terça-feira, 19 de março de 2024

Maultaschen - um impertinente prato com carne servido durante a Quaresma

 

Às vezes fico observando o tempo passar e me dou conta o quanto ele passa rápido e traz muitas transformações com ele. E os feriados santos são uma boa oportunidade para observar isso de perto. Como nasci numa família católica, num lugar com predomínio de católicos, identificar ritos durante a Semana Santa era algo fácil e curioso: cada ritual me despertava ânsia em descobrir os motivos das coisas encontradas durante aquelas celebrações existirem. Foi assim que aprendi cedo a ligação dos ovos com a Páscoa; de como se deu a ideia de coelho trazendo ovos nesse feriado (já tratei sobre isso AQUI); a ideia de jejuar excluindo as comidas ditas ‘gordas’ durante a Quaresma e, especialmente, na Sexta Feira Santa.

À medida que o fim de semana da Páscoa se aproxima, e com ela momentos de festa e celebração com a família e amigos, eu fico ainda curioso para descobrir comidas ‘novas’ que se tornaram ícones nesse período tais como: o casatielo (AQUI), a potica (AQUI), a cassata (AQUI), a mouna (AQUI), a colomba pascal (AQUI), o fiadone (AQUI), a babka (AQUI), a capirotada (AQUI), o pretzel (AQUI), o tsouréki (AQUI), o  folar de páscoa (AQUI) e o pão de coco cearense (AQUI).

Mas o que vou tratar hoje é algo que vai bem com a minha índole, um tanto questionador e rebelde, mesmo sabendo que a tradição da festa cristã recomenta que se coma peixe em vez de carnes (bovina, suína e aves) na Sexta-Feira Santa.

Só para relembrar aos esquecidos sobre a origem da prática tudo começa, como conta a história, que Jesus sacrificou a sua própria carne na Sexta-Feira Santa. Logo, tradicionalmente, os católicos se abstêm de comer carne neste dia. Em vez disso, o peixe é considerado um tipo de produto animal mais favorável para consumo.

A igreja medieval decretou que a carne de animais de sangue quente não deveria ser consumida às sextas-feiras, daí a substituição pelo peixe. Outros tipos de cristãos acreditam que comer peixe na Sexta-feira Santa simboliza o dia na Bíblia em que Jesus foi morto pelos romanos.

Os peixes também foram usados como sinal pelos primeiros cristãos para se identificarem, por exemplo, para marcar e reconhecer locais de encontro designados. Era conhecido como "ichthus" e usado junto com a cruz de Jesus Cristo na comunidade cristã primitiva.

O peixe é baseado em um acróstico das letras iniciais das palavras gregas para Jesus Cristo. Para entender esse símbolo, você precisa saber o significado da sigla. A palavra grega para peixe é “Ichthus”, que também é um acrônimo para Jesus. O latim, "Iesous CHristos THeou Uios Soter" é traduzido em inglês como "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador".. Cristo também se referiu aos seus apóstolos como “Pescadores de Homens”, enquanto os primeiros pais cristãos chamavam os fiéis de “pisculi”, que significa “peixe”. Como alguns dos discípulos de Jesus também eram pescadores, o peixe é visto como um bom substituto da carne na Sexta-Feira Santa, visto que é regularmente referenciado nos relatos da vida do filho de Deus.

Na época de Jesus, o peixe era visto como um alimento diário de fácil acesso - e pescar era muito mais fácil do que abater um animal ou ir caçar. No entanto, na década de 1960, o Papa João XXIII interveio e alterou a decisão, pois ele acreditava que o jejum deveriam ser mais que abstenção de comida, como mostra esse trecho de uma mensagem de rádio proferida pelo Papa João XXIII (que pode ser conferida pela Vaticano News):

“Eis aqui como, com a instituição da quaresma, a Igreja não conduz simplesmente seus filhos ao exercícios de práticas exteriores, mas a um compromisso sério de amor e de generosidade para o bem dos irmãos, à luz do antigo ensinamento dos profetas: Acaso o jejum que eu prefiro não será isto: soltar as cadeias injustas; - adverte Isaías -  desamarrar as cordas do jugo; deixar livres os oprimidos, acabar com toda espécie de imposição? Não será repartir tua comida com quem tem fome? Hospedar na tua casa os pobres sem destino? Vestir uma roupa naquele que encontras nu e jamais tentar te esconder do pobre teu irmão?”.

Assim, João XXIII disse que essa tradição poderia ser modificada dependendo da situação econômica de uma pessoa, portanto, comer peixe na Sexta-Feira Santa passou a ser apenas uma orientação, e não a regra.

Pois bem, e quando você de repente descobre que membros da própria Igreja burlava essa regra? Não quero julgar com adjetivos errôneos, apenas apresentar fatos.

A história de hoje irei apresentar “os pequenos trapaceiros de Deus”, o Maultaschen, um tipo de massa recheada alemã preparada pelos monges cistercienses no mosteiro de Maulbronn, localizado no estado de Baden-Württemberg, no sudoeste da Alemanha


                                       Mosteiro de Maulbronn

O Mosteiro de Maulbronn é um lugar de lendas fundado em 1147 e declarado Patrimônio da humanidade pela Unesco no ano de 1993. O nome apareceu em registros históricos como ‘Mulenbrunnen’, o que sugere um local próximo a uma fonte de água (“Brunnen” em alemão) que alimentava um moinho (“Mulin” em alemão médio-alto). Também apareceu como ‘Mulibrunnen’, o que sugere uma mula (‘Maultier’ em alemão, apelidado de ‘Muli’). Diz a lenda que quando os monges saíram em busca de um local para o seu novo mosteiro, pegaram uma mula e, quando o animal parou para beber água, interpretaram isso como um sinal de Deus para que ali permanecessem e construíssem o seu mosteiro. Outra versão diz que a mula deu patadas no chão e descobriu água naquele local. Seja qual for a verdade, uma mula bebendo de uma fonte aparece no brasão da cidade, e a imagem também é retratada em uma pintura em ocre vermelho acima da fonte de três taças na Casa da Fonte do mosteiro.

                                                              O brasão de Maulbronn

Neste Patrimônio Mundial da Unesco, fundado em 1147 - o complexo monástico medieval mais bem preservado ao norte dos Alpes - os visitantes podem fazer um curso de duas horas sobre como fazer Maultaschen, grandes travesseiros de massa tradicionalmente recheados com carne picada e carne defumada (geralmente carne de porco), espinafre, farinha de rosca (pão ralado), ervas e especiarias. Cada Maultaschen enorme mede até 12 cm de diâmetro, com a versão mini do Maultaschen, ou ‘Maultäschle’ no dialeto da Suábia, medindo entre 5 a 7cm. O Maultaschen genuíno deve ser produzido na Suábia, uma região histórica que hoje está incorporada a Baden-Württemberg e ao distrito governamental da Suábia, na Baviera. Em 2009, a União Europeia reconheceu o Maultaschen como uma especialidade regional

Tradicionalmente servido durante a Quaresma num caldo quente guarnecido com cebolinhas, este prato centenário está associado à Sexta-feira Santa, última sexta-feira da Quaresma. Os católicos, juntamente com alguns outros cristãos, são encorajados a abster-se de comer carne durante a Quaresma, especialmente na Sexta-Feira Santa – e essa massa destinava-se a esconder o recheio de carne “pecaminoso”.


Vista do alto de todo o complexo do mosteiro que foi patrimonializado pela UNESCO.

Existem três lendas principais sobre como o Maultaschen da Suábia surgiu. A primeira diz que os saquinhos de massa recheados eram uma cópia do ravióli italiano, trazido do outro lado dos Alpes pelos valdenses, membros de um movimento cristão. A segunda, conta que Maultaschen era uma lembrança culinária de viagem da condessa alemã Margaret Maultasch, uma nobre senhora que trouxe a receita do Tirol, nos Alpes austríacos: ela era chamada de Maultasch, ‘boca de bolsa’, devido ao formato de sua mandíbula deformada.

A terceira diz que o prato teve origem no século XVII, durante a Guerra dos Trinta Anos, uma criação inteligente de um monge cisterciense do Claustro de Maulbronn. Os monges eram proibidos de comer carne, por isso colocaram-na dentro de um travesseiro de massa para esconder o recheio dos olhos de Deus. Traduzido literalmente como “bocal”, o apelido do prato no dialeto da Suábia, Herrgottsbescheißerle, significa “pequenos trapaceiros de Deus”.


Ordem de Cister, ou Ordem Cisterciense (Ordo Cisterciensis, O. Cist.), é uma ordem religiosa monástica católica beneditina restaurada. Os Cistercienses eram um grupo rigoroso: a regra de ‘ora et labora’ (orar e trabalhar) era obedecida rigorosamente. Monges leigos e monges sacerdotes desempenhavam funções diferentes e ocupavam instalações separadas; os monges leigos eram responsáveis pelo trabalho físico e pela culinária, e não tinham permissão para entrar em nenhuma das salas designadas aos monges sacerdotes. Os monges sacerdotes, educados e oriundos de famílias nobres, passavam a maior parte do tempo rezando e até ouviam as orações enquanto comiam em silêncio.

A ração diária de um monge sacerdote era composta por meio quilo de pão de farinha grossa e pequenas porções de peixe, vegetais, cereais e fruta. Mas, sabe-se que eles também comiam castores e sapos. Os cistercienses (exceto os doentes) não tinham permissão para comer nada com quatro pés, pois a carne era luxuosa demais para se adequar aos seus valores de pobreza e a renúncia à carne era um sacrifício a Deus - mas aparentemente os pés palmados eram uma exceção. Os monges leigos comiam separadamente e recebiam porções maiores devido ao trabalho físico que seus cargos exigiam. Por isso, há quem diga que essa preparação em especial era feita no estábulo do mosteiro, longe dos olhos dos supervisores – lugar que, aliás, é onde hoje se mantem o curso de preparo dessa especialidade.

Hoje no mosteiro de Maulbronn, o curso dessa ‘massa pecaminosa’ é feito numa cozinha instalada no antigo estábulo de mulas do mosteiro. Lá, se encontram dispostos todos os ingredientes do Maultaschen: folhas de massa já pronta e abertas, salsa, alho-poró, pão de molho, pão ralado (farinha de rosca), presunto, queijo ralado, sal e pimenta, além de ovo para colar a massa. E quem se inscreve nesse curso pode se equiparar aos monges leigos, porque farão o trabalho físico e cozinharão.

Geralmente se usam réguas para medir retângulos da folha de massa pré-medida, e os aprendizes são instruídos a preencher e dobrar em quadrados de 7 cm – como aponta sempre o exigente chefe da administração do mosteiro, que supervisionava o programa do curso culinário. Depois de se rechear os retângulos de massa, eles são fechados e pressionando os dentes do garfo nas bordas. E logo eram cozidos em caldo quente.

O Mosteiro de Maulbronn passou por um período tumultuado durante a turbulência religiosa e política da Reforma do século XVI. Em 1504, o mosteiro medieval foi tomado pelo duque Ulrich de Württemberg, que mais tarde se tornou um convertido luterano. Os cistercienses conseguiram retornar duas vezes, mas apenas por breves períodos. A partir de 1536 o mosteiro deixou de ser católico; os monges foram forçados a partir e Maulbronn tornou-se um estabelecimento protestante.


Hoje, o complexo ainda é central para a vida local, oferecendo um mercado verde sazonal e concertos e outros eventos durante todo o ano. Em vez de monges, abriga uma escola secundária protestante academicamente exigente, com 100 alunos internos; ao longo dos séculos, alunos proeminentes como Hermann Hesse passaram por suas portas. Em ocasiões especiais, às vezes os alunos recebem Maultaschen.

Maultaschen é preparado de várias maneiras, incluindo fervido em caldo ou salteado na manteiga. Além disso, o Maultaschen de hoje é muitas vezes feito com recheios não tradicionais, incluindo salmão, carne de veado e até chouriço com chucrute.

Nesse interim apareceu outra estória para justificar a preparação: diz-se que dois meninos pobres vieram de uma cidade próxima para Maulbronn porque o pai não tinha dinheiro para alimentá-los. Tornaram-se monges leigos e foram totalmente incluídos na vida monástica. Um dos meninos, que trabalhava na cozinha, ganhou de presente um grande pedaço de carne. Como a carne era proibida, ele teve que escondê-la dos irmãos, então colocou-a num barril e adicionou sal para conservá-la. Depois de algumas semanas, ele sabia que precisavam comer a carne ou ela estragaria. Na Sexta-Feira Santa, ele cortava a carne em pedaços, acrescentava ervas, ocultava a mistura na massa e servia aos monges. Talvez eles não reconhecessem o que comeram ou não quisessem saber porque era tão delicioso. Foi também assim que ele escondeu isso do Senhor, e por que seu [apelido] é Herrgottsbescheißerle – trapaceiros de Deus.

Essa massinha alemã cai perfeitamente bem acompanhada de uma salada de batata da Suábia feita com vinagre e azeite em vez de maionese, típica de outras regiões alemãs. A receita é bem fácil. E os recheios podem ser adaptáveis hoje em dia. Mas, o original requer alguns cuidados.

Um dos principais ingredientes do Maultaschen tradicional é o que é chamado de “Bratwurstbrät” na Alemanha. Sem ele você simplesmente não consegue replicar um sabor autêntico.

O que é Bratwurstbrät?

Receitas alemãs autênticas geralmente pedem uma combinação de carne moída e algo chamado Bratwurstbrät – que é a mistura de carnes usadas para fazer salsichas alemãs. Na Alemanha, como salsicha italiana a granel ou linguiça de café da manhã a granel, você pode ir ao açougue e comprar Bratwurstbrät. O desafio é que fora da Alemanha é quase impossível encontrá-la. Então apresento uma receita de Bratwurstbraet caseira combinada com carne moída para fazer o recheio Maultaschen. E tem o mesmo sabor do produto genuíno da Alemanha. Problema resolvido.

Como fazer Bratwurstbrät

Tecnicamente, se você encontrar autênticas Bratwursts alemãs, poderá cortar a pele e espremer o recheio e usá-las para o recheio Maultaschen (no lugar da carne de porco moída) junto com a carne de vaca moída. Hoje em dia as lojas especializadas em carnes e charcutaria é possível encontrar esse tipo de linguiça alemã. Mas na receita abaixo vai a minha dica.

Maultaschen

Ingredientes (para 4 pessoas):

250 g de farinha de trigo

Sal

2 ovos

2 colheres (sopa) de óleo

Farinha para trabalhar a massa

100 g de espinafre picado congelado ou 200 g de espinafre fresco

5 cebolas

200 g da mistura de carnes (carne de vaca moída e carne de linguiças alemãs – pro caso de você não achar, misture com carne de porco ou bacon)

2 colheres (sopa) de farinha de rosca

Pimenta-do-reino

Noz-moscada

50 g de manteiga

Caldo de sua preferência (opcional)

Preparo: Misturar a farinha com ½ colher de chá de sal, os ovos, o óleo e 3 colheres de sopa de água. Trabalhar com as mãos até obter uma massa homogênea. Cobrir com um pano úmido e deixar descansando em temperatura ambiente durante 20 minutos. Se usar o espinafre congelado, colocá-lo num saco para congelar fechado, na água quente e deixar descongelar durante 20 minutos. Se usar o fresco, lavá-lo e picá-lo. Descascar e picar bem uma cebola. Bater no processador o espinafre, a cebola, a carne moída, farinha de rosca, sal, pimenta-do-reino e noz-moscada a gosto. Dividir o recheio em quatro partes iguais. Dividir a massa de farinha ao meio. Abrir uma das duas metades com um rolo sobre uma superfície enfarinhada, até ficar com cerca de 40 cm de diâmetro. Dividir a massa aberta ao meio novamente, obtendo duas meias-luas. Espalhar um quarto do recheio sobre uma das meias-luas, deixando uma borda de 2 cm. Pincelar as bordas com água. Rolar a massa a partir da parte redonda, fechando-a com uma largura de cerca de 5 cm. Achatar um pouco. Segurar cada extremidade do cabo de uma colher de pau com uma das mãos e pressionar sobre o rolo, deixando quatro sulcos de modo a obter quatro retângulos. Achatar os sulcos até ficaram com cerca de 1 cm de largura. Pressionar as extremidades do rolo de massa para que o recheio não saia. Nos sulcos, separar os retângulos um do outro com um cortador de pastel ou uma faca. Certificar-se de que os retângulos estão fechados de ambos os lados. Proceder da mesma maneira com as demais meias-luas de massa e o recheio restante. Quando todos os maultaschen estiverem prontos, colocar água para ferver com sal. Cozinhar alguns maultaschen por vez na água fervente, com a panela fechada e em fogo médio, por cerca de 15 minutos. Descascar as quatro cebolas restantes e cortá-las em rodelas finas. Aquecer a manteiga numa frigideira e refogar a cebola em fogo médio até ficar transparente. Retirar os maultaschen da água fervente com uma escumadeira, deixar escorrer e passá-los rapidamente pela frigideira com a cebola. Servir com a cebola por cima. Se preferir, servi-los mergulhados em caldo de sua preferência.

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