A
cozinha é um incrível lugar de transformação, e muitas vezes não nos damos
conta disso. Ou, esquecemos ao longo do tempo em que tratamos a cozinha como um
espaço puramente funcional das nossas casas. Essa não-lembrança, ou
esquecimento, acaba gerando invisibilidade para tudo que ali acontece. Mas,
pense bem: como invisibilizamos ou podemos esquecer do que acontece no lugar
que precisamos com tanta frequência? Por
que invisibiliza-se ou esquece-se do lugar que criou as tradições culinárias
que perduram até hoje nas nossas mesas nos momentos de comemoração, de
encontro, de carinho e, até, nos momentos de tristeza, de luto, de morte? Esse
esquecimento ou a invisibilidade é capaz de suprimir os sacrifícios, as lutas,
as mãos experientes, os saberes e fazeres e suas invenções criativas que,
algumas vezes, por um golpe de sorte resistem ao tempo e lhe servem de prazeres
e memórias... e que são resgatadas, por exemplo, quando você vai em uma
confeitaria, num restaurante para saborear algo pra satisfazer o seu desejo.
Aí, você lembra do lugar ou das pessoas que faz “o melhor”; ou, simplesmente
reclama quando o pedido não está servido ao seu gosto...
Eu
fico pensando essas coisas toda vez que eu quero comer bolo de chocolate... são
tantas as possibilidades de pensar sobre a cozinha e tudo que a cerca...
Imagine: por trás de cada receita, de cada história, de cada cozinheira ou
cozinheiro, há uma história esperando para ser revelada. Umas viram lendas e
passam a inspirar outras pessoas; outras
tornam-se parte da mitologia da cozinha e se encontram em patamares que só os
deuses alcança; mas, existem aquelas que, simplesmente, evaporaram no ar, como
se nunca tivessem existido... No caso dos bolos de chocolate, que são muitas as
variações, imaginem quantas histórias se pode contar... foi pensando nisso que
hoje vim resolvi apresentar um pouco sobre a história de um ícone gastronômico
do Norte da Itália, a deliciosa Torta Barozzi.
A
história desse tipo de bolo que já se tornou uma verdadeira instituição, começa
num passado distante e precisamente no coração de Vignola, uma comuna italiana
da região da Emília-Romagna, província de Modena: no final século XIX, em 1886,
na pequena localidade da Vignola, existia - e ainda existe - uma confeitaria chamada
Pasticceria Gollini, que carrega o sobrenome de seus fundador, Eugenio Gollini,
lá foi o lugar de nascimento desse bolo peculiar, cujo nome é tão icônico que,
hoje, pode ser chamado simplesmente de "La Barozzi"!
O
tempo acabou transformando o bolo em sobremesa histórica da Vignola, muito
difundida em toda a zona de Modena, feita a base de ovos, chocolate amargo,
cacau, café (existe inclusive a lenda de que ela é feita com borra de café – o
que lhe confere um resíduo muito peculiar o qual alguns comensais registram
sentir quando comem do bolo) açúcar, manteiga, amêndoa, amendoim, rum (ou
grappa). Isso mesmo, é um bolo de dois séculos, sem farinha! Estamos, portanto,
diante de uma torta naturalmente sem glúten.
A
autêntica Torta Barozzi é marca registrada desde 1948 e sua receita original ainda
hoje é “secreta”. Esteticamente a torta pode ter a aparência de um brownie, um
bolo norte-americano também inventado como o conhecemos no século XIX, mas o
resultado da Torta Barozzi foi um percurso pensado e envolveu também os
clientes da pastelaria: diz-se que Eugenio fez muitos testes, usando
ingredientes e procedimentos diversos, até chegar na receita definitiva.
Depois, deixou que os amigos e clientes da pastelaria provassem os resultados
dessas experiências culinárias para encontrar o equilíbrio perfeito que pudesse
agradar a todos.
Essa
sacada de Eugenio Gollini foi, portanto, fundamental para o sucesso de um
produto que pudesse satisfazer o paladar dos clientes – muito provavelmente,
ele não tinha em mente a ambição de que sua receita tivesse uma vida tão
longeva e acabasse se tornando uma referência mundial de destaque. Além disso,
mostra a dedicação do cozinheiro em um processo contínuo de aprimoramento de
receita, algo tão comum até os dias de hoje, mas que muita gente não se dá
conta... Até que, após inúmeras provas, e reprovações, encontrou-se as
proporções que mais o convenceram, e essa formula virou a receita definitiva.
Quando
Eugenio encontrou a receita perfeita para sua criação, em 1886, a torta era um
“tijolo escuro” que exalava o cheiro intenso do chocolate amargo, recebeu o
nome "torta nera" (torta negra, bolo negro). Por fim, essa “torta nera” tornou-se em pouco
tempo um dos símbolos de Vignola, como o Rocca ou o Palazzo Boncompagni.
A
pastelaria Gollini passou a ser frequentada não só pela gente de Vignola, mas
também por gentes que vinham de fora para provar o famoso bolo do lugar. Em
1907, durante o quarto centenário do nascimento de Jacopo Barozzi, um famoso
arquiteto de Vignola, conhecido como "il Vignola", Eugenio Gollini
passou a chamar a sobremesa de "Pasta Barozzi", que significa Torta
Barozzi, e por esse nome ficou conhecida até hoje. O sucesso do chef pasteleiro
foi grande com a receita, e se mantem ao longo de anos – demonstrando que se
trata de uma excelente torta.
E,
só para que você sinta a importância dessa homenagem feita pelo senhor Gollini,
Jacopo Barozzi (1507/1573), ainda conhecido como "il Vignola" pelo
nome de sua cidade natal, foi um dos maiores arquitetos da Itália central da
segunda metade do século XVI. Ele atuou principalmente em Roma, onde se tornou
o arquiteto oficial do Papa Júlio III. Foi responsável por algumas das mais
belas residências da família Farnese, incluindo a de Caprarola e numerosos
edifícios religiosos, que culminaram na sua obra-prima, a Igreja do Gesù em
Roma.
Em
Vignola encontra-se o Palácio Boncompagni, provavelmente construído a partir de
um projeto de Barozzi e construído por volta de 1566-67, a mando de Ercole
Contrari, pelo arquiteto ferrara Bartolomeo Tristano, na época trabalhando para
o duque de Modena Alfonso II. O edifício é constituído por um corpo central e
dois laterais, com portal de silhar; no interior pode-se admirar a escada em
espiral oval, também construída por Bartolomeo Tristano com base no projeto de
Barozzi.
Mas,
voltando para a nossa história, outra virada de grande sucesso da sobremesa
veio em 1948, quando deixou de ser apenas um "bom bolo" de uma
pequena confeitaria de Vignola, e tornou-se uma marca registrada: o nome de
"Torta Barozzi" era protegido por Eugenio Gollini, sobrinho do
inventor com o mesmo nome, que registrava o nome e a marca, regularmente
renovada a cada vinte anos.
Essa
atitude já nos revela a importância dessa torta que, desde aquela época, se
entendia que se tratava de um produto a ser preservado, protegido. Naquela
época, não era tão comum registrar uma marca. Na verdade, não existem tantas
marcas históricas na Itália. Outro ponto a favor da Torta Barozzi surge ainda
nos últimos tempos, quando os Gollini conseguiram o reconhecimento e ela passou
a ser incluída no Registo de Sociedades Históricas, sinal de uma tradição
consolidada e estimada.
Não
por acaso, é uma preparação que começa a ter um passado desafiador. No entanto,
em 1886, já havia se mostrado "à frente" dos tempos. Por que razão?
Bom,
para a época a composição da torta era bastante inovadora porque tinha um
ingrediente quase exótico (por incrível que pareça!): o amendoim, que no final
do século XIX, não era muito difundido na Europa. Eugenio Gollini que era uma
pessoa um tanto original, também foi original com na escolha dos ingredientes
para o bolo - confirmando essa característica. Mas não se engane, essa não é a
única peculiaridade.
Na
verdade, já na versão original do Bolo Barozzi não havia farinha: portanto, não
é que se trata de “uma receita de antigamente feito ao modo de hoje”; não falta
farinha porque agora há mais atenção ao problema da doença celíaca. Não, a
torta nasceu assim, sem glúten, para alegria de todos os celíacos. E também não
há adição de conservantes, tão abusados hoje em dia. Por isso a conservação do
bolo é muito mais limitada, pois não tem ingredientes químicos. Não passa de 40
dias fora da geladeira, mas eles seguem mantendo-o fiel a receita original, e
fazem muito bem assim.
Para
muitos, o fato de a receita ter se mantido secreta desde o início por isso
ficou e por isso deve permanecer, porque faz parte da sua aura de mistério que
certamente contribui para o seu sucesso. Mas pela representatividade histórica
e simbólica, tornou-se mais que uma sobremesa tradicional sendo uma das
receitas mais imitadas nos lares de toda a zona de Modena. Todas as versões,
mais ou menos semelhantes, propostas por confeitarias, delicatessens, bares,
restaurantes e quintas da zona de Modena podem, portanto, ser definidas como
“Torta Tipo Barozzi”.
Entretanto,
cuidado, paixão e respeito pelo passado mantem os segredos da “Barozzi”
original que continua sendo fabricada pela Gollini. Eu acredito que, para além
da receita 100% ultrassecreta, existem outros ingredientes nem tão secretos que
se acrescentam à preparação: a paixão e o respeitos dos locais pelo passado,
pela preservação da memória, por manter a tradição de um bolo que vem
resistindo desde então como representante da identidade daquele lugar.
Esse
bolo é tão especial e peculiar que já virou alvo de grandes chefs de cozinha,
como o badalado chef Massimo Bottura, orgulhoso porta-voz da riqueza da terra
de Modena, que há alguns anos demonstrou em um vídeo como esta pequena joia
ficava ainda mais deliciosa quando molhada com algumas gotas de vinagre
balsâmico de Modena (você pode conferir no vídeo abaixo:
Mas,
enquanto não se pode viajar até a Itália para comer uma barozzi original, você
pode fazer a sua torta Tipo Barozzi, em casa, e se deliciar já pensando no
destino da próxima viagem e de como as coisas que acontecem na cozinham podem
modificar a histórias das pessoas e dos lugares...
TORTA TIPO BAROZZI
250 gramas de chocolate amargo
80 gramas
de manteiga
100
gramas de amendoim descascado (sem sal)
100 gramas
de amêndoas descascadas
4 ovos
150 gramas
de açúcar
1
xicara de pequena de café expresso (50ml -, (Mas, se preferir, você pode usar 5
colheres de café de Nescafé - café solúvel)
1 dose
de rum (50ml)
Preparo: Levar o chocolate ao
banho maria e derreter junto à manteiga. Em uma tigela, fazer uma gemada com as
gemas e o açúcar, bater bem até ficar clarinhas. Acrescentar as amêndoas e
amendoim moídos. Acrescentar o rum e o café e mexer bem. Juntar o chocolate
derretido. bater as claras em neve até picos firmes, e misturar delicadamente e
levar a uma forma untada e enfarinhada. Assar em forno pré-aquecido a 180 graus
por 20 minutos. Deixar esfriar por alguns minutos antes de servir.
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