Discutir
sobre preferências de gosto é como andar em terreno minado: a qualquer momento
pode haver uma explosão quando gostos dissonantes entram em conflito. Talvez
por isso, surgiu aquele célebre adágio popular que diz que ‘questões de gosto
não se discute” – um sábio conselho. Mesmo assim, ainda encontramos quem
discuta as suas preferências por aí, principalmente quando doces e sobremesas entram
em questão: uns preferem frutas em compotas, mas há quem prefira os doces não
tão doces; há quem escolha misturar sabores, e os que são fiéis aos seus
ingredientes preferidos. E, nesse contexto, ainda aparecem aqueles que gostam
dos extremos.
Assim,
chocolate e baunilha surgem nessa disputa por sabores. O gosto marcante do
chocolate, quanto mais puro e mais intenso, de um lado; e a doçura inebriante,
mas sem graça da baunilha para alguns, do outro. Mas quando eles se misturam a
mágica acontece, e realçam um ao outro. Um consenso nessa questão, na contemporaneidade,
é que ambos estão se tornando cada vez mais objetos luxuosos, pelo fato das
mudanças climáticas estarem modificando de forma drástica o provimento desses
ingredientes que, sim, correm o risco de desaparecer – nesse quesito a baunilha
ainda torna-se mais afetada, e por isso seu alto custo no mercado.
Estudos
recentes sobre as plantas que dão origem a esses ingredientes acabaram
reajustando a origem do uso delas, de modo que se tornou público que a evidencia
mais antiga do uso do cacau se encontra por volta dos 1 400 anos; e no que
tange a baunilha, as sementes cheia de fragrância dela já teriam sido usadas a
dois milênios. Agradeçamos aos antropólogos, geneticistas e arqueólogos
culturais que se dedicam em seus estudos para reescrever a história da alimentação
– e deixar a gente bem informado.
Agora, por exemplo, sabe-se, que o uso mais antigo da baunilha é atribuído à comunidade de Totonac,
lugar onde hoje se localiza o estado mexicano de Veracruz. Eles coletavam as
fragrâncias de orquídeas que cresciam selvagens nas florestas. Muito mais
tarde, eles domesticaram as cepas, que poderiam levar até cinco anos para
amadurecer. Cada flor deveria ser polinizada no dia em que florescer ou então o
caule não daria frutos. No México, a Vanilla planifolia co-evoluiu com seu polinizador,
a abelha melipona.
De
acordo com a história de Totonac, o começo humilde da indústria da baunilha
remonta à Papantla do século XIII, conhecida como “a cidade que perfuma o
mundo”. Os povos nativos conheciam muito bem o uso medicinal de ervas, e usavam
a baunilha para combater distúrbios pulmonares e estomacais, além de usar o
líquido das vagens verdes como cataplasma para retirar veneno de insetos e
infecções por feridas.
Papantla |
Os
astecas, que subjugaram os Totonacs em 1480, conheciam a planta como tlilxochitl,
ou "vagem negra" (um nome que seria traduzido erroneamente como
"flor negra", levando a séculos de confusão sobre as pétalas amarelas
da prímula). Tributos eram exigidos e pagos com as vagens curadas de baunilha,
um ingrediente indispensável para a confecção da saborosa bebida de chocolate
conhecida como cacahuatl - também temperado com pimenta - que se tornou a
bebida preferida da nobreza asteca. Em 1519, Montezuma II e o invasor espanhol
Hernán Cortés tomaram a famosa bebida gelada e espumante em uma festa na
capital Tenochtitlán (atual Cidade do México).
Cerca
de 75 anos depois que Cortés retornou à Europa com as vagens de baunilha, Hugh
Morgan, o chefe de farmácia e confeiteiro da rainha Elizabeth I, sugeriu que a
baunilha poderia ser usada como um sabor por si só. A partir de então, Sua
Majestade, uma louca por açúcar (e talvez isso tenha lhe ajudado a ter os dentes
conspicuamente apodrecidos), entregou-se a doces com infusão de baunilha.
Thomas
Jefferson descobriu o sabor durante uma visita à França no final do século
XVIII. Quando ele não encontrou nenhuma disponível em seu retorno à Filadélfia,
ele escreveu para o encarregado de negócios americano em Paris, pedindo a ele
que lhe enviasse 50 vagens de baunilha embrulhadas em jornais. Com o floreio de
uma caneta e a ajuda de um amigo, ele viu que a baunilha havia percorrido quase
o ciclo completo até as Américas.
O pote para chocolate de Thomas Jefferson modelado por Anthony Simmons e Samuel Alexander |
Mas
aí, com as novas descobertas, não se pode dizer que a baunilha pode ter se
tornado uma coisa nova no Velho Mundo. Já que pesquisadores identificaram o
mais antigo exemplo conhecido dessa especiaria, no Norte de Israel, com 3.600
anos. Enquanto estiveram debruçados em pesquisar o conteúdo de 4 pequenos jarros encontrados em um local da
Idade do Bronze, em Megiddo (também conhecida como Magedo, é uma colina em
Israel, próxima a um moderno povoado de mesmo nome, célebre por razões
teológicas, históricas e geográficas), tiveram a doce surpresa de encontrar em
três dos pequenos jarros dois dos principais produtos químicos da baunilha - o
4-hidroxibenzaldeído e a vanilina, um composto que forma minúsculos cristais
brancos na superfície da vagem enquanto ela fermenta.
Megiddo |
Um dos jarros encontrados pela pesquisa em Megiddo. |
Essa expedição, organizada por Israel Finkelstein,
da Universidade de Tel Aviv, tinha a função de encontrar múmias em um túmulo
cananeu de 3.600 anos, mas com elas acharam os 4 vasos, dos quais três
continham baunilha, e tinham sido colocados em oferendas de alimentos em torno
de três esqueletos intactos - uma fêmea adulta, um macho adulto e um menino com
idade entre oito e 12 anos –, um tesouro de joias de ouro e prata. Essa
descoberta acabou sendo chamada de "Thrilla in Vanilla".
Essa
descoberta surpresa foi feita em uma câmara funerária que foi encontrada pela
primeira vez em 2016. E a partir dela, os estudos mostram que a baunilha
encontrada nesses jarros da Idade do Bronze tem uma explicação: aquela época,
as pessoas em Megido podem ter usado óleos infundidos com vanilina como
aditivos para alimentos e remédios, para fins rituais ou possivelmente até
mesmo no embalsamamento dos mortos. A descoberta, no entanto, nos faz refletir
sobre a teoria que diz que a baunilha foi domesticada no Novo Mundo, e de lá
teria se espalhado pelo globo.
Durante
a descoberta, uma vez que todas as possibilidades de contaminação foram descartadas,
a investigação pós-análise de resíduos orgânicos de várias espécies dentro do
reino vegetal a partir do qual estes princípios compostos poderiam ter sido
explorados foi conduzida. E os resultados mostraram que a primeira exploração
conhecida da baunilha aconteceu em usos locais, com importância nas práticas
mortuárias e possíveis redes comerciais de longa distância no antigo Oriente
Próximo durante o segundo milênio antes de Cristo; e que a vanilina encontrada
nos jarros combina melhor com espécies de orquídeas encontradas na África
Oriental, Índia e Indonésia.
Foram
identificadas três espécies diferentes como possíveis fontes para a buanilha:
V. polylepsis Summerh da África Central; V. albidia Blume da Índia e V.
abundiflora J.J. Sm do sudeste da Ásia. Assim, especialistas acreditam, com
essa nova descoberta, que as orquídeas de baunilha provavelmente chegaram a
Megiddo através de rotas comerciais entre o Oriente Médio e o sudoeste da Ásia
– o que desafia a ideia de que o uso da baunilha se origina no México.
Acreditam
os especialistas que as múmias encontradas eram de pessoas da elite ou membros
reais do povo cananeu, pois a tumba encontra-se a apenas alguns metros dos
restos do palácio do palácio real. Uma possibilidade para esse achado é que a baunilha
talvez tenha sido misturada com óleo vegetal para criar um perfume para
purificar a câmara funerária ou para ungir o cadáver antes do enterro, já que
ela tem propriedades antimicrobianas que podem ajudar a preservar um corpo
antes do enterro. Outra possibilidade, é que a baunilha foi depositada lá como
oferenda em agradecimento pelo pelos mortos.
E
como se não bastasse essa descoberta para causar rebuliço, a data de origem do
chocolate também foi colocada em xeque pela ciência.
Com
base em uma amostra de um frasco de cerâmica, acredita-se que a história do
chocolate começou com os moradores de Mokaya, sedentários que ocuparam a região
de Soconusco, na costa do Pacífico do México. Por volta de 1900 a.C., os
Mokayas começaram a consumir Theobroma cacao, uma planta que prospera no curso
superior da Amazônia. Seguiu-se uma sucessão de sociedades mesoamericanas -
olmeca, tolteca, maia, asteca - que encontraram maneiras de explorar a amêndoa
do cacau, que era usada variavelmente como uma unidade monetária, uma unidade
de medida e uma refeição. Não foi até 1847 que a empresa inglesa J. S. Fry
& Sons de Bristol produziu a primeira barra de chocolate sólida oferecida
ao público em geral.
Agora,
sabe-se que o nosso caso de amor com chocolate antecede os Mokaya. Novas
pesquisas indicam que o cacau era originalmente usado nas florestas úmidas da
bacia amazônica, onde a árvore é mais diversificada geneticamente. Os
investigadores examinaram jarros e cacos de cerâmica de Santa Ana-La Florida,
um sítio arqueológico no Equador que já foi habitado pelo povo Mayo-Chinchipe,
e detectou vestígios de chocolate desde 5.300 anos atrás.
Uma
equipe de arqueólogos e biólogos de universidades da América do Norte, América
do Sul e Europa identificaram grãos de amido preservados do gênero Theobroma,
que inclui a espécie Theobroma cacao, dentro dos artefatos, juntamente com a
teobromina, um alcaloide amargo produzido mais abundantemente por Theobroma
cacao do que seus parentes selvagens. O argumento decisivo: DNA antigo com
sequências que combinavam com as dos modernos cacaueiros. Descrições
etnográficas e etnobotânicas de povos indígenas na bacia amazônica levaram o
arqueólogo Michael Blake, co-autor do estudo, a suspeitar que as plantas eram
usadas medicinalmente e cerimonialmente.
Embora
essas conclusões não sejam universais, são a ponta do iceberg que precisa
continuar sendo investigado. Mas é sabido que alguns cientistas questionam se
os Mayo-Chinchipe preparavam as sementes para comer - um elaborado processo de
fermentação, secagem, torrefação e moagem - ou apenas coletavam os frutos.
Outros cientistas contestaram a ideia de que as plantas de cacau fizeram a
passagem da América do Sul; outros, relacionam o cultivo de cacau a cerca de
3.600 anos atrás, na América Central.
De
toda forma, é sempre bom ficar informado sobre as descobertas que envolvem o
mundo gastronômico. E para honrar essa, que é uma mistura clássica na
confeitaria mundial, segue abaixo uma receitinha para valorizar os sabores
dessas iguarias. Aproveitem.
Bavarois
vanille chocolat
Para o
biscoito:
175 g
de biscoito champanhe (ou outro de sua preferência)
50 g
de manteiga
Para o
creme de chocolate:
250 ml
de leite
250 ml
de creme de leite fresco
125 g
de chocolate com massa 60%
75 g
de açúcar
4
folhas de gelatina
3
gemas
Para o
creme de baunilha:
4
gemas
75 g
de açúcar
250 ml
de leite
4
folhas de gelatina
250 ml
de creme de leite fresco
Raspas
de uma vagem de baunilha (ou 1 colher de chá de baunilha em pó)
Chocolate
derretido para finalizar (opcional)
Avelãs
ou nozes picadas para decorar (opcional)
Preparo:
biscoito – esfarele o biscoito e junte a manteiga e misture bem.
Coloque
em um Silpat que vá ao forno, ou em uma forma de sua preferência – as de fundo
removível fico ótimo para servir, mas a montagem fica ao seu critério –,
espalhe a massa de biscoitos e leve à geladeira. Prepare o creme de baunilha:
Leve o leite para ferver. Retire do fogo e adicione baunilha. Reidrate a
gelatina em água fria. Bata as gemas com o açúcar até a mistura ficar branca. Lentamente,
despeje o leite na mistura de gemas e açúcar, mexendo sempre. Leve a mistura numa
panela e cozinhe em fogo baixo, mexendo sempre com uma colher de pau. Retire do
fogo quando o creme um pouco espesso. Esprema a gelatina e coloque-a no creme
mexendo bem. Reserve e deixe esfriar. Montar o creme de leite em chantilly
firme e gentilmente adicioná-lo ao creme de baunilha já frio. Despeje a mistura
de baunilha sobre a massa de biscoito que estava na geladeira, e leve tudo por 1
hora na geladeira ou meia hora no freezer. Prepare o creme de chocolate:
Reidrate a gelatina em água fria. Aqueça o leite e o chocolate em fogo baixo,
mexendo sempre. Quando o chocolate estiver retire do fogo, adicione as gemas e
o açúcar, mexendo sempre. Coloque de volta em fogo baixo e cozinhe por 5
minutos sem parar de bater. Retire do fogo. Esprema a gelatina e adicione ao
chocolate. Reserve e deixe esfriar. Para acelerar o resfriamento, pode colocar
a mistura em uma bacia com gelo para esfriar.
Enquanto isso bata o creme de leite em chantilly. Quando a mistura de
chocolate estiver fria misture com o chantily suavemente. Despeje o creme de baunilha
sobre o creme de chocolate e leve à geladeira por pelo menos 8 horas. Você pode
preparar esta sobremesa com antecedência e congelá-lo. Basta retirá-lo no dia
anterior e deixá-lo descongelar lentamente na geladeira. Decore com uma camada fina de chocolate
derretido e avelãs, ou como preferir.
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