Em certas noites — aquelas em que a refeição se estende como uma boa ópera e a conversa repousa satisfeita sobre pratos vazios — há um momento em que o tempo parece se curvar levemente, como quem pede licença para ficar mais um pouco. É nesse instante que surge “um intervalo sagrado”.
Nesse breve momento, logo
após o último talher repousar no prato e a conversa se afinar como música em
fim de festa, em que a alma pede algo mais. Não fome. Não sede. Mas uma espécie
de consolo, de fecho suave, como quem dobra um guardanapo com vagar e gratidão.
Os italianos, que entendem dessas coisas, chamam esse instante de “digestivo”.
Na Itália, ele não é apenas uma bebida. É um gesto, um aceno elegante de quem
diz: "Fique mais um pouco. Ainda há calor na casa."
Geralmente servido num copo
pequeno, quase cerimonial. Passa de mão em mão como uma confidência. Um brinde
aqui, um riso ali, e o licor encerra a noite como se nos lembrasse: ainda
estamos vivos, e bem alimentados. E não é apenas um costume. É um gesto de
civilidade, uma delicadeza cultural que embala o corpo depois de uma refeição
generosa — como uma despedida murmurada em voz baixa, junto à porta.
Obviamente, nem todo
digestivo é necessariamente um licor, mas a maioria dos digestivos tradicionais
são licores porque combinam álcool, doçura e ingredientes aromáticos que,
juntos, criam uma bebida equilibrada, saborosa e funcional para o pós-refeição. É o caso do Alloro, o licor de folhas de louro.
Os licores nasceram em paralelo à medicina, são descendentes diretos da alquimia e da farmacopeia antigas – o que indica que, antes de eles serem bebidas sociais ou digestivos, eram remédios –, e muito antes da ‘sobremesa’.
As sobremesas, como as
conhecemos, chegaram tarde à mesa — enfeitadas, cerimoniosas, pedindo atenção e
talheres delicados. Foram criadas nas cortes e nos salões, com açúcar
finalmente domesticado, já não tão raro nem tão reverenciado. São, quase
sempre, espetáculos: creme, mousse, bolo, torta, sorvete, suspiro. Têm a leveza
de uma ópera com final feliz. A sobremesa é um teatro. Chega à mesa em cena
aberta, vestida com decorações atrativas. Tem algo de espetáculo francês:
ostenta a doçura como quem dança em pontas. Nasceu nas cortes, entre cristais e
porcelanas, quando o açúcar, finalmente domado, pôde abandonar as farmácias e
se entregar ao prazer. É uma promessa de leveza, mesmo depois de refeições
pesadas — uma forma educada de dizer que a noite ainda não acabou.
Já o licor... o licor é
outra coisa. Mais velho, mais calado, mais denso. Antes de ser bebida, foi
remédio. E antes de adoçar, curava. Veio de mãos solitárias: monges,
feiticeiras, curandeiras, alquimistas, que destilavam folhas e raízes em
silêncio, enquanto o mundo pedia milagres. O licor não se impõe — ele
permanece. É um fim que não se anuncia. Toma-se devagar, como quem ouve. Seu
açúcar não canta: arde e aquece, como o cheiro de uma lembrança boa esquecida
no fundo da gaveta.
A sobremesa celebra. O licor
sussurra. Uma encerra o banquete. O outro — se bem servido — encerra o dia. E
às vezes, quando o corpo se aquieta e a alma consente, inaugura um pensamento.
Ou um segredo.
No fundo de cada frasco há
sempre um resíduo de alquimia, uma dúvida antiga: cura ou feitiço? Não é à toa
que, por séculos, os licores estiveram nas mãos de monges — e de mulheres com
reputações perigosamente ambíguas. Como as irmãs Toffana, lendárias criadoras
da ‘Água de Toffana’ — um veneno invisível que passava facilmente por um elixir
doméstico (já tratei sobre elas AQUI). Não se sabe se elas fabricavam licores,
mas sabiam manipular essências, infusões e confiança. E isso já as coloca
perigosamente perto da nossa história.
Há licores com nomes que não
escondem sua natureza: o Strega, por exemplo, um licor italiano amarelo-dourado
feito com cerca de 70 ervas e especiarias, inventado em 1860 em Benevento —
cidade conhecida como ponto de encontro de bruxas segundo lendas medievais —
terra de bruxas e fogueiras — e carrega em cada gole uma receita que parece
saída de um grimório. Em contraste, o Alloro é mais claro, mais solar, mas
ainda assim profundamente ligado a esse saber ancestral de quem conhece as
plantas pelo cheiro e pelo silêncio.
O Alloro também carrega algo
de ritual. Pode-se imaginar uma mulher antiga, num vilarejo esquecido entre
colinas e oliveiras, colhendo folhas ao entardecer, infundindo-as não só em
álcool, mas em intenção. O mesmo gesto que hoje chamamos de receita, ontem
podia ser chamado de feitiço.
Não é raro que os turistas
se lancem ao limoncello — aquele amarelo ensolarado, doce até os ossos, como um
verão que não sabe a hora de acabar — e deixem passar o verde discreto,
insinuante e quase cerimonial do Alloro. Talvez acreditem, equivocadamente, que
o mundo das frutas seja mais nobre que o das folhas. Mas o limão grita; o louro
sussurra. E há sutilezas que só os ouvidos atentos percebem. Enquanto o
limoncello se espalha como riso em mesa cheia, o Alloro chega mais tarde — como
quem vem para ficar. Sua presença é mais meditativa, com a gravidade aromática
das coisas que vêm da terra e da história. Ele não é espetáculo. É eco. E como
todo eco bem-vindo, ele nos conta algo que talvez tenhamos esquecido.
Há também os que preferem os
licores de amêndoas — doces, quase afetuosos, com aquela fragrância redonda de
marzipã e festa antiga. O mais famoso deles é o Amaretto, que alguns juram ter
sido inventado como declaração de amor. Sua doçura envolve, mas não desafia. É
feito para terminar noites com suavidade, como um lençol recém passado. Em
contraste, o Alloro não acaricia de imediato: ele se impõe com elegância e
depois se acomoda, como uma ideia que faz sentido só quando se repete. Onde o
Amaretto conforta, o Alloro revela. Onde um adoça a memória, o outro aguça a
percepção.
Entre os muitos amari
italianos — esses licores herbáceos e misteriosamente amargos que prometem
ajudar o estômago a perdoar os excessos da mesa, há um que merece ser resgatado
do anonimato: o Alloro, também chamado de Allorino, um licor caseiro de folhas
de louro que carrega em cada gole um sopro de história e um punhado de alquimia
botânica – e que se destaca por sua simplicidade quase monástica.
Este licor de louro não
apenas aquece o corpo em noites de inverno, mas também tem a generosidade de se
mostrar versátil: com gelo, vira companhia refrescante em tardes quentes;
misturado a Prosecco, transforma-se num bay spritz herbáceo que faz jus ao ritual
do aperitivo. E se, por acaso, você tiver uma tosse persistente ou um leve
resfriado — ah, dizem que ele ajuda nisso também, principalmente quando
levemente aquecido. Um xarope de jardim romano.
Você poderá fazer seu licor
de folhas de louro num processo totalmente doméstico, mas não banal. Exige
paciência, discrição, e o tipo de atenção silenciosa que só certas avós e
certos monges dominam. Aliás, não deixa de ser curioso: o famoso Chartreuse, licor
francês que também é verde e misterioso, leva 130 plantas e só pode ser feito
por monges cartuxos.
O Alloro, por sua vez,
precisa apenas de quatro ingredientes — e de um pouco de fé em sabores que vêm
das folhas. Ao abrir a garrafa, há um primeiro sopro: verde, resinoso, quase
picante, como o interior de um tronco recém-cortado. O líquido escorre espesso
no copo, com a lentidão de quem conhece o tempo. Há algo de mel e de pinho, de
veludo...
Mas o Alloro é mais que
sabor. É cultura líquida.
A Mitologia grega apresenta a sua versão para o surgimento do louro, uma tragédia grega que só eles poderiam criar:
Apolo e Dafne é uma pintura a óleo sobre painel de c. 1470–1480, atribuída a Piero del Pollaiuolo e/ou seu irmão Antonio ).Era belo demais para caber no mundo — Apolo, o deus ada beleza, o sol em forma de homem, com seus músculos longos e a altivez que só os deuses podiam ostentar sem rubor. Arrogante, julgava que só ele podia manejar o arco de prata, como se o gesto de mirar e ferir pertencesse apenas à luz, não ao desejo. Isso bastou para irritar Eros, o poderoso deus do amor (uma figura complexa, às vezes retratada como um jovem poderoso e perigoso, capaz de provocar caos entre deuses e mortais. O mesmo que os romanos infantilizaram e transformaram em Cupido – que passou a ser representado como um menino bochechudo, alado, com arco e flecha, mais associado ao amor romântico e brincalhão do que ao desejo avassalador que Eros podia inspirar), que conhece os atalhos do amor e da vingança. Com um leve dobrar da corda, lançou duas flechas: uma, dourada e ardente, fincou-se no peito de Apolo, inflamando-lhe um amor absoluto. A outra, fria e opaca, feriu Dafne — ninfa livre, filha do rio Peneu — e trouxe-lhe repulsa, um não que brotava das entranhas. E assim começou a dança trágica: ele correndo atrás, ela fugindo do que não queria sentir. Apolo, embriagado pela paixão, passa a persegui-la pela floresta como quem tenta agarrar um raio de sol com as mãos nuas. Dafne corre, corre até não poder mais, até a pele pedir por outra pele — não a do amante, mas a da árvore. Implora ao pai que a salve, e é atendida com dor: os pés enraízam, os braços se alongam em galhos, o corpo se cobre de casca e folhas. Ainda assim, Apolo a alcança — não a ninfa, mas a árvore que ela se tornou: o loureiro. E a abraça como quem não quer acordar do próprio delírio. Com mãos trêmulas, ele trança seus ramos em coroa. Se ela não podia mais ser sua amada, seria seu símbolo. O loureiro passaria a ornar sua fronte nos momentos de glória, nos palcos da guerra e da poesia, lembrando ao deus — e a nós — que até o desejo mais abrasador pode virar estátua, folha, memória.
A metamorfose está eternizada em mármore na Galeria Borghese, em Roma. Bernini, com dedos de gênio barroco, capturou o instante da transformação, quando a carne ainda luta contra a casca e o amor, derrotado, se ajoelha diante da perda.
Na Grécia e Roma Antigas, o
louro era símbolo de conquista e glória. Os ganhadores Olímpicos eram presenteados
com uma coroa de louros e comidinhas especiais (já tratei delas AQUI). Os césares
romanos, como Júlio César, adornavam-se com coroas da planta não apenas para
disfarçar a calvície, mas porque acreditava-se que o louro afastava o raio —
uma superstição tão elegante quanto a toga. A expressão “descansar sobre os
louros” nasceu daí: dos que podiam, enfim, largar a espada e brindar ao que já
haviam feito.
Proust encontrou o tempo nas
famosas madalenas – um tipo d ebolinhos amanteigados. Talvez encontrasse o
esquecimento num gole de alloro. Ambos exigem o mesmo: recolhimento, silêncio e
uma certa disposição para sentir o que se esconde nos detalhes.
Os poetas laureados —
laureati — deviam seus louros não apenas à glória, mas à crença de que a planta
lhes inspirava palavras. Talvez ainda inspire, quando transformada em licor e
bebida à meia-luz.
Hoje, o loureiro sobrevive
em vasos domésticos e quintais mediterrâneos, muito mais afeito às panelas do
que às batalhas. Ainda assim, conserva um certo prestígio, especialmente quando
transformado em licor. O preparo é um ritual doméstico: as folhas frescas (e
sim, precisam ser frescas, ou o licor parecerá uma calda de papel velho) são
mergulhadas em álcool neutro, onde repousam por um mês como quem sonha em
silêncio. O tempo, aqui, não é apenas espera: é coautor. É ele quem extrai do
louro suas memórias antigas, sua dignidade aromática. É ele quem adoça o
amargor da planta sem apagar sua força. Depois, de curtido o tempo e a alma
revelada, uma calda de açúcar entra em cena e o líquido verde, agora com o
brilho das coisas que fermentaram em segredo, está pronto para brindar.
É simples, sim, mas essa
simplicidade exige atenção: nada de álcool comum de farmácia, que arruína o
encanto com seu gosto de hospital e riscos de toxicidade. O ideal é usar álcool
de cereais, quase sempre invisível ao paladar, mas perfeito para realçar os
óleos essenciais do louro. Na Itália, compra-se álcool de 96% no supermercado
como quem compra pão. No Brasil, a solução pode ser a cachaça branca — mas
escolha uma de alma leve, sem o calor agressivo que destrói perfumes delicados.
Ou, claro, uma boa vodca, embora ela sempre pareça um pouco deslocada entre
folhas mediterrâneas.
É curioso como certas
folhas, quando esquecidas no fundo de uma gaveta ou mesmo na terra, secam e
somem. Mas quando mergulhadas em álcool e cuidado, transformam-se em algo que
dura. Como amizades velhas. Como certas histórias que resistem ao tempo — líquidas,
discretas, memoráveis.
E se você, como eu, vive em
um lugar onde as folhas de louro ainda podem ser encontradas frescas — nas
feiras, nos mercados do centro, talvez até no quintal de uma vizinha esquecida
da sorte que tem — então, não há mais desculpa. Faça seu Alloro. Guarde em
frascos escuros. Ofereça com modéstia, como quem não quer impressionar, mas
sabe que impressionará mesmo assim.
Porque há algo profundamente
comovente em encerrar uma refeição com uma bebida feita por suas próprias mãos,
extraída do verde que cresce sob o sol e guardada em vidro. Um lembrete de que
o fim do jantar pode ser, também, o começo de uma boa história.
Rende cerca de 1 a 1,5 litros
500 ml de álcool 96% ou 700 ml de vodca
400 g de açúcar refinado ou granulado
500ml de água filtrada
Preparo: Lave e seque as folhas de louro.
Coloque em uma tigela ou em um recipiente grande de vidro. Despeje o álcool,
mexa, cubra frouxamente e deixe macerar em temperatura ambiente. Esqueça por
pelo menos 2 semanas. Um mês é melhor. Com o passar dos dias, o álcool realça a
cor e o sabor das folhas de louro. Verifique ocasionalmente e admire, as folhas
de louro vão perdendo a cor verde dela – um sinal de que o seu preparado está
no caminho certo. Depois que a mistura de álcool já estiver na cor verde que
desejar – lembre-se quanto menos tempo elas curtindo menos verde ficará – você
deve preparar a calda. Aqueça o açúcar com 500 ml de água, mexendo
frequentemente, até que o açúcar esteja completamente dissolvido. Deixe
esfriar. Coe as folhas de louro do álcool e misture com a calda de açúcar.
Transfira para uma(s) garrafa(s) esterilizada(s). Feche bem e guarde em local
fresco por mais uma ou duas semanas. E já está pronto para beber com todos os
seus aromas.
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