segunda-feira, 8 de setembro de 2025

SAZERAC PARA ANGELA RO RO: ou, BEBER A VIDA ATÉ O FIM

 

Havia em Angela Ro Ro uma força que não cabia em molduras. Nem na da MPB romântica, nem na do rock, nem na caricatura de “diva excêntrica” em que tantos tentaram prendê-la. Sua voz era como uma navalha mergulhada em mel: cortava fundo, mas deixava o paladar impregnado de doçura, de dor, de um gozo intragável. O Brasil, tão acostumado a suavizar seus ídolos, nunca soube lidar direito com alguém que não pedia licença nem perdão.

Certa vez, um colega professor contou-me de uma noite em que foi a um show dela. Movido pelo delírio, subiu ao palco e, em ímpeto, ficou nu diante da cantora. Angela não piscou, não riu, e soltou aos berros: "sai do meu palco, viado magro" - com aquele jeito esculachado e cortante que misturava fúria e humor. Era isso: ela não concedia a ninguém o direito de roubar-lhe o centro, porque o palco era dela, corpo e sangue.

A mesma Angela que escandalizava era também aquela que, com um piano ou um cigarro na mão, fazia multidões suspenderem a respiração diante de um verso. Amor, meu grande amor, seu maior sucesso, não é uma simples canção: é uma pedrada lançada contra a covardia dos sentimentos mornos. Foi, e é, um desbunde emocional que desancou muita gente, que quebrou espelhos e devolveu verdades. Como toda boa canção, não se contentava em consolar: obrigava a doer.

Amor, Meu Grande Amor, canção que é faca, bálsamo e sentença. Não é apenas uma música de amor — é um ataque frontal à carne e ao espírito, capaz de desarmar os mais cínicos e de expor, sem piedade, o coração dos desavisados. Nessa canção, Angela não sussurra, não pede: ela exige. É amor que não admite covardias. Talvez por isso tenha atravessado décadas como uma pedrada lírica, sempre pronta para desancar quem se acha intocado pelo sentimento. E se a versão original já arrastava multidões para dentro de sua fossa iluminada, o raro dueto com Ney Matogrosso pode ser ouvido aqui ( https://youtu.be/Ut5h7WnNStU?si=4AfpyJ1_j6enKTCx )
— encontro de duasforças indomáveis, vozes que ardem em brasas, quase impróprias para ouvidos frágeis.

É o tipo de registro que não se ouve impunemente: nele, Angela e Ney parecem beber juntos do mesmo cálice escuro, cada um sorvendo a parte do outro, até que a canção se torne, de fato, mais do que música — uma espécie de rito iniciático do amor em estado bruto.

Era amiga de Cazuza — outro incendiário da vida — e não é difícil imaginá-los dividindo gargalhadas, copos e confissões, tramando maneiras de desafiar o tédio do mundo. Neles havia esse parentesco da intensidade: viver não era sobreviver, era incendiar, era cantar no limite da garganta até que o sol nascesse.

Talvez seja essa mesma chama que encontramos na raríssima versão de “Amor, Meu Grande Amor” com Ney Matogrosso — parceiro antigo de Cazuza — onde vozes que respiram fogo se entrelaçam, ecoando o mesmo pacto de entrega total. É como se a presença de Ney fosse um fio invisível que conecta a memória de Cazuza à audácia de Angela, transformando cada nota em uma confissão, cada pausa em um desafio à covardia do mundo.

Angela nunca escondeu seu gosto pela bebida. Falava dela com a mesma franqueza com que falava dos amores, das mágoas, das paixões. O álcool era, em sua vida, mais do que vício ou prazer: era metáfora de um existir em alta voltagem, feito para queimar, não para durar em silêncio. E como quem pressagia seu próprio mito, deixou escrito em Gota de Sangue (1979): “Não tire da minha mão esse copo, beba comigo a gota de sangue final...”. Eis o retrato mais cru e belo de sua alma: beber com ela era beber a vida inteira, até a última gota.

É por isso que, para despedir-me dela, não escolho um coquetel delicado ou meramente decorativo. O brinde há de ser com um Sazerac — um dos drinks mais antigos e brutais da história, nascido em Nova Orleans como uma promessa de intensidade. Nele, rye whiskey ou conhaque se encontram com o absinto, esse fantasma verde que já embriagou poetas e escandalizou sociedades. O açúcar e o bitter apenas equilibram, mas nunca adoçam demais. É um gole de ferro e fogo, um líquido que perfuma e castiga, exatamente como as canções de Angela.

Imagino-a rindo, rouca, levantando o copo, com aquela gargalhada que atravessava as próprias tragédias. E penso que talvez despedir-se dela seja isso: aprender a beber até o fim o copo do amor e da dor, sem pedir gelo extra, sem diluir.

Angela se foi, mas seu canto permanece — rouquidão afinada, cicatriz convertida em melodia, confissão transformada em monumento. No fundo, é como dizia Leonard Cohen, mestre que ela saberia compreender: “Há uma fresta em tudo — é por aí que a luz entra.”

Receita do Sazerac — um brinde a Angela Ro Ro

Ingredientes

60 ml de rye whiskey (ou conhaque, se preferir um perfume mais aristocrático)

1 torrão de açúcar (ou 1 colher de chá de xarope simples)

3 dashes de Peychaud’s Bitter

1 dash de Angostura (opcional, para intensificar)

10 ml de absinto (para perfumar o copo)

Casca de limão

Preparo: Em um copo baixo (old fashioned), dissolva o açúcar com o bitter. Acrescente o whiskey e bastante gelo, mexendo até gelar. Em outro copo, deite o absinto, gire-o para que perfume as paredes internas e descarte o excesso. Transfira a mistura para esse copo aromatizado. Finalize com os óleos da casca de limão sobre a superfície, e deixe-a repousar na borda. 

Sirva devagar. É um drink para quem não teme o amargor — e para quem sabe que viver, como Angela, é sempre beber até o fim. 


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