No princípio, dizem, o mundo
estremeceu com uma gargalhada dupla. Não era de homem, nem de mulher, nem de
deus severo — mas dos Ibejis, gêmeos divinos que nasceram como faíscas de uma
alegria primordial. Nos mitos iorubás, são crianças eternas, travessas e
luminosas, capazes de adoçar a boca mais amarga. É deles que brota a promessa
de que a vida, mesmo em meio à dor, precisa ser celebrada com riso, doçura e
comida partilhada.
O riso das crianças é mais
antigo do que o ferro, mais forte que o sal, mais persistente que o próprio
tempo. Entre os povos iorubás, esse riso sagrado tem nome: Ibejis, os gêmeos
divinos, filhos de Xangô e Oxum, protetores da infância e senhores da alegria.
A eles se oferece a doçura do mel, a maciez das frutas, o brilho dos brinquedos
e a fartura das panelas, porque o que se dá aos Ibejis retorna em abundância —
prosperidade, fertilidade, proteção.
Os Ibejis não são um orixá
único, mas a própria manifestação da dualidade: dois corpos, uma alma
espelhada. “Ìbejì” significa literalmente “nascidos dois”. Cada gêmeo recebe um
nome que carrega em si uma inversão curiosa e delicada: o primeiro que nasce chama-se
Taiwo — “aquele que prova o mundo primeiro” —, mas, paradoxalmente, é
considerado o mais novo, pois teria sido enviado pelo irmão para experimentar a
vida. Já o segundo, que vem depois, chama-se Kehinde, e é tido como o mais
velho, pois esperou no útero, comandando o desbravamento do irmão. Essa
inversão revela o jogo de forças entre eles: juventude e maturidade, impulso e
sabedoria.
Na tradição afro-brasileira,
essa dupla ganhou um terceiro companheiro: o Doum. Na língua iorubá, esse filho
que nasce depois dos gêmeos é chamado Idowu. Seu nascimento é visto como tão
extraordinário que, ao chegar, não apenas equilibra a balança dos dois, mas a
amplia, formando uma tríade.
No Brasil, pela força do
sincretismo e da imaginação popular, esse Idowu transformou-se em Doum, o
“irmãozinho mais novo”, inseparável dos Ibejis. Assim, quando se fala de Cosme
e Damião nas festas de caruru, fala-se também de Doum: juntos, eles formam não
apenas a imagem da infância divina, mas também a promessa de continuidade, um
eco que se abre depois do espelho.
Doum não é apenas o
"caçula": ele é o resíduo do excesso, o sabor que sobra no fundo da
panela, aquilo que não pode ser descartado porque é justamente o que dá sentido
ao banquete.
Falar de Doum é como falar
daquilo que as tradições cozinham em fogo baixo: um irmão invisível que, sem
estar nomeado, faz o caldo engrossar. Ele é lembrado quando a panela de caruru
ferve em setembro, quando os quiabos se tornam viscosos como um feitiço
infantil. Ali, entre o tempero que gruda nos dedos, está o lugar dele: o fio de
continuidade, o terceiro ritmo que impede a música de se encerrar em dualidade.
É por isso que, nos
terreiros e nas ruas, a oferenda não se destina apenas aos dois santos-meninos,
mas ao trio. A infância sagrada, no imaginário afro-brasileiro, não se limita a
pares: ela é movimento, expansão, multiplicação da alegria. Taiwo, Kehinde e
Doum são, assim, três rostos de uma mesma energia — gêmeos e irmão — que
alimentam a mesa do sagrado com risos, doces e quiabos.
Onde chegam, espalham doçura
como se fosse uma oferenda inevitável — não apenas o açúcar em forma de balas e
cocadas, mas a doçura selvagem de quem ainda não conhece o peso do tempo.
Quando chegaram ao Brasil,
arrastados na corrente escura da diáspora, esses meninos sagrados encontraram
outros nomes: Cosme e Damião, santos-meninos da devoção católica, médicos de
almas e corpos. A máscara cristã não apagou a essência africana; pelo contrário,
ampliou-a, criando uma fusão rara. Assim, os gêmeos sorridentes tornaram-se
guardiões da infância, do excesso alegre, da mesa farta.
O ritual permaneceu vivo,
transformado, mas jamais corrompido: doces distribuídos às crianças, saquinhos
de balas, cocadas brancas e marrons, mariolas que derretem nos dedos — cada um
desses presentes é mais que açúcar, é memória. É oferenda travestida de
guloseima, um pacto entre o sagrado e a carne pequena dos meninos que correm
pelas ruas.
E no centro desse rito, há
um prato que não se oferece apenas à fome, mas à eternidade: o caruru.
O caruru é um feitiço de
baba e óleo, de dendê que brilha como ouro líquido e quiabo que se dissolve em
viscosidade sensual. É o ventre da terra cozinhado em panela escura, temperado
com camarão seco, castanhas, amendoim, gengibre e fogo lento. Em cada colherada,
há uma alquimia de contrastes: viscoso e crocante, salgado e doce, pungente e
terroso. É um prato que exige devoção, porque não se prepara depressa — ele se
revela aos poucos, como uma confidência.
No Recôncavo, no sertão, em
casas de porta aberta, a tradição manda preparar sete pratos iguais. Sete, como
os meninos encantados que acompanham Cosme e Damião. Sete, como os caminhos que
se abrem diante de quem oferece. Sete, como promessa de fartura e alegria
multiplicada. E ali, adultos e crianças se sentam lado a lado, colheres na mão,
partilhando o mesmo destino de sabor.
Comer esse prato é como
recordar o gosto de uma infância que nunca morre, um gosto que não está apenas
na boca, mas no gesto de oferecer. Há um pacto ancestral que se alimenta de
nossas memórias e nos devolve à carne jovem, risonha, eterna. Entre a luz e a
sombra, entre o mito africano e o santo católico, o caruru é rito e é banquete.
Na festa de Cosme e Damião,
o Brasil que comemora se faz criança. O açúcar corre como bênção, mas é o dendê
que unge, que sela o pacto. Comer caruru nesse dia é saborear o riso dos
Ibejis, é aceitar que a vida é feita de dualidades: doce e salgado, santo e
orixá, infância e eternidade.
O caruru de Cosme e Damião
nunca chega sozinho à mesa. Ele vem acompanhado, como se soubesse que sozinho
não conteria a magia do dia. Ao seu lado repousam o vatapá, cremoso e
amanteigado, que se desmancha nos dedos como um segredo guardado em panela de barro;
a farofa de dendê, crocante, que estala com uma promessa de infância; o feijão
fradinho, discreto mas persistente, lembrando que nem tudo deve ser doce; e o
arroz branco, que acolhe cada sabor sem disputar atenção, como o pano limpo de
um altar doméstico.
Se houver acarajés miúdos,
eles dançam na borda do prato, redondos e dourados, pequenos sóis com casca
crocante e coração macio, oferecendo à boca o prazer do contraste — crocância e
calor, óleo e ar. Cada elemento, embora distinto, é cúmplice do outro. Misturar,
provar, repetir: é assim que o caruru se transforma em rito, em celebração, em
memória compartilhada. Comer é participar da história, sentir a infância dos
santos-meninos e a travessura dos Ibejis nos dedos manchados de dendê, nos
aromas que flutuam e entram no corpo como prece, como riso que insiste em se
tornar sabor.
No fundo, a mesa não é
apenas uma mesa: é um mapa da tradição, um convite à percepção de que a comida
é também mitologia, e que cada colher, cada mordida, pode ser um instante de
contato com o divino.
No fim, o caruru explode em
cores e sabores como uma festa que nunca termina. Comer com os Ibejis, com
Doum, com Cosme e Damião, é dançar com o sol, sentir a alegria que não se mede,
a doçura que não envelhece, a vida que insiste em florescer.
Não há limites entre o
divino e o mundano: cada mordida é oração, cada risada, oferenda. O caruru não
é apenas comida: é riso cristalizado, é luz líquida, é uma torrente que
atravessa a boca e explode no peito.
E assim, quando provamos,
somos invadidos pela alegria que não se mede, pela doçura que não envelhece,
pela vida que insiste em florescer. É a infância eterna, a travessura sagrada,
o canto solar que os Ibejis sopram sobre nós — uma experiência que não se
esquece, um abraço do cosmos, que nos lembra que a festa nunca termina e que,
enquanto houver dendê, risos e quiabos, estaremos todos dançando com os gêmeos
divinos.
Comer com os Ibejis é
aceitar que, no fundo de cada panela, ainda escutamos o eco do riso primordial.
Receita de Caruru
1 kg de quiabo fresco, cortado miúdo
200 g de camarão seco, limpo e socado
100 g de castanha de caju torrada
100 g de amendoim torrado sem pele
2 cebolas grandes picadas
3 dentes de alho amassados
1 pedaço de gengibre ralado
200 ml de azeite de dendê
500 ml de caldo de peixe ou camarão
Sal e pimenta a gosto
Suco de 1 limão
Preparo: Lave e seque os quiabos. Corte-os em
rodelas finas. No pilão, triture o camarão, a castanha e o amendoim até formar
uma pasta. Refogue cebola, alho e gengibre em um pouco de dendê até dourar. Acrescente
o quiabo e mexa até começar a amaciar. Junte a pasta de camarão e castanhas,
misture bem. Despeje o caldo e cozinhe lentamente até engrossar. Finalize com
dendê, limão, pimenta e sal. Sirva em pequenas porções, lembrando que comer é
também oferecer.
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