Há uma região italiana em
que o panetone (Já falei dele AQUI) e o pandoro (veja sobre ele AQUI) não criam facções ferozes de apoiadores de um ou de
outro. Trata-se de Abruzzo, localizada nos Apeninos da Itália Central, e a
razão pela qual escolher entre as duas sobremesas típicas de Natal não é problema
nenhum, porque lá existe uma terceira opção, igualmente saborosa: o Parrozzo!
Entre as sobremesas de Abruzzo, o Parrozzo é certamente a mais icônica, pelo seu formato de cúpula e pela camada de chocolate que a cobre. Porém, acredito que muitos de vocês não conheciam a sua existência, muito menos a sua história, e como essa sobremesa foi “patrocinada” por um excepcional nativo de Abruzzo: o poeta Gabriele D'Annunzio. Nascida como especialidade de Natal, o Parrozzo está agora disponível durante todo o ano.
A tradição padeira de
Abruzzo tem raízes em tempos distantes. Lá, como em muitos outras sociedades, o
pão representava um elemento essencial para o sustento diário das famílias.
Contudo, a farinha de trigo, iguaria reservada às classes sociais mais abastadas,
estava fora do alcance dos agricultores, que tinham de se contentar com pães
semiesféricos, cozidos em forno a lenha, preparados com outros tipos de cereal,
algumas vezes até misturados com farinha de milho, pães mais rústicos e sem
muito luxo de ingredientes que eram chamados de “panne rozzo” (pão áspero). É
partindo disse contexto que agora eu apresento um pouco de como ocorreu a
transformação do pão camponês à sobremesa tradicional para o Natal.
Do pan rozzo ao parrozzo: a
"doce" virada de Luigi D'Amico
A versão doce do pane rozzo
deve-se à intuição de Luigi D'Amico, dono de um estabelecimento comercial que
se localizava em Pescara, na esquina entre Corso Manthonè e Piazza Garibaldi.
Em meados do século XIX, a empresa D'Amico - liderada pelo seu avô, também
chamado Luigi - vendia tanto produtos alimentares como vinho, cereais e peixe
salgado, quanto produtos como piche para calafetagem de barcos, redes de pesca
e pólvora de pesca. Biagio, filho do fundador, conduziu a empresa na
especialização em produtos alimentares, deixando de lado a venda de produtos
não alimentares e aventurando-se na importação de produtos de grande procura.
Porém, a verdadeira
revolução veio com Luigi D'Amico, filho de Biagio, no período imediatamente
seguinte à Primeira Guerra Mundial. Embora tenha mantido o coração comercial da
empresa, Luigi lançou duas novas iniciativas: a abertura de um bar “Il Trovatore
del Parrozzo” e a invenção desta sobremesa tal como a conhecemos.
Desejando reinventar a
tradição sem distorcer a essência, em 1919, D'Amico reelaborou a receita
inspirando-se na aparência e nos sabores do pan rozzo: para imitar o
amarelecimento da farinha de milho usou ovos e cobriu a sobremesa com chocolate
de alta qualidade para evocar a escuridão das queimaduras da casca do pão de
milho depois de assado - características típicas do cozimento do pão de milho
assado em forno à lenha. Porém, na base da massa do parozzo estão: farinha de
amêndoa, açúcar, amêndoas picadas; essência de amêndoa amarga, casca de laranja
ou casca de limão e chocolate amargo, que serve para decoração.
A forma semiesférica do pão
tradicional rústico foi mantida e um molde abobadado é usado para lembrar os
antigos e tradicionais pães camponeses daquela região italiana.
O criador do Parrozzo teve
uma intuição, considerando também o que poderíamos chamar de "moda da
época", pedir a uma pessoa ilustre que divulgasse seu produto e, por
acaso, a pessoa ilustre a quem ele recorreria era um amigo de infância, o famoso
escritor, poeta, dramaturgo, soldado, político, jornalista e patriota italiano,
Gabriele D'Annunzio. D'Amico conhecia muito bem a forte nostalgia que
D'Annunzio sofria por viver longe da mãe e da terra natal. E ao dar-lhe esta
sobremesa de presente acertou em cheio, despertando memórias da juventude do
poeta.
D'Amico então envia para
Gabriele D'Annunzio o primeiro Parrozzo de Gardone no dia 27 de setembro de
1919, acompanhado de uma carta onde declarava a sobremesa como "Pan rozzo
d'Abruzzo".
D'Amico escreveu: “Ilustre
Maestro, este Parrozzo – o Pan Rozzo d'Abruzzo – é-lhe oferecido por mim com um
pequeno nome ligado à sua e à minha juventude... Queria combinar estas duas
ofertas – a memória e a sobremesa –
porque sei o valor que certas lembranças têm para a sua alma”.
D'Annunzio, impressionado
com esse deleite, escreveu em resposta um soneto dialetal elogiando a
sobremesa. Esta composição, juntamente com outros versos do poeta, encontra-se
até hoje na caixa de Parrozzo como testemunho de suas origens nobres e literárias.
Essa ligação com D'Annunzio foi ainda estabelecida em 1927, com a adoção de
versos escritos pelo poeta em louvor à sobremesa:
È tante ‘bbone stu parrozze
nove che pare na pazzie de San Ciattè, c’avesse messe a su gran forne tè la
terre lavorata da lu bbove, la terre grasse e lustre che se coce… e che dovente
a poche a poche chiù doce de qualunque cosa doce…”
D'Annunzio ficou muito
impressionado não só com a carta, mas sobretudo com a qualidade da sobremesa.
Sentiu-se honrado em ser seu promulgador e, a partir daquele momento, tornou-se
seu maior divulgador e consumidor. Na verdade, o poeta continuou a receber um
suprimento pessoal de Parrozzo pelo resto da vida. Ele consumia uma grande
quantidade e encomendava a mesma quantidade para dar de presente aos amigos
durante as festividades de Natal. Mesmo no seu último Natal, D’Annunzio não
desistiu de saborear a sobremesa que tanto o prendeu à sua terra “A véspera de
Natal acabou. Talvez neste momento as pessoas estejam se divertindo. Estou em
jejum há 48 horas. Vou procurar um parrozzetto. Eu abro, eu como. Nele
saboreio, sob o pretexto da amargura, o Natal da infância."
Um raro e refinado panfleto
foi dedicado ao Parrozzo, impresso em Pescara por um impressor de arte e
intitulado A Casa do Poeta, contendo cartas de D'Annunzio, fotos e outros
materiais ligados à relação entre D'Annunzio e Parrozzo.
Mas nessa história ainda se
apresenta a contribuição de várias figuras artísticas importantes que
desempenharam um papel fundamental na evolução e promoção do Parrozzo: Luigi Antonelli, crítico de arte e
dramaturgo, escreveu a história; Armando Cermignani, ceramista, escolheu as
cores que ainda estão presentes nas embalagens do parrozzo; o maestro Di Iorio
e Cesare De Titta, que cuidaram respectivamente da música e da letra de “La
Canzone del Parrozzo”; e, finalmente Tommaso Cascella, pintor, que com suas pinturas
decorou as paredes do bar Il Trovatore del Parrozzo. Todos, cada um com suas
habilidades, contribuíram de diferentes maneiras para fazer do parrozzo um
símbolo de Abruzzo e construir o ambiente simbólico que o sustenta até os
nossos dias com sua aura de magia e elegância.
De Pescara para o mundo: a
história do parrozzo depois da Segunda Guerra Mundial
Embora o parrozzo tenha se
tornado conhecido em algumas regiões italianas, a Segunda Guerra Mundial levou
à interrupção das atividades da D'Amico. Após a guerra, a recuperação foi
complexa e Luigi D'Amico morreu em 1954.
Sob a liderança de sua filha
Teresa, auxiliada pelo braço direito de seu pai, Cavalier Gennaro Di Matteo, e
posteriormente por seu marido Giuseppe Francini, a empresa enfrentou inúmeras
mudanças. A viragem decisiva ocorreu na década de 1970, quando, com a
intervenção do filho do casal, Pierluigi Francini, a empresa introduziu uma
moderna linha de embalagens que prolongou a vida útil do Parrozzo,
permitindo-lhe conquistar mercados em Itália e no estrangeiro, dos EUA ao
Canadá, e Austrália.
Além disso, o Parrozzo
obteve nos nosso dias o reconhecimento como Produto Alimentar Tradicional da
região de Abruzzo, na categoria “Pastelaria fresca e produtos de panificação,
biscoitos, pastelaria e confeitaria” e é preparado principalmente, de acordo
com a tradição, durante as festividades, nomeadamente as de Natal.
Mas se você não está em
Abruzzo e deseja comer o seu Panrrozzo, vou te deixar a receita pra você se
deleitar com essa indulgencia natalina. Aproveite!
Parrozzo
120 g de semolina de trigo
100 g de amêndoas pelada
para reduzir a pó
100g de açúcar
4 ovos grandes
80 g de manteiga derretida
(que você pode substituir por óleo de semente de girassol)
2 colheres de sopa de
amaretto
casca de um limão ralada (ou
de laranja, como preferir)
200 g de chocolate amargo (+
20 g de manteiga opcional)
Notas sobre a escolha da
forma: a receita original exige a utilização da forma de zuccotto (em forma de
cúpula. Se não tiver pode usar uma tijela dessas de vidro que possam ir ao
forno ou uma de alumínio. Em qualquer caso uma forma para virar de cabeça para
baixo, e que tenha ao final a forma de domo.
Preparo: Em primeiro lugar,
separe as gemas das claras. Bata as claras e os tintos com o açúcar e a casca
de laranja ralada até obter uma mistura clara e espumosa. Junte a manteiga
derretida, as amêndoas finamente moídas, a sêmola e o licor, e misture bem, a
mistura deve ficar um pouco dura, isso é normal! Adicione as claras em neve
delicadamente batidas, mexendo de baixo para cima até que a mistura esteja
completamente misturada! Despeje em uma forma semiesférica untada com manteiga
e enfarinhada. Asse o parrozzo a 160° por cerca de 1 hora, vai demorar um pouco
para engrossar, não se preocupe, faça sempre o teste do palito. Retire do
forno, deixe esfriar por 10 minutos, depois retire o parrozzo da forma e deixe
esfriar completamente em cima de uma gradinha. Depois de frio, derreta o
chocolate com a manteiga. Despeje de uma só vez sobre o parrozzo colocado sobre
uma gradinha com papel manteiga por baixo. Recolha o chocolate derretido caído
e cubra novamente o parrozzo. Deixe repousar por 10 a 15 minutos e depois
transfira a sobremesa para um prato de servir. Aqui está o Parrozzo de Abruzzo
pronto!
Conservar o Parrozzo à
temperatura ambiente por 4 a 5 dias. Não coloque na geladeira. A cobertura
tenderá a engrossar, mas graças à manteiga ficará ligeiramente macia!