quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Parrozzo, história de uma sobremesa Abruzzense de Natal

 

Há uma região italiana em que o panetone (Já falei dele AQUI) e o pandoro (veja sobre ele AQUI) não criam facções ferozes de apoiadores de um ou de outro. Trata-se de Abruzzo, localizada nos Apeninos da Itália Central, e a razão pela qual escolher entre as duas sobremesas típicas de Natal não é problema nenhum, porque lá existe uma terceira opção, igualmente saborosa: o Parrozzo!


Entre as sobremesas de Abruzzo, o Parrozzo é certamente a mais icônica, pelo seu formato de cúpula e pela camada de chocolate que a cobre. Porém, acredito que muitos de vocês não conheciam a sua existência, muito menos a sua história, e como essa sobremesa foi “patrocinada” por um excepcional nativo de Abruzzo: o poeta Gabriele D'Annunzio. Nascida como especialidade de Natal, o Parrozzo está agora disponível durante todo o ano.

A tradição padeira de Abruzzo tem raízes em tempos distantes. Lá, como em muitos outras sociedades, o pão representava um elemento essencial para o sustento diário das famílias. Contudo, a farinha de trigo, iguaria reservada às classes sociais mais abastadas, estava fora do alcance dos agricultores, que tinham de se contentar com pães semiesféricos, cozidos em forno a lenha, preparados com outros tipos de cereal, algumas vezes até misturados com farinha de milho, pães mais rústicos e sem muito luxo de ingredientes que eram chamados de “panne rozzo” (pão áspero). É partindo disse contexto que agora eu apresento um pouco de como ocorreu a transformação do pão camponês à sobremesa tradicional para o Natal.

Do pan rozzo ao parrozzo: a "doce" virada de Luigi D'Amico

A versão doce do pane rozzo deve-se à intuição de Luigi D'Amico, dono de um estabelecimento comercial que se localizava em Pescara, na esquina entre Corso Manthonè e Piazza Garibaldi. Em meados do século XIX, a empresa D'Amico - liderada pelo seu avô, também chamado Luigi - vendia tanto produtos alimentares como vinho, cereais e peixe salgado, quanto produtos como piche para calafetagem de barcos, redes de pesca e pólvora de pesca. Biagio, filho do fundador, conduziu a empresa na especialização em produtos alimentares, deixando de lado a venda de produtos não alimentares e aventurando-se na importação de produtos de grande procura.

Porém, a verdadeira revolução veio com Luigi D'Amico, filho de Biagio, no período imediatamente seguinte à Primeira Guerra Mundial. Embora tenha mantido o coração comercial da empresa, Luigi lançou duas novas iniciativas: a abertura de um bar “Il Trovatore del Parrozzo” e a invenção desta sobremesa tal como a conhecemos.

Desejando reinventar a tradição sem distorcer a essência, em 1919, D'Amico reelaborou a receita inspirando-se na aparência e nos sabores do pan rozzo: para imitar o amarelecimento da farinha de milho usou ovos e cobriu a sobremesa com chocolate de alta qualidade para evocar a escuridão das queimaduras da casca do pão de milho depois de assado - características típicas do cozimento do pão de milho assado em forno à lenha. Porém, na base da massa do parozzo estão: farinha de amêndoa, açúcar, amêndoas picadas; essência de amêndoa amarga, casca de laranja ou casca de limão e chocolate amargo, que serve para decoração.

A forma semiesférica do pão tradicional rústico foi mantida e um molde abobadado é usado para lembrar os antigos e tradicionais pães camponeses daquela região italiana.

O criador do Parrozzo teve uma intuição, considerando também o que poderíamos chamar de "moda da época", pedir a uma pessoa ilustre que divulgasse seu produto e, por acaso, a pessoa ilustre a quem ele recorreria era um amigo de infância, o famoso escritor, poeta, dramaturgo, soldado, político, jornalista e patriota italiano, Gabriele D'Annunzio. D'Amico conhecia muito bem a forte nostalgia que D'Annunzio sofria por viver longe da mãe e da terra natal. E ao dar-lhe esta sobremesa de presente acertou em cheio, despertando memórias da juventude do poeta.

                                                            Gabriele D'Annunzio.

D'Amico então envia para Gabriele D'Annunzio o primeiro Parrozzo de Gardone no dia 27 de setembro de 1919, acompanhado de uma carta onde declarava a sobremesa como "Pan rozzo d'Abruzzo".

D'Amico escreveu: “Ilustre Maestro, este Parrozzo – o Pan Rozzo d'Abruzzo – é-lhe oferecido por mim com um pequeno nome ligado à sua e à minha juventude... Queria combinar estas duas ofertas – a memória e  a sobremesa – porque sei o valor que certas lembranças têm para a sua alma”.

D'Annunzio, impressionado com esse deleite, escreveu em resposta um soneto dialetal elogiando a sobremesa. Esta composição, juntamente com outros versos do poeta, encontra-se até hoje na caixa de Parrozzo como testemunho de suas origens nobres e literárias. Essa ligação com D'Annunzio foi ainda estabelecida em 1927, com a adoção de versos escritos pelo poeta em louvor à sobremesa:

È tante ‘bbone stu parrozze nove che pare na pazzie de San Ciattè, c’avesse messe a su gran forne tè la terre lavorata da lu bbove, la terre grasse e lustre che se coce… e che dovente a poche a poche chiù doce de qualunque cosa doce…”


D'Annunzio ficou muito impressionado não só com a carta, mas sobretudo com a qualidade da sobremesa. Sentiu-se honrado em ser seu promulgador e, a partir daquele momento, tornou-se seu maior divulgador e consumidor. Na verdade, o poeta continuou a receber um suprimento pessoal de Parrozzo pelo resto da vida. Ele consumia uma grande quantidade e encomendava a mesma quantidade para dar de presente aos amigos durante as festividades de Natal. Mesmo no seu último Natal, D’Annunzio não desistiu de saborear a sobremesa que tanto o prendeu à sua terra “A véspera de Natal acabou. Talvez neste momento as pessoas estejam se divertindo. Estou em jejum há 48 horas. Vou procurar um parrozzetto. Eu abro, eu como. Nele saboreio, sob o pretexto da amargura, o Natal da infância."

Um raro e refinado panfleto foi dedicado ao Parrozzo, impresso em Pescara por um impressor de arte e intitulado A Casa do Poeta, contendo cartas de D'Annunzio, fotos e outros materiais ligados à relação entre D'Annunzio e Parrozzo.

Mas nessa história ainda se apresenta a contribuição de várias figuras artísticas importantes que desempenharam um papel fundamental na evolução e promoção do Parrozzo:  Luigi Antonelli, crítico de arte e dramaturgo, escreveu a história; Armando Cermignani, ceramista, escolheu as cores que ainda estão presentes nas embalagens do parrozzo; o maestro Di Iorio e Cesare De Titta, que cuidaram respectivamente da música e da letra de “La Canzone del Parrozzo”; e, finalmente Tommaso Cascella, pintor, que com suas pinturas decorou as paredes do bar Il Trovatore del Parrozzo. Todos, cada um com suas habilidades, contribuíram de diferentes maneiras para fazer do parrozzo um símbolo de Abruzzo e construir o ambiente simbólico que o sustenta até os nossos dias com sua aura de magia e elegância.





De Pescara para o mundo: a história do parrozzo depois da Segunda Guerra Mundial

Embora o parrozzo tenha se tornado conhecido em algumas regiões italianas, a Segunda Guerra Mundial levou à interrupção das atividades da D'Amico. Após a guerra, a recuperação foi complexa e Luigi D'Amico morreu em 1954.

Sob a liderança de sua filha Teresa, auxiliada pelo braço direito de seu pai, Cavalier Gennaro Di Matteo, e posteriormente por seu marido Giuseppe Francini, a empresa enfrentou inúmeras mudanças. A viragem decisiva ocorreu na década de 1970, quando, com a intervenção do filho do casal, Pierluigi Francini, a empresa introduziu uma moderna linha de embalagens que prolongou a vida útil do Parrozzo, permitindo-lhe conquistar mercados em Itália e no estrangeiro, dos EUA ao Canadá, e Austrália.


Além disso, o Parrozzo obteve nos nosso dias o reconhecimento como Produto Alimentar Tradicional da região de Abruzzo, na categoria “Pastelaria fresca e produtos de panificação, biscoitos, pastelaria e confeitaria” e é preparado principalmente, de acordo com a tradição, durante as festividades, nomeadamente as de Natal.

Mas se você não está em Abruzzo e deseja comer o seu Panrrozzo, vou te deixar a receita pra você se deleitar com essa indulgencia natalina. Aproveite!

Parrozzo

120 g de semolina de trigo

100 g de amêndoas pelada para reduzir a pó

100g de açúcar

4 ovos grandes

80 g de manteiga derretida (que você pode substituir por óleo de semente de girassol)

2 colheres de sopa de amaretto

casca de um limão ralada (ou de laranja, como preferir)

200 g de chocolate amargo (+ 20 g de manteiga opcional)

Notas sobre a escolha da forma: a receita original exige a utilização da forma de zuccotto (em forma de cúpula. Se não tiver pode usar uma tijela dessas de vidro que possam ir ao forno ou uma de alumínio. Em qualquer caso uma forma para virar de cabeça para baixo, e que tenha ao final a forma de domo.

Preparo: Em primeiro lugar, separe as gemas das claras. Bata as claras e os tintos com o açúcar e a casca de laranja ralada até obter uma mistura clara e espumosa. Junte a manteiga derretida, as amêndoas finamente moídas, a sêmola e o licor, e misture bem, a mistura deve ficar um pouco dura, isso é normal! Adicione as claras em neve delicadamente batidas, mexendo de baixo para cima até que a mistura esteja completamente misturada! Despeje em uma forma semiesférica untada com manteiga e enfarinhada. Asse o parrozzo a 160° por cerca de 1 hora, vai demorar um pouco para engrossar, não se preocupe, faça sempre o teste do palito. Retire do forno, deixe esfriar por 10 minutos, depois retire o parrozzo da forma e deixe esfriar completamente em cima de uma gradinha. Depois de frio, derreta o chocolate com a manteiga. Despeje de uma só vez sobre o parrozzo colocado sobre uma gradinha com papel manteiga por baixo. Recolha o chocolate derretido caído e cubra novamente o parrozzo. Deixe repousar por 10 a 15 minutos e depois transfira a sobremesa para um prato de servir. Aqui está o Parrozzo de Abruzzo pronto!

Conservar o Parrozzo à temperatura ambiente por 4 a 5 dias. Não coloque na geladeira. A cobertura tenderá a engrossar, mas graças à manteiga ficará ligeiramente macia!

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