É pra se comer bastante esta idéia de combinar gastronomia, cultura e história unidas num lugar acessível. Principalmente numa época onde as pessoas se entopem de gorduras trans e não alimentam a alma.
Sabendo que o homem não nasce da fome, mas do apetite. Te convido a conjugar o verbo comer em todas as suas possibilidades.
Um brinde a você por estar aqui! Bon apetit!!!
No princípio, dizem, o mundo
estremeceu com uma gargalhada dupla. Não era de homem, nem de mulher, nem de
deus severo — mas dos Ibejis, gêmeos divinos que nasceram como faíscas de uma
alegria primordial. Nos mitos iorubás, são crianças eternas, travessas e
luminosas, capazes de adoçar a boca mais amarga. É deles que brota a promessa
de que a vida, mesmo em meio à dor, precisa ser celebrada com riso, doçura e
comida partilhada.
O riso das crianças é mais
antigo do que o ferro, mais forte que o sal, mais persistente que o próprio
tempo. Entre os povos iorubás, esse riso sagrado tem nome: Ibejis, os gêmeos
divinos, filhos de Xangô e Oxum, protetores da infância e senhores da alegria.
A eles se oferece a doçura do mel, a maciez das frutas, o brilho dos brinquedos
e a fartura das panelas, porque o que se dá aos Ibejis retorna em abundância —
prosperidade, fertilidade, proteção.
Os Ibejis não são um orixá
único, mas a própria manifestação da dualidade: dois corpos, uma alma
espelhada. “Ìbejì” significa literalmente “nascidos dois”. Cada gêmeo recebe um
nome que carrega em si uma inversão curiosa e delicada: o primeiro que nasce chama-se
Taiwo — “aquele que prova o mundo primeiro” —, mas, paradoxalmente, é
considerado o mais novo, pois teria sido enviado pelo irmão para experimentar a
vida. Já o segundo, que vem depois, chama-se Kehinde, e é tido como o mais
velho, pois esperou no útero, comandando o desbravamento do irmão. Essa
inversão revela o jogo de forças entre eles: juventude e maturidade, impulso e
sabedoria.
Na tradição afro-brasileira,
essa dupla ganhou um terceiro companheiro: o Doum. Na língua iorubá, esse filho
que nasce depois dos gêmeos é chamado Idowu. Seu nascimento é visto como tão
extraordinário que, ao chegar, não apenas equilibra a balança dos dois, mas a
amplia, formando uma tríade.
No Brasil, pela força do
sincretismo e da imaginação popular, esse Idowu transformou-se em Doum, o
“irmãozinho mais novo”, inseparável dos Ibejis. Assim, quando se fala de Cosme
e Damião nas festas de caruru, fala-se também de Doum: juntos, eles formam não
apenas a imagem da infância divina, mas também a promessa de continuidade, um
eco que se abre depois do espelho.
Doum não é apenas o
"caçula": ele é o resíduo do excesso, o sabor que sobra no fundo da
panela, aquilo que não pode ser descartado porque é justamente o que dá sentido
ao banquete.
Falar de Doum é como falar
daquilo que as tradições cozinham em fogo baixo: um irmão invisível que, sem
estar nomeado, faz o caldo engrossar. Ele é lembrado quando a panela de caruru
ferve em setembro, quando os quiabos se tornam viscosos como um feitiço
infantil. Ali, entre o tempero que gruda nos dedos, está o lugar dele: o fio de
continuidade, o terceiro ritmo que impede a música de se encerrar em dualidade.
É por isso que, nos
terreiros e nas ruas, a oferenda não se destina apenas aos dois santos-meninos,
mas ao trio. A infância sagrada, no imaginário afro-brasileiro, não se limita a
pares: ela é movimento, expansão, multiplicação da alegria. Taiwo, Kehinde e
Doum são, assim, três rostos de uma mesma energia — gêmeos e irmão — que
alimentam a mesa do sagrado com risos, doces e quiabos.
Onde chegam, espalham doçura
como se fosse uma oferenda inevitável — não apenas o açúcar em forma de balas e
cocadas, mas a doçura selvagem de quem ainda não conhece o peso do tempo.
Quando chegaram ao Brasil,
arrastados na corrente escura da diáspora, esses meninos sagrados encontraram
outros nomes: Cosme e Damião, santos-meninos da devoção católica, médicos de
almas e corpos. A máscara cristã não apagou a essência africana; pelo contrário,
ampliou-a, criando uma fusão rara. Assim, os gêmeos sorridentes tornaram-se
guardiões da infância, do excesso alegre, da mesa farta.
O ritual permaneceu vivo,
transformado, mas jamais corrompido: doces distribuídos às crianças, saquinhos
de balas, cocadas brancas e marrons, mariolas que derretem nos dedos — cada um
desses presentes é mais que açúcar, é memória. É oferenda travestida de
guloseima, um pacto entre o sagrado e a carne pequena dos meninos que correm
pelas ruas.
E no centro desse rito, há
um prato que não se oferece apenas à fome, mas à eternidade: o caruru.
O caruru é um feitiço de
baba e óleo, de dendê que brilha como ouro líquido e quiabo que se dissolve em
viscosidade sensual. É o ventre da terra cozinhado em panela escura, temperado
com camarão seco, castanhas, amendoim, gengibre e fogo lento. Em cada colherada,
há uma alquimia de contrastes: viscoso e crocante, salgado e doce, pungente e
terroso. É um prato que exige devoção, porque não se prepara depressa — ele se
revela aos poucos, como uma confidência.
No Recôncavo, no sertão, em
casas de porta aberta, a tradição manda preparar sete pratos iguais. Sete, como
os meninos encantados que acompanham Cosme e Damião. Sete, como os caminhos que
se abrem diante de quem oferece. Sete, como promessa de fartura e alegria
multiplicada. E ali, adultos e crianças se sentam lado a lado, colheres na mão,
partilhando o mesmo destino de sabor.
Comer esse prato é como
recordar o gosto de uma infância que nunca morre, um gosto que não está apenas
na boca, mas no gesto de oferecer. Há um pacto ancestral que se alimenta de
nossas memórias e nos devolve à carne jovem, risonha, eterna. Entre a luz e a
sombra, entre o mito africano e o santo católico, o caruru é rito e é banquete.
Na festa de Cosme e Damião,
o Brasil que comemora se faz criança. O açúcar corre como bênção, mas é o dendê
que unge, que sela o pacto. Comer caruru nesse dia é saborear o riso dos
Ibejis, é aceitar que a vida é feita de dualidades: doce e salgado, santo e
orixá, infância e eternidade.
O caruru de Cosme e Damião
nunca chega sozinho à mesa. Ele vem acompanhado, como se soubesse que sozinho
não conteria a magia do dia. Ao seu lado repousam o vatapá, cremoso e
amanteigado, que se desmancha nos dedos como um segredo guardado em panela de barro;
a farofa de dendê, crocante, que estala com uma promessa de infância; o feijão
fradinho, discreto mas persistente, lembrando que nem tudo deve ser doce; e o
arroz branco, que acolhe cada sabor sem disputar atenção, como o pano limpo de
um altar doméstico.
Se houver acarajés miúdos,
eles dançam na borda do prato, redondos e dourados, pequenos sóis com casca
crocante e coração macio, oferecendo à boca o prazer do contraste — crocância e
calor, óleo e ar. Cada elemento, embora distinto, é cúmplice do outro. Misturar,
provar, repetir: é assim que o caruru se transforma em rito, em celebração, em
memória compartilhada. Comer é participar da história, sentir a infância dos
santos-meninos e a travessura dos Ibejis nos dedos manchados de dendê, nos
aromas que flutuam e entram no corpo como prece, como riso que insiste em se
tornar sabor.
No fundo, a mesa não é
apenas uma mesa: é um mapa da tradição, um convite à percepção de que a comida
é também mitologia, e que cada colher, cada mordida, pode ser um instante de
contato com o divino.
No fim, o caruru explode em
cores e sabores como uma festa que nunca termina. Comer com os Ibejis, com
Doum, com Cosme e Damião, é dançar com o sol, sentir a alegria que não se mede,
a doçura que não envelhece, a vida que insiste em florescer.
Não há limites entre o
divino e o mundano: cada mordida é oração, cada risada, oferenda. O caruru não
é apenas comida: é riso cristalizado, é luz líquida, é uma torrente que
atravessa a boca e explode no peito.
E assim, quando provamos,
somos invadidos pela alegria que não se mede, pela doçura que não envelhece,
pela vida que insiste em florescer. É a infância eterna, a travessura sagrada,
o canto solar que os Ibejis sopram sobre nós — uma experiência que não se
esquece, um abraço do cosmos, que nos lembra que a festa nunca termina e que,
enquanto houver dendê, risos e quiabos, estaremos todos dançando com os gêmeos
divinos.
Comer com os Ibejis é
aceitar que, no fundo de cada panela, ainda escutamos o eco do riso primordial.
Receita de Caruru
1 kg de quiabo fresco, cortado miúdo
200 g de camarão seco, limpo e socado
100 g de castanha de caju torrada
100 g de amendoim torrado sem pele
2 cebolas grandes picadas
3 dentes de alho amassados
1 pedaço de gengibre ralado
200 ml de azeite de dendê
500 ml de caldo de peixe ou camarão
Sal e pimenta a gosto
Suco de 1 limão
Preparo: Lave e seque os quiabos. Corte-os em
rodelas finas. No pilão, triture o camarão, a castanha e o amendoim até formar
uma pasta. Refogue cebola, alho e gengibre em um pouco de dendê até dourar. Acrescente
o quiabo e mexa até começar a amaciar. Junte a pasta de camarão e castanhas,
misture bem. Despeje o caldo e cozinhe lentamente até engrossar. Finalize com
dendê, limão, pimenta e sal. Sirva em pequenas porções, lembrando que comer é
também oferecer.
Há vozes que não se calam.
Mesmo quando o corpo parte, mesmo quando o palco se fecha, mesmo quando a
respiração que soprava a canção cessa — há vozes que permanecem pairando sobre
nós como incenso. Há vozes que não obedecem ao tempo. E nisso, há cantoras que
não precisam da eternidade porque já nasceram eternas. Gal Costa é uma dessas.
No dia em que completaria
oitenta anos, descubro-me em saudade: a falta de alguém que nunca conheci de
perto, mas que me atravessou pela boca e pelo ouvido, como perfume de dendê
invadindo a casa antes mesmo da panela ferver.
Desde que comecei a
organizar minhas listas de músicas no celular, o danadinho insiste em me dizer
quais são as mais ouvidas. Gal está sempre lá. É como se ela risse de mim, como
se dissesse: "você não consegue se livrar de mim, menino." E
não consigo. Foi com ela que descobri que se pode amar uma versão de música
como quem ama uma fruta madura: primeiro pelo estranhamento da casca, depois
pelo vício doce da polpa.
Ouvi-a primeiro na
estranheza de Dando um rolê — estranheza que me atravessou como quem
prova, pela primeira vez, um prato picante, sem saber se gosta, mas fascinado
pela intensidade. Depois veio a fartura alegre de Festa no Interior, que
me faz sentir ao mesmo tempo o cheiro do milho verde assando, o balançar das
bandeirinhas coloridas, o calor das fogueiras de São João — com a vibração e o
colorido de um carnaval onde cabem o amor inteiro e o sol do Nordeste, dentro
de um refrão.
Quando Gal cantava Vapor
Barato, não era apenas uma canção: era uma travessia. Ela cozinhava o
desalento como quem faz redução de vinho tinto: em fogo baixo, até restar só o
perfume escuro e espesso da saudade. Eu a ouvia como quem prova um vinho forte,
que primeiro arde e depois aquece. Aquelas calças vermelhas, o casaco de
general, os anéis que brilhavam como especiarias raras — tudo era mais que
imagem: era sabor de rebeldia, era cheiro de rua molhada depois da chuva, era o
corpo inteiro atravessado por um cansaço que não se rende.
Na sua voz, o desalento se
tornava beleza: a exaustão virava dança, a obsessão era temperada em melodia
até se fazer banquete.
Quando penso em Gal, penso
na boca. Não só por vaidade estética — mas porque ali morava um feitiço. Era a
boca do gato de Alice, sim: que sorria antes da fala, e permanecia mesmo depois
do silêncio. Era também uma boca de Iemanjá, feita de mar e magia, que nos
oferecia frutas que ninguém sabia nomear. Fruta gogoia, dizia ela. Seria um
nome ou um aviso? Um fruto proibido ou uma oferenda? Seja como for, era
vermelho. Vermelho como a urgência de um beijo, como o fogo da panela de barro,
como o sangue que corre depois de uma saudade. Gal não falava — ela mordia o
mundo com doçura.
Gal, com seu cristal indomável, que era a voz,
transformava o abandono em erotismo, e o adeus em promessa de retorno.
Escutá-la era como entrar num navio antigo sem saber o destino, confiando
apenas no balanço do mar — e aceitando, grato, que às vezes é preciso perder-se
para um dia voltar.
Quando criança, sempre que
eu ouvia Gal cantando Azul, achava que havia nela alguma espécie de
desajuste secreto. Como se aquele “não sei se vem de Deus / do céu ficar azul”
fosse uma confissão de quem não se encaixava no mundo. E, na minha cabeça
infantil, Gal era solar demais para duvidar do céu. Ao mesmo tempo, parecia
anunciar que a beleza poderia se quebrar.
Mais tarde, entendi que era
só o jeito dela de cantar o mistério — e que talvez, como ela mesma dizia na
música, fosse preciso assumir o risco de “anoitecer” para poder voltar a ser
“amarelinho”, queimando mansinho.
Em Azul, Gal parecia
destilar a própria luz do dia em sua voz. Havia algo de oceânico no modo como
ela cantava, como se a maresia entrasse pela janela e se assentasse na pele,
deixando um rastro de frescor e desejo. O azul, na boca dela, não era apenas
cor — era tempero secreto, aroma marinho que se misturava ao amarelinho do sol
nascente, queimando mansinho, cedinho, como o cheiro de pão recém-assado ou de
fruta cortada ao amanhecer. Escutá-la era sentir o mundo inteiro se tingir de
azulzinho, como se o amor tivesse gosto de água doce e sal ao mesmo tempo.
Gal transformava Djavan em
alquimia: fazia do céu um prato de cores, do mar uma taça, e da vida um
banquete onde a simplicidade — dizer que o amor é “azulzinho” — tornava-se
revelação absoluta.
Mas foi em Baby que
ela me embalou de forma íntima. A canção parecia um manual de vida ao mesmo
tempo simples e profundo: tome um sorvete, aprenda inglês, veja o mundo,
veja-me. Era como se a doçura de uma sobremesa gelada se misturasse com a lição
da existência. Ali, ela se tornava conselheira, amante, amiga.
Não me atrevo a “Caetanear”
com a leveza que ele tem, nem a “Djavanear” com o sol que sua voz derrama sobre
as palavras. Não domino o mistério que só eles vestem com naturalidade, nem sou
dono das cores que eles pintam nas melodias. Mas, para você, Gal, ouso tecer
palavras — mesmo que simples, ainda que imperfeitas — como quem borda um véu
delicado para cobrir a ausência e dar forma ao silêncio. Não é canção que
escrevo, mas um sussurro em forma de carta, um convite para que você, no seu
eterno azul, me escute. Porque falar contigo é atravessar o tempo, é dançar na
margem do que fica, é cantar a saudade com a única voz que me resta: a do
coração.
🌎
Minha carta à Gal
Baby,
se você pudesse voltar um
instante, eu lhe contaria o que aconteceu depois que você partiu.
Você precisa saber que o
Brasil ainda dança, mesmo quando chora. Que as ruas continuam cheias de cores, mas
o país se despedaça em discursos — e mesmo assim, ainda há quem plante
ipês-amarelos para acreditar na primavera.
Você precisa saber que o
mundo correu mais rápido, que inventaram novas formas de amar e odiar através
de telas luminosas que não dormem nunca. Até criaram modos de reencontrar os
mortos em vozes gravadas — e isso me assusta.
Baby, você precisa
experimentar café com leite de aveia —
só pra lembrar como o leite da vaca, profano e denso, ainda faz diferença. Precisa
ver a Marginal de patinete, ouvir o barulho das máquinas que escutam a gente mesmo
quando a gente não diz nada.
Baby, estão me dizendo que é
preciso reaprender a amar
sem recibo,
sem Wi-Fi,
sem performance.
Já pensou?
A beleza agora vem com
hashtag, há poesia nos memes, e a Carolina agora virou empreendedora: vende
marmita fitness e faz reels com receitas em 15 segundos.
Você não sabe, mas criaram
um app pra meditar e outro pra lembrar de respirar. A Bahia segue lavando
escadarias, mas agora com drone filmando de cima, e cada moqueca servida em
barro ainda é uma oferenda pra sua voz.
Baby, baby, você partiu, mas
o mundo, teimoso, segue lhe citando em silêncio.
Quis parar por aqui. Mas
você sussurrou: 'Menino, continua, me conta mais... Eu mesmo aprendi a
viver dizendo seu nome baixinho, como quem aprende inglês numa música dos
Beatles, ou como quem aprende amor ouvindo você cantar Coração Vagabundo.
E no fim, Gal, eu só queria
que soubesse: ainda está tudo azul comigo,
mesmo que às vezes o azul seja melancolia. E ainda está tudo em paz contigo,
porque a sua paz é o fogo eterno da sua voz.
Baby,
você ainda é tudo isso, mesmo
que o mundo tenha virado stories de 24 horas.
E no fundo, entre um like e
uma solidão digital, todo mundo ainda quer ouvir: “Baby, eu sei que é
cafona, mas I love you.”
Depois que escrevi isso,
senti um sopro no ouvido. Era como se Gal me dissesse: "Menino, o azul,
mesmo triste, ainda é céu."
Fiquei comovido. Mas lembrei
do início de Vaca Profana: “Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda
mais minha risada.”Por isso, eu deveria
sentir tudo isso sem me colocar numa caixa, nem numa vitrine, nem na medida
estreita dos caretas.
E não posso sair sem falar
do êxtase maduro de Sexo e Luz. Gal me arrebatou outra vez. Sua voz,
cristalina e indomável, era como vinho branco servido gelado em taça fina:
fazia o corpo suspirar, fazia a alma querer transbordar.
Em Sexo e Luz, Gal
não canta — ela se despe. Cada palavra desliza como lençol de linho depois do
amor, e sua voz, embriagada de revelação, pulsa como carne que se reconhece
divina por um instante. Ali, o prazer não é só toque — é sussurro que abre
portais. E quando ela diz que “se banhou” e “se lavou”, é como se o próprio
corpo se tornasse templo, e o gozo, um batismo de volta ao que é essencial.
Gal não interpreta o êxtase
— ela o canaliza, o atravessa.
E ouvindo-a, a gente entende que há um tipo de entrega que não cabe em
palavras: apenas em gemidos, silêncios acesos, gritos que se lançam não para
fora, mas para dentro do outro. É música feita com a carne, com o suor, com o
fogo — e com a paz que vem depois dele. Ela canta como quem acaba de amar e,
ainda ofegante, sussurra para o universo: “Eu estive lá — e era luz.”
Gal era como comida rara:
não se repetia, não se substituía, apenas se celebrava. Talvez por isso, quando
soube que certa vez ela escolheu uma moqueca como prato para partilhar num show
que envolvia gastronomia, em São Paulo, compreendi tudo.
Quem escolhe moqueca escolhe
o abraço coletivo,
a partilha do fogo, a alquimia entre peixe, leite de coco e o vermelho intenso
do dendê. Gal serviu sua própria voz assim: quente, luminosa, compartilhada.
Eu a conheci tarde. Mas
aproveito muito, até hoje. Mas aproveito
suas músicas como quem raspa a panela para não perder nenhum traço de sabor.
Hoje, celebro seus oitenta
anos que não se completam neste mundo.
Só me resta escrever-lhe, como quem escreve para uma santa pagã, uma deusa
profana, uma mulher que me ensinou que música e comida são a mesma coisa: uma
fome que nunca se sacia.
Vou derramar estas palavras
no papel como quem derrama vinho raro numa taça de cristal, deixando que cada
letra seja um sopro quente de desejo e memória. Depois, envolvo tudo em fumaça
de incenso — para que o céu, essa imensa catedral de estrelas e silêncio,
receba este delicado ritual de saudade e reverência.
Que você, Gal, possa
saborear cada gesto, cada cor, cada aroma escondido nestas linhas — como um
beijo que transborda da boca vermelha para o infinito, e volta, eterno, em
ondas de luz e calor.
Que este escrito seja festa
e mistério, alimento e abraço, convite e promessa: que a sua voz nunca se cale,
que o seu fogo nunca se apague, que o seu sorriso continue a brilhar, gato
enigmático, no coração da noite e no desabrochar do dia.
E se um dia me perguntarem quem
foi Gal Costa, direi: foi o prato mais quente que o Brasil já serviu. E eu,
menino diante da panela, só queria mais...
🍲MOQUECA BAIANA À TROPICÁLIA
(receita da Chef Ana Célia, prato
escolhido por Gal Costa para o show no Zanzibar, em São Paulo)
Ingredientes
1 kg de peixe fresco (badejo ou pescada
amarela)
2 tomates
1 pimentão vermelho
2 cebolas
2 colheres de coentro picado
1½ copo de leite de coco fresco
50 ml de azeite de dendê
Alho, limão e sal a gosto
Preparo: Limpe as postas de peixe e
tempere com alho, sal e limão. Reserve. Em um recipiente, macere metade dos
ingredientes (1 cebola, 1 tomate, ½ pimentão, 1 colher de coentro picado). Misture
os ingredientes macerados ao peixe. Disponha numa frigideira, em fogo alto, o
peixe já temperado. Cozinhe por 15 minutos, acrescentando o restante dos
ingredientes (cortados em rodelas). Finalize com o azeite de dendê. Sirva
quente, acompanhado de arroz branco, pirão ou farofa.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
DO FOGO DO AMOR AO PRATO DA
VIDA — 80 ANOS DE GONZAGUINHA EM ALTA TEMPERATURA
Nasci em uma serra cearense
farta, onde os feijões vinham em muitas peles e perfumes — feijão macassa,
feijão branco, feijão fradinho, feijão verde, feijão rosado, rajado, catador,
carioca, mulatinho, jalo, bolinha, andu, etc... O preto, curioso e espesso, era
guardado quase com cerimônia para os dias de feijoada, como quem reserva um
vinho raro para quando o mundo estiver menos áspero.
Minha relação com o feijão
de corda — esse personagem cearense de tantas encarnações — é, confesso, uma
história de amor e desavenças. Quando verde, recém-tirado do campo, servido com
nata espessa, bastante coentro e queijo coalho derretendo sem pressa, ele me
seduz, me abraça, me devolve à infância com colheradas de ternura. Mas, seco...
ah, seco ele me trai. Traz consigo um gosto terroso, áspero, quase mineral, que
me afasta como um perfume em desacordo com a pele. Ainda que o feijão de corda
seja um dos protagonistas do tradicional baião de dois — prato que tem nome de
música e cheiro de festa —, se não estiver verde, nem torço o nariz: viro o
rosto com leve mágoa.
Lá em casa também havia na
mesa os ‘feijões grandes’, quase míticos, aqueles que meu pai — com seu humor
cearense sem filtros — chama de ‘rasga-cu’, nome que diz tudo sem precisar de
metáforas: causadores de gases profundos, expansivos, e nada civilizados. Mas
hoje, peço que fiquem comigo até o final. Porque, entre memórias, gargalhadas e
canções, vocês vão descobrir como um feijão pode se tornar algo absolutamente
surpreendente. Um segredo de colher, de forno e de festa.
Naquela mesa da infância, o
feijão era plural — variado como os humores da terra e os modos de amar. Anos
depois, numa conversa com meu pai, me dei conta de que no Rio de Janeiro — onde
ele viveu e se fez homem — o feijão preto era (e ainda é) rei cotidiano.
Ali, ele não era exceção:
era regra, devoção, hábito, saudade no prato. Essa revelação me atravessou como
uma melodia inesperada, daquelas que a gente pensa que nunca ouviu, mas canta
junto já na segunda estrofe. E me dei conta, com um sorriso lento, que
Gonzaguinha — esse outro filho do Rio — também tinha o preto no centro da sua
mesa, do seu canto, da sua luta. E que talvez, como eu, ele também visse no
feijão algo mais do que alimento: um símbolo do que somos, do que resistimos,
do que celebramos.
Por um instante, feche os
olhos.
Sinta o cheiro do feijão
cozinhando em fogo brando.
Ele dança no vapor — dança
como o corpo de um Brasil que pulsa mesmo na dor, que ama mesmo ferido, que
canta porque é urgente viver. Gonzaguinha faria 80 anos ontem. Se estivesse
entre nós, talvez risse alto ao ver a ousadia de transformar seu "pretão
maravilha" em brownie. Mas, se tivesse tempo para provar, riria mais
ainda, e com a boca cheia.
Esse ensaio é um convite à
mesa — não apenas àquela feita de madeira, pratos e cadeiras. Mas à mesa da
memória, do corpo, da música, da política e da doçura. É uma oração em voz
alta, como ele cantou: "Quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda...
é apenas o meu jeito de viver o que é amar."
A FOME QUE NÃO É SÓ DE
COMIDA
Gonzaguinha não fazia
música, fazia oferendas.
Seu cantar não era só nota —
era mordida. Era dente no caroço da vida. Era colher raspando o fundo da
panela. Um compositor que transformou a pobreza, a opressão, o afeto e a
rebeldia em iguarias que hoje ainda alimentam.
E quantas formas tem a fome?
Há a fome de justiça que
sangra em "Comportamento Geral", com o sabor irônico de um país que
serve migalhas e exige gratidão: "Você merece, você merece... tudo vai
bem, tudo legal. Cerveja, samba e amanhã, seu Zé, se acabarem teu carnaval?"
Há a fome do amor maduro,
aquele que conhece o fel, o mel, o depois, como em Grito de Alerta: "Veja
bem, nosso caso é uma porta entreaberta..."
E há também a fome de viver,
que arde como pimenta malagueta na boca, queimando e rindo ao mesmo tempo, na
pureza quase infantil de O Que É, O Que É?: "Viver... e não ter a vergonha
de ser feliz..."
Gonzaguinha cozinhava
palavras como quem tempera com a alma — e deixava queimar, se fosse preciso.
Porque o sabor da vida não se aprende nos livros de receita, mas no improviso
da sobrevivência. No Brasil real, onde a panela às vezes canta mais que o rádio.
QUANDO A MÚSICA TEM GOSTO
Há canções que nos confortam
como um arroz com feijão recém-feito. Outras, nos acordam como café forte
demais. Mas algumas são doces. Ardentes, sensuais, quase licorosas, como
Começaria Tudo Outra Vez. Um bolero que se despe como amante desesperado, sem pudor,
pedindo mais uma dança, mais um beijo, mais um copo: "A Cuba libre dá
coragem em minhas mãos..."
O lirismo dessa canção não é
apenas erótico — é existencial. É sobre recomeçar, mesmo sabendo tudo o que
pode doer. É como amar de novo o mesmo prato que já queimou a boca. Mas amar,
ainda assim.
Há músicas que soam como
receitas de família: repetidas, sagradas, com seus tempos certos de fervura e
silêncio. Para mim, nenhuma soa assim tão perfeitamente quanto Lindo Lago do
Amor. É um prato para ser comido devagar, de olhos fechados, como se a primeira
colherada dissolvesse o mundo em água morna. Há ali uma geografia úmida que
lembra os fundos das casas rurais nordestinas, onde a água de lavar pratos
escorre pro quintal e alimenta as ervas nascidas entre pedras.
"Ele tomou um banho
d’água fresca / no lindo lago do amor" — e a imagem se mistura à lembrança
de banhos de rio após a lida, quando o corpo cansado se deixava purificar. É
uma música que hidrata. Que cozinha o peito em fogo brando, sem pressa, até
amolecer tudo por dentro. E, no prato da memória, ela vem acompanhada de uma
paz delicada — a que só o amor calmo, que não exige nada, sabe oferecer.
Gonzaguinha não canta apenas o lago: ele serve o lago à mesa, nos convida a
mergulhar com o paladar e os olhos, feito ritual de ternura.
E há outras canções que,
como entradas ou sobremesas que desafiam o convencional, merecem ser lembradas
pela potência de seus sabores. Semente do Amanhã tem gosto de esperança em
casca dura: como uma castanha ainda verde, que só o tempo adoça. É alimento da
fé, do “não se desespere não, nem pare de sonhar”, cozido no caldo da luta
cotidiana.
Eu Apenas Queria Que Você
Soubesse vem com o sabor agridoce das coisas que quase esquecemos, mas que
resistem feito perfume antigo guardado entre roupas limpas. Ela fala de
recomeço como quem fala de fermento natural — aquele que se guarda, se
alimenta, se respeita, e que nos faz crescer por dentro.
Explode Coração é pimenta
malagueta: vermelha, inevitável, intensa. Não há como ouvir e não arder. Rasga,
perfuma, acorda. Em Explode Coração, há a libertação do corpo — que também é
alimento, também é oferenda:
"Eu quero mais é me
abrir... e que essa vida entre assim, como se fosse o sol desvirginando a
madrugada..." Esse verso é uma receita de vida, com o calor de um forno
aceso em noite chuvosa.
Já Grito de Alerta tem gosto
de prato interrompido: aquele que começa doce, mas azeda no meio, entre
silêncios e acidez. São canções que alimentam, mas não acomodam. Não se
contentam com o trivial. Têm o poder de transformar nosso apetite — pela vida,
pela verdade, pelo amor — em algo mais exigente, mais inteiro, mais humano.
FEIJÃO: O HINO COMESTÍVEL DA
BRASILIDADE
E então chegamos ao feijão.
Ah, o feijão.
Gonzaguinha não teria
escrito um tratado acadêmico sobre identidade brasileira — não precisava. Ele
já havia escrito O Preto Que Satisfaz, onde o feijão é elevado à categoria de
símbolo nacional. Mas não como abstração. Como algo que se cheira, se come, se
festeja.
"Feijão, pretinho
básico, sabor bem Brasil, que satisfaz dez entre dez brasileiros..."
O feijão de Gonzaguinha é
mais que comida. É gente. É velho amigo do peito. É pai e mãe e filho sentados
à mesa, dividindo silêncio, risada, lágrima e sustança.
Na música, ele diz que, à
mesa do feijão, esquecemos os preconceitos. Porque o alimento é um lugar onde a
democracia ainda sobrevive: cada colherada é um manifesto. Cada grão é
resistência.
E se Gonzaguinha foi a voz
de uma geração, o feijão é sua trilha sonora culinária.
DO FEIJÃO DA LUTA AO FEIJÃO
DA SOBREMESA
Agora, imagine:
O mesmo grão que acalentou
gerações em panelas de barro, agora transformado em brownie.
Sim, brownie. Uma dança
delicada entre o doce e o amargo, entre o ancestral e o moderno, entre o que se
espera e o que surpreende.
Transformar o feijão em
sobremesa é um ato de amor e ousadia — como foram as músicas de Gonzaguinha. É
subversão, mas também ternura. É dizer: não há limites para o que o povo pode
criar com o que tem.
Assim como suas letras
faziam da dor poesia, fazemos do feijão um doce.
Porque, como ele nos
ensinou: "A atitude de recomeçar é todo dia, toda hora."
E se é para celebrar os 80
anos de Gonzaguinha, que seja com algo que ecoe sua alma. Algo bonito. Algo
valente. Algo que abrace.
Algo com feijão.
Porque viver, no fundo, é
isso:
É levar a panela ao fogo
como quem acende uma esperança.
É cantar com a boca cheia,
sem medo de parecer brega ou faminto.
É provar do feijão, mesmo
aquele que a gente jurou não amar.
É saber que Gonzaguinha não
morreu: ele segue ali — no caldo grosso das manhãs, na colher que acaricia o
prato, no amor que insiste, mesmo depois do gosto amargo.
Viver é aceitar o gosto
inesperado, permitir que a vida ferva devagar, até caramelizar as memórias.
É servir o coração em
pedaços — quentes, doces, contraditórios.
Como quem canta de olhos
fechados.
Como quem ama sem receita.
Como quem, mesmo depois de
tudo, ainda acredita no fogo da transformação...
BROWNIE DE FEIJÃO PRETO — O PRETÃO QUE
DERRETE NA BOCA
Ingredientes:
300g de feijão cozido e sem o caldo (sem
tempero algum)
30g de aveia em flocos finos
55g de óleo vegetal
15g de cacau em pó 100%
40g de achocolatado (tipo Nescau ou
Toddy)
160g de açúcar mascavo
1 ovo
1 colher de sopa de vinagre de maçã (se
não tiver use apenas vinagre de álcool)
1/2 colher de sopa de bicarbonato de
sódio
50g gramas de chocolate meio amargo
picado para a massa
150g de chocolate meio amargo picado
decorar
100g de castanha de caju torrada picada
(opcional, mas faz diferença)
Obs.: Use aveia em flocos bem finos e
bata bem!!!
Preparo: importante ressaltar que para
essa receita, cozinhe o feijão preto apenas com água até que esteja macio.
Depois de frio, escorra a água do cozimento e lave bem para ficar apenas com os
grãos. No processador, bata o feijão cozido escorrido com o açúcar, o ovo, o
óleo de coco, o extrato de baunilha e bata por três minutos. Junte o cacau, o
achocolatado, a aveia em flocos finos, o bicarbonato e uma colher de vinagre e
bata por mais três minutos. Acrescente 50 gramas do chocolate em barra quebrado
e bata por mais um minuto. Junte as castanhas picadas, misture com uma colher e
despeje a mistura numa forma pequena untada com manteiga e forrada com papel
manteiga. Espalhem bem a massa, coloque as 100g restantes do chocolate picado
distribuído por cima da massa e leve para assar por 30 minutos a 180 graus.
Deixe esfriar, retire da forma e sirva como desejar.
Sirva com café forte, uma lágrima nos
olhos, e um disco de Gonzaguinha tocando baixo ao fundo.
Há mulheres que não
pertencem apenas ao cinema: pertencem ao mito. Claudia Cardinale foi uma delas.
Carregava em si aquela ambiguidade mediterrânea: era o sul árabe que fervilha
de especiarias e, ao mesmo tempo, a península itálica, com sua mesa coberta de
massas, azeite e vinhos rubros. Quem a via, acreditava na fantasia de
celulóide; quem a escutava, sabia que havia nela uma doçura irônica, uma fome
de vida que ia além dos refletores.
A notícia da sua partida
hoje reabre as imagens que ela deixou — Angelica em Il Gattopardo, a menina dos
sonhos em 8½, a mulher feita de pó e pólvora em Once Upon a Time in the West —
e lembra que a vida das grandes atrizes tem sempre um sabor próprio, um tempero
que não cabe em críticas nem em cartazes. (Morreu aos 87 anos.)
Claudia nasceu entre o sal e
o sol do Mediterrâneo: tunisina de origem, italiana por destino, francesa por
laços. Estrela de uma era dourada em que as telas europeias se curvavam a vozes
e a feições que sabiam conjugar desejo e dignidade, ela dividiu tempo e
prestígio com outras deusas do cinema — Sophia Loren, Brigitte Bardot, Gina
Lollobrigida — e aceitou papéis que a fizeram símbolo e mistério. Seus melhores
papéis se inscreveram na arquitetura lenta de Visconti e no delírio polifônico
de Fellini, e isso a colocou no cânone do que chamamos cinema europeu dos anos
1960.
É quase íntimo pensar que,
por baixo da pellicula, havia uma mulher que também se movia por prazeres
simples e sensoriais: Martinis bem secos antes do jantar, um caviar para
começar, mariscos e um bife florentino para prolongar a noite — e vinhos
tintos, sempre encorpados. Esse detalhe, citado em perfis e entrevistas, nos
aproxima da ideia de um paladar sofisticado e direto ao mesmo tempo: luxo que
não se envergonha do básico.
A receita que hoje chamamos,
com carinho e certo arrojo, de Spaghetti alla Claudia Cardinale está escrita
num pedaço de papel italiano pautado, à tinta azul — caligrafia que parece ser
de uma tia, de uma irmã, de uma mulher que colecionava recortes de revista e
memórias de celebridades. A folha aparece amarrotada entre arquivos de família:
é a história íntima de como a fama chega às cozinhas comuns, por caminhos de
fofoca, de recorte e de afeto.
Não sabemos — e não é
necessário saber com certeza — se a receita saiu da boca de Claudia ou da
coluna de uma revista; sabemos, isso sim, que ela viajou nas páginas e nas mãos
até encontrar a panela certa, a manteiga perfeita, o presunto que derrete. (Uma
versão dessa trajetória e da receita circula em blogs culinários que
recuperaram a anedota familiar — o arquivo de receita da mãe, a tia Gilda que
copiava as páginas).
Permita-me, então, cozinhar
essa história. A Itália doméstica — aquela que mais nos interessa quando
falamos de alimentos e de memória — é feita de simplicidade elevada: cacio e
pepe, aglio e olio, pasta burro e parmigiano.
O Spaghetti alla Claudia
encaixa-se nessa liturgia: poucos ingredientes, mão leve, resultado que parece
inesperadamente opulento. A manteiga, ao invés do azeite, dá um hálito de sala
aquecida; o presunto cozido (prosciutto cotto) traz sal e maciez, em contraponto
com o parmesão, que chove sobre tudo como neve antiga; as ervas frescas lembram
que, mesmo entre as estrelas, é a frugalidade que sustenta o sabor.
Quando se cozinha um prato
assim para homenagear uma atriz do calibre de Cardinale, não se trata apenas de
imitar — trata-se de recuperar uma cena: ela, ao fundo, rindo; uma taça sendo
preenchida; o fio de massa brilhando sob a luz quente da cozinha. (Há
fotografias antigas que a mostram com garfo e prato, imagens que viraram
iconografia de uma era; a foto em que ela parece servir ou provar um spaghetti
tornou-se praticamente um emblema dessa ligação entre atriz e alimento).
Sentir a mão dela na receita
é acreditar num cinema comestível: o gesto do cortar o presunto em juliennes é
praticamente um close; a manteiga que crepita é o som da trilha; a concha da
água de cozedura traz a suspensão entre cena e cena. E o vinho — sempre o vinho
encorpado, que ela preferia — é o que transforma o ato de comer em rito:
brinda, apaga a câmera, e devolve a plateia ao silêncio feliz do estômago.
Abaixo segue a receita em
português, fiel ao modo tradicional descrito no arquivo que circulou pela
família e em reproduções contemporâneas — uma receita que é, simultaneamente,
objeto de memória e convite à mesa.
Feito assim, o prato
funciona como epitáfio comestível: breve, ardente, memorável. É uma homenagem
que não deposita a atriz numa vitrine inatingível; antes, coloca-a à mesa —
onde sempre esteve, nos instantes quietos entre um take e outro, entre um copo e
outro, entre um riso e um arfar de fronha.
Que se cozinhe este
spaghetti com a mesma insolência com que Claudia ocupava a cena: sem pedido de
permissão, mas com profunda reverência. Que se coma devagar, com as mãos que
lembram aplausos, e que se reparta; porque a melhor maneira de honrar uma vida
de cinema é transformá-la em alimento que prossegue em outros corpos.
Comer este spaghetti é
aceitar que a vida é breve, mas cheia de momentos voluptuosos. É saborear
Claudia Cardinale não como estrela distante, mas como mulher que soube fazer da
simplicidade um luxo.
Ao final, resta apenas uma
taça de vinho tinto encorpado e a lembrança de que — como no cinema — o prato
se acaba, mas o mito permanece.
Spaghetti alla Claudia Cardinale
(rende 4 porções)
Ingredientes
Água e sal para cozinhar a massa
100 g de manteiga
100 g de presunto cozido (prosciutto
cotto), fatiado fino e cortado em julienne (tiras finas) — se não encontrar,
use um presunto de boa qualidade do açougue/deli
Um punhado de salsa fresca (aprox. 1/4
de xícara) — picada finamente
5–6 folhas de manjericão fresco —
rasgadas ou picadas grosseiramente
500 g de spaghetti
Parmigiano-Reggiano ralado na hora, à
vontade para cobrir e acompanhar
Preparo: Leve uma panela grande com água
ao fogo até ferver. Tempere generosamente com sal. Enquanto a água esquenta,
prepare o molho: em uma frigideira larga, em fogo baixo, derreta a manteiga até
que comece a borbulhar levemente e cheire a noz. Acrescente o presunto cortado
e as ervas. Desligue o fogo e tampe para manter aquecido. Cozinhe o spaghetti
conforme as instruções do fabricante, porém deixando-o bem al dente
(ligeiramente mais firme do que o tempo indicado). Quando a massa estiver quase
no ponto, acenda novamente o fogo sob a frigideira e, com um pegador de massa
ou um garfo de macarrão, transfira o spaghetti direto para a frigideira. Junte
uma concha da água do cozimento — esse líquido é ouro: emulsiona a manteiga e
dá brilho à massa. Misture vigorosamente até que os fios fiquem sedosos e bem
envolvidos pelo molho. Transfira para uma travessa aquecida, polvilhe
generosamente com Parmigiano, mexa mais uma vez e sirva imediatamente. Ainda à
mesa, ofereça mais queijo e uma taça de vinho tinto encorpado.
Dica sensorial: use manteiga de boa qualidade e um
presunto com um leve toque defumado, se possível — o contraste entre a
untuosidade da manteiga e a delicadeza salgada do presunto é o que transforma a
frugalidade em sedução.
Havia em Angela Ro Ro uma
força que não cabia em molduras. Nem na da MPB romântica, nem na do rock, nem
na caricatura de “diva excêntrica” em que tantos tentaram prendê-la. Sua voz
era como uma navalha mergulhada em mel: cortava fundo, mas deixava o paladar
impregnado de doçura, de dor, de um gozo intragável. O Brasil, tão acostumado a
suavizar seus ídolos, nunca soube lidar direito com alguém que não pedia
licença nem perdão.
Certa vez, um colega
professor contou-me de uma noite em que foi a um show dela. Movido pelo
delírio, subiu ao palco e, em ímpeto, ficou nu diante da cantora. Angela não
piscou, não riu, e soltou aos berros: "sai do meu palco, viado magro"
- com aquele jeito esculachado e cortante que misturava fúria e humor. Era
isso: ela não concedia a ninguém o direito de roubar-lhe o centro, porque o
palco era dela, corpo e sangue.
A mesma Angela que
escandalizava era também aquela que, com um piano ou um cigarro na mão, fazia
multidões suspenderem a respiração diante de um verso. Amor, meu grande amor,
seu maior sucesso, não é uma simples canção: é uma pedrada lançada contra a
covardia dos sentimentos mornos. Foi, e é, um desbunde emocional que desancou
muita gente, que quebrou espelhos e devolveu verdades. Como toda boa canção,
não se contentava em consolar: obrigava a doer.
Amor, Meu Grande Amor,
canção que é faca, bálsamo e sentença. Não é apenas uma música de amor — é um
ataque frontal à carne e ao espírito, capaz de desarmar os mais cínicos e de
expor, sem piedade, o coração dos desavisados. Nessa canção, Angela não sussurra,
não pede: ela exige. É amor que não admite covardias. Talvez por isso tenha
atravessado décadas como uma pedrada lírica, sempre pronta para desancar quem
se acha intocado pelo sentimento. E se a versão original já arrastava multidões
para dentro de sua fossa iluminada, o raro dueto com Ney Matogrosso pode ser
ouvido aqui ( https://youtu.be/Ut5h7WnNStU?si=4AfpyJ1_j6enKTCx )
— encontro de duasforças indomáveis, vozes que ardem em brasas, quase
impróprias para ouvidos frágeis.
É o tipo de registro que não
se ouve impunemente: nele, Angela e Ney parecem beber juntos do mesmo cálice
escuro, cada um sorvendo a parte do outro, até que a canção se torne, de fato,
mais do que música — uma espécie de rito iniciático do amor em estado bruto.
Era amiga de Cazuza — outro
incendiário da vida — e não é difícil imaginá-los dividindo gargalhadas, copos
e confissões, tramando maneiras de desafiar o tédio do mundo. Neles havia esse
parentesco da intensidade: viver não era sobreviver, era incendiar, era cantar
no limite da garganta até que o sol nascesse.
Talvez seja essa mesma chama
que encontramos na raríssima versão de “Amor, Meu Grande Amor” com Ney
Matogrosso — parceiro antigo de Cazuza — onde vozes que respiram fogo se
entrelaçam, ecoando o mesmo pacto de entrega total. É como se a presença de Ney
fosse um fio invisível que conecta a memória de Cazuza à audácia de Angela,
transformando cada nota em uma confissão, cada pausa em um desafio à covardia
do mundo.
Angela nunca escondeu seu
gosto pela bebida. Falava dela com a mesma franqueza com que falava dos amores,
das mágoas, das paixões. O álcool era, em sua vida, mais do que vício ou
prazer: era metáfora de um existir em alta voltagem, feito para queimar, não
para durar em silêncio. E como quem pressagia seu próprio mito, deixou escrito
em Gota de Sangue (1979): “Não tire da minha mão esse copo, beba comigo a gota
de sangue final...”. Eis o retrato mais cru e belo de sua alma: beber com ela
era beber a vida inteira, até a última gota.
É por isso que, para
despedir-me dela, não escolho um coquetel delicado ou meramente decorativo. O
brinde há de ser com um Sazerac — um dos drinks mais antigos e brutais da
história, nascido em Nova Orleans como uma promessa de intensidade. Nele, rye
whiskey ou conhaque se encontram com o absinto, esse fantasma verde que já
embriagou poetas e escandalizou sociedades. O açúcar e o bitter apenas
equilibram, mas nunca adoçam demais. É um gole de ferro e fogo, um líquido que
perfuma e castiga, exatamente como as canções de Angela.
Imagino-a rindo, rouca,
levantando o copo, com aquela gargalhada que atravessava as próprias tragédias.
E penso que talvez despedir-se dela seja isso: aprender a beber até o fim o
copo do amor e da dor, sem pedir gelo extra, sem diluir.
Angela se foi, mas seu canto
permanece — rouquidão afinada, cicatriz convertida em melodia, confissão
transformada em monumento. No fundo, é como dizia Leonard Cohen, mestre que ela
saberia compreender: “Há uma fresta em tudo — é por aí que a luz entra.”
Receita do Sazerac — um brinde a Angela
Ro Ro
Ingredientes
60 ml de rye whiskey (ou conhaque, se
preferir um perfume mais aristocrático)
1 torrão de açúcar (ou 1 colher de chá
de xarope simples)
3 dashes de Peychaud’s Bitter
1 dash de Angostura (opcional, para
intensificar)
10 ml de absinto (para perfumar o copo)
Casca de limão
Preparo: Em um copo baixo (old
fashioned), dissolva o açúcar com o bitter. Acrescente o whiskey e bastante
gelo, mexendo até gelar. Em outro copo, deite o absinto, gire-o para que
perfume as paredes internas e descarte o excesso. Transfira a mistura para esse
copo aromatizado. Finalize com os óleos da casca de limão sobre a superfície, e
deixe-a repousar na borda.
Sirva devagar. É um drink para quem não
teme o amargor — e para quem sabe que viver, como Angela, é sempre beber até o
fim.
Enquanto a Grécia
afundava em dívidas, e a União Europeia costurava um resgate para evitar um
cataclismo fiscal, eu acendia o fogo — do fogão e das palavras.
Enquanto o Haiti se
dissolvia em fumaça e escombros num terremoto que arrasou Port‑au‑Prince, eu
buscava em minha memória sabores possíveis — uma forma de reconstrução, ainda
que apenas via prosa.
Enquanto o mundo
observava, estupefato, as manchas de petróleo se espalharem pelo Golfo do
México — fruto da explosão da plataforma Deepwater Horizon —, eu me refugiava
no calor dos condimentos, convocando calmaria por meio do cotidiano da cozinha.
Enquanto vozes digitais
se erguiam, com WikiLeaks só distribuindo verdades embriagadas de política e
segredo, eu me permitia o luxo de falar com farinha, ovos e metáforas — um
contraponto de doçura e sensibilidade à aridez dos tempos.
Enquanto o Brasil
celebrava o fim de uma era política e se preparava para eleger sua primeira
presidenta, eu misturava fé e farinha, tentando entender o sabor da mudança.
Entre panelas e promessas, fermentava em mim uma vontade de traduzir o país —
não em discursos, mas em receitas que guardam silêncios, afetos e contradições.
E no meio do caos — entre
colapsos financeiros, ruínas humanas e vendavais de poder — meu gesto mais
íntimo e subversivo foi escrever com fome: não a do estômago, mas a do
espírito, uma fome antiga que devora silêncios e se alimenta de memória e
desejo.
Compreendo os conflitos.
Sempre os compreendi. O mundo ardeu — e ainda arde — em dívidas, tragédias,
colapsos ambientais, injustiças. Mas enquanto os olhos se voltavam para os
epicentros da catástrofe, eu escolhi olhar para aquilo que, por ser constante,
nos escapa: a cozinha. Esse território ancestral, subestimado, tantas vezes
tratado como apêndice doméstico ou passatempo feminino, é, na verdade, o centro
gravitacional da nossa sobrevivência e da nossa humanidade. Ali se dissolvem
hierarquias e se acendem vínculos. O que passa despercebido — uma casca de
limão ralada, um pão repartido, um café coado com cuidado — carrega uma
potência política e afetiva que poucos ousam nomear. Falar de comida é falar do
que nos mantém vivos: afeto, hospitalidade, memória, convivência. É, no fundo,
uma forma de resistência ao esvaziamento da experiência humana. E foi por isso
que escrevi. Não por alienação, mas por reverência. Não por fuga, mas por
insistência: de que o que é simples pode ser sagrado.
Em meio ao que fragmentava
o mundo — suas crises, seus colapsos e suas urgências incontornáveis — escolhi
ancorar meus passos no terreno firme e silencioso da alimentação. Não apenas a
cozinha enquanto espaço físico, com suas panelas e ingredientes, mas o vasto
território da cultura que se entrelaça a ela: histórias esquecidas e
ressurgentes, transformações que o tempo sutilmente inscreve nos sabores,
memórias que se preservam e se reinventam a cada prato servido, a cada ensaio
escrito.
A Confraria Gastronômica
do Barão de Gourmandise
nasceu em 6 de setembro de 2010, quando o impulso de deter o tempo — essa força
invisível e implacável — me levou a acender uma chama delicada contra o
esquecimento. Abrir este espaço foi como abrir um relicário de aromas e sabores
guardados, onde cada palavra se tornou um frasco de vidro, onde a curiosidade
pudesse repousar em conserva, longe do esquecimento.
Nunca imaginei que, tão
cedo, esse espaço silencioso — feito apenas de palavras suspensas no ar digital
— se transformaria numa sala viva, pulsante de vozes e lembranças. Leitores
chegaram como quem entra devagar numa cozinha aquecida, trazendo seus próprios
sabores, suas memórias, suas saudades. E ali, entre textos e afetos, nasceu uma
alquimia delicada, onde o íntimo e o coletivo se misturam como aromas que
dançam no ar quando a primeira luz da manhã toca o fogão aceso.
Naqueles dias em que os
blogs fervilhavam como salões da nova era digital — moda efêmera para uns, mas
abrigo para outros — foi neste canto quase secreto que compreendi algo maior.
Escrever sobre comida não era apenas relatar sabores: era escrever sobre
destino, sobre as tramas invisíveis que unem humanidade e memória em cada
receita, em cada gesto culinário. Era — e ainda é — um gesto delicado de escuta
e permanência, uma reverência ao tempo, um pacto com o efêmero que insiste em
permanecer.
Dois anos depois, em 2012,
uma empresa nacional incluiu meu blog entre os indicados ao prêmio de melhores
blogs do Brasil na categoria gastronomia. Era um concurso nacional de votação
popular, e, ao final, para minha surpresa, a Confraria ficou entre os três ou
quatro blogs mais votados do país. Sem patrocínio, sem rede de contatos, sem a
estrutura que muitas grandes produções já ostentavam — foi um feito. Um gesto
simples, talvez, mas que caiu sobre mim como uma brisa morna vinda de longe: o
reconhecimento de que aquela chama, acesa no silêncio, não era vã.
Ainda assim, não me permiti
deslumbramentos. Continuei como sempre: de grão em grão, palavra por palavra,
mantendo a mesma mesa posta — onde a escrita serve, nunca se exibe.
E, como acontece com toda
luz que insiste em arder, também vieram as sombras: houve quem desdenhasse do
que chamei de cultura, reduzindo-o a inutilidade.
Houve colegas — professores,
inclusive — que torceram o rosto diante da minha escrita, apenas para, mais
tarde, copiá-la linha por linha, como se pudessem extrair-lhe a alma e
replicá-la em suas aulas: o texto convertido em slides, o conteúdo reaproveitado
sem citação, até as mesmas fotos dos pratos, coladas ali como se fossem suas.
Houve quem se ofendesse por
ver, num prato, uma narrativa que atravessava suas crenças — políticas ou
espirituais — como se o alimento devesse caber em fronteiras tão estreitas.
Lembro exatamente do
primeiro hate que recebi — e foi por um pudim. Um pudim Molotov, para
ser mais preciso. Bastou o título para que alguns, mais inflamados que
informados, tomassem a metáfora ao pé da letra. Sem sequer chegarem à receita,
me associaram a discursos incendiários e intenções que jamais estiveram ali.
Fui chamado de subversivo, de incitador — o adjetivo exato me escapa, mas vinha
sempre colado à imagem do coquetel que confundiram com sobremesa. Foi como se o
nome do doce, por si só, fosse uma ameaça.
Depois veio o sábio de dólmã
— homem de fala firme e paladar domesticado — que também exercia a profissão de
professor de gastronomia, embora lhe faltasse o hábito fundamental de todo
verdadeiro mestre: a escuta atenta e a dedicação humilde aos estudos. Bastava
que um termo, um ingrediente ou uma história escapasse aos limites do que
aprenderam nos corredores da formação técnica, para que o julgamento caísse,
rápido e impaciente: “Nunca ouvi falar disso, logo está errado.”
Recordo com nitidez uma
dessas ocasiões, em maio de 2012, quando publiquei um texto sobre o lokum —
também conhecido como delícia turca. Um doce que carrego desde a infância,
sempre em duas cores: vermelho e amarelo, com sabores que se dividiam entre romã
e laranja, entrelaçados a memórias aromáticas. Originário do Império Otomano, o
lokum nasceu entre os aromas vibrantes dos mercados de Istambul, feito de uma
mistura simples: amido de milho ou farinha de trigo, doce na medida certa,
perfumado com essências delicadas como água de rosas, pistache e cardamomo.
Cada pedaço é uma pequena joia, que pode vir polvilhada com açúcar de
confeiteiro, pétalas de rosas secas, ou coberta por nozes, açúcar cristal,
gergelim — ou mesmo simplesmente ao natural — um relicário de nuvens açucaradas
que derretem suavemente no paladar, deixando um rastro sutil de doçura e
mistério.
Naquele ano, por conta do
filme As Crônicas de Nárnia, o lokum retornava ao imaginário
popular, oferecido pela Feiticeira Branca como símbolo de tentação e
encantamento: “Um prazer tão delicioso que fazia Edmund desejar mais e mais.”
Mas nem isso foi suficiente
para calar o ataque. O mesmo sábio de dólmã fez questão de tornar pública sua
crítica, nos comentários do blog, sendo rude e sem meias palavras: “Dá para ver
que você não entende de cozinha. Essa receita está errada. Lokum se faz com
amido de milho, não com amido de arroz ou farinha de trigo.” O desdém, exposto
em plena luz, soava mais como um esbravejo do que uma correção — uma sentença
definitiva que se negava a ouvir qualquer outra verdade.
O problema, como quase
sempre, estava na falta de contexto — e na arrogância que dispensa a pesquisa.
O amido de milho é uma invenção moderna, surgida apenas no século XIX, nos
Estados Unidos, com a industrialização da extração desse ingrediente. Enquanto
isso, a receita mais antiga de lokum que encontrei data de 1777, nos
bazares de Istambul, quando Hacı Bekir misturava açúcar e… amido — mas não o de
milho, claro. Naquele tempo, o milho era apenas um rumor distante, vindo das Américas,
ainda ausente dos mercados otomanos. O que se usava era o que havia: amido de
arroz ou farinha de trigo, ligados à tradição, à memória sensorial e ao gesto
do artesão local.
Essa ignorância — agressiva,
barulhenta, cega à história — não me feriu. Pelo contrário, me fez rever a
receita para incluir, nas versões modernas, o amido de milho, que hoje já
integra a produção contemporânea do doce. E, acima de tudo, ela me ensinou. Aprendi
a reconhecer no ruído uma confirmação: o que eu fazia tocava algo vivo, algo
que escapava às fórmulas.
Eu, em silêncio, sorria. Não
por desdém, mas por saber que há saberes que não cabem em currículos, saberes
que florescem além das grades do conhecimento formal. Desde pequeno, aprendi a
não me contentar com o que me ensinavam; sempre quis ir além, explorar o que o
mundo oferece em seus cantos mais exatos e invisíveis. Porque o mundo, afinal,
é o limite — e é nele que mora a riqueza, na busca incessante, no desejo de
desbravar cada nuance, cada cheiro, cada história que se esconde sob a
superfície do óbvio.
Continuei, então, a seguir
por esse caminho, abraçando o silêncio como um espaço fértil, onde o invisível
podia ganhar voz, e o trivial se transformava em sagrado. Escrevi com o corpo
inteiro, sentindo as palavras como ingredientes, misturando memória, afetos e
sabores numa receita que não se aprende em livros, mas se vive a cada instante.
Com o tempo, aprendi a me
blindar. Não com indiferença, mas com silêncio fecundo. Recolhi-me — como quem
se guarda na casca de uma noz — e ali, protegido pela densidade da memória,
continuei escrevendo. Porque contar essas histórias é, para mim, uma forma de
devolver ao mundo não apenas o sabor, mas o respeito.
Entre as vozes que torceram
o rosto, houve também outras que acolheram com afeto e reconhecimento. Receber
um e-mail do então presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi para mim a
prova viva de que, naquele país, a gastronomia é tratada com o respeito e o
zelo que merece. Naquela mensagem, havia o agradecimento pro eu tratar as
preparações da cozinha francesa com cuidado e respeito, e um convite delicado
para que eu continuasse a preservar e celebrar os saberes culinários,
ressaltando a importância da cozinha como patrimônio cultural e elo entre
gerações. Por mais que eu suspeite que tenha sido escrito por algum assessor, o
gesto carregava uma intenção genuína: um convite silencioso para transpor os
cuidados e a paixão que eles dedicam à mesa para além das fronteiras.
Gostaria de ter salvo aquela
correspondência, mas as intempéries digitais — quando meu e-mail foi afetado
por invasões e perdas — acabaram bloqueando minha antiga conta oficial no Hotmail,
o qu e não me permitiu mais acesso a conta e ao arquivo. Mas isso não apaga o
episódio do meu coração.
E não foram só gestos
solitários. Faculdades de fora do Ceará reconheceram em meus textos um valor
científico e metodológico que ultrapassou o espaço do blog: artigos e ensaios
meus passaram a integrar seus manuais, referências em cursos e pesquisas, testemunhas
de um ofício que se faz com rigor e amor.
Houve também convites que
honram a jornada — para participar de bancas de especialização, palestras em
cursos de turismo, hotelaria e gastronomia, espalhados pelo Brasil — momentos
que transformaram meu canto quase secreto em um lugar de partilha real, onde
sabores, saberes e histórias continuam a se encontrar.
E foi justamente através
desse diálogo — entre reconhecimento e resistência — que aprendi a escutar até
o desconforto como confirmação: se algo provoca, é porque toca. Se incomoda, é
porque está vivo. E o que eu escrevia — o que ainda escrevo — pulsa. Não para
agradar, mas para despertar.
O que ficou, e segue
ficando, são os olhos que leem com delicadeza, como quem pousa a mão numa pele
frágil; os retornos que chegam como cartas antigas, guardadas no tempo,
carregadas de afeto e memória; as mãos que escrevem de volta, traçando linhas
que são como carícias, revelando que o encontro vai além das palavras — é feito
de cumplicidade e cuidado. São corações que se reconhecem nos detalhes quase
invisíveis — numa receita antiga que guarda o cheiro da infância, numa
especiaria esquecida que ainda desperta sensações, numa preparação ousada que
desafia o possível, às vezes exótica, que muitos reclamam por não conseguir
fazer — seja pelo mistério dos ingredientes, seja pela técnica quase mágica que
exige. E é exatamente aí que mora o valor: na preservação dessas nuances,
dessas pequenas revoluções em forma de sabor, que resistem ao tempo e ao
esquecimento.
Se me perguntam por que
continuo, a resposta não cabe no prático, nem no técnico. É visceral, profunda,
feita de fogo. Eu sigo porque a curiosidade queima dentro de mim, porque cada
leitura reacende a fome essencial — aquela fome que não se sacia com pão, mas
com sentido, com significado. Uma fome que não se doma, que persiste mesmo
quando o mundo se apresenta áspero, duro, implacável.
E talvez essa seja a mais
verdadeira de todas as fomes: a fome de permanecer tocado pelo mundo, de
deixar-se atravessar pelas suas dores e belezas, de encontrar, em cada gesto —
seja simples ou grandioso —, uma faísca de vida que não se apaga.
Vieram histórias, vieram
receitas, vieram encontros — encontros que atravessam o tempo e a distância,
que se fazem calor mesmo pelas telas frias da modernidade. Vieram até pedidos
para transformar tudo isso em livro — e ele virá, no tempo certo, como uma
colheita madura, que não se apressa nem se força. Por ora, celebro. Celebro o
fato de que esse espaço, nascido para guardar memórias, se tornou uma
verdadeira confraria: não uma simples reunião de corpos em torno de uma mesa,
mas de almas dispersas por diferentes cantos do mundo, unidas pelo mesmo
apetite — o apetite pela vida, pelo saber, pelo compartilhar.
Quinze anos depois, este
blog se revela para mim como um banquete sem fim, onde cada prato servido me
devolve um olhar renovado, uma interpretação fresca, um sopro de curiosidade
que nunca cessa. Vejo, com ternura, a evolução da minha escrita — que no início
era breve, quase despretensiosa, sem a ânsia de aprofundar-se em fontes ou
ampliar horizontes. Depois, veio a necessidade de mais rigor, de oferecer ao
público não só palavras, mas fundamentos, para que o sabor da história fosse
mais pleno, mais verdadeiro.
O estilo dos textos também
floresceu com o tempo, sutilmente moldado pelas mudanças incessantes do mundo —
que nos transforma a cada instante, como a luz que se dobra e colore as coisas
de maneira diferente a cada amanhecer. Cada leitor que chega, então, não é
apenas um visitante; é um conviva antigo reencontrado, uma presença cálida que
aquece e confirma que o que construímos juntos transcende a mera comida — é uma
conexão profunda, uma resistência silenciosa, uma celebração do humano em sua
essência mais pura.
Depois, houve o meu quase
encontro com a morte — o espanto da fragilidade diante do problema renal — e
tudo, de repente, acelerou. O tempo passou como um trator que arou todos os
dias, e as informações, na internet cada vez mais veloz, estouravam como pipocas
no calor da panela, consumidas numa pressa insaciável. E eu, ao contrário,
permaneci no meu ritmo, sorvendo lentamente aquilo que amo, partilhando aquilo
que posso, no meu tempo, ao meu modo — um gesto de amor, de resistência, uma
dança entre a urgência do mundo e a paciência da alma.
Hoje, ergo um brinde — não
com taças de cristal, mas com o pires esquecido do café, ainda quente, onde
posso sorver a memória dos gestos simples e a doçura das horas que se
prolongam. A Confraria Gastronômica do Barão de Gourmandise completa 15 anos. E
como todo verdadeiro banquete, só vale a pena se for partilhado.
Que venham os próximos
pratos, os próximos leitores, os próximos instantes. A mesa está posta,
iluminada pela chama tênue da curiosidade e aquecida pelo afeto que nos une.
Ainda tenho fome. Fome de palavras novas, de receitas antigas, de histórias bem
temperadas que atravessam o tempo e se renovam em cada encontro.
E é essa fome — essa sede de
vida e significado — que me mantém firme, com uma taça na mão e uma frase no
forno, pronto para celebrar o que vem a seguir. Porque toda comemoração pede um
bolo, um gesto doce que simbolize o aconchego e a continuidade.
Quinze anos. Quinze anos de
um rito próprio, uma passagem que não se anuncia em pompas, mas em sabores e
memórias. Como aquele jovem que, ao completar seus quinze anos, se prepara para
ser apresentado ao mundo — não em um salão grandioso, mas numa festa onde cada
gesto, cada olhar, cada prato é uma confidência, um convite para ser vista,
compreendida, acolhida.
Este blog foi, desde o
início, essa festa íntima, essa revelação silenciosa. Um espaço onde partilho
não apenas receitas, mas pedaços da minha história, fragmentos da história da
humanidade, aromas que atravessam tempos e distâncias, como o perfume delicado
do alho dourando lentamente na panela — simples, humilde, mas essencial,
pulsando com a vida.
E talvez seja justamente
isso que torna esta celebração tão significativa: não se trata apenas de olhar
para trás, mas de perceber como cada gesto, cada palavra e cada sabor acumulado
ao longo do caminho acendem algo novo. Porque celebrar quinze anos não é apenas
recordar o passado, mas inaugurar o futuro, é reacender a chama que não se
apaga, é transformar cada palavra e cada prato numa ode perpétua à vida que se
faz alimento, e ao alimento que se faz poesia.
E neste banquete, onde o
simples se torna sagrado, convido vocês a mergulharem comigo na celebração
definitiva: a Torta della Nonna — não apenas uma sobremesa, mas um símbolo, um
relicário doce da infância, da casa, da tradição que resiste ao desgaste dos
anos. Que cada mordida seja um brado silencioso de resistência, um abraço
quente, uma promessa de que, enquanto houver histórias para contar, sabores
para descobrir, e mesas para compartilhar, o Barão de Gourmandise continuará à
mesa — sempre.
A Torta della Nonna que
agora ofereço a receita no final, é apenas um gesto de entrega e celebração,
uma reverência ao tempo que molda sabores e afetos. Ela carrega a doçura das
avós no próprio nome, a textura da infância, a promessa de que, mesmo quando
tudo parece veloz demais, é possível desacelerar e encontrar no simples o
sagrado.
Que esta receita possa ser
preparada também por vocês. Que seja um convite para vocês, queridas leitoras e
queridos leitores, para que se sentem à mesa comigo, para que sinta o calor
desse fogo que não se apaga, para que celebre comigo esse instante — onde
passado e futuro se encontram, onde a memória se torna alimento, e onde o
encontro é o prato principal.
Porque, afinal, o verdadeiro
banquete não está apenas no que comemos, mas em quem escolhemos para partilhar
a mesa. E hoje, eu celebro com vocês, nesta festa que é nossa, este momento
sagrado onde as palavras se transformam em sabor, e a vida, em poesia.
TORTA DELLA NONNA – Receita Tradicional Italiana
INGREDIENTES
Massa (Pasta Frolla – tipo pâte sucrée
italiana):
300 g de farinha de trigo
150 g de manteiga sem sal gelada (em
cubos)
130 g de açúcar refinado
1 ovo inteiro + 1 gema
Raspas de 1 limão siciliano (ou comum)
1 pitada de sal
Recheio (Crema Pasticcera – creme de
confeiteiro):
500 ml de leite integral
1 fava de baunilha (ou 1 colher de chá
de extrato)
Casca de 1 limão (sem a parte branca)
4 gemas
120 g de açúcar
40 g de amido de milho (ou farinha de
trigo)
Finalização:
50 g de pinoli tostados
Açúcar de confeiteiro – para polvilhar
PREPARO
Prepare a massa (Pasta Frolla): Em uma
tigela grande (ou processador), misture a farinha, o açúcar e o sal. Adicione a
manteiga em cubos e misture com a ponta dos dedos até virar uma farofa úmida. Junte
o ovo, a gema e as raspas de limão. Misture até formar uma massa homogênea. Embrulhe
em plástico filme e leve à geladeira por 30–60 minutos.
Prepare o creme (Crema Pasticcera): Em
uma panela, aqueça o leite com a casca de limão e a baunilha. Não deixe ferver.
Enquanto isso, bata as gemas com o açúcar até clarear. Adicione o amido às
gemas e misture bem. Retire a casca de limão do leite quente e despeje aos
poucos sobre a mistura de gemas, mexendo sempre. Volte tudo à panela e cozinhe
em fogo médio-baixo, mexendo até engrossar (5–7 minutos). Transfira para uma
tigela, cubra com plástico filme encostando no creme e deixe esfriar.
Montagem: Pré-aqueça o forno a 180 °C. Divida
a massa em duas partes (2/3 para a base, 1/3 para a tampa). Abra a massa maior
com rolo e forre uma forma de torta (aprox. 22–24 cm), com fundo removível.
Fure o fundo com um garfo.
Coloque o creme já frio sobre a base. Abra
o restante da massa e cubra a torta, selando bem as bordas. Pincele com gema ou
leite, salpique os pinoli por cima.
Leve ao forno por cerca de 35–40 minutos,
ou até dourar levemente.
Finalização: Deixe esfriar
completamente. Polvilhe com açúcar de confeiteiro antes de servir.
💡 Dicas:
Os pinoli italianos dão o toque autêntico. Mas se forem difíceis
de encontrar ou muito caros, você pode usar amêndoas laminadas como alternativa
— mas o sabor será um pouco diferente. Mas se quiser regionalizar, use as
castanhas doBrasil, temos muitas
diferentes e isso dará novos sabores
A torta fica ainda melhor no dia
seguinte, quando os sabores se assentam.
Sirva com café espresso ou chá cítrico
para harmonizar.