo que transborda da boca vermelha para o infinito, e volta, eterno, em ondas de luz e calor.

Que este escrito seja festa e mistério, alimento e abraço, convite e promessa: que a sua voz nunca se cale, que o seu fogo nunca se apague, que o seu sorriso continue a brilhar, gato enigmático, no coração da noite e no desabrochar do dia.

E se um dia me perguntarem quem foi Gal Costa, direi: foi o prato mais quente que o Brasil já serviu. E eu, menino diante da panela, só queria mais... 

🍲 MOQUECA BAIANA À TROPICÁLIA

(receita da Chef Ana Célia, prato escolhido por Gal Costa para o show no Zanzibar, em São Paulo)

Ingredientes

1 kg de peixe fresco (badejo ou pescada amarela)

2 tomates

1 pimentão vermelho

2 cebolas

2 colheres de coentro picado

1½ copo de leite de coco fresco

50 ml de azeite de dendê

Alho, limão e sal a gosto

Preparo: Limpe as postas de peixe e tempere com alho, sal e limão. Reserve. Em um recipiente, macere metade dos ingredientes (1 cebola, 1 tomate, ½ pimentão, 1 colher de coentro picado). Misture os ingredientes macerados ao peixe. Disponha numa frigideira, em fogo alto, o peixe já temperado. Cozinhe por 15 minutos, acrescentando o restante dos ingredientes (cortados em rodelas). Finalize com o azeite de dendê. Sirva quente, acompanhado de arroz branco, pirão ou farofa.

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