sábado, 11 de outubro de 2025

ENTRE O CORVO E O ASSUM-PRETO: QUANDO ENCONTRO POE(TICA) E BELCHIOR NO MESMO PRATO

 

Não sei o que seria de mim sem a música do mundo.

Ontem — 8 de outubro — celebrou-se o Dia do Nordestino. Ah, meu país Nordeste... esse território sagrado onde o sol castiga e beija, onde o barro tem alma e o vento canta em cordas de sanfona. Um lugar que, antes de qualquer coisa, pulsa — e pulsa em mim. Passei o dia à caça de sons que carregassem essa parte da minha herança. Mergulhei no YouTube como quem desce a um poço antigo, e de lá tirei vozes empoeiradas, melodias frescas, joias enterradas nos confins do Ceará.


Num desses momentos — enquanto a vida exigia suas tarefas e eu deixava a música em segundo plano — fui subitamente fisgado. A canção era “Velha Roupa Colorida”, do Belchior, esse profeta desafinado do nosso tempo. Ele cantava como quem sussurra verdades cortantes com a lâmina de uma navalha afetiva: “Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo / Que uma nova mudança em breve vai acontecer / E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo / E precisamos todos rejuvenescer...”.

                               Só eu acho que o Belchior lembra o Poe?

Parecia que ele falava comigo. E então veio o estalo. As estrofes seguintes me jogaram noutro universo — ou talvez noutro século. Dizia assim:

“Como Poe, poeta louco americano

Eu pergunto ao passarinho

Black bird, assum-preto, o que se faz?

E raven, never, raven, never, raven

Never, raven, never, raven

Assum-preto, pássaro-preto, black bird, me responde

Tudo já ficou atrás

E raven, never, raven, never, raven

Never, raven, never, raven

Black bird, assum-preto, pássaro-preto, me responde

O passado nunca mais”

E ali estava ele, o assum-preto — nosso pássaro nordestino, nosso presságio. A canção de Belchior ecoava as dores de Poe com uma naturalidade quase assustadora. O blackbird de lá, o assum-preto de cá. O raven (o corvo), o nevermore, traduzido com simplicidade brutal em um verso que arrepia como a lâmina fria da verdade: “Tudo já ficou atrás.”

                                         A elegância do Assum Preto

O Corvo dos assombros de muitos...

Foi nesse momento que tudo se alinhou, como se o tempo tivesse dado um nó. O dia anterior fora 7 de outubro, data exata da morte de Edgar Allan Poe em 1849 – o  mesmo Poe que do qual o belchior fala na música. E ali, no dia seguinte, 8 de outubro de 2025, completavam-se exatos 176 anos desde seu último suspiro — aquele estranho e obscuro adeus sussurrado nos becos molhados de Baltimore.

Seria coincidência? Ou o passado vinha mesmo cantar para mim — não com harpas celestiais, mas com um canto agourento e sincopado, vindo da boca de um pássaro negro que atravessa continentes e culturas?

Sim, porque há algo profundamente simbólico na figura do pássaro negro. O corvo, para Poe, era mais que um animal: era mensageiro do além, arauto da saudade, a própria sombra feita carne e pena. Ele pousa no busto de Palas Atena — deusa da sabedoria — e dali proclama, repetidamente, a sentença que nenhum coração apaixonado deseja ouvir:

Nevermore. Nunca mais.

Mas e o assum-preto?

No sertão, na caatinga, ele canta outro luto. Nas canções populares, o assum-preto é símbolo de dor e injustiça. É o pássaro que, após ter os olhos furados pelo patrão, ainda canta — e seu canto é ainda mais bonito. A crueldade humana tenta silenciá-lo, mas ele responde com melodia. Onde o corvo de Poe traz a loucura do luto, o assum-preto nos entrega a beleza trágica da resistência. Ambos são sombras aladas, sim — mas o corvo é espectro; o assum-preto é ferida viva.

E se outubro, o mês das bruxas, tem no hemisfério Norte seu Corvo noturno e seu céu de folhas mortas, por que não haveríamos nós, tropicais e quentes, de ter também nosso pássaro de presságios? Nosso símbolo do sombrio, da dor que canta?

O assum-preto pode muito bem ser o corvo das bruxas brasileiras — menos fantasmagórico, mais terreno. Não vem do submundo, mas do mato seco, do sertão em brasa. Ele não repete "nevermore", mas canta a dor com doçura que desafia a morte.

É por isso que essa crítica ao Halloween como “coisa de gringo” soa, tantas vezes, como pura miopia cultural. Esquecem que a celebração do 31 de outubro vem das tradições celtas — o Samhain, onde se acreditava que o véu entre os mundos se afinava, e que os mortos podiam caminhar entre os vivos – e ocorria em todo o mundo. Um tempo de transição, de colheita, de reflexão. Não é só fantasia importada — é ancestralidade mascarada.

E, como em um ritual previsível, levantam-se vozes puristas, indignadas com as abóboras e os esqueletos nas vitrines, acusando um suposto complô cultural: “Estamos sendo colonizados!” — dizem, sem nem saber que a festa que criticam é muito mais ancestral do que supõem.

O Halloween, afinal, nasceu nas brumas dos campos celtas, quando os antigos druidas celebravam o Samhain — um festival pagão que marcava o fim do verão e a chegada da estação escura, um tempo liminar em que os mortos retornavam para visitar os vivos. Muito antes de se cristianizar como o “Dia de Todos os Santos”, essa era uma noite de respeito ao invisível. De reverência aos ciclos da terra e da morte.

Então, que colonização é essa, senão a da própria ignorância?

E não deixa de ser irônico que muitos dos que acusam o Halloween de ser “importado” também não façam questão de lembrar — ao longo do ano — dos personagens do nosso próprio folclore. Onde estão o Saci, a Cuca, a Iara, o Curupira, o Caipora, o Boitatá, a Matinta Pereira, o Boto fora do 31 de outubro? A hipocrisia é deslavada. O que se teme, no fundo, não é a influência externa — mas o próprio espelho cultural que o sobrenatural nos obriga a encarar.

Assim, entre Poe e Belchior, entre corvo e assum-preto, descubro que a travessia do Halloween também é nossa. Não por ser americana — mas por ser humana. Porque todo povo tem seus fantasmas. E todo coração, seu pássaro sombrio. 

OUTUBRO: O MÊS ONDE OS FANTASMAS DANÇAM 

Estamos em outubro — o mês em que os mortos passeiam entre nós, em que os lençóis das casas antigas parecem se mover sozinhos e as abóboras sorriem com dentes afiados e luzes intrigantes nos olhos.

Tudo bem levantar bandeiras contra imposições culturais — elas existem. Mas é curioso como muitos dos que gritam contra bruxas e monstros ‘importados’ não se lembram sequer de acender uma vela pra velha bruxa Cuca. Nenhum tuíte para o Bicho Papão. Nenhuma festa pro danado do Mapinguari, Cobra-Norato, Corpo Seco, Velho do saco, Mãe da mata –  que podem ser tão fortes e assustadores quantos as monstruosidades de fora.

Essa hipocrisia deslavada, que dorme em berço esplêndido o ano inteiro, só desperta para esbravejar em outubro — quando o mundo se pinta de sombra e memória, e as crianças saem para buscar doces que, em outras culturas, já foram oferendas aos mortos.

Não se trata de escolher entre um ou outro — entre o folclore nacional ou as tradições estrangeiras. Trata-se de lembrar que o respeito pelos mortos, pelo mistério e pelo medo é universal. E que outubro, com suas noites longas e vento estranho, é um convite para todos os tipos de travessia.

Nada mais justo, então, do que invocar Edgar Allan Poe, esse patrono das noites enevoadas. E lembrar algumas de suas histórias que mais me assombraram — não no susto, mas na permanência. Naquele tipo de terror que sussurra em vez de gritar. Que gruda na alma.

POE: O CORVO QUE NUNCA PARTIU

Li O Corvo ainda jovem, numa tradução que mal podia conter o peso gótico e a melancolia das palavras originais. Publicado em 1845, o poema narra a história de um homem só, afogado em seu próprio luto, numa noite que parecia não ter fim, quando o impossível lhe visita: um corvo negro, símbolo da morte e do mistério, que pousa em seu quarto, repetindo com voz rouca e fatal a única palavra que ecoará para sempre — Nevermore.

A perda da amada Lenore, tão pura e inalcançável, transforma-se numa espiral de desespero e insanidade, um lamento que não encontra consolo, mas nos lança direto ao abismo da alma. Poe não oferece abrigo; ele nos entrega à vastidão escura do nada, onde as sombras são feitas de dor e memória.

Depois vieram os contos, cada um soa como portal para terrores antigos e humanos, onde a psique se expõe em suas feridas mais profundas e indizíveis:

O Gato Preto (The Black Cat), escrito em 1843, é uma narrativa que se infiltra nas frestas da culpa e do remorso. Um homem, dominado pelo alcoolismo e pela violência, confessa a lenta e aterradora queda para a perversidade — ele mata seu gato de estimação, mas não escapa ao castigo que o destino lhe reserva. O animal retorna, fantasmagórico, como um espelho dos seus próprios pecados, observando com olhos abissais o que há de mais sombrio dentro da alma humana. Para um amante de gatos como eu, a identificação é inquietante — pois este não é um gato para afagar, mas para encarar o lado obscuro que preferimos negar.

A Queda da Casa de Usher (The Fall of the House of Usher), de 1839, é o arquétipo do horror gótico, onde a casa é quase um personagem vivo, respirando decadência e loucura. Um visitante chega à mansão dos Usher e se depara com um cenário de decrepitude física e mental: Roderick Usher, o último da linhagem, está consumido por uma doença nebulosa que parece refletir o estado da própria casa. A presença do incesto, a atmosfera opressiva e o colapso final — tanto dos habitantes quanto do lar ancestral — evocam um terror atemporal, uma metáfora do fim inevitável, do desmoronar da sanidade e da linhagem.

Em Os Assassinatos da Rua Morgue (The Murders in the Rue Morgue), publicado em 1841, Poe nos apresenta o primeiro detetive da literatura moderna, Auguste Dupin, que quebra a lógica do crime com raciocínio brilhante e rigoroso. Um assassinato brutal em Paris desafia a polícia, até que Dupin revela uma verdade absurda e perturbadora: o responsável não é humano, mas um orangotango, um animal selvagem e incompreendido. A narrativa é uma combinação engenhosa de suspense, lógica e humor sombrio — um convite para pensar que o horror nem sempre está na escuridão sobrenatural, mas nas ambiguidades do real.

Por fim, O Poço e o Pêndulo (The Pit and the Pendulum), escrito em 1842, mergulha no terror psicológico e físico da tortura durante a Inquisição Espanhola. Um prisioneiro está amarrado em uma cela escura, onde o tempo se transforma no maior dos algozes: um pêndulo afiado desce lentamente em direção ao seu corpo, numa espera cruel e matemática, uma morte iminente e sem rosto que parece zombar da esperança. Aqui, não há fantasmas nem demônios; o inimigo é o próprio tempo, frio, impiedoso e inexorável. A tensão é sufocante, a angústia palpável — um mergulho no terror da espera e do desconhecido.

Essas histórias, com seus temas de loucura, culpa, decadência, lógica e tortura, formam um mosaico onde o humano é exposto em seus extremos, um espelho negro onde refletimos nossas sombras mais profundas. Poe não é apenas um contador de histórias; ele é um explorador das cavernas mais escuras da mente, um maestro do suspense e do horror que ressoa até hoje. 

A MORTE DE POE: UMA HISTÓRIA À ALTURA DE SEUS CONTOS

A morte de Edgar Allan Poe é, por si só, uma narrativa que parece saída das páginas de um de seus próprios contos macabros — um mistério que desafia o tempo, um enigma que permanece envolto em sombras e perguntas sem resposta. Em setembro de 1849, Poe partiu de Richmond, Virgínia, com planos aparentemente simples: seguir para Nova York, fazendo uma escala na Filadélfia para revisar um manuscrito. Mas ele jamais chegou a esse destino.

Na manhã de 3 de outubro de 1849, nas ruas úmidas e sombrias de Baltimore, foi encontrado em estado crítico, um homem desorientado e cambaleante, vestindo roupas que não lhe pertenciam, sujas e amassadas, como se tivessem sido colhidas ao acaso de um cenário urbano caótico. Ele murmurava palavras desconexas, repetindo incessantemente o nome “Reynolds” — um nome que até hoje permanece um espectro, uma incógnita que não revelou seu significado ou sua conexão com o poeta.

Foi levado às pressas ao Washington College Hospital, onde passou quatro dias em delírio, incapaz de articular sua própria história, incapaz de explicar o que havia lhe acontecido nos últimos dias antes do encontro fatídico nas ruas de Baltimore. O homem que outrora dera voz às mais profundas angústias e terrores da alma humana estava agora prisioneiro de um corpo e uma mente que se desfaziam, uma vítima silenciosa e vulnerável de forças que permanecem desconhecidas até hoje.

Washington Medical College, onde Poe passou seus últimos dias. Mais tarde, tornou-se o Lar e Hospital da Igreja, e o prédio atualmente faz parte do complexo do Hospital Johns Hopkins. Washington Medical College, c. 1838, Obras em Papel, MB3089, Coleção do Museu Baltimore City Life, MdHS.

Suas últimas palavras, ditas com um suspiro quase inaudível, ecoam como um lamento eterno: “Lord, help my poor soul” — “Senhor, ajuda minha pobre alma.” Uma súplica final, carregada de resignação e de uma dor que talvez tenha sido tão profunda quanto os mais sombrios versos que escreveu.

Desde então, a causa da morte de Poe tornou-se uma das maiores especulações da literatura americana. Seria o alcoolismo, um inimigo silencioso e destrutivo, que corroía seu corpo e sua sanidade? É sabido que Poe tinha uma relação conturbada com a bebida — frágil, susceptível ao álcool, talvez um refúgio e uma maldição ao mesmo tempo. Alguns biógrafos sugerem que o poeta pode ter sofrido delírios por abstinência, tratados com métodos médicos rudimentares e até cruéis, como sangrias e confinamento, que poderiam ter agravado seu estado.

O esboço do livro de registro da Igreja de Westminster. Para aumentar o mistério, os registros de sepultamento da igreja estão incompletos, e esta pode ser a única cópia da página que indica o local do sepultamento de Poe.  MS1016 First Church Records (copy) 1872. Plot book Page 27.

Outras hipóteses incluem envenenamento — acidental ou proposital — com substâncias como ópio, mercúrio ou remédios comuns da época, cuja toxicidade ainda assombra os relatos. Há quem acredite que ele tenha sido vítima de uma infecção neurológica, como meningite, encefalite ou até mesmo um tumor cerebral, como indicariam análises feitas décadas depois em seu crânio exumado, onde se notou um possível endurecimento, um sinal de doença silenciosa e cruel.

Entre as teorias mais bizarras, surge o “cooping” — um esquema eleitoral macabro e ilegal, em que vítimas eram sequestradas, drogadas e forçadas a votar diversas vezes em diferentes locais, trocando de roupas e identidades, para fraudar eleições. Essa hipótese explica as roupas estranhas e o estado mental confuso em que Poe foi encontrado, transformando-o, quase, em um fantasma perdido entre os vivos e os mortos, entre o direito e o caos.

Ainda há a sombra do suicídio, alimentada pela dor da perda da esposa Virginia Clemm, pelas dificuldades financeiras e pela tormenta emocional que o atormentava. Porém, a esperança de recomeço, com planos de um novo casamento, lança dúvidas sobre essa possibilidade.

O que permanece é a sensação inquietante de que Poe sempre habitou o limiar entre o real e o sobrenatural, entre a sanidade e a loucura, entre a vida e a morte. Sua própria existência e seu fim parecem um eco de seus contos — misteriosos, sombrios, impossíveis de decifrar por completo.

Na noite que levou Edgar Allan Poe, o véu entre os mundos parecia estar mais tênue, e talvez ele tenha cruzado, finalmente, para um território onde só os poetas-loucos e os corvos voam. 

LITERATURA QUE SE COME: UM BANQUETE QUASE SOBRIO

Embora muitos mistérios cercam os últimos dias de Poe, há um consenso quase unânime: seu maior demônio foi a bebida. Sussurram que ele nutria um amor sombrio pelo brandy, enquanto outras vozes, talvez mais conspiratórias, sugerem que ele também consumia laudano — aquela mistura nefasta de álcool e ópio que arrasta almas para um limiar tênue entre o sonho e o pesadelo.

Diz-se ainda que era adicto em eggnog, uma gemada alcoólica que perfuma as festas de fim de ano nos países de língua inglesa — um detalhe curioso que já rendeu algumas linhas no meu blog (LEIA AQUI).

Quanto à comida, o retrato é outro: Poe, por sua própria natureza, comia pouco. Sobre suas preferências, escutei histórias — rumores, na verdade — que ele adorava lasanha. Mas, como pesquisador que sou, recebo tais relatos com a cautela de quem sabe que a verdade nem sempre se esconde à vista, e que o tempo pode encobrir detalhes com véus de anacronismo.

A lasanha, prato tão amado hoje, é um fenômeno que só ganhou forma e fama nos Estados Unidos muito depois da partida trágica de Poe. Surgiu, como uma flor tímida, entre as massas de imigrantes italianos que, entre 1880 e 1920, trouxeram consigo não só suas histórias, mas também os sabores intensos do sul da Itália. Eles se aninharam nas “Little Italies” — bairros onde o aroma de alho e tomate se entrelaçava às vozes e tradições italianas — e foi lá, nesses redutos culturais, que a lasanha se consolidou como um alimento caseiro, um abraço culinário reservado às famílias.

Somente nas décadas de 1940 e 1950, após a Segunda Guerra Mundial, o destino fez com que soldados americanos retornassem da Itália trazendo mais do que memórias: trouxeram o gosto da cozinha italiana para além das fronteiras étnicas, abrindo caminho para a entrada da lasanha em restaurantes “americanizados” que buscavam satisfazer um paladar que se expandia.

Nas décadas seguintes, entre 1960 e 1970, a revolução das lasanhas congeladas, capitaneada por empresas como a Stouffer’s, fez do prato um item popular e acessível ao americano médio, um símbolo do conforto e da praticidade que conquistaria o cardápio nacional.

Edgar Allan Poe, entretanto, morreu em 1849 — décadas antes de que a lasanha cruzasse verdadeiramente as fronteiras dos bairros italianos para se tornar um fenômeno de massas nos EUA. Naquela época, a imigração italiana ainda era um murmúrio distante, um fluxo tímido e esparso que só se transformaria em onda cultural anos depois. Portanto, a ideia de que Poe teria se deleitado com uma lasanha, muito menos que esta fosse sua favorita, pertence mais ao reino do mito do que ao dos fatos.

Definitivamente, não. Poe não comia lasanha. Ele se alimentava de angústia e absinto, de brandies escuros e noites insones, de versos góticos e ruínas interiores.

Assim, quando me deparo com essas histórias, sou lembrado da fragilidade do tempo e das narrativas que ele tece. Poe, tão imerso em sua própria escuridão, provavelmente jamais conheceu as camadas saborosas desse prato. Mas, talvez, o verdadeiro alimento que ele buscava estivesse justamente naquilo que só a literatura, a dor e o mistério podem oferecer.

Foi então que, no fio tênue entre o real e o imaginário, recordei um livro peculiar e fascinante, que parecia ter sido feito sob encomenda para este momento de reverência e melancolia: A Ravenous Feast: Spellbinding Recipes Inspired by the Literary Works of Edgar Allan Poe, da talentosa Veronica Hinke. Uma obra onde o macabro e o sublime se entrelaçam numa dança de sabores e sombras, um banquete voraz que celebra não só a literatura, mas a essência da própria alma poética de Poe.

Dentro dessas páginas, descobri um prato que se revelou como uma ode culinária à noite, ao mistério e à beleza obscura: a “Massa com Olhos de Abutre”. Imagine uma massa negra como a própria tinta da lua nova, feita com a profunda e viscosa tinta de lula — um convite a mergulhar nas profundezas do oceano e da mente. Sobre ela, vieiras douradas, cujas formas lembram os olhos grandes e enigmáticos do abutre, essas criaturas que povoam os pesadelos e as lendas góticas, observando com calma predatória – outro pássaro preto. E, por fim, uma única framboesa, rubra e vívida, pousada como uma gota de sangue derramada em um altar de silêncio e segredo. Ao redor, ervas dispersas com a delicadeza de penas negras, espalhadas pelo sopro de um vento ancestral, o mesmo que sussurra os versos esquecidos de Poe.

Este não é um prato para simplesmente ser degustado — é uma invocação sensorial, um ritual que convoca a atmosfera das histórias, a aura do próprio poeta. Porque Poe, afinal, não se lê com os olhos apenas, não se entende com a razão simples — ele se sente, se respira, se encarna em cada sombra, em cada suspiro da noite.

E aqui, neste banquete onde o gótico encontra a gastronomia, a elegância se transforma em mistério, o sabor em poema, e o alimento em memória. Uma última oferenda a um homem que viveu e morreu nas margens do abismo, que nos deixou o legado de suas palavras como um eco que nunca se cala.

Assim como o corvo que retorna, sempre repetindo seu “Nunca mais”, este prato é um convite para que, entre uma garfada e outra, também nós nos permitamos um momento de entrega — à escuridão, à beleza e à eterna dança entre a vida e a morte. Que este banquete seja, então, a última cortina do teatro sombrio onde Edgar Allan Poe eternamente habita, um tributo que perdurará, tão imortal quanto as sombras que ele tão magistralmente desenhou.

Por que este prato?

Porque a cozinha é, antes de tudo, um teatro de sentidos, onde cada gesto é um rito e cada aroma, uma invocação. Porque a comida não se limita a nutrir o corpo — ela alimenta a alma, constrói pontes invisíveis entre passado e presente, entre o palpável e o etéreo. E em outubro, mês onde as sombras se alongam e os véus entre mundos se afinam, até o simples ato de jantar deve carregar o peso do mistério e o perfume da noite.

Esta receita é uma oferenda — uma homenagem profunda e reverente: ao poeta dos mortos e dos silêncios infinitos, que sussurrou para nós em versos sombrios e eternos. Ao corvo que jamais partiu, guardião das palavras proibidas e dos segredos do abismo.

À voz de Belchior, que em seu canto nos alerta e nos consola, como quem descobre a beleza na melancolia e a esperança na escuridão. Ao Nordeste que pulsa, que canta e que resiste, mesmo quando a noite parece engolir tudo. À música que nos abraça quando a vida parece desabar, e à literatura que, com seu espectro, nos assombra e nos salva — porque há beleza na dor, e é ela que nos mantém vivos, apesar de tudo.

Este prato, enfim, não é apenas alimento — é rito, é celebração, é lamento e festa ao mesmo tempo. É o banquete onde o gótico encontra o cotidiano, onde a sombra se faz sabor, e onde o impossível se torna tangível.

Segue a receita, transcrita ao meu modo e vestida para a ocasião

 Massa com Olhos de Abutre

(Massa com tinta de lula, vieiras douradas e framboesas rubras)



Manteiga de Limão

½ xícara de manteiga sem sal, amolecida à perfeição, pronta para se tornar suave como um sussurro.

¼ de colher de chá de suco de limão fresco, o toque cítrico que desperta os sentidos.

Misture lentamente a manteiga e o limão em um processador de alimentos, pulsando até que se tornem um uníssono cremoso e aromático. Modele delicadamente a manteiga — seja em formas que lembram penas de abutre ou numa apresentação mais rústica, à sua maneira. Reserve na geladeira, onde a magia se solidifica. 

Vieiras e Massa

6 vieiras jumbo, majestosas e delicadas, como olhos brilhantes de um corvo.

Suco de 1 limão, para marinada, capaz de infundir vida e frescor.

350 gramas de massa com tinta de lula, negra como a noite onde Poe se esconde.

Pimenta-do-reino moída na hora, para um leve toque de fogo e mistério.

6 framboesas frescas, rubras e intensas, como gotas de sangue em meio à escuridão.

Ervas frescas: tomilho, endro, folhas de limão — a dança verde que desperta aromas secretos.

1 limão cortado em 6 fatias, para o toque final de luz e acidez.

Preparo: Marine as vieiras no suco de limão, envolvendo-as em um abraço cítrico e delicado. Enquanto isso, cozinhe a massa de tinta de lula conforme as instruções da embalagem — cada fio escuro se tornando uma linha de poesia em seu prato.

Em uma frigideira aquecida com azeite, grelhe as vieiras cuidadosamente por 5 a 7 minutos de cada lado, até que ganhem uma douração perfeita, que lembra o brilho lúgubre dos olhos de um abutre vigilante.

Para montar, enrole delicadamente porções da massa no centro de cada prato, formando pequenos ninhos negros. Sobre cada ninho, repousa uma vieira dourada, coroada por uma framboesa vibrante, como o rubor do sangue em um poema sombrio.

Decore com as ervas frescas e uma fatia de limão, compondo uma paleta de cores e aromas que evocam o mistério e a beleza da noite. Finalize o prato com pedacinhos da manteiga de limão, que lentamente derreterão, espalhando seu aroma e brilho, como as últimas palavras de um canto esquecido.