domingo, 5 de fevereiro de 2017

Rei Alberto – a realeza belga e uma gelatina especial

Gelatinas são um caso de amor e ódio para muitas pessoas. Eu, particularmente, gosto de gelatina, mas com uma ressalva para o uso da gelatina: não suporto quando a utilizam em cheesecakes, não gosto da textura resultante, prefiro o modo francês de preparar cheesecake, ou seja, quando ela é assada.
Na década de 1980 a gelatina tinha uma popularidade enorme no Brasil e surgiram muitos cremes de fácil preparo que usavam gelatinas coloridas, cortadas em cubos ou em camada. Foi pensando nisso que hoje vim trazer uma versão mais sofisticada e histórica: a gelatina rei Alberto.
Em 1920 o casal real Belga veio ao Brasil. Para o país, a vinda de Alberto I (1875-1934) e sua esposa, a rainha Elizabeth da Baviera (1876-1965), seria uma oportunidade sem igual para divulgar o país na Europa: consideravam à época que um perfeito representante da ‘civilização’ poderia testemunhar o progresso nacional e justificar a inclusão do Brasil entre as grandes nações existentes.

Ilustração da primeira página de O Paiz de 19 de setembro de 1920. (clique na legenda para ver o jornal na íntegra) 
Conhecido na Europa como o Rei-Herói, ou Rei-Soldado, Alberto conquistou essa fama durante a Primeira Guerra Mundial, quando a Bélgica foi invadida pela Alemanha, em 1914, e o monarca se colocou à frente das tropas e, mesmo diante de um inimigo mais forte, participou da ofensiva que levou à vitória dos aliados. Com o término da guerra, a Conferência de Versalhes permitiu uma aproximação entre Epitácio Pessoa (1865-1942), chefe da delegação brasileira e recém-eleito presidente da República, e o líder belga. No evento, o rei Alberto foi convidado a conhecer o Brasil. Ele aceitou e veio no segundo semestre de 1920, acompanhado da mulher, Elisabeth da Baviera, e aqui permaneceu quase um mês.

Desembarque do rei Alberto na praça Mauá, 1920. Rio de Janeiro, RJ / Acervo DPHDM
A chegada, numa tarde de domingo, 19 de setembro, foi apoteótica: o povo correu às ruas para receber os soberanos belgas. Enquanto Alberto e Elizabeth percorriam o trajeto que ia do cais do porto ao Palácio Guanabara, a multidão, alinhada por um cordão de isolamento, saudava entusiasmada a passagem do casal real.  Mas o casal real belga além do Rio de janeiro, ainda visitou Petrópolis, Teresópolis, Santos, São Paulo e Belo Horizonte, lugares onde ofereceram-lhe recepções, passeios e banquetes - o governo de Epitácio Pessoa se preparou para receber o casal real belga e as cidades visitadas foram beneficiadas com diversas obras públicas.

Chegada dos reis da Bélgica – Carro a Dumond vendo-se o rei Alberto I e o presidente Epitácio Pessoa, 1920. Rio de Janeiro, RJ / Acervo IMS . Guilherme Santos
O Rio de Janeiro, por exemplo, terminou de alargar a Avenida Niemeyer e construiu o Mirante da Gruta da Imprensa, que leva o nome oficial de Viaduto Rei Alberto. Pelo mesmo motivo teria sido concluída a Avenida Delfim Moreira. A Rua Rainha Elisabeth, ligando os bairros de Copacabana e Ipanema, foi batizada com o nome da soberana belga.
O Rio de Janeiro estava bem enfeitado: as ruas por onde passaram a comitiva estavam embelezadas; os prédios que visitara ganharam manutenção prévia; os pontos turísticos foram preparados para maravilhar o ilustre convidado. E o povo, quando pôde participar, aderiu à festa. Mas, para a surpresa de todos o rei se encantou por um programa para o qual a grande maioria da população do Rio de Janeiro daquela época ainda não havia despertado: os banhos de mar em Copacabana.

Alberto I, o Rei da Bélgica, em trajes de banho na praia, 1920. Rio de Janeiro, RJ / Acervo IMS . Guilherme Santos

O povo brasileiro devotou a Alberto I uma recepção calorosa. Mas, para variar, já àquele tempo, as autoridades o acolheram com segundas intenções. No dia 2 de outubro de 1920, acompanhados do presidente da república Epitácio Pessoa, os reis belgas desembarcaram na Praça da Estação, em BH, em vagões fabricados especialmente para os ilustres turistas. Muitos belo-horizontinos foram à estação de trem ver de perto e, pela primeira vez, representantes de uma realeza.
De lá, o casal real seguiu em carruagem para o Palácio da Liberdade, também minuciosamente adaptado para agradar aos reis. O imóvel, símbolo máximo do poder mineiro, ganhou mobília no estilo Luis XV, que ainda pode ser apreciada no salão nobre do prédio histórico. O quarto do governador, porém, foi o cômodo que recebeu mudanças mais significativas. "O quarto era bem mais simples. Do Rio de Janeiro, vieram artigos no estilo Luis XVI e com detalhes em rococó, folheados à ouro", conta Bruno Mitre, curador do Palácio da Liberdade, que é aberto à visitação pública aos sábados, domingos e feriados.

Chegada dos reis da Bélgica em 1920 na estação de Belo Horizonte (Autor desconhecido). 
O presidente do estado, Arthur Bernardes, como bom anfitrião, cedeu o quarto do palácio para o rei e a rainha belga. No entanto, ele não ficou muito longe dos monarcas, já que se hospedou no Solar Narbona, oferecido pela família detentora do imóvel – e que dá nome a ele –, que fica bem ao lado, na avenida Cristóvão Colombo.
Em agradecimento à boa recepção que tiveram, os reis presentearam o político mineiro com um casal de cisnes negros. Essa atitude agradou ao presidente do estado, e se tornou uma tradição, já que os governadores que o sucederam mantiveram a presença dessa espécie de ave no lago, nos fundos do palácio, até hoje.
Em Minas Gerais, o então governador Arthur Bernardes, futuro presidente da República, convenceu o rei belga da vocação siderúrgica do Estado e conseguiu o que queria: tempos depois da visita de Alberto I, chegava ao Brasil a missão técnica europeia que originaria a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, fundada em Sabará, hoje, Arcelor Mittal.
A presença de reis em Belo Horizonte aguçou a curiosidade de muita gente. O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, ainda com 17 anos, escreveu os versos intitulados A Visita do Rei: "Vejo o rei passar na avenida Afonso Pena/onde só passam dia e noite, mês a mês e ano, burocratas, estudantes, pés-rapados/Primeiro rei entre renques de fícus e aplausos,/primeiro rei (verei outros?) na minha vida./Não tem coroa de rei, barbas formidáveis/de rei, armadura de rei, resplandecente ao sol da Serra do Curral./É um senhor alto, formal, de meia-idade,/metido em uniforme belga,/ao lado de outro senhor de pince-nez,/que conheço de retrato: o presidente do estado/Não vem na carruagem de ouro e rubis das estampas./Vem no carro da Daumont de dois cocheiros/e quatro cavalinhos mineiros bem tratados".
Bernardes ofereceu ao casal real um banquete memorável, com o cardápio em francês, conforme o protocolo: consommé de creme de bruxelles (creme de couve), médaillons de turbot a l’ ostensdaise (peixe), noisettes de pauillac a L’écossaise (batatas) – pedaços redondos de carne de cordeiro viraram noisettes; e pato pequeno era chamado de caneton. Também se descreveu na língua estrangeira uma receita de macuco, ave brasileiríssima, grande como o peru, conhecida pelos ovos azuis e pio de uma nota só. Hoje se encontra em extinção e, portanto, sob proteção da lei ambiental. Caçá-la é crime inafiançável. No cardápio do banquete, a ave se transformou em Macucos Truffés à la Royale. Se o cozinheiro seguiu a fórmula clássica, desossou o macuco, preparou-o escalfado e o serviu guarnecido de quenelles (bolinhos de carne de porco ou vitelo ligada com ovo e moldados com a colher), trufas e talvez escalopes de foie gras.
Obviamente, a sobremesa criada para a ocasião foi apresentada em francês. Intitulava-se Dessert Brésilien e, após o banquete, virou doce nacional. A tradição mineira assegura que se tratava da elaboração conhecida popularmente como Gelatina Rei Alberto. No livro Fogão de Lenha - Quitandas e Quitutes de Minas Gerais (Editora Vozes, Petrópolis, 1977), Maria Stella Libanio de Christo avaliza a versão. Publica a receita com o segundo nome e uma observação: ''Servida no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, quando da visita dos soberanos belgas.''


A Gelatina Rei Alberto tem as cores da bandeira da Bélgica, representada pelos doces que a compõem. É preta (purê de ameixa), amarela (ovos moles) e vermelha (gelatina de morango, framboesa ou cereja). Entretanto, foi no Rio Grande do Sul, onde o soberano não pôs os pés, que encontrou maior difusão.


Obviamente a visita dos reis belga não terminou com esse jantar, mas o motivo aqui era apenas ter um pano de fundo para a receita dessa gelatina deliciosa. A receita segue abaixo, assim como algumas sugestões de leitura para quem se interessar em saber mais sobre a visita do casal real belga pelo Brasil.

Sugestões de leitura: 
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra – moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
Copacabana 1892-1992 – subsídios para a sua história. Rio de Janeiro: Comissão Organizadora das Comemorações do I Centenário do Bairro de Copacabana, 1992.
FAGUNDES, Luciana Pessanha. Uma República em festa: a visita dos reis da Bélgica ao Brasil (1920). Dissertação de mestrado, UFRJ, 2007.

Gelatina Rei Alberto
Gelatina:
2 caixinhas de gelatina vermelha em pó (morango, framboesa etc.);
2 xíc. (chá) de água fervente;
1 xíc. (chá) de calda de abacaxi em compota;
1 xíc. (chá) de água fria ;
1 1/2 xíc. (chá) de abacaxi em compota, em pequenos cubos 
Purê de ameixa:
200g de ameixa preta em compota;
1 1/2 xíc. (chá) de água;
1 xíc. (chá) de açúcar.
Ovos moles:
250g de açúcar;
1/2 xíc. (chá) de água;
10 gemas passadas pela peneira;
1/2 colher (sopa) rasa de manteiga;
3 gotas de essência de baunilha.
Merengue suíço:
1 xíc. (chá) de clara;
1 1/2 xíc. (chá) de açúcar.
Decoração: cerejas.

Preparo Gelatina: Dissolva a gelatina na água fervente. Junte a calda do abacaxi e a água fria. Mexa e distribua em taças. Coloque o abacaxi na gelatina e leve para gelar. Faça na véspera. Purê de ameixa: Cozinhe as ameixas com a água e ferva até amaciarem. Tire os caroços, amasse com um garfo, misture o açúcar e volte ao fogo apenas para engrossar um pouco a calda. Reserve. Ovos moles: Misture o açúcar com a água e as gemas. Junte a manteiga e mexa em fogo brando, até formar bolhas. Acrescente a baunilha e retire do fogo. Deixe esfriar dentro da panela, sem mexer. Reserve. Merengue suíço: Misture as claras ao açúcar e esquente em fogo brando, mexendo sempre, até o açúcar dissolver, formando uma espuma branca. O calor não deve exceder 55ºC, para as claras não cozinharem. Bata na batedeira, até formar um merengue firme. Montagem: Nas taças, distribua o doce de ameixa sobre a gelatina. Em cima, coloque o doce de ovos e por fim o merengue. Deixe gelar, decore cada taça com uma cereja e sirva.

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