terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Lardo, salume dos deuses: quando a simplicidade se torna excelência!


Hoje, mais uma vez, meu desejo de ir passar uma temporada na Toscana retornou. Isso sempre acontece quando resolvo assistir pela milionésima vez o filme ‘Sob o sol da Toscana’ (Under the Tuscan Sun ), de 2003, e que foi  baseado no livro homônimo de Frances Mayes – e conta a história de uma escritora recém-divorciada que compra uma casa de campo na Toscana, na esperança de começar uma nova vida. As paisagens, os vinhos e as comidas da toscana me atraem. Pensando nisso, a primeira postagem de 2018 apresenta um produto tipicamente Toscano que tem estado, cada vez mais, em alta entre os grandes chefs que buscam dar um toque especial e saboroso nas suas preparações e, par isso, usam o Lardo.



Quando se fala em Lardo para alguém que conhece sobre gastronomia ou é um bom gourmand, automaticamente, se faz uma referência a região italiana da Toscana, mais precisamente sobre Colonnata, um pequeno vilarejo toscano no alto dos Alpes Apuanos, onde a mágica da fabricação do Lardo ocorre. Não por acaso, o lugar faz parte da Província de Massa Carrara, de onde se extrai um dos tipos de mármore mais famosos do mundo desde 1000 a.C.: o mármore de Carrara.



O Império Romano acelerou a extração do mármore daquela região para recobrir muitos monumentos romanos. Mas, embora o mármore seja material nobre até hoje, a vida dos mineiros não era: passavam algumas privações e, sobretudo, muito frio – além de enfrentar o risco iminente de desabamentos constantes e de fazerem muito esforço físico durante o trabalho desgastante, foi justamente o mármore de Carrara o responsável por permitir conservar e curar um importante alimento usado pelos mineiros, e pela população menos abastada da época, o Lardo.



Inicialmente considerado comida de pobre ou comida dos trabalhadores, o Lardo, é produzido a partir da camada de gordura do dorso de porcos. O que faz sentido, quando se sabe que os mais abastados usavam os cortes nobres e aos menos favorecidos sobravam alguma pouca carne e muita gordura – justamente dessa última parte que os mineradores obtinham as calorias para resistir ao trabalho puxado. Passaram então a recobrir pedaços da gordura de porco com sal grosso e ervas que encontravam na região e deixavam maturar dentro das montanhas de mármore onde estavam trabalhando.




Há registros históricos que mostram, no entanto, que a produção de lardo é mais antiga que Colonnata, essa última tem origem oficial é 1111 d. C. Mas foi nesse vilarejo que o lardo ganhou notabilidade pelo mundo, principalmente quando a produção ganhou, em 2003, a certificação europeia de indicação de origem protegida, tornando-se “Lardo di Colonnata I.G.P.”



A indicação de origem reconhece a importância deste alimento na dieta dos "mineiros históricos" de mármore envolvidos diariamente na extração do mármore de Carrara. Em 2000, nasceu uma associação para proteger o Lardo de Colonnata, que além de se inserir no movimento Slow Food, tem o objetivo de defender e promover o seu método de produção tradicional do Lardo que se tornou símbolo da valorização de produções ‘marginais’ típicas.



A especificação obriga: o uso de carne do dorso de porcos de certas regiões italianas (Toscana, Emilia-Romagna, Veneto, Friuli-Venezia Giulia, Lombardia, Piemonte, Umbria, Marche, Lazio e Molise); que os cortes do dorso do porco (pelo menos 3 cm de espessura) devem ser polvilhados com sal marinho grosso, alecrim fresco e pimenta preta moída antes de serem colocados um em cima do outro nos tanques de mármore especiais fechados com tampa - chamados de "conche" – e que tenham sido anteriormente passado pelo procedimento de se esfregar dentes de alho em toda a caixa de mármore, dizem que isso ajuda a desinfetar. O tempero deve curar pelo menos 6 meses antes de o produto poder ser embalado e vendido. A especificação é rígida em muitos detalhes da produção, desde o uso de especiarias até a feitura das bacias de mármore, sem esquecer as restrições relacionadas à rotulagem e a denominação correta do produto enfeitado com a marca de indicação geográfica protegida.





A produção de Lardo di Colonnata I.G.P. não está apenas ligado a um território que oferece condições microclimáticas ideais para a preservação da gordura, como a baixa umidade e a alternância de temperaturas amenas, mas também se entrelaçada com a atividade histórica dos mineiros/pedreiros que se mantinham com este produto a ingestão calórica certa, útil aos trabalhos incorridos. A fácil disponibilidade das matérias-primas necessárias e do mármore - indispensável no processo de produção - completa as características dos elementos que compõem um dos laços mais fortes - no panorama gastronômico italiano - entre produto e território.



Com o passar dos tempos, o processo de elaboração mudou: o produto deixou de ser curado dentro das montanhas e veio para o vilarejo, onde foram instaladas grandes caixas de mármore (que lembram caixões, para uns, ou banheiras, para outros) que são chamadas de “conche” no plural ou “conca” no singular, feitas a partir de um só bloco da pedra. Dentro deles são colocados os pedaços de gordura que são cortados e empilhados com encaixe perfeito, sem deixar espaços, onde se espalha uma abundante mistura de sal marinho grosso, alho, pimenta-do-reino, alecrim (até aqui é um lardo básico e já muito bom). Mas há quem resolva fazer seu próprio lardo usando outras especiarias, em geral canela, cravo, louro, noz-moscada, anis-estrelado, orégano e sálvia. Finalmente, a conca é fechada com uma grande tampa de mármore para então deixar o tempo se encarregar de fazer a magia da transformação dos sabores acontecer – o resultado é um salume espetacular e inigualável.
O mármore por ser poroso, embora não muito, permite a entrada da umidade externa mas evita a saída de líquidos. Isso, combinado com o microclima da região, faz que as conche se encham de água (mas há também que coloque água dentro dos caixões de mármore para adiantar a salmoura) que, misturada ao sal e aos temperos colocados sobre o lardo, formem uma salmoura inigualável, que se converte em conservante natural, isolando e envolvendo as peças de gordura.



Houve uma grande batalha para manter a produção tradicional do lardo no mármore, pois a Comissão Europeia valendo-se da precaução de cientistas e especialistas, sustentava que a cura da produção deveria ser realizada em conche feitas de vidro, plástico ou alumínio. Mas como a união faz a força, as 14 famílias produtoras de lardo da cidade se juntaram, requisitaram pareceres técnicos e estudos históricos que demonstrassem a origem milenar do lardo e finalmente conseguiram o selo e manter o processo artesanal tradicional.



No processo de cura do lardo, a textura muda, a peça fica ainda mais compacta (com uma espessura que nunca é inferior a 3 cm), perfumada, mantendo seu interior branco, ligeiramente rosado e quase marmóreo. Descarta-se a pele fina da parte inferior, limpa-se a camada de sal e temperos para se ter o lardo firme, mas que não é resistente à faca. É um deleite degustar finas fatias de lardo com fatias de pão quente – o calor leva o lardo ao branco leitoso ou quase translucido, fica ainda mais macio e faz o delírio acontecer. 



É perfeito para acompanhar saladas, méis e frutos secos (fica escandaloso com ameixas) para aperitivos ou croutons rústicos. Tem se tornado ingrediente valioso na cozinha pois enriquece caldos e sopas de legumes e carnes selvagens, suaviza assados e molhos a base de carne e até risotos. E, por mais incomum, que possa parecer, fica surpreendente se combinado com mariscos e alguns tipos de peixe.






Mas tinha de ter defeitos: por ser produzido por apenas 14 famílias italianas, o lardo de Colonnata tem produção pequena e a distribuição é complicada – e por isso não sem acha com facilidade fora da Itália; a moderação no consumo deve ser respeitada já que se trata de uma produção composta de 99% de gordura; no Brasil, quando se acha o produto, é bastante caro – custa, em média R$ 150 o quilo nas importadoras – embora alguns chefs renomados no Brasil estejam começando a usar o produto importado e, em alguns casos, até a preparar versões nacionalizadas dentro das cozinhas de seus empreendimentos. No entanto, deve-se permitir a apreciar a autenticidade desse alimento que, de acordo com a especificação, não permite a adição de qualquer tipo de conservante ou outro aditivo não natural, conforme estabelecido na especificação.
Assim, vai que, de repente, você esteja viajando para a Itália e resolve comprar essa preciosidade, ou ganha de presente, fica abaixo algumas ideias de como prepara-la.

Bruschette al lardo e rosmarino

200g de Lardo di Colonnata
1 Pão baguete
4 Tomates cereja
1 Ramos de alecrim
Pimenta preta moída q.b.
Dentes de Alho fresco para esfregar no pão q.b.
Preparo: Corte o pão fazendo 16 fatias de 1cm de altura. Esfregar o alho fresco ligeiramente fresco em cada fatia de pão, de acordo com a receita toscana clássica. Coloque as fatias de pão para dourar levemente no forno a 200 ° (apenas alguns minutos), depois retirar de lá e deixar esfriar. Fatiar o lardo finamente e reservar. Lave e corte os tomates em quartos e corte o alecrim; coloque o lardo no pão e depois polvilhe com pimenta moída; coloque um quarto de tomate e alecrim cortado em cada bruschetta. Sirva imediatamente.

Gamberi al lardo (camarão com lardo)

12 caudas de camarão (de médios para grande)
12 fatias finas de lardo
2 ramos de alecrim
Para o molho de feijão Cannellini
250g de Feijão Cannellini pré-cozido (encontra-se à venda nos supermercados em latinhas ou em caixinhas)
Azeite virgem extra q.b.
Saltar q.b.
Pimenta preta q.b.
Páprica doce 1 pitada
Preparo: limpar bem os camarões retirando aquele filamento negro do dorso do camarão que é o intestino. Enrole cada cauda de camarão com uma fatia de lardo (se desejar, você pode substituir o lardo por bacon ou presunto cru) e coloque em uma assadeira coberta com papel manteiga. Coloque de 2-3 agulhas (folhinhas) de alecrim sob cada fatia de lardo e leve ao forno por 10 minutos a 180 ° C. Para o molho: coloque o feijão em um misturador (mixer ou liquidificador usando o pulsar), misture-os adicionando uma boa dose de azeite virgem extra, uma pitada de sal, a páprica e pimenta a gosto. Sirva os camarões envoltos no lardo ainda quente, acompanhando-os com o molho de feijão.

Bucatini al lardo (Massa com Lardo)

400g de massa tipo BUCATINI
200g de lardo
200g de tomates cereja 
1 dente de alho
5 colheres de azeite de oliva extra virgem
1 pimenta dedo de moça
Sal q.b.
Preparo: Fritar um dente de alho com casca dentro de uma caçarola com as 5 colheres de azeite – apenas para dar o aroma e tire quando o azeite estiver aromatizado; adicione os tomates cortados em quartos e deixe cozinhar em fogo alto por cerca de dez minutos. Coloque uma panela com água para cozinhar a massa. Quando a agua estiver fervendo adicione sal e mergulhe o bucatini para cozinhá-los al dente – ao escorrer a massa, não jogue fora a água do cozimento! Enquanto isso, corte o lardo em pequenos pedaços, pique a pimenta e os adicione à panela juntamente com os tomates, mexa bem e deixe cozinhar apenas o tempo suficiente para tornar o lardo transparente. Adicione ao molho uma concha da água do cozimento do macarrão. Junte a massa dentro do molho e misture. Se necessário, , adicione um pouco mais de água para dar uma dissolvida no molho. Servir quente.

Um comentário:

  1. Uma das técnicas para dar mais sabor a carnes magras chama-se "Lardear", ou seja, preencher com fatias de lardo buracos feitos com faca no corte de carne escolhido.

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