sábado, 27 de setembro de 2025

O CARURU DOS SANTOS MENINOS: ENTRE IBEJIS E COSME E DAMIÃO

 

No princípio, dizem, o mundo estremeceu com uma gargalhada dupla. Não era de homem, nem de mulher, nem de deus severo — mas dos Ibejis, gêmeos divinos que nasceram como faíscas de uma alegria primordial. Nos mitos iorubás, são crianças eternas, travessas e luminosas, capazes de adoçar a boca mais amarga. É deles que brota a promessa de que a vida, mesmo em meio à dor, precisa ser celebrada com riso, doçura e comida partilhada.

O riso das crianças é mais antigo do que o ferro, mais forte que o sal, mais persistente que o próprio tempo. Entre os povos iorubás, esse riso sagrado tem nome: Ibejis, os gêmeos divinos, filhos de Xangô e Oxum, protetores da infância e senhores da alegria. A eles se oferece a doçura do mel, a maciez das frutas, o brilho dos brinquedos e a fartura das panelas, porque o que se dá aos Ibejis retorna em abundância — prosperidade, fertilidade, proteção.

Os Ibejis não são um orixá único, mas a própria manifestação da dualidade: dois corpos, uma alma espelhada. “Ìbejì” significa literalmente “nascidos dois”. Cada gêmeo recebe um nome que carrega em si uma inversão curiosa e delicada: o primeiro que nasce chama-se Taiwo — “aquele que prova o mundo primeiro” —, mas, paradoxalmente, é considerado o mais novo, pois teria sido enviado pelo irmão para experimentar a vida. Já o segundo, que vem depois, chama-se Kehinde, e é tido como o mais velho, pois esperou no útero, comandando o desbravamento do irmão. Essa inversão revela o jogo de forças entre eles: juventude e maturidade, impulso e sabedoria.

Na tradição afro-brasileira, essa dupla ganhou um terceiro companheiro: o Doum. Na língua iorubá, esse filho que nasce depois dos gêmeos é chamado Idowu. Seu nascimento é visto como tão extraordinário que, ao chegar, não apenas equilibra a balança dos dois, mas a amplia, formando uma tríade.

No Brasil, pela força do sincretismo e da imaginação popular, esse Idowu transformou-se em Doum, o “irmãozinho mais novo”, inseparável dos Ibejis. Assim, quando se fala de Cosme e Damião nas festas de caruru, fala-se também de Doum: juntos, eles formam não apenas a imagem da infância divina, mas também a promessa de continuidade, um eco que se abre depois do espelho.

Doum não é apenas o "caçula": ele é o resíduo do excesso, o sabor que sobra no fundo da panela, aquilo que não pode ser descartado porque é justamente o que dá sentido ao banquete.

Falar de Doum é como falar daquilo que as tradições cozinham em fogo baixo: um irmão invisível que, sem estar nomeado, faz o caldo engrossar. Ele é lembrado quando a panela de caruru ferve em setembro, quando os quiabos se tornam viscosos como um feitiço infantil. Ali, entre o tempero que gruda nos dedos, está o lugar dele: o fio de continuidade, o terceiro ritmo que impede a música de se encerrar em dualidade.

É por isso que, nos terreiros e nas ruas, a oferenda não se destina apenas aos dois santos-meninos, mas ao trio. A infância sagrada, no imaginário afro-brasileiro, não se limita a pares: ela é movimento, expansão, multiplicação da alegria. Taiwo, Kehinde e Doum são, assim, três rostos de uma mesma energia — gêmeos e irmão — que alimentam a mesa do sagrado com risos, doces e quiabos.

Onde chegam, espalham doçura como se fosse uma oferenda inevitável — não apenas o açúcar em forma de balas e cocadas, mas a doçura selvagem de quem ainda não conhece o peso do tempo.

Quando chegaram ao Brasil, arrastados na corrente escura da diáspora, esses meninos sagrados encontraram outros nomes: Cosme e Damião, santos-meninos da devoção católica, médicos de almas e corpos. A máscara cristã não apagou a essência africana; pelo contrário, ampliou-a, criando uma fusão rara. Assim, os gêmeos sorridentes tornaram-se guardiões da infância, do excesso alegre, da mesa farta.

O ritual permaneceu vivo, transformado, mas jamais corrompido: doces distribuídos às crianças, saquinhos de balas, cocadas brancas e marrons, mariolas que derretem nos dedos — cada um desses presentes é mais que açúcar, é memória. É oferenda travestida de guloseima, um pacto entre o sagrado e a carne pequena dos meninos que correm pelas ruas.

E no centro desse rito, há um prato que não se oferece apenas à fome, mas à eternidade: o caruru.

O caruru é um feitiço de baba e óleo, de dendê que brilha como ouro líquido e quiabo que se dissolve em viscosidade sensual. É o ventre da terra cozinhado em panela escura, temperado com camarão seco, castanhas, amendoim, gengibre e fogo lento. Em cada colherada, há uma alquimia de contrastes: viscoso e crocante, salgado e doce, pungente e terroso. É um prato que exige devoção, porque não se prepara depressa — ele se revela aos poucos, como uma confidência.


No Recôncavo, no sertão, em casas de porta aberta, a tradição manda preparar sete pratos iguais. Sete, como os meninos encantados que acompanham Cosme e Damião. Sete, como os caminhos que se abrem diante de quem oferece. Sete, como promessa de fartura e alegria multiplicada. E ali, adultos e crianças se sentam lado a lado, colheres na mão, partilhando o mesmo destino de sabor.

Comer esse prato é como recordar o gosto de uma infância que nunca morre, um gosto que não está apenas na boca, mas no gesto de oferecer. Há um pacto ancestral que se alimenta de nossas memórias e nos devolve à carne jovem, risonha, eterna. Entre a luz e a sombra, entre o mito africano e o santo católico, o caruru é rito e é banquete.

Na festa de Cosme e Damião, o Brasil que comemora se faz criança. O açúcar corre como bênção, mas é o dendê que unge, que sela o pacto. Comer caruru nesse dia é saborear o riso dos Ibejis, é aceitar que a vida é feita de dualidades: doce e salgado, santo e orixá, infância e eternidade.

O caruru de Cosme e Damião nunca chega sozinho à mesa. Ele vem acompanhado, como se soubesse que sozinho não conteria a magia do dia. Ao seu lado repousam o vatapá, cremoso e amanteigado, que se desmancha nos dedos como um segredo guardado em panela de barro; a farofa de dendê, crocante, que estala com uma promessa de infância; o feijão fradinho, discreto mas persistente, lembrando que nem tudo deve ser doce; e o arroz branco, que acolhe cada sabor sem disputar atenção, como o pano limpo de um altar doméstico.

Se houver acarajés miúdos, eles dançam na borda do prato, redondos e dourados, pequenos sóis com casca crocante e coração macio, oferecendo à boca o prazer do contraste — crocância e calor, óleo e ar. Cada elemento, embora distinto, é cúmplice do outro. Misturar, provar, repetir: é assim que o caruru se transforma em rito, em celebração, em memória compartilhada. Comer é participar da história, sentir a infância dos santos-meninos e a travessura dos Ibejis nos dedos manchados de dendê, nos aromas que flutuam e entram no corpo como prece, como riso que insiste em se tornar sabor.

No fundo, a mesa não é apenas uma mesa: é um mapa da tradição, um convite à percepção de que a comida é também mitologia, e que cada colher, cada mordida, pode ser um instante de contato com o divino.

No fim, o caruru explode em cores e sabores como uma festa que nunca termina. Comer com os Ibejis, com Doum, com Cosme e Damião, é dançar com o sol, sentir a alegria que não se mede, a doçura que não envelhece, a vida que insiste em florescer.

Não há limites entre o divino e o mundano: cada mordida é oração, cada risada, oferenda. O caruru não é apenas comida: é riso cristalizado, é luz líquida, é uma torrente que atravessa a boca e explode no peito.

E assim, quando provamos, somos invadidos pela alegria que não se mede, pela doçura que não envelhece, pela vida que insiste em florescer. É a infância eterna, a travessura sagrada, o canto solar que os Ibejis sopram sobre nós — uma experiência que não se esquece, um abraço do cosmos, que nos lembra que a festa nunca termina e que, enquanto houver dendê, risos e quiabos, estaremos todos dançando com os gêmeos divinos.

Comer com os Ibejis é aceitar que, no fundo de cada panela, ainda escutamos o eco do riso primordial.

Receita de Caruru

1 kg de quiabo fresco, cortado miúdo

200 g de camarão seco, limpo e socado

100 g de castanha de caju torrada

100 g de amendoim torrado sem pele

2 cebolas grandes picadas

3 dentes de alho amassados

1 pedaço de gengibre ralado

200 ml de azeite de dendê

500 ml de caldo de peixe ou camarão

Sal e pimenta a gosto

Suco de 1 limão

Preparo: Lave e seque os quiabos. Corte-os em rodelas finas. No pilão, triture o camarão, a castanha e o amendoim até formar uma pasta. Refogue cebola, alho e gengibre em um pouco de dendê até dourar. Acrescente o quiabo e mexa até começar a amaciar. Junte a pasta de camarão e castanhas, misture bem. Despeje o caldo e cozinhe lentamente até engrossar. Finalize com dendê, limão, pimenta e sal. Sirva em pequenas porções, lembrando que comer é também oferecer.

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