Havia em Angela Ro Ro uma
força que não cabia em molduras. Nem na da MPB romântica, nem na do rock, nem
na caricatura de “diva excêntrica” em que tantos tentaram prendê-la. Sua voz
era como uma navalha mergulhada em mel: cortava fundo, mas deixava o paladar
impregnado de doçura, de dor, de um gozo intragável. O Brasil, tão acostumado a
suavizar seus ídolos, nunca soube lidar direito com alguém que não pedia
licença nem perdão.
Certa vez, um colega
professor contou-me de uma noite em que foi a um show dela. Movido pelo
delírio, subiu ao palco e, em ímpeto, ficou nu diante da cantora. Angela não
piscou, não riu, e soltou aos berros: "sai do meu palco, viado magro"
- com aquele jeito esculachado e cortante que misturava fúria e humor. Era
isso: ela não concedia a ninguém o direito de roubar-lhe o centro, porque o
palco era dela, corpo e sangue.
A mesma Angela que
escandalizava era também aquela que, com um piano ou um cigarro na mão, fazia
multidões suspenderem a respiração diante de um verso. Amor, meu grande amor,
seu maior sucesso, não é uma simples canção: é uma pedrada lançada contra a
covardia dos sentimentos mornos. Foi, e é, um desbunde emocional que desancou
muita gente, que quebrou espelhos e devolveu verdades. Como toda boa canção,
não se contentava em consolar: obrigava a doer.
Amor, Meu Grande Amor,
canção que é faca, bálsamo e sentença. Não é apenas uma música de amor — é um
ataque frontal à carne e ao espírito, capaz de desarmar os mais cínicos e de
expor, sem piedade, o coração dos desavisados. Nessa canção, Angela não sussurra,
não pede: ela exige. É amor que não admite covardias. Talvez por isso tenha
atravessado décadas como uma pedrada lírica, sempre pronta para desancar quem
se acha intocado pelo sentimento. E se a versão original já arrastava multidões
para dentro de sua fossa iluminada, o raro dueto com Ney Matogrosso pode ser
ouvido aqui ( https://youtu.be/Ut5h7WnNStU?si=4AfpyJ1_j6enKTCx )
— encontro de duasforças indomáveis, vozes que ardem em brasas, quase
impróprias para ouvidos frágeis.
É o tipo de registro que não
se ouve impunemente: nele, Angela e Ney parecem beber juntos do mesmo cálice
escuro, cada um sorvendo a parte do outro, até que a canção se torne, de fato,
mais do que música — uma espécie de rito iniciático do amor em estado bruto.
Era amiga de Cazuza — outro
incendiário da vida — e não é difícil imaginá-los dividindo gargalhadas, copos
e confissões, tramando maneiras de desafiar o tédio do mundo. Neles havia esse
parentesco da intensidade: viver não era sobreviver, era incendiar, era cantar
no limite da garganta até que o sol nascesse.
Talvez seja essa mesma chama
que encontramos na raríssima versão de “Amor, Meu Grande Amor” com Ney
Matogrosso — parceiro antigo de Cazuza — onde vozes que respiram fogo se
entrelaçam, ecoando o mesmo pacto de entrega total. É como se a presença de Ney
fosse um fio invisível que conecta a memória de Cazuza à audácia de Angela,
transformando cada nota em uma confissão, cada pausa em um desafio à covardia
do mundo.
Angela nunca escondeu seu
gosto pela bebida. Falava dela com a mesma franqueza com que falava dos amores,
das mágoas, das paixões. O álcool era, em sua vida, mais do que vício ou
prazer: era metáfora de um existir em alta voltagem, feito para queimar, não
para durar em silêncio. E como quem pressagia seu próprio mito, deixou escrito
em Gota de Sangue (1979): “Não tire da minha mão esse copo, beba comigo a gota
de sangue final...”. Eis o retrato mais cru e belo de sua alma: beber com ela
era beber a vida inteira, até a última gota.
É por isso que, para
despedir-me dela, não escolho um coquetel delicado ou meramente decorativo. O
brinde há de ser com um Sazerac — um dos drinks mais antigos e brutais da
história, nascido em Nova Orleans como uma promessa de intensidade. Nele, rye
whiskey ou conhaque se encontram com o absinto, esse fantasma verde que já
embriagou poetas e escandalizou sociedades. O açúcar e o bitter apenas
equilibram, mas nunca adoçam demais. É um gole de ferro e fogo, um líquido que
perfuma e castiga, exatamente como as canções de Angela.
Imagino-a rindo, rouca,
levantando o copo, com aquela gargalhada que atravessava as próprias tragédias.
E penso que talvez despedir-se dela seja isso: aprender a beber até o fim o
copo do amor e da dor, sem pedir gelo extra, sem diluir.
Angela se foi, mas seu canto
permanece — rouquidão afinada, cicatriz convertida em melodia, confissão
transformada em monumento. No fundo, é como dizia Leonard Cohen, mestre que ela
saberia compreender: “Há uma fresta em tudo — é por aí que a luz entra.”
Receita do Sazerac — um brinde a Angela
Ro Ro
Ingredientes
60 ml de rye whiskey (ou conhaque, se
preferir um perfume mais aristocrático)
1 torrão de açúcar (ou 1 colher de chá
de xarope simples)
3 dashes de Peychaud’s Bitter
1 dash de Angostura (opcional, para
intensificar)
10 ml de absinto (para perfumar o copo)
Casca de limão
Preparo: Em um copo baixo (old fashioned), dissolva o açúcar com o bitter. Acrescente o whiskey e bastante gelo, mexendo até gelar. Em outro copo, deite o absinto, gire-o para que perfume as paredes internas e descarte o excesso. Transfira a mistura para esse copo aromatizado. Finalize com os óleos da casca de limão sobre a superfície, e deixe-a repousar na borda.
Sirva devagar. É um drink para quem não
teme o amargor — e para quem sabe que viver, como Angela, é sempre beber até o
fim.
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