Caríssimos
amigos leitores, hoje é dia de Sabor da Tradição, e discutiremos sobre a comida
como patrimônio e atrativo turístico.
Desde
que a Unesco começou seus trabalhos pela preservação do patrimônio mundial e,
principalmente quanto passou a introduzir a Convenção Salvaguarda do Patrimônio
Imaterial, em 2003, a cultura gastronômica tornou-se um novo paradigma na
efervescência patrimonial. Desde então o patrimônio gastronômico, ou patrimônio
alimentar, que configura como parte do patrimônio intangível, vem sendo
considerado “ativo global” e “recurso local” e torna-se catalizadora de projetos
que geram desenvolvimento sobretudo impulsionando a atividade turística,
integrando comida e cultura, explorando as cozinhas patrimoniais para criar
novas possibilidades de atrativos e competitividade para destinos turísticos.
Considerando
o destaque que a gastronomia vem tendo no turismo, sobretudo para o segmento
cultural, onde se percebe a necessidade emergencial de aprofundar conhecimento
sobre o patrimônio gastronômico a entrevista de hoje abordará estes temas e tem
como convidada uma pesquisadora do outro lado do Atlântico, uma amiga com
interesses pela gastronomia e patrimônio, e que a partir de agora vocês terão a
oportunidade de conhecer uma pouco: Dra. Maria José Araújo, a quem, desde já agradeço a atenção e disponibilidade. Mas vamos à entrevista:
Dra. Maria José Araújo |
Barão de Gourmandise (BG) - Para aqueles
que não lhe conhecem, poderia apresentar-se e dizer quem é você e a que se
dedica?
Dra. Maria José Araújo (M.J.A): Olá!
O meu nome é Maria José Araújo, tenho 59 anos e um percurso de vida rico e
diversificado. Licenciei-me em Engenharia Eletrotécnica e de Telecomunicações e
trabalhei, com muito gosto, nessa área durante 25 anos. Decidi então mudar de
rumo e licenciei-me em Gestão Hoteleira. O gosto por voltar aos estudos e a
convivência com pessoas mais novas, levou-me ao Mestrado em Gestão de Turismo.
Defendi a tese sob o título” Valor patrimonial da gastronomia portuguesa:
impacto na satisfação dos turistas no destino Porto”, com a classificação de 19
valores. O interesse pela gastronomia como atração turística levou a um maior
interesse pela história da alimentação e fiz a Pós-Graduação em História da
Alimentação: Fontes, Culturas e Sociedades. Continuar com o doutoramento em
Patrimónios Alimentares: Culturas e Identidades foi o passo seguinte.
Do
ponto de vista profissional, fui assistente convidada em várias universidades e
institutos superiores, na área do Turismo e da Gestão Hoteleira, funções que
desempenho atualmente no ISLA – Instituto Politécnico de Gestão e Tecnologia (Porto,
Portugal). Sou investigadora no projeto LMPH no âmbito do programa TEMPUS, para
a criação de licenciaturas e mestrados na área da Gestão Hoteleira para a
Geórgia, Moldávia e Azerbaijão. Sou colaboradora do projeto DIAITA – Patrimônio
Alimentar da Lusofonia. Literatura, Cinema e Música são as minhas artes de
eleição. Para além da Gastronomia, claro! Família e Amigos são as minhas
âncoras.
B.G. - Massimo Montanari em ‘Do Paladar
Gastronômico ao Bom Gosto Intelectual’ (texto publicado na revista Contextos da
Alimentação–Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, v. 1, n. 1, 2013),
afirma que: “o ato de comer é aquele que produz o contato e que coloca em ação
o gosto, fazendo-lhe reconhecer o sabor e, por trás disso, a essência da coisa.
O sabor revela a essência e torna-se, portanto, um meio de conhecimento. O jogo
de palavras sabor/saber, muito em moda hoje, usado também excessivamente em
nível jornalístico e publicitário, na realidade, é muito mais que um jogo de
palavras”. Levando em conta o contexto da sentença anterior, como você
explicaria o ‘boom’ do interesse acadêmico pela gastronomia nos últimos anos?
M.J.A.: Desde sempre a
gastronomia esteve presente na história do homem, sendo inúmeras as fontes que o comprovam. Atualmente, a
gastronomia é um fenômeno de moda e
também por esse motivo, constitui um poderoso
atrativo turístico. A gastronomia faz parte integrante da atividade turística e contribui para a satisfação dos turistas e
para o reforço dos destinos e
desenvolvimento local. É pois cada
vez mais necessário e importante compreender com maior profundidade o que está por detrás deste fenômeno, quais as raízes
do que é oferecido, em que medida
está presente a autenticidade nesta oferta,
de que forma deve ser planeada e estudada, na perspectiva do desenvolvimento de um turismo
sustentável. A academia não pode ficar indiferente
a este fenômeno, tendo um papel fundamental no estudo científico da alimentação e da gastronomia, quer nos domínios da
área do turismo quer na dos estudos
da alimentação.
B.G. - Reconhecendo a gastronomia como
elemento cultural e a importância da experiência gastronômica para valorização
da cultura e identidade de um povo, observa-se que e a atividade turística
utiliza a gastronomia como diferencial no destino turístico. Geralmente no
turismo, como sugerido por Fox (FOX, R. “Reinventing the gastronomic identity
of Croatian tourist destinations”. International Journal of Hospitality Management,
26 [2007] 546-559): “nesse processo de valorização da identidade gastronômica
tende-se a incorporar preocupações de diferenciação, estetização,
autenticidade, simbolismo” e rejuvenescimento/inovação da gastronomia, pois só
assim está assegurado o respeito pelo patrimônio intangível de uma região
turística”. Nesse sentido, como você vê a relação entre patrimônio, gastronomia
e turismo?
M.J.A.: É sabido que o Novo
Turista é mais informado e exigente, procurando a autenticidade dos locais e
das gentes que visita. A gastronomia local, como fator identitário, insere-se
no património intangível. Sendo um fator de diferenciação e de autenticidade, e
sendo inseparável da experiência turística, a gastronomia torna-se um recurso
turístico que, em certos casos, como o português, deve transformar-se de
recurso em atração.
B.G. - Qual o panorama atual do patrimônio
gastronômico em Portugal e qual importância dele para o fortalecimento dos
destinos turísticos portugueses?
M.J.A.: Portugal é um país pequeno, mas com uma
paisagem rica e diversificada. Sendo certo que “a nossa cozinha é a paisagem
posta na panela”, o património gastronómico português é igualmente rico e diversificado,
pleno de cozinhas regionais que, nas palavras de José Quitério “enformam a
cozinha nacional”. Não sendo Portugal ainda um destino cujo primeiro fator de
motivação turística é a gastronomia, os estudos têm demonstrado que esta
contribui para a satisfação dos turistas e determinam a sua intenção de
revisita e de recomendação.
B.G - Poderia citar alguns gastrodestinos
portugueses onde o patrimônio gastronômico é usado como atrativo turístico de
forma bem-sucedida?
M.J.A.: As feiras regionais
portuguesas não dispensam a componente gastronômica
e giram muitas vezes à volta desta. Estas feiras ocorrem sobretudo fora dos centros urbanos e contribuem para o desenvolvimento turístico das regiões
onde ocorrem, nomeadamente regiões menos
desenvolvidas. É o caso da feira dos enchidos de Vinhais (tendo esta região
produtos certificados DOP e IGP). Com
uma costa marítima muito extensa, o peixe e o marisco são presença obrigatória na alimentação portuguesa e referência gastronômica. Lisboa, a capital, que
tem registado um aumento crescente de
turistas, promove anualmente o evento “Peixe em Lisboa”. Mais a norte e ainda no peixe, considerado o melhor peixe do mundo
por alguns Chefs internacionais, o
festival “Mar na Brasa” atrai o turismo interno
e enorme potencial para os cruzeiristas que atracam no porto de Leixões. Portugal é o país do Vinho
do Porto, mas a indústria do vinho vai além do da mais antiga região demarcada do mundo. Assim o mostra o
festival “Essência do Vinho”
realizado anualmente no Porto que, em 2016,
registou 20.000 visitantes em quatro dias.
B.G. - Considerando que durante as viagens
de turismo e lazer os viajantes podem descobrir o lugar pela história e
cultura, eles ainda acabam deparando-se com preparações culinárias e
ingredientes diferentes e até exóticos – fato bastante registrado ao longo da
literatura de viagem desde os mais remotos tempos. Poderia nos dizer o que de
mais diferente teria a culinária portuguesa para apresentar ao mundo, na sua
visão, e qual a sua experiência mais marcante com comida ou bebida durante
viagens?
M.J.A.: Portugal tem atualmente 26 estrelas michelin,
sendo estas o reconhecimento da qualidade dos Chefs em restaurantes portugueses,
mas sobretudo um tributo à gastronomia portuguesa. Como
já referido, trata-se de uma gastronomia rica e diversificada, com influências mediterrânicas,
mas também atlânticas, em que se podem salientar a ligação ao mar – peixe e
mariscos – os enchidos, sempre presentes nas zonas rurais e a doçaria, com
fortes tradições conventuais. Mas se tivesse que eleger um só produto
representativo da gastronomia portuguesa, seria o bacalhau. A Cura Tradicional
Portuguesa do bacalhau é uma Especialidade Tradicional Garantida e os
portugueses têm 365 maneiras de o preparar. Um para cada dia do ano. Tudo dito! Nas
minhas viagens, procuro encontrar o autêntico e tradicional da gastronomia dos
destinos. Conhecendo sobretudo os países europeus, não posso deixar de referir
a proximidade da base da cozinha mediterrânica em que sempre encontro pontos
comuns, seja em Espanha ou Itália, mas também em países como a Moldávia ou a
Geórgia.
B.G. – A relação de Portugal com o Brasil
vem sendo contada ao mundo desde a época das grandes navegações – período
marcado por viagens de conquista, reconhecimento de territórios e comércio de
especiaria e produtos exóticos. Para muitos autores brasileiros, a cozinha
brasileira é uma mistura oriunda das culturas indígenas, africanas e europeias.
Seguramente, a colonização permitiu essa interação e nos influencia até hoje.
Agora, fazendo a linha inversa, como você vê está relação e, em sua opinião,
haveria algum resquício ligado à gastronomia (hábitos, ingredientes, técnicas,
utensílios) que Portugal teria adquirido a partir do Brasil e que possa ser
encontrado atualmente?
M.J.A.: Não sei responder a
esta questão, mas com a relação histórica e cultural entre Portugal e o Brasil,
certamente que a influência terá que ser recíproca, mesmo que não na mesma
proporção.
B.G. - Uma bela paisagem contribui muito
para tornar memorável uma viagem. Os sabores do terroir apresentam as melhores
produções melhor do local. Considerando as sentenças anteriores, e sabendo da
existência de produtos com indicações geográficas e denominações de origem protegidas,
qual seria o destino turístico português mais adequado para um turista
gastronômico visitar se ele buscasse paisagem, terroir e produtos com
indicações geográficas?
M.J.A.: A região do Porto e Norte de Portugal e a
região do Alentejo, sem dúvida.
Ambas as regiões têm inúmeros produtos certificados com DOP e IGP.
B.G. – Há um dito muito popular no Brasil
que prega o seguinte: “Ir a Roma e não ver o Papa”. A expressão popular significa:
ir a algum lugar e não ver o mais importante; o mais interessante dele. Assim,
levando para o lado gastronômico, o que um turista não poderia deixar de experimentar
em Portugal? E qual seria o(s) elemento(s) gastronômico(s) que, a seu ver,
representaria (m) o patrimônio gastronômico português?
M.J.A.: Não poderia deixar de
experimentar o Bacalhau, o Caldo Verde e os Pastéis de Nata, sendo o bacalhau o
ícone da gastronomia portuguesa.
B.G - Considerando que a mesa é um lugar
onde se deve partilhar as delicias gastronômicas com as pessoas que se gosta,
quem e por que você convidaria para um encontro gastronômico onde juntos
degustariam o sabor da sua tradição? E qual seria o destino para a realização
deste evento?
M.J.A.: Nesta entrevista, a
resposta não pode deixar de ser: Um amigo brasileiro que partilha o mesmo gosto
e afetos pela gastronomia e que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente:
Reubens Frost . E, naturalmente, encontrar-nos-emos à volta da minha mesa.
Aperitivo: M.J.A.: Tomo um texto de um dos maiores escritores
portugueses, António Lobo Antunes: “Morrer é quando há um espaço a mais na mesa
afastando as cadeiras para disfarçar, percebe-se o desconforto da ausência
porque o quadro mais à esquerda e o aparador mais longe, sobretudo o quadro
mais à esquerda e o buraco do primeiro prego, em que a moldura não se fixou, à vista,
fala-se de maneira diferente esperando uma voz que não chega, come-se de
maneira diferente, deixando uma porção na travessa de que ninguém se serve, os cotovelos
vizinhos deixam de impedir os nossos e faz-nos falta que impeçam os nossos”
MEU SABOR DA TRADIÇAO:
M.J.A.: O meu sabor de tradição é o Doce de Abóbora. Não
porque se trate de algo muito sofisticado, mas porque remete para as minhas
memórias de infância, com a imagem imponente da minha Avó fazendo o doce à
lareira, num tacho de cobre, mexendo vagarosamente, filosofando sobre as coisas
simples da Vida. Este doce, mais do que para consumo ( que os mais pequenos não
dispensavam) era feito para dar. Um frasquinho para a prima tal, outro para
outra prima, uma vizinha, uma amiga, outra amiga…. Minha Mãe continuou esta
tradição e lembro-me da nossa cozinha, já sem lareira, cheia de frascos: um
para este, outro para aquele, outro para aqueloutro.
Hoje,
faço este doce todos os anos, com o mesmo sentido. Um frasco para cada um dos
meus irmãos, outro para cada um dos meus amigos e mais uns quantos para os
vizinhos. É um sabor de tradição ligado à generosidade que Mia Couto tão bem
descreve : ”Cozinhar não é um serviço; cozinhar é um modo de amar os outros”.
Aqui fica uma foto do meu Sabor de Tradição, que é afinal de tantos e cuja
receita é bem simples:
Ingredientes
Abóbora, açúcar e pau de canela
Abóbora, açúcar e pau de canela
Preparação:
Descasque e limpe a abóbora. Pese e coloque na panela onde vai fazer o doce.
Pese metade do açúcar, despeje por cima da abóbora de deixe repousar durante
umas horas, ou até de um dia para o outro. Junte 2 ou 3 paus de canela e leve
ao lume. Vá mexendo até a abóbora estar cozida e desfeita. Aconselho a não usar
a varinha mágica para o doce ficar com uma textura característica. Coloque em
frascos bem limpos e feche bem. Consuma e ofereça.
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