sábado, 8 de novembro de 2025

BUFFET DE AFETOS: PROVE, MAS NÃO SE ENGANE

 

Depois de um relacionamento longo — quase dez anos — há um certo tipo de silêncio que se instala na casa e na cabeça. Não é só a ausência da outra pessoa que pesa. É a abundância de nós mesmos, ocupando cada canto, cada talher, cada pensamento que antes era dividido. O que era par, volta a ser prato único. E então, depois de tanto tempo, eu me peguei me observando — como quem olha dentro do forno esperando o bolo crescer, mas sem saber se usou o fermento!

Eu me sinto mais maduro agora, pronto para digerir coisas que, antes, passavam direto pelo meu paladar afetivo. Talvez por isso, nesses dias estranhamente silenciosos, tenho escutado muito uma música de Joyce Alane, que me pareceu cruel à primeira vez que ouvi, mas se revelou intensa, direta, honesta — daquelas que te acertam em cheio no estômago, mesmo quando o coração acha que está anestesiado. A letra é assim:

O meu amor você não é – Joyce Alane 

“O meu amor você não é, mas deve ser amor de alguém

Então pra que pegar pra me usar sem devolver?

Isso é pra quem tem tempo pra perder

Meu coração você não tem, mas não que não mereça alguém

Eu só tenho comigo o que dá pra saber

O amor da gente a milhas de distância

E você já olhei, eu distorci, observei

Mas não acho que não dá pra escolher você

É só que tem mais tanta gente

Não acho que não dá pra escolher você

É só que tem mais tanta gente

Tanto sonho, tanta coisa e tanta boca, tanta coxa

Não acho que não dá pra escolher você...

[...]

Mas não acho que não dá pra escolher você

É só que tem mais tanta gente

Tanto sonho, tanta boca, tanta coisa, tanta coxa

Não acho que não dá pra escolher você...”

Para alguém que talvez não esteja maduro afetivamente, essa letra soe dura — duríssima até — e, nesse caso, a rejeição seja vista como o centro da música. Mas ela vai além disso. O que há ali não é o golpe do “não”, e sim o requinte de quem aprendeu a reconhecer o próprio limite. É a recusa transformada em gesto de ternura: a escolha de não aceitar o que não alimenta, de não permanecer onde o amor chega raso.

Há uma doçura ácida nesse tipo de sabedoria — o mesmo sabor que fica na boca depois de um vinho bom, quando o corpo já entendeu que não precisa de mais um gole. Joyce canta esse “não” com uma calma que é quase cruel, mas também profundamente humana: o descanso de quem já amou demais e agora só quer se preservar inteiro. Porque, no fundo, a canção não fala de rejeição — fala de autocuidado, de amor-próprio, de uma fome que deixou de ser desespero pra virar critério. E é aí que mora sua beleza: na serenidade de quem escolhe a si mesmo, mesmo que isso signifique ficar só à mesa, com o prato vazio, mas, o coração em paz.



Nas últimas semanas, venho acompanhando no Instagram um psicólogo jovem e bonito. Ele tem se derramado noturnamente em textos sobre o amor entre iguais — e mesmo que ele tente explicar tudo com muita clareza, há camadas que a gente só entende com o coração meio partido e uma taça de vinho do lado.

Muitos dos seus textos deslizam noite adentro como vapores que escapam de uma panela repousando sobre o fogo baixo — suaves e densos, com um calor que parece íntimo o bastante para se tocar. Mas ele sempre escapa antes de se revelar por completo. Esse psicólogo escreve sobre a insegurança que se esconde nas entrelinhas da independência, sobre vínculos que se formam e evaporam com a mesma rapidez de um suspiro. E, embora tudo venha embalado em uma prosa meticulosa, quase clínica, há sempre um traço de angústia sutil — como quem prepara algo com capricho e cuidado, mas nunca vê os convidados chegar.

Talvez eu não esteja lendo demais — talvez apenas esteja lendo com atenção, percebendo nos textos dele a fome que ele disfarça, o desejo que se oculta sob descuido. Cada palavra dele carrega um peso quase físico, cada silêncio uma textura que meu olhar traduz, transformando a ausência dele em algo quase tangível, quase consumível, mesmo que eu não precise desse alimento para mim.

É o perigo da fome: transforma migalhas em banquete, e qualquer olhar em presságio. Mas há algo nesses textos que me lembra as madrugadas em que se come direto da panela: comida simples, tirada da geladeira, sem talher bonito ou mesa posta — e ainda assim saboreada como se fosse um banquete. Um ritual só para si, feito com cuidado.

E depois de publicar seus textos longos — aquelas narrativas de letra miúda sobre insegurança, solidão e pequenas angústias — ele sempre acrescenta uma imagem nos stories. Como se fosse uma assinatura silenciosa, quase automática. Às vezes, uma taça de vinho tinto solitária repousa sobre a mesa de madeira com marcas do tempo; outras, a mesma taça aparece com um cachorro deitado aos pés ou um gato se espreguiçando no canto da sala. E há dias em que não há nada além da taça, perfeitamente enquadrada, acompanhada de uma legenda breve: "A companhia do fim do dia."

É uma solidão decorada, como um jantar servido com louça bonita mesmo quando não se espera ninguém. E isso me comove mais do que qualquer confissão explícita. Porque há uma beleza quase triste em continuar colocando flores na mesa, mesmo quando ninguém vem.

E aí pensei: eu também quero escrever sobre isso. Mas à minha maneira — com os ingredientes que conheço, com os aromas que me salvam, com o estômago que sempre esteve mais lúcido do que a cabeça. Não sei falar de amor sem pensar em comida. Afinal, a mesa é um lugar onde todos os afetos se revelam — e talvez, também, onde alguns morrem.

É assim que nasce este ensaio. Primeiro veio a música — direta, intensa, cruel e honesta, daquelas que acertam o estômago mesmo quando o coração acha que está anestesiado. Depois, vieram os textos do psicólogo do Instagram: longos, minuciosos, carregados de solidão e pequenos dramas, publicados noite após noite sob a luz azul do celular.

E eu me vi lendo com olhos atentos, captando nos gestos, nos silêncios, e nas taças de vinho solitárias postadas nos stories, o rastro de fome emocional que ele deixa escapar. A partir dali, nasceu esse ensaio, um prato que começa com a fome emocional de um fim, atravessa buffets de possibilidades, rejeita receitas desandadas, e termina com um aperitivo delicado — tão belo quanto efêmero — porque nem todos os amores são refeições completas. Alguns são só degustações.

PARTE 1 – TANTA GENTE, TANTA COISA, TANTAS BOCAS: UM BUFFET EMOCIONAL NO AMOR CONTEMPORÂNEO

Vivemos tempos de abundância — mas, paradoxalmente, o amor se serve com tanta parcimônia que quase se tornou um sabor raro. Nunca se comeu tanto, e nunca se amou tão pouco.

O amor contemporâneo, como uma ceia de hotel all inclusive, oferece um universo de escolhas que, à primeira vista, parecem libertadoras: aplicativos onde corpos deslizam como entradas frias; vitrines digitais recheadas de sorrisos; biografias cuidadosamente temperadas com pitadas de humor e inteligência artificial. Há de tudo: veganos e carnívoros, sensíveis e sarcásticos, poliamorosos e monogâmicos convictos — como se o amor tivesse virado um cardápio em que tudo é possível, mas quase nada é profundo.

O problema do buffet não é o excesso. É o esvaziamento.

Quando tudo está disponível, nada parece essencial. Quando todos estão acessíveis, ninguém é escolhido de verdade. A seleção vira ansiedade, e o prazer da descoberta vira comparação constante. A gente não saboreia, a gente prova. Com medo de perder o “prato ideal”, seguimos beliscando pessoas como quem circula entre bandejas quentes e saladas exóticas: pegamos um pouquinho, mastigamos rápido, e já estamos de olho no próximo.

A música de Joyce Alane capta esse espírito com precisão crua: “É só que tem mais tanta gente / Tanto sonho, tanta coisa e tanta boca, tanta coxa…”

É quase irônico — o que deveria ser abundância de possibilidade se transforma em carência de presença. “Tanta coisa” e tão pouca entrega. “Tanta boca” e tão pouco beijo que dure até o café da manhã. É um cenário de fartura que, paradoxalmente, produz fome crônica — emocional, afetiva, sexual.

Oscar Wilde escreveu, com aquele seu veneno elegante, que “nada é tão perigoso quanto ser tentado com tudo e não escolher nada” (WILDE, 1890). Ele falava de moral e desejo, mas bem poderia estar descrevendo nossos relacionamentos digitais: um desfile de tentações em que ninguém permanece tempo suficiente no prato principal. A cada deslizar de dedo, uma nova opção se apresenta, sempre mais fresca, mais colorida, mais temperada. O prazer da escolha se dissolve na abundância, e a promessa de intimidade se perde no cardápio interminável de rostos, perfis e sorrisos cuidadosamente filtrados. No final, ficamos com a sensação de ter provado tudo — e, ao mesmo tempo, nada.

O amor virou finger food. Pequenos pedaços cuidadosamente preparados: coloridos, aromáticos, irresistíveis à primeira mordida. E, muitas vezes, é só isso que se quer — algo rápido, gostoso, sem bagunça, que se consome com os olhos antes mesmo da boca. Mas o que acontece quando o coração — ou o estômago — deseja mais? Quando a fome insiste e o paladar anseia por profundidade, calor, consistência?

Talvez estejamos todos cansados de porções que só passam pelo sentido, que não preenchem. Por isso, mesmo diante de um prato cheio, mesmo rodeados de sabores e cores, voltamos para casa vazios. A mesa continua posta, as bandejas continuam cheias, mas o coração sabe: nenhuma receita instantânea consegue substituir o alimento que sacia de verdade. E, no silêncio que sobra, a saudade de um prato completo se mistura à memória de quem já saboreou demais sem nunca se fartar.

PARTE 2 – O AMOR QUE NÃO DÁ LIGA: QUANDO O PRATO PARECE PROMISSOR, MAS DESANDA

Há relações que, no começo, têm tudo para dar certo. Os ingredientes estão lá: a química do toque, o tempero da conversa, o ponto ideal de desejo e leveza. Parece receita de sucesso. Mas então, ao primeiro baque — um olhar que esfria, um silêncio que cresce, um ingrediente que falta — tudo desanda.

Na cozinha, diz-se que certas massas “não deram liga”. É quando o ovo não encontra a farinha, ou a manteiga se recusa a se incorporar ao açúcar. O movimento foi feito, a intenção existiu, mas a mistura... não funcionou. Faltou algo invisível, algo que não se ensina. Amor também é assim.

E é exatamente essa dissonância que ecoa na canção:

“Meu coração você não tem, mas não que não mereça alguém

Eu só tenho comigo o que dá pra saber

O amor da gente a milhas de distância”

Essa consciência de que o outro poderia ser, mas não é, é uma das mais amargas para se engolir. Porque não é culpa, nem erro — é ausência de ponto. E às vezes, quando a massa não liga, o que resta é reconhecer que não vale a pena assar.

Quantos de nós não tentamos forçar o fogo? Redobramos a dose de afeto, ajustamos o tom, temperamos com paciência. Mas se a conexão não acontece, o prato final será sempre frustrante. Como escreveu Fernando Pessoa, em um de seus lampejos tristes e exatos: “Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto deixei de pensar e de sonhar... tudo isto me ficou entre os dedos.” (PESSOA, 1929)

O rapto de Psiquê (Le ravissement de Psyché), pintura de William-Adolphe Bouguereau (1895) 

Migalha afetiva: o amor existe, mas ele depende de condições, testes, intermediações — há distância, segredo, fragilidade (“cuidado ou a união se desfaz”).

“Migalhas de amor: confiança, promessa, olhar que não pode ver demasiado…”

Ficamos, muitas vezes, com as migalhas emocionais do que quase foi. Com os farelos de um bolo que nunca assou por completo. Como aquele pão de queijo que cheira divinamente, mas afunda no meio. A aparência prometia festa; o sabor entrega decepção.

E mesmo assim, tentamos. Porque a possibilidade de sabor nos ilude. Porque o outro parecia ter o que procurávamos. E porque, no fundo, ainda acreditamos que algum dia, alguém, dará liga com a gente — sem que a gente precise mexer tanto a colher, alguém que seja a tampa perfeita da nossa panela.

Venus e Marte, de Sandro Botticelli (1483)

Migalha afetiva: desejo e prazer momentâneo — mas falta sustentabilidade, parceria plena, profundidade ou reciprocidade verdadeira. Amor sensual, breve, talvez consumido.

“Migalhas de amor: o fogo curto, o instante de êxtase… mas e o depois?”

Mas até lá, quantas receitas a gente vai seguir? Quantos fornos vamos abrir antes da hora, só para descobrir que ainda não está pronto? Quantas vezes vamos provar o que parecia saboroso, mastigar devagar e perceber que faltava sal, que faltava calor, que faltava companhia à mesa? E, mesmo assim, seguimos mexendo, temperando, misturando, na esperança de que um dia a massa se unirá, que algum prato nos saciará por completo, e que enfim poderemos sentar à mesa sem pressa, com o coração e o estômago cheios, sabendo que o que se serve é exatamente o que deveríamos provar.

Parte 3 – Amores como Aperitivos: Servidos, Mas Nunca Saciados

Nem todo amor chega para ser banquete. Alguns aparecem como aperitivos delicados: pequenos, irresistíveis, bem apresentados. São aqueles encontros rápidos, intensos, cheios de sabor inicial — mas que somem antes da segunda taça de vinho. Amores que mais provocam o paladar do que alimentam o coração.

Há beleza neles, sem dúvida. Assim como há beleza em um canapé bem feito, em uma tâmara recheada com queijo de cabra e nozes, em uma gyosa dourada com molho picante. Mas o que todos eles têm em comum? São porções pequenas. Pensadas para o instante, não para a permanência.

Apollo e Daphne, de Piero del Pollaiuolo (c. 1470‑1480)

Migalha afetiva: amor que não pode se concretizar — perseguição, fuga, transformação; a união escapa às mãos, fica como lembrança ou símbolo.

“Migalhas de amor: o querer sem o ser, o toque que vira folhagem…”

O mundo moderno está repleto desses afetos-serviço. Nos bares da vida, somos bandejas ambulantes: oferecemos partes de nós, deixamos que nos provem, e seguimos — sem saber se estamos sendo saboreados ou apenas beliscados. O outro sorri, mas já olha para o lado. Nos tornamos relacionamentos de degustação.

Como disse Caio Fernando Abreu, em um de seus textos mais cravados na epiderme da solidão moderna: “A gente se acostuma a gostar pelas beiradas, e quando vê, já está inteiro. Mas o outro nem percebeu que a gente chegou.” (ABREU, s.d.)

Leda e o Cisne, de Antonio da Correggio (c. 1531‑32)

Migalha afetiva: desejo + invasão + fragmento de poder — amor que não é sobre igualdade ou permanência, mas sobre dominação, sedução rápida, transformação.

“Migalhas de amor: o encontro forçado, o corpo que se reduz à forma de cisne, a memória que resta”.

E aí ficamos ali: na mesa de festa, olhando ao redor, esperando que alguém volte para repetir o prato. Mas ninguém volta. Porque tudo hoje é fast-love. Porque o amor virou shot. E quem quer digestão quando se tem pressa de provar tudo?

Esses amores-aperitivos têm características inconfundíveis:

·         Sedutores: causam impacto à primeira vista. Como um amuse-bouche no restaurante francês — pequeno, caro, lindo.

·         Intensos, mas breves: o sabor é real, mas a duração é pífia. Como aquele encontro de uma noite que pareceu ter a alma de um mês.

·         Inacabados por natureza: deixam um gosto de “era só isso?” — como uma história que termina antes do segundo capítulo.

·         Fáceis de compartilhar ou de largar: como os petiscos em uma festa, que circulam por todos os lábios, mas não pertencem a ninguém.

Eles deixam rastros sutis — lembranças que coçam como o calor de um forno ainda ligado, suspiros que se repetem sem motivo, um vazio saboroso que você não consegue colocar no prato. Cada experiência é um convite, uma provocação, mas raramente uma saciedade. É nesse eco que a música de Joyce Alane parece dialogar, repetindo o refrão inevitável: “Não acho que não dá pra escolher você / É só que tem mais tanta gente…”

O problema não é a falta de conexão. É o excesso de distração. Quando há tanta boca, tanta coxa, tanto sonho — o que era especial vira ordinário. E o que era íntimo vira... porção.

Apolo e Jacinto – A morte de Jacincto (The Death of Hyacinthos), de Jean Broc (1801). 

Migalha afetiva: amor interrompido por morte ou acidente — o que sobra é dor, memória, transformação (como a flor que nasce do sangue).

“Migalhas de amor: pedaço de presença que se foi.”

A literatura nos alerta para isso desde sempre. Clarice Lispector, com seu modo quase gastronômico de dissecar a alma, escreveu: “Amanheci com vontade de saber o gosto de um amor inteiro. Não essa coisa aos pedaços.” (LISPECTOR, s.d.)

Orfeu e Eurídice (Orpheus and Eurydice), de Peter Paul Rubens, c. 1636 38.

Migalha afetiva: a promessa (“não olhar para trás”), a falha, a perda — amor que quase se concretiza, mas se desfaz por um deslize, por insegurança.

“Migalhas de amor: confiança quebrada, passo em falso que desfaz o laço. Amor que não se sustenta, que se perde facilmente.”

Talvez o que falte seja isso: fome de inteireza. Vontade de sentar, de servir-se, de repetir, de não precisar escolher outro prato. De sentir cada sabor até o fim, de permitir que a saciedade venha antes da pressa de provar tudo. Mas como manter isso em um mundo onde o amor virou finger food emocional? Onde cada gesto é degustação, cada beijo é amuse-bouche, e a promessa de um prato completo parece sempre escapar por entre os dedos?

O Rapto de Ganimedes (The Rape of Ganymede), de Damiano Mazza (c. 1575) mostra Zeus em forma de águia levando Ganimedes. 

Migalha afetiva: amor unilateral ou desigual — poder + mortal, prazer momentâneo, o outro como objeto ou troféu; não há reciprocidade ou continuidade digna.

“Migalhas de amor: o desejo alheio, o encontro breve, a promessa não correspondente.” 

E ainda assim, mesmo nesse cardápio fragmentado, a vontade de provar um banquete inteiro persiste — teimosa, silenciosa, insistente, como o aroma que escapa da cozinha e faz a gente voltar, noite após noite, em busca de algo que nos complete de verdade.

CONCLUSÃO – CUIDADO: MIGALHAS NÃO SUSTENTAM, MAS ALIMENTAM A ESPERANÇA

E então, é chegado ao fim da mesa. O paladar cansado, o coração entrebeliscado. Mas ainda com apetite — vendo que, saboreamos migalhas que não sustentam, mas que, paradoxalmente, mantêm acesa a chama da esperança. Entre os beliscos de afetos e pensamentos, percebo que a fome não é apenas de comida, mas de presença, atenção e verdade. E mesmo que a mesa nunca se sirva de plenitude completa, ainda há algo de vital na experiência de provar, compartilhar e desejar — pois é nesse gesto, por mais humilde que pareça, que se reconstrói a promessa de saciar-se, nem que seja por instantes.

Há um trecho de “Maior Abandonado”, do Barão Vermelho, que sempre me pegou, sobretudo quando Cazuza o cantava com aquela intensidade quase crua, arrancando cada palavra da garganta:

“Eu tô pedindo

A tua mão

E um pouquinho do braço

Migalhas dormidas do teu pão

Raspas e restos

Me interessam

Pequenas poções de ilusão

Mentiras sinceras me interessam

(Me interessam, me interessam)

Eu tô pedindo

A tua mão

Me leve para qualquer lado

Só um pouquinho

De proteção

Ao maior abandonado”

Não é a letra em si que importa, mas o modo como ela me atravessa: a fome de afeto, o desejo por gestos mínimos, migalhas de atenção que se tornam banquetes para a alma. Essa urgência discreta, essa mistura de abandono e desejo, já estava presente na voz de Cazuza em 1984, lembrando-nos de que tais sensações não são novidade.

É curioso perceber como duas vozes tão distintas pode me atravessar com a mesma intensidade. Cazuza me sussurra da fome que aceita migalhas — do prazer que se esconde em restos de atenção, no calor de um gesto mínimo, na doçura de migalhas que se tornam banquetes para a alma. É a vulnerabilidade que se permite saciar, mesmo que só por instantes, mesmo que o prato inteiro jamais chegue à mesa. Cada fragmento de afeto, cada raspinha de cuidado, é saboreada com uma mistura de desejo e abandono, uma urgência discreta que faz a pele se arrepia e o coração bater mais rápido.

Joyce Alane, com a sua música, por outro lado, surge como um contraponto luminoso e firme. Ela recusa-se a ser mais uma boca faminta a provar sobras alheias, a contentar-se com migalhas que não sustentam. Seu canto é uma lembrança da integridade que se protege, do amor-próprio que se coloca à frente do apetite por companhia. É um gesto de coragem silenciosa: olhar nos olhos do outro e dizer que não, que não vale qualquer resto de atenção, que estar só pode ser mais completo do que engolir o que não alimenta.

Colocadas lado a lado, essas vozes não apenas coexistem — elas dialogam. Uma nos mostra a beleza da fome que se entrega, mesmo que incompleta; a outra, a força de quem sabe que a fome merece respeito e que certos pratos não devem ser aceitos, ainda que relutemos. Entre uma e outra, aprendo que a vida afetiva moderna é feita de escolhas tênues, de apetites que se equilibram entre entrega e proteção, entre arrepio e cautela.

É nesse balanço delicado, nesse espaço onde o desejo e a prudência se tocam, que se revela a experiência de amar hoje: um instante em que cada gesto, por menor que seja, carrega toda a intensidade de um banquete ou toda a clareza de uma recusa consciente.

Ao longo deste ensaio, fui (fomos?) beliscando ideias, emoções e metáforas como se percorressem uma grande mesa posta de sentimentos — uma travessia entre fartura aparente e carência profunda. Iniciando com a constatação amarga de que, na modernidade afetiva, há muita oferta e pouca entrega. Como num buffet emocional, vivemos cercados de possibilidades e, ainda assim, passamos fome.

Na música de Joyce Alane, encontrei a lucidez de quem olha nos olhos do outro e recusa ser só mais uma opção em meio ao rodízio do afeto: “O meu amor você não é, mas deve ser amor de alguém / Então pra que pegar pra me usar sem devolver?”

Essa recusa não é frieza — é autocuidado. É entender que estar só, às vezes, é melhor do que aceitar migalhas que não sustentam.

Em cada parte deste ensaio, usei a cultura gastronômica como linguagem para falar de sentimentos: o buffet emocional, onde tudo é possível, mas nada é profundo; o prato promissor que desanda, mesmo com os melhores ingredientes; e, os amores como aperitivos, que encantam, mas nunca saciam.

Foi um percurso por sabores conhecidos: o agridoce da esperança, o amargor da desilusão, a acidez do desejo frustrado, o calor breve de uma conexão intensa que não sobrevive ao café da manhã.

Mas entendi que, o que nos alimenta de verdade não são grandes banquetes compartilhados, mas a qualidade daquilo que escolhemos servir a nós mesmos. Nem todo amor vai ser prato principal. E tudo bem. Há beleza, intensidade e aprendizado também nos aperitivos — especialmente quando nos lembramos de que nós mesmos podemos preparar algo bonito, mesmo quando estamos sós à mesa.

É por isso que, para fechar este ensaio, compartilho uma receita. Não é um grande jantar. É um mimo. Um gesto. Um lembrete de que o cuidado pode começar no prato — e que uma porção pequena, feita com presença e beleza, pode ser mais nutritiva do que um banquete apressado com quem não sabe ficar.

Mesmo os gestos mais pequenos — um olhar demorado, uma palavra sussurrada, um instante de cuidado — podem ser devorados com avidez. As migalhas emocionais, como Cazuza nos lembra, têm o poder de atravessar a pele, de provocar calor e sustentar a esperança. São pedaços fugazes, delicados e muitas vezes imperfeitos, que despertam o paladar da alma e nos lembram de que ainda sentimos, ainda desejamos, ainda respiramos. Valorizar esses fragmentos não é fraqueza; é reconhecer que a vida, por mais apressada ou fragmentada, sempre oferece pontos de luz que nos atravessam.

Mas valorizar a força das migalhas emocionais não significa se prender a elas. Joyce Alane nos lembra que não é preciso aceitar qualquer resto que se ofereça; há dignidade em exigir presença plena, atenção que se ofereça inteira, gestos que sustentem mais do que um instante. Escolher não se contentar com pedaços insuficientes é, na verdade, um ato profundo de autocuidado — uma receita de integridade que tempera o desejo com discernimento.

E assim, ao fim da mesa e da noite, resta o murmúrio morno do que foi servido — e o silêncio de tudo o que ainda se deseja. A fome já não é de comida, nem de amor: é de presença. É o apetite por algo que não se consome, que apenas se reconhece — como a respiração do outro ao nosso lado, como o sabor que persiste na língua muito depois de engolir.

Aprendo, enfim, que a verdadeira nutrição é um ato de lucidez: não está na quantidade do prato, mas na coragem de escolher o que se come e o que se recusa. Há dignidade em deixar o banquete inacabado, em abandonar a mesa quando o sabor já não sustenta. Comer — amar — é um gesto de fé, mas também de fronteira: a entrega só é inteira quando se sabe o próprio limite.

Podemos saborear migalhas, sim, mas sem nos reduzir a elas, sem permitir que se tornem o limite do nosso apetite— e, se isso acontecer, se por amor ou cansaço nos reduzirmos a isso, que elas sejam nossas, escolhidas com ternura, e não os restos que alguém largou por descuido. Podemos preparar para nós mesmos pequenas porções de beleza e silêncio: um olhar que demora, uma palavra dita com doçura, um vinho que respira antes de ser bebido. Cada gesto, um tempero; cada instante, um banquete em miniatura.

Amar, talvez, seja isso: compreender que, antes de acender o fogo do amor, é preciso transformar a ideia de solidão em solitude — aprender a habitar a própria presença com atenção, cuidado e desejo, como quem prepara uma receita rara, devagar, com mãos que conhecem cada gesto e cada aroma.

Compreender o amor como um cozimento delicado, que exige tempo, fogo brando e entrega, e reconhecer o ingrediente mais raro de todos: a própria solitude. Pois, eu entendo assim: “solidão” carrega o peso da carência, da ausência; já a solitude é presença plena de si, o instante em que nos bastamos e, ainda assim, nos descobrimos desejantes.

Se o amor nasce na cozinha da solidão, muitas vezes nos contentamos com as migalhas que o outro nos oferece, restos de afeto largados, descuidados; mas se nasce na solitude, na plenitude da presença de si, conhecemos o que nos basta, e entendemos que a própria felicidade reside dentro de nós, enquanto o outro é apenas complemento — como os acompanhamentos, ou guarnições, que podem realçar ou obscurecer o prato principal, dependendo da escolha de quem cozinha. Podem enriquecer seus sabores, mas jamais definir sua essência.

A solitude é talvez o primeiro grande ingrediente da receita do amor, pois é nela que se aprende a amar a si mesmo, a ouvir os próprios desejos, a temperar cada gesto com paciência e ternura, e a provar o sabor da própria companhia sem pressa nem culpa.

Quando o amor pelo outro surge daí — dessa cozinha íntima, onde o coração repousa e ferve — deixa de ser pedido e se torna oferenda: um aroma doce que se espalha, o perfume de quem aprendeu a estar consigo, pronto para tocar o outro sem se perder, partilhando o que transborda, não o que falta, oferecendo plenitude, não necessidade, e transformando cada encontro em banquete, cada gesto em tempero, cada instante em celebração do afeto vivido e escolhido.

E quando enfim o prato completo chegar — se chegar — que ele nos encontre prontos, não famintos. Que sejamos mesa posta, corpo desperto, alma aberta. Que saibamos receber o outro não como quem busca saciar carências, mas como quem convida a se sentar à mesa do desejo, onde cada gesto, cada olhar, cada toque se oferece e se saboreia em igual medida.

Quando o amor amadurece, deixa de ser urgência; transforma-se em ritual. E nesse ritual sagrado — entre o mel e o sal, entre o toque e a espera — percebemos que o verdadeiro banquete nunca esteve no outro, mas na mesa que aprendemos a preparar para nós mesmos.

No fim, aprender a comer com consciência é também aprender a viver com plenitude.

TÂMARAS RECHEADAS COM QUEIJO DE CABRA E NOZES

Ingredientes (rende 10 unidades)

10 tâmaras secas, tipo Medjool (quanto mais carnudas, melhor)

100g de queijo de cabra cremoso (ou cream cheese com um toque de limão, se preferir algo mais suave)

5 nozes inteiras, ou 10 metades (se preferir, use castanha de caju picada grosseiramente e torradinha)

Mel (opcional, mas altamente recomendado)

Pimenta-do-reino moída na hora

Folhas de tomilho fresco (ou hortelã, se quiser algo mais refrescante – é a que mais uso, embora o tomilho aparente ser mais chique!)

Sal (apenas se o queijo for muito neutro)

Preparo:  Comece pelas tâmaras – Com uma faca pequena, faça um corte longitudinal em cada tâmara e retire o caroço com cuidado, sem rasgar a fruta. Reserve. Com uma colher de chá (ou saco de confeitar para os mais chegados à confeitaria), recheie o interior de cada tâmara com o queijo de cabra, nivelando bem. Coloque metade de uma noz sobre o recheio, pressionando levemente para fixar. Isso trará textura e um leve amargor que equilibra o doce da tâmara. Finalize com o toque de chef - Regue cada tâmara com um fio de mel. Salpique pimenta-do-reino moída na hora e decore com folhinhas de tomilho ou hortelã. Disponha em uma tábua bonita (ou em colheres individuais se quiser impressionar e servir para alguém). Pode ser servida fria ou levemente aquecida – neste caso, leve ao forno a 180°C por 5 a 7 minutos.

Harmonização (opcional) – Vinho branco seco (Sauvignon Blanc, por exemplo) para contrastar o doce; ou, um espumante brut rosé, que reforça o tom de festa & desapego.

Nota simbólica:

Essas tâmaras são como aquelas pessoas que aparecem e, num instante, te tiram do chão com um gesto doce, um olhar quente e uma promessa de sabor. Só que logo você percebe: não é prato principal. É petisco. É ilusão. E ainda assim... irresistível.

DICAS DE LEITURA:

ABREU, Caio Fernando. Pequenas Epifanias. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Lisboa: Ática, 1929.

WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Londres: Lippincott's Monthly Magazine, 1890.