sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

FÊTE DE L’ESCALADE: DO HEROÍSMO AOS DOCES QUE CONTAM A HISTÓRIA

 

Palavras podem pesar como pedras ou se dissolver na boca como açúcar. “Colonização” pertence à primeira categoria: um marco cravado na carne da história, espesso, múltiplo, impossível de tocar sem que um incêndio antigo reacenda. Não se trata de romantizar a violência que deixou cicatrizes profundas — guerras, usurpações, o assalto feroz de terras, pessoas, afetos e bens — histórias que arrepiam a espinha e inflamam raivas que parecem ecoar através dos séculos. Mas, ao olhar com cuidado, como quem desliza os dedos sobre um objeto frágil, percebe-se também o encontro inevitável de mundos: choques culturais que, apesar de toda a sombra, aproximaram sabores, temperos, bebidas e aromas que nunca teriam cruzado oceanos por vontade própria.

A mesa, espaço onde povos sempre se revelaram, tornou-se palco de trocas involuntárias, desejadas ou impostas, mas que deixaram marcas indeléveis. Entre as ofertas e descobertas, entre o que veio de longe e o que já florescia aqui, nasceu um mundo de receitas mestiças, híbridas, que continuam a nos contar histórias de resistência, adaptação e memória.

E devo confessar, humildemente, que em dezembro certas heranças colonizadoras me fisgam como um perfume de infância que a memória jurava ter esquecido. Os marzipans, por exemplo.


Não há uma única amendoeira no árido Ceará para justificar tal paixão — e, no entanto, ela existe. Talvez seja uma rebeldia do paladar, talvez seja só aquela forma doce e compacta de nostalgia. Aprendi a gostar deles em algum ponto da vida, sem sequer notar o instante da conversão, e hoje sinto falta deles nos mercados. Quando aparecem, parecem cansados, tímidos, quase nunca à altura da minha fome sentimental.

Viver no Brasil, na capital do Ceará, obriga-me a esclarecer certas coisas sobre amendoeiras, antes que algum curioso levante sobrancelhas e reclame. Falar de amendoeiras por aqui é abrir uma pequena dança de equívocos, como se cada árvore guardasse um segredo antigo, murmurado ao vento do sertão.

Sob o sol inclemente desta Terra de Luz, ergue-se com frequência uma árvore cujo fruto vermelho, ao ser aberto, revela uma pequena castanha delicada: a castanhola. Na minha infância, após as aulas, eu corria entre os pés dessas árvores, olhos atentos e mãos ansiosas, em busca das castanhas que se escondiam dentro da casca resistente. Era um trabalho duro: quebrar a casca, sujar as mãos e a roupa com o pó seco que se desprendia, para enfim conquistar aquela pequena noz, que para nós tinha o brilho de ouro.




A fartura das castanholas era generosa, mas o esforço parecia sempre maior que a recompensa. E, ainda assim, cada castanha arrancada com esforço ficou gravada na memória — não apenas como alimento, mas como uma pequena epopeia da infância, um jogo de paciência, suor e prazer simples, que o tempo transformou em lembrança doce, quase mágica, daquelas tardes intermináveis sob o sol do Ceará.

Popularmente, a castanholeira veste-se de muitos nomes, cada um como um pequeno poema que evoca sua forma e presença: amendoeira-da-praia, chapéu-de-sol, sombreiro, sete-copas, coração-de-nego, noz-da-praia… cada palavra é um espelho da imaginação humana, uma lembrança da sombra que oferece, do fruto que guarda, da arquitetura graciosa de seus galhos.

Mas é preciso olhar além do encantamento vernacular: cientificamente, essa árvore é Terminalia catappa, da família Combretaceae, distinta de sua prima europeia, aquela que os confeiteiros de outrora veneravam e ainda veneram para criar o marzipan, obra-prima de paciência e aroma.

A verdadeira amendoeira do marzipan clássico é a Prunus dulcis, pertencente à família Rosaceae, nascida sob os céus do Mediterrâneo e do sudoeste asiático. Sua semente — a amêndoa doce — viajou através dos séculos, passando pelas mãos de artesãos, moldada com delicadeza, transformada em massas que carregam não só açúcar, mas memórias de especiarias, festas, cortejos e salões iluminados por velas. Cada pedaço de marzipan é um fragmento de história, um eco de culturas entrelaçadas, um doce que transcende o tempo e nos convida a provar, com todos os sentidos, o labor e a beleza de uma tradição milenar.





Voltando às calçadas e praças do Ceará, quiçá de todo o Nordeste, a Terminalia catappa ergue galhos generosos, derramando ao chão frutos que evocam vagamente a palavra “amêndoa” — que, para nós, na infância, ganhava o singelo nome de coquinho. Mas essas pequenas joias pertencem a uma linhagem botânica distante, nascida em praias de outros mares antes de aportar aqui, carregando consigo a memória silenciosa de ventos e marés longínquas.

Essa confusão de nomes e sentidos é, a seu modo, um poema respirado — um ser vivo que se ergue entre ramos e murmúrios. A natureza batiza o que cria com a inocência de quem oferece um fruto ao primeiro amanhecer; mas a boca do povo, ah, essa boca inquieta e inventiva, retorce, acaricia e reinventa cada sílaba, até que a palavra se torne uma folha nova, brilhando entre o rigor da ciência e o arrepio da imaginação. E então a verdade botânica e o encanto popular passam a coexistir, suspensos no mesmo gesto delicado, como se a árvore — qualquer árvore — inspirasse e expirasse dentro dos nomes que ousamos lhe dar.

Vou te confessar um segredo: eu só fui realmente me inquietar com a distinção dessas plantas há anos, quando ouvi Adriana Calcanhotto cantando ‘Depois de ter você’ — e aqui o tempo, caprichoso como perfume antigo, me leva a dizer 1889. Há nessa música um verso que me tocou de forma irremediável:

“(…) Depois de ter você

Poetas pra quê?

Os deuses, as dúvidas

Pra que amendoeiras pelas ruas?

Pra que servem as ruas?

Depois de ter você (…)”

Fiquei fascinado — não, encantado — com a possibilidade de haver amendoeiras pelas ruas do Rio de Janeiro (a Adriana Calcanhoto, cantora e compositora da música morava no Rio de Janeiro naquela época), como se a cidade guardasse, entre suas esquinas quentes, sombras mediterrâneas, perfumes de infância inventada, aquela espécie de promessa que só as árvores sabem fazer.

Tive de investigar, movido por uma curiosidade que me puxava pela gola, e descobri que as tais amendoeiras eram, na verdade, castanholas disfarçadas, árvores viajantes que aprenderam a responder por muitos nomes.

E eu, que já passei a olhar o Rio com outros olhos — olhos de estrangeiro dentro da própria casa, olhos de quem procura, na massa ondulante das folhas, pistas de um mundo que talvez nunca tenha existido. Tive que me contentar mais uma vez com castanholas.

Cada castanhola, estática no calor da tarde, seja no Ceará ou no Rio de Janeiro, parece esconder um segredo antigo, como se tivesse cruzado oceanos carregando na casca a memória de portos distantes. E cruzou. Afinal, a Terminalia catappa — essa amendoeira-da-praia de tantos nomes, essa castanhola que se deixa chamar pelo que o coração do observador inventa — nasceu longe daqui, em terras de sol tão firme quanto o nosso, mas de perfumes inteiramente outros: Ásia, Madagascar, Oceania. Veio trazida por mãos humanas ou correntes teimosas, e, como tudo que tem vocação de permanecer, enraizou-se com uma naturalidade quase insolente, espalhando-se pelo litoral brasileiro como se sempre tivesse pertencido a ele.

E há algo de profundamente belo nessa condição de estrangeira adotada: uma árvore que chega de longe e, ao tocar o solo quente do Brasil, encontra uma espécie de segundo destino. É como se dissesse, silenciosamente, aqui também sou possível. Suas folhas largas, que mudam de cor como quem experimenta estados de alma — do verde profundo ao vermelho febril — carregam esse gesto de peregrinação, uma emoção vegetal que se dissolve e renasce a cada estação.

Às vezes imagino essas árvores, ainda sementes, cruzando mares desmedidos dentro de pequenos cofres naturais, embaladas por histórias que jamais saberemos contar. E quando penso nelas assim — viajantes involuntárias, fugitivas de um mundo para outro — cada uma parece pulsar com a lembrança de costas remotas, como se guardasse no cerne a primeira visão de um horizonte estrangeiro.

Talvez seja isso que me encanta tanto: a castanhola não é apenas uma árvore; é um testemunho silencioso de deslocamentos, de reinvenções, de pertencimentos improváveis. Uma estrangeira que, ao fincar suas raízes em nossas praias, devolveu ao Brasil não apenas sombra, mas também uma lição delicada: a de que certas presenças, mesmo vindas de longe, se tornam nossas antes que percebamos — e que há um tipo raro de poesia justamente nesse gesto de acolhimento entre mundos.

E, essa amendoeira que nunca foi amendoeira original, ainda assim, abre sua copa sobre as calçadas com a mesma doçura de quem oferece abrigo. A cidade, cúmplice, aceita essa troca de identidades sem questionar, como quem sorri diante de um estranhamento bonito demais para ser corrigido

No fim, percebi que a ciência podia afirmar uma coisa e o povo outra — mas entre o que é e o que desejamos que seja, existe uma região misteriosa onde a imaginação planta suas raízes. E foi ali, exatamente ali, que compreendi: o encanto não está na precisão, mas naquilo que cremos ver quando deixamos o coração escolher o nome das árvores.

E hoje, quando ouço Maria Bethânia, que regravou a canção com a força de quem acende uma vela no escuro, lembro-me de como a curiosidade é, às vezes, uma estraga-prazeres delicada: rouba o mistério, mas deixa em troca um outro tipo de encanto — o de saber que até os equívocos têm pétalas, e que certos enganos florescem mais bonito do que a própria verdade.

E, ainda assim, há magia — uma magia simples, terna, quase doméstica. Embora as castanhas da castanhola não sirvam para o marzipan, seus ‘coquinhos’ são deliciosos, e suas folhas, pequenas obras verdes de utilidade, preciosas. Eu as utilizo como se fossem papel de forno, acomodando pães para assar sobre elas; e quando o aroma sobe, quente e amadeirado, invade a cozinha, sinto uma beleza singela: a generosidade silenciosa da árvore, que não cria doces europeus, mas oferece sombra, perfume e alimento para a imaginação, lembrando-nos que a natureza tem suas próprias receitas de encanto.

E há, nesse gesto doméstico, algo que toca um lugar mais profundo — como se a árvore, ao me emprestar suas folhas, me confiasse parte de sua memória. Enquanto o pão se forma, lentamente, sinto que os vapores da cozinha carregam histórias de litoral, de ventos salgados, de tardes que se deitam sobre as calçadas quentes. As folhas estalam discretamente sob o peso da massa, quase como um suspiro de aceitação, e a casa inteira parece se abrir para uma pequena liturgia da vida cotidiana.

Talvez por isso eu ame tanto esse ritual: ao utilizá-las assim, quase como quem manuseia um segredo, sinto-me ligado a um saber antigo, feito de simplicidade e humildade — um conhecimento que não se aprende em livros, mas no convívio com a própria terra. A castanhola, estrangeira naturalizada, me ensina que não é preciso produzir iguarias raras para ser extraordinária; basta oferecer o que se tem, com a honestidade de quem conhece seu próprio valor.

E, no fim, cada pão assado sobre suas folhas traz consigo uma espécie de bênção discreta, uma presença vegetal que atravessa a cozinha como um convite à contemplação: a lembrança de que o mundo, mesmo em seus detalhes mais humildes, respira poesia — basta que saibamos, com a paciência dos que escutam bem, reconhecer o murmúrio das árvores.




Mas voltando à minha predileção pelo marzipan, desde que provei, há tempos, os marzipans alemães, fui imediatamente fisgado. Havia ali algo que falava diretamente ao meu paladar, um sussurro doce que parecia carregar séculos de mãos habilidosas moldando amêndoas, açúcar e memória. Era como provar um fragmento de história — algo íntimo e solene, quase uma comunhão entre o gesto artesanal e o desejo humano por delicadeza.

Tentei reproduzir minha própria versão em casa, experimentando, amassando, sentindo cada grão, cada perfume que se desprendia sob meus dedos. A massa parecia ter vontade própria: às vezes dócil, às vezes rebelde, como se testasse minha paciência antes de me oferecer sua docilidade temporária. Há um momento, sempre tão breve, em que o amassar se transforma num tipo de contemplação — o açúcar se rende, a amêndoa suspira, e a cozinha respira um aroma que poderia ter sido o mesmo nos antiquários de Lübeck ou nas mesas modestas de qualquer avó europeia.






Mas nada, é verdade, se compara à perfeição dos confeiteiros que dedicaram a vida a esse ofício tão miúdo e tão sagrado. Meus marzipans ainda saem um pouco caroçudinhos, um pouco rústicos — como se guardassem, teimosamente, o testemunho do meu aprendizado incompleto. Falta-lhes um processador mais genial, talvez; falta-lhes a mão segura de quem conhece os caprichos da amêndoa como quem conhece os humores de um velho amigo. Falta-lhes, quem sabe, aquele gesto final, imperceptível, que transforma a massa em seda e a doçura em suspiro.

E, no entanto, há algo de profundamente meu nessas imperfeições: a textura granulada que resiste, o sabor ligeiramente áspero que não deveria estar ali, mas está — como se o doce confessasse, discretamente, a história da minha tentativa. No fundo, percebo que o marzipan perfeito pertence às vitrines iluminadas; mas o marzipan imperfeito, esse que nasce entre erros e aromas, pertence ao coração das minhas tardes.

Não me limitei às amêndoas clássicas. Já tentei reinventar a massa com castanhas de caju, tão abundantes no Ceará, buscando transformar a oleosidade quase voluptuosa e o sabor quente dessas castanhas em algo que dialogasse com o rigor do original europeu. Cada tentativa era, na verdade, uma conversa silenciosa com as árvores — a amendoeira do Mediterrâneo e a castanholeira das nossas ruas, ambas oferecendo suas sementes e seus nomes, ambas testemunhas de mundos distintos que se cruzam sem jamais se confundir. Era como se, ao moer cada castanha, eu estivesse testando o limite entre o possível e o impossível, pedindo à natureza que, só por um instante, aceitasse brincar comigo de alquimia.

A ciência, sempre prudente, nos diz quem elas são; mas o paladar, com aquela curiosa voracidade que nos define, insiste em sonhar — sonhar com o que poderia ter sido, com a textura ideal que não existe, com o sabor que atravessa continentes e memórias como um viajante encantado. E então, ali, entre tigelas, perfumes e expectativas, eu percebia que cozinhar é um tipo de ficção: uma narrativa construída com mãos, calor e desejo.

Assim, cada marzipan que tentei criar transformava-se em algo muito além de um simples doce: era um diálogo íntimo com o tempo, com os sabores ancestrais, com as mãos que me precederam e, sobretudo, com a infinita imaginação que nos permite, sempre, reinventar aquilo que a natureza e a tradição nos ofertam. Cada experimento carregava ecos de terras distantes, de jardins mediterrâneos banhados de sol, de vitrines frias de confeitaria europeia, de mercados cearenses cheios de cores e calor. E tudo isso, de algum modo, vinha desembocar na minha cozinha, modesta e acolhedora, onde o vapor da panela parecia conversar com séculos de história.

Talvez seja por isso que continuo tentando: porque cada tentativa é uma pequena travessia, uma jornada sensorial em que castanhas humildes e amêndoas aristocráticas se encontram, trocam confidências e, por alguns instantes, permitem que eu toque — com as pontas dos dedos cobertas de açúcar — a possibilidade de tornar o mundo inteiro um único sabor.

Não é que os resultados da minha ousadia doméstica — seja com castanhas de caju, seja com amêndoas — fossem ruins, longe disso. Mas faltava-lhes ainda o fulgor daquele marzipan, o toque inefável que só o artesão experiente sabe imprimir. E eu, que já me deixei colonizar por esse gosto alheio, continuo a suspirar por sua textura firme e aveludada, pelo equilíbrio doce sem exageros, sobretudo quando repousa sob o manto profundo e sedutor de chocolate, evocando, em cada mordida, a história, o cuidado e a poesia que um simples pedaço de doce pode carregar.

E, veja bem, até a própria origem do marzipan é envolta em uma névoa de mistério e controvérsias, como se a massa — tão lisa, tão obediente na mão certa — guardasse em si a memória turva de séculos de viagens e invenções. Alguns historiadores o situam nas rotas perfumadas do Oriente Médio, onde especiarias e açúcares se encontravam em mercados vibrantes, embalados por vozes que pareciam cantar o próprio aroma da canela. Outros apontam para as ensolaradas colinas da Sicília, com suas amendoeiras altivas, ou para as cozinhas rebuscadas da Espanha mourisca, onde o açúcar era tratado como joia e as amêndoas, como promessas.

O certo é que, em algum instante de sua história, essa pasta doce deslizou suavemente até as cortes europeias. Entrou por portas altas, cruzou salões iluminados por velas tremeluzentes, percorreu mesas de madeira polida, recebeu o toque curioso de dedos delicados que cheiravam a baunilha e água de flor de laranjeira. Tornou-se presente de realeza, símbolo de luxo, de festa, de raridade. Um doce tão pequeno, tão aparentemente simples, e ainda assim carregado de um esplendor cerimonial, como se cada centímetro de sua maciez guardasse um segredo sussurrado por gerações.

Cada pedacinho de marzipan, assim, parecia carregar a própria memória dos séculos: a expansão dos impérios, os encontros de culturas, o toque de artesãos que moldavam pequenas frutas, flores, coroas ou animais fantásticos, transformando a massa em pura fantasia comestível. Talvez seja isso que procuro — não apenas o sabor perfeito, mas o eco de tudo que o marzipan já foi: oferenda, luxo, sonho, lembrança. E, sempre que provo um, sinto que uma linha invisível me liga àquele passado: um fio doce e antigo que se desfaz lentamente na boca.

O brasileiro, porém, esse alquimista alegre e inventivo, fiel aos produtos suíços que a Nestlé plantou fundo no coração do país, tomou para si a liberdade de reinventar. Em vez das amêndoas clássicas, utilizou leite em pó Ninho, amalgamado com leite condensado Moça, criando uma massa maleável, doce e encantada — uma espécie de alquimia tropical que não precisava atravessar oceanos nem carregar histórias medievais para ser sublime. Bastava abrir a lata, sentir o perfume lácteo subir como uma lembrança de infância, e deixar que a imaginação tomasse as rédeas.



Nas mãos criativas de doceiras e confeiteiros, essa mistura tomou forma e vida, dando origem aos famosos docinhos de leite em pó, pequenas esculturas comestíveis que, embora inspiradas no marzipan europeu, ganharam personalidade própria, brasileira, quase debochada em sua doçura acessível. Ao contrário da austeridade elegante do marzipan, esses docinhos exibiam uma espécie de alegria insolente, quase carnavalesca, como se rissem, com açúcar nos lábios, das tradições importadas e dos rigores da confeitaria erudita.

O resultado era, de certa forma, uma tradução lúdica do antigo luxo europeu para a imaginação tropical: formas modeladas de bichos, flores, personagens inventados, pequenas construções efêmeras de açúcar e leite que jamais poderiam existir fora da criatividade de quem aprendeu a transformar a escassez em beleza, a limitação em invenção. São doces que parecem dizer, com sua simplicidade leve: “Se não temos amêndoas finas, criamos mundos com o que temos.”





E assim, nas mãos brasileiras, o doce não era apenas sabor: era memória, fantasia, gesto de carinho, brincadeira de festa infantil e, acima de tudo, uma pequena ode à inventividade. Uma celebração da alegria descomplicada de um povo que sabe transformar o familiar em arte, que abraça o cotidiano e o eleva a uma esfera quase poética — onde até o pó lácteo, tão comum, tão presente, ganha a delicadeza de uma flor moldada entre dedos paciente e amorosamente açucarados.

Nos anos 1990, houve um verdadeiro boom desses docinhos modelados de leite em pó, pequenos encantos que, nas mãos certas, se transformavam em personagens, flores, bichos, sonhos — universos inteiros ao alcance de um confeiteiro com alma de artesão. Cada figura era um gesto de delicadeza, uma tentativa de capturar o imaginário com açúcar e leite, de dar forma ao intangível, de torná-lo palpável o suficiente para caber em uma forminha de papel colorido. Havia algo quase místico nesse processo: como se a doçura tivesse aprendido a brincar de escultura.

E assim eles passaram a dividir espaço com os docinhos das festas brasileiras, compondo um mosaico exuberante de cores e texturas. Estavam lá, chamativos e elegantes, pousados nas mesas como pequenas oferendas à infância e à celebração, trazendo seu toque de fantasia entre brigadeiros lustrosos, beijinhos branquinhos como luar, cajuzinhos nostálgicos que sempre parecem ter vindo da cozinha de alguma avó, bichos de pé cor-de-rosa e olhos de sogra com seu brilho misterioso.

Cada um cumpria seu papel no banquete: alguns explodiam em doçura intensa, quase atrevida; outros ofereciam texturas suaves, sussurradas ao paladar; e havia aqueles que eram pura travessura, pequenos excessos açucarados destinados a fazer a criança interior sorrir. Juntos, formavam uma constelação de sabores e memórias, um retrato sensorial do Brasil celebrando — como sempre — a vida com generosidade, cor e invenção.

E é bonito pensar que, no meio dessa pluralidade, os docinhos de leite em pó encontraram seu lugar, não como imitação humilde do marzipan europeu, mas como expressão autêntica de um país que, mesmo quando molda açúcar, molda também um pouco de sua alma.

O contraste era delicioso e harmonioso: os docinhos de leite em pó, com seu gosto doce e agradável, ressaltavam a temática da festa pelas formas e cores vibrantes, pequenas esculturas que dançavam sobre as mesas com sua energia. Ao seu lado, os docinhos brasileiros celebravam a alegria da terra, da infância, da festa simples e barulhenta, da cor que salta aos olhos e do sabor que sorri ao paladar. Juntos, formavam um pequeno universo comestível onde passado e presente, memória e invenção se entrelaçavam com doçura, como se cada pedacinho fosse uma homenagem ao Brasil: terra de festa, de encontro, de improviso.

E, embora eu admire com genuína admiração essa invenção nacional, não consigo deixar de me apaixonar pelo precursor, o marzipan legítimo, esse doce silencioso, discreto, mas profundo, que carrega em seu corpo séculos de travessias, mãos habilidosas e salões iluminados por velas trêmulas. Ele é memória e história, luxo e simplicidade, um pedaço de tempo moldado em açúcar e amêndoa, um fragmento do velho mundo transformado em prazer efêmero, mas carregado de significado.

Sei que há quem torça o nariz, achando-o estranho demais, austero demais, estrangeiro demais. E talvez seja esse mesmo distanciamento que o torna ainda mais fascinante: um doce que, no entanto, se recusa a ser totalmente compreendido, que sussurra ao paladar uma nostalgia silenciosa, mas não se entrega facilmente. Mas eu confesso: meu paladar foi colonizado — e, neste caso, eu me deixo colonizar de bom grado. Permito-me ser seduzido por sua textura, seu aroma delicado, sua doçura contida que não clama por atenção, mas que, ao se desvanecer lentamente, nos envolve com a calma de uma memória distante.

Amo-o, simples assim, sem ressalvas, com a entrega que só um doce que atravessou continentes e séculos pode merecer. É uma paixão silenciosa, mas verdadeira, como aquelas histórias antigas que, por mais que o tempo passe, continuam a viver em nós, em seus pequenos gestos de encanto e sedução. E eu, em meu coração, sei que há algo de eterno nesse pedaço de marzipan — como se, ao comê-lo, eu estivesse, de algum modo, tocando o tempo, provando a suavidade de um século que nunca se apaga.

Mas por que estou falando sobre tudo isso? Porque hoje é 12 de dezembro, e eu gostaria de estar em Genebra, na Suíça, participando de uma celebração histórica que lá se perpetua. Uma festa em que a tradição manda quebrar um caldeirão de chocolate — a famosa marmite en chocolat — e, em seu interior, revela-se uma pequena colheita de legumes de… sim, marzipan.

Imagino a cena com uma fome que vai muito além do estômago: o estalar seco do chocolate rompendo o silêncio, o perfume doce que se espalha pelo ar frio, e as cores vivas dos legumes de amêndoa rolando para fora como pequenos tesouros, preciosos e fugidios. Cada peça, um fragmento de infância, de memória, de sonho. Eu estaria ali, se pudesse, meus olhos atentos, mãos prontas para o ritual, coração pulsando na cadência da tradição, participando de algo ao mesmo tempo lúdico e ancestral, tão distante e, ainda assim, tão próximo daquilo que o paladar e a imaginação são capazes de conjurar.

O chocolate, a amêndoa, a textura quase irreconhecível do marzipan disfarçado de cenoura ou rabanete — tudo isso se entrelaçando numa dança que só o sabor poderia dar conta. Uma festa que não é apenas de sentidos, mas de significados, onde o prazer se mistura com a memória coletiva, e onde a mesa se torna um palco de celebração de um tempo que, ao mesmo tempo, resiste e se reinventa.

Achou tudo isso estranho? Então sente-se um pouquinho. Deixe-me contar — porque essa história, como tantas histórias nascidas da mistura e do espanto, merece ser saboreada devagar. Cada pedaço dessa tradição, cada fragmento de marzipan, contém não só a doçura do presente, mas também os ecos de um passado que vive em cada gesto, em cada ritual. O chocolate quebrado, a revelação do inesperado, o sorriso de quem, ao desvelar o doce, não encontra apenas um sabor, mas uma ligação profunda com a história, com a terra, com a infância — com a pura magia de transformar o ordinário em extraordinário.

Porque é isso que o marzipan, e sua história, nos ensinam: que a doçura não é só um prazer físico, mas uma viagem sensorial que atravessa gerações, atravessa oceanos, e nos leva sempre de volta ao coração das nossas próprias memórias — aquelas que, ao se desdobraram em cada mordida, nos dizem mais sobre quem somos do que qualquer palavra poderia expressar. 

FÊTE DE L’ESCALADE: UMA CELEBRAÇÃO DA CORAGEM E DA CIDADE

No coração de Genebra, a cada dezembro, a cidade se ilumina com memórias de coragem e resistência. A Fête de l’Escalade, ou “Festa da Escalada”, celebra um episódio que marcou profundamente a identidade genevense: a defesa bem-sucedida da cidade contra o ataque surpresa das tropas do Duque Carlos Manuel I de Saboia, na noite de 11 para 12 de dezembro de 1602. A cidade, cercada por muros e banhada pelo frio do inverno suíço, viu sua tranquilidade ameaçada por forças externas que pretendiam roubar sua autonomia.



O ataque foi meticulosamente planejado pelo Duque de Saboia, que desejava conquistar Genebra em silêncio, escalando suas muralhas durante a noite e surpreendendo a população desprevenida. Mas o que se seguiu foi um testemunho de coragem popular: os genebrinos, alertas e determinados, repeliram os invasores, preservando sua liberdade e sua independência. A façanha transformou-se rapidamente em símbolo da identidade da cidade — não apenas como resistência militar, mas como expressão de coragem coletiva, de engenhosidade e de amor à terra natal.

Hoje, a Fête de l’Escalade é celebrada com desfiles, bandeiras tremulando, músicas tradicionais e doces especiais. Mas, mais do que isso, é uma homenagem à bravura do povo comum, capaz de se tornar extraordinário em um instante crítico. Cada gesto de comemoração — cada sorriso, cada doce partilhado, cada lembrança contada — ecoa o espírito daqueles que, há mais de quatro séculos, disseram “não” à invasão e transformaram a noite do medo em um legado de coragem e memória. 

A HISTÓRIA POR TRÁS DO CALDEIRÃO ARDENTE: O HEROÍSMO DE UMA "MÃE"

Na noite gelada entre 11 e 12 de dezembro de 1602, Genebra vivia uma tensão silenciosa, prestes a se transformar em caos. As tropas do Duque Carlos Manuel I de Saboia, movendo-se nas sombras, planejavam um ataque surpresa: escalariam os muros da cidade, aproveitando o sono e a confiança dos habitantes. Cada escada arrastando-se sobre pedras antigas, cada sombra que se mexia entre torres e ameias, parecia multiplicar o frio que cortava até os ossos. O eco dos passos, o tilintar de armaduras e o sussurro do vento pelo muro criavam uma sinfonia de perigo que enchia o ar de expectativa e medo.

No coração desse tumulto, vizinhos despertavam, lanternas tremiam, cães uivavam, e a cidade, por instantes, parecia suspensa entre o silêncio e o grito. Cada rua, cada viela, respirava tensão; cada cidadão, por mais comum que fosse, tornava-se parte de uma coreografia improvisada de sobrevivência. A noite se arrastava, longa e implacável, e a liberdade de Genebra pendia na ponta de uma lâmina.


Foi então que, nesse cenário de urgência e risco, uma figura se destacou. Era Mère Royaume — “Mère”, em francês, significando “mãe”, um título de ternura e reverência que reconhece nela a guardiã da cidade; em algumas versões, chamada também de Dame Reino ou pelo nome histórico Catherine Cheynel. Entre o frio cortante e o tumulto, ela pegou um grande caldeirão de sopa fervente e o lançou sobre os soldados que escalavam os muros, um gesto simples e cotidiano que, naquele instante, se tornou extraordinário.

A beleza da cena está na combinação da coragem com a humanidade: o vapor subindo no ar gelado, o aroma pungente de legumes e carne misturando-se ao medo, o choque do metal quente, o grito que despertou vizinhos e mobilizou cidadãos comuns. Um ato de proteção, quase maternal, que transformou uma mulher comum em símbolo da resistência genevense.

Desde então, o caldeirão e seu conteúdo tornaram-se ícones da Fête de l’Escalade, lembrança eterna de que até os gestos mais simples podem mudar o destino de uma cidade.

Ter-se-ia dado, talvez, que o destino — caprichoso, misterioso e sublime — já reservava para aquela noite um instante de heroísmo improvável de Mère Royaume?

Entre o estalar de armas, o choque metálico das lanças contra pedras e o frio que parecia congelar até o sopro da coragem, ela permanecia na sua cozinha, diante de um grande caldeirão de sopa fervente. Um cozido simples de legumes da estação, cujo aroma terroso e doce se espalhava pelo ar gelado, prometendo conforto e abrigo, enquanto a cidade respirava tensão.

Então veio o som: um bater surdo, o eco firme de passos sobre pedras lisas, e lá, no alto das muralhas, um soldado Savoyardo erguia-se, prestes a invadir o corpo adormecido da cidade. Naquele instante suspenso, Mère Royaume, com a coragem que nasce da humanidade mais comum e profunda, ergueu sua panela rústica — objeto banal em qualquer cozinha, agora transformado em instrumento de resistência — e a lançou pela janela. O caldeirão não era apenas sopa: era força ardente, chama líquida que queimava o medo, protegendo os muros e convocando a cidade para a luta que se aproximava.

O vapor subiu, os aromas se misturaram ao gelo da noite, e o choque do metal quente com o invasor criou uma sinfonia de tensão, coragem e sobrevivência, eternizando o momento em que uma mulher comum se tornou símbolo vivo da liberdade genevense.

Esse gesto — tão simples quanto extraordinário — tornou-se o núcleo poético da Fête de l’Escalade (Festa da Escalada). Não apenas pela bravura em si, mas pelo que ele representa: o instante em que uma cidadã comum se tornou guardiã de uma cidade inteira; o momento em que o calor de uma cozinha virou chama de resistência. Por séculos, essa imagem se perpetuou como mito e memória, lembrança e incentivo — a prova de que, às vezes, o gesto mais humilde pode alterar o curso da história.

E assim, para celebrar esse feito — para lembrar que nem só de espadas se tece um destino — ergue-se hoje o ritual mais querido da festa: a lembrança do caldeirão de sopa fumegante transformado em doce: a marmite en chocolat. O chocolate, cuidadosamente moldado, encerra em seu interior legumes de marzipan, cores vivas e delicadas, como se o passado e o presente se entrelaçassem em uma única explosão de sabor e memória. Ao quebrar o chocolate, não se descobre apenas um doce, mas o eco de coragem, a persistência de um gesto que atravessou séculos e se tornou poesia comestível.

E eu, mesmo distante de Genebra, imagino cada detalhe: o estalo do chocolate, o aroma doce e profundo que se mistura ao ar frio da cidade, os pequenos legumes de marzipan rolando como se tivessem vida própria, e mãos ávidas de crianças e adultos que, por alguns instantes, se tornam guardiões da tradição. É uma festa que celebra mais do que a resistência: celebra a capacidade de transformar o ordinário em extraordinário, a comida em símbolo, o gesto em história, e a doçura em memória viva.

No fundo, é também um convite silencioso: provar, observar, imaginar e lembrar que, em cada ato aparentemente simples, há potencial para heroísmo, encanto e magia. A marmite en chocolat não é apenas um doce; é o testemunho de que coragem, criatividade e doçura podem caminhar juntas, atravessando séculos, continentes e paladares. 

O CALDEIRÃO DE CHOCOLATE: ENTRE HISTÓRIA E SIMBOLISMO 

O caldeirão de chocolate — marmite en chocolat, como é carinhosamente chamado nas ruas de Genebra — é hoje um dos símbolos mais queridos da Fête de l’Escalade, mas sua história não remonta diretamente à noite de 1602. Ele nasceu muito depois, quando a tradição de celebrar a façanha genevense começou a assumir formas concretas e saborosas, capazes de traduzir a memória em gesto coletivo e doce partilhado.


As primeiras referências conhecidas a potes doces ligados à Escalade surgem no final do século XIX, por volta de 1881, em anúncios que mencionam marmites de nougat e chocolate decoradas com o brasão de Genebra — sinal de que os confeiteiros locais começaram a experimentar versões comestíveis da panela que, pela lenda, teria sido jogada por Mère Royaume sobre os invasores.

Esse momento coincide com o crescimento da chocolaterie moderna no século XIX, quando a técnica de moldar chocolate adquiriu precisão e leveza suficientes para permitir que artistas do cacau criassem formas elaboradas, como panelas, vasos e esculturas comestíveis. A celebração do 300º aniversário da vitória sobre os Savoyardos, em 1902, foi um ponto de viragem: a marmite já era «habituelle, sinon commune» — habitual, se não comum — nas festas genevinas.

Ao longo do século XX, o caldeirão de chocolate ganhou corpo, forma e significado entre as famílias, escolas e confeitarias da cidade. Ele passou a ser produzido por mestres chocolatiers artesanais, moldado à mão, com a casca de chocolate cuidadosamente formada, pés e alças agregados com chocolate líquido e, no interior, pequenos legumes de marzipan colorido — cenouras, nabos, batatas e outros vegetais que evocam a sopa da lenda.

É impossível dissociar a marmite do lugar onde ela nasceu: Genebra, uma cidade de chocolate e história, onde estabelecimentos como a tradicional La Bonbonnière continuam, até hoje, a produzir marmites artesanais com marzipan e delícias complementares, celebrando assim a quintessência da tradição local.

A marmite en chocolat é mais do que um doce: é um fragmento de memória doce, confeitado pelo tempo, onde passado e presente se encontram em cada pedaço quebrado e partilhado. Ela traduz, em chocolate e marzipan, a história de um povo que preservou sua independência, e que hoje, todos os anos, reencena esse gesto coletivo de memória e partilha com sabor e alegria.

O caldeirão de chocolate, assim, tornou-se símbolo da coragem e da resistência, mas também da doçura da vida cotidiana, lembrando que a heroísmo muitas vezes nasce de gestos simples, domésticos, de quem ama e protege. Ele é a ponte entre passado e presente: a cada pedaço quebrado, os habitantes de Genebra celebram o triunfo da comunidade sobre a ameaça, a vitória da cidade sobre o medo, e a capacidade de transformar terror em festa.

 A “QUEBRA” DO CALDEIRÃO: UM RITUAL DE UNIÃO

A tradição da quebra do caldeirão não é apenas um gesto físico: é uma reencenação poética de coragem, memória e pertencimento. A cada ano, crianças e adultos de mãos dadas reproduzem, com chocolate e marzipan, o instante em que a cidade se defendeu da invasão, transformando a história em ritual vivo e compartilhado.

O mais velho e o mais jovem do grupo seguram juntos o caldeirão — um gesto carregado de simbolismo, como se a experiência e a memória fossem passadas de geração em geração. Nos segundos que precedem a quebra, todos respiram, atentos, como se o silêncio pudesse concentrar o espírito da resistência genevense. E então, em uníssono, recitam a frase ritual:️ “Ainsi périssent les ennemis de la République !” — “Assim pereçam os inimigos da República!”




É nesse instante que o milagre do chocolate acontece. O caldeirão se parte com um estalo nítido, vibrante, que ecoa como um trovão doce na sala ou na rua fria. Fragmentos brilham à luz, lembrando pequenas pedras preciosas, enquanto os legumes de marzipan se espalham, saltando como tesouros escondidos que só a coragem de uma cidade poderia revelar.

O ritual se completa com o aroma profundo e intenso do chocolate, que mistura a doçura da memória com o perfume sutil das amêndoas e do açúcar. Crianças riem, dedos manchados de cacau, olhos brilhando de fascínio; os mais velhos observam, emocionados, transportados para aquela noite de 1602, quando o improvável heroísmo de Mère Royaume mudou o destino de Genebra.

Cada fragmento comido, cada docinho saboreado, é um gesto de comunhão, uma ponte entre o passado e o presente, uma lembrança de que a história não está apenas nos livros, mas nos corpos, nos sabores, nas mãos que se tocam e nos olhares que se encontram. O ritual transforma a memória em festa, a coragem em sabor, e o passado em um instante que se repete docemente, todos os anos, com reverência e alegria.

A Fête de l’Escalade acontece sempre no fim de semana mais próximo de 11 e 12 de dezembro, quando Genebra se transforma em um palco de cores, aromas e memórias. Ruas, praças e casas se enchem de bandeiras, risos e o burburinho alegre das famílias, das escolas e dos grupos de amigos que se reúnem para celebrar não apenas um feito histórico, mas a coragem, a união e a identidade de toda a cidade.

Os caldeirões de chocolate — do minúsculo, delicado, perfeito para as mãos infantis, ao imponente, quase monumental, destinado a grandes festas — estão à venda nas tradicionais chocolaterias genevenses, cada um cuidadosamente moldado à mão, com o brilho profundo do cacau e a promessa de surpresas doces em seu interior. Cada caldeirão é um fragmento de história, uma peça de memória que será tocada, segurada e, por fim, quebrada com entusiasmo e reverência.

Ao longo do período da celebração, cada grupo recria o gesto, e cada estalo de chocolate rachando é um eco do passado, uma ponte que une gerações. O ritual fortalece laços de comunidade e amizade, transforma a alegria em símbolo compartilhado e reafirma a identidade genevense, aquela que nasceu da coragem de um povo comum, disposto a fazer história em uma noite gelada de dezembro.

E assim, entre o calor dos lares, o perfume do chocolate e o riso das crianças, Genebra celebra mais do que um episódio militar: celebra-se a memória viva, o elo entre passado e presente, e a beleza de uma tradição doce, compartilhada, capaz de atravessar séculos sem perder sua força e encanto.


E assim, após atravessar séculos de história, de aromas e de gestos de coragem, percebemos que a memória e a doçura caminham lado a lado. A noite de Mère Royaume, a sopa fervente, os muros de Genebra, o caldeirão de chocolate e os legumes de marzipan não são apenas lembranças: são pontes que nos conectam à coragem, à criatividade e à comunhão humana. Cada gesto, cada sabor, cada fragmento de chocolate estalando nos dedos é um pequeno milagre, um tributo à invenção, à partilha e à alegria de existir em comunidade.

Confesso, contudo, que não sou um exímio chocolatier, não tenho a magia de transformar cacau em obras-primas monumentais. Mas há outras formas de participar dessa festa de memórias e sabores. Podemos aprender a receita do marzipan, moldar docinhos de leite em pó, inventar pequenas flores, animais, personagens ou sonhos — e, com isso, colorir as mesas de nossas celebrações de fim de ano com criatividade, alegria e poesia.

No fundo, a beleza está exatamente aí: não na perfeição do gesto, mas na intenção, na partilha e na capacidade de reinventar, ano após ano, os sabores que nos conectam à história, à tradição e à magia de sermos, mesmo que por instantes, artesãos do doce e da memória. Que cada mordida seja, portanto, um ato de amor, uma celebração da coragem e uma homenagem à doçura da vida. 

Marzipan Caseiro (Massa de Amêndoas Doce)

200 g de amêndoas sem pele (cruas ou levemente torradas)

100 g de açúcar de confeiteiro

1 clara de ovo (aproximadamente 30 g)

1 colher de chá de extrato de amêndoas (opcional, para aroma mais intenso)

Nota: As amêndoas devem estar peladas. A casca amarela ou marrom deixa a massa mais amarga e pode prejudicar a textura lisa. Se comprar com casca, faça o processo de escaldagem e remoção da pele antes.

Modo de preparo: Preparar as amêndoas - Se forem cruas, podem ser usadas diretamente. Para intensificar o sabor, torre levemente em forno a 160°C por 10 minutos. Se tiverem pele, mergulhe-as em água fervente por 1 minuto, retire a pele esfregando entre os dedos ou com um pano, e seque bem. Moer as amêndoas: No processador, moa as amêndoas até virar uma farinha fina, quase uma pasta. Dica: pare o processador algumas vezes para raspar as laterais e garantir moagem uniforme. Evite processar demais para não virar óleo. Adicione o açúcar de confeiteiro à farinha de amêndoas. Misture bem para uniformizar. Coloque a clara aos poucos, mexendo com colher ou espátula até formar uma massa firme, maleável e lisa. Se a massa ficar muito seca, adicione uma gota de água ou um pouco mais de clara; se ficar muito pegajosa, adicione mais açúcar de confeiteiro. Adicione o extrato e amasse até que o aroma esteja distribuído de maneira uniforme. A massa está pronta para ser modelada imediatamente em pequenos legumes, frutas, personagens ou formas abstratas.

Se não for usar na hora, embrulhe em filme plástico e guarde na geladeira por até 1 semana.

Dicas para modelagem:

Polvilhe levemente açúcar de confeiteiro na superfície e nas mãos para evitar que grude.

Para cores, use corantes gel ou pó, adicionando aos poucos e amassando suavemente.

Para detalhes delicados, use ferramentas simples: palitos, pequenas facas ou cortadores de biscoito. 

DOCINHOS DE LEITE EM PÓ

1 lata de leite condensado

1 lata de leite em pó integral (use a própria lata do leite condensado para medir)

1–2 xícaras de açúcar de confeiteiro (aumenta a firmeza da massa)

(opcional: corante gel ou essência para dar cor ou aroma)

Modo de preparo: Misture em uma tigela o leite em pó e o leite condensado até começar a formar uma massa densa. Aos poucos, acrescenta o açúcar de confeiteiro, misturando com as mãos ou uma colher forte.  Quando a massa estiver firme e soltando das mãos, sove rapidamente para ficar homogênea. Descanse por 10–15 minutos, para dar estrutura. Modele bolinhas, pequenas figuras ou qualquer forma que você imaginar. Se quiser, passe no açúcar de confeiteiro para acabamento.

Dicas importantes

Se a massa ficar muito mole, adicione mais leite em pó em pequenas quantidades.

Se ficar seca demais, um pouco mais de leite condensado ou algumas gotas de água ajudam a ajustar a textura.

Essa receita rende muitas unidades e pode ser colorida com essências ou corante gel, dando personalidade ao visual dos docinhos. 

Para os que não gostam muito de leite condensado, vai outra opção

DOCINHOS DE LEITE EM PÓ COM LEITE DE COCO

2 xícaras (chá) de leite em pó (tipo Ninho ou similar)

2 xícaras (chá) de açúcar de confeiteiro (para dar firmeza e doçura)

5 colheres de sopa de leite de coco (aproximadamente 75–80 ml)

(opcional: coco ralado fino para envolver ou passar por fora)

Modo de preparo: Em uma tigela grande, misture o leite em pó com o açúcar de confeiteiro. Aos poucos, adicione o leite de coco e mexa com as mãos ou uma espátula até formar uma massa firme e homogênea que não grude nas mãos. Deixe a massa descansar por 5–10 minutos para ganhar consistência. Modele em bolinhas ou em pequenas formas criativas com os dedos. Se quiser, passe cada docinho no coco ralado ou polvilhe com mais leite em pó para acabamento. Coloque em forminhas de papel e sirva!

Dicas para decorar e servir

Polvilhar com coco ralado ou açúcar de confeiteiro realça a textura e o visual.

Você pode adicionar cravos da índia para um toque clássico de festa.

Colorantes alimentares em gel podem ser usados para criar docinhos temáticos mais alegres.

O leite de coco não apenas segura a massa como também confere uma doçura suave e um aroma tropical que combina lindamente com o sabor rico e lácteo do leite em pó — perfeito para mesas festivas ou para adaptar esses docinhos em formatos inspirados no marzipan genevense. 

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